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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, March 29, 2012

“A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” de Edgar Allan Poe (Assírio & Alvim)








Tradução de Jorge Pereirinha Pires





Sendo filho de actores e tendo ficado órfão muito cedo, Edgar Allan Poe foi adoptado por um casal com quem tinha laços de sangue. No entanto, a forte inclinação demonstrada pelas letras não era propriamente sedutora para um pai adoptivo, que idealizava para o filho uma carreira tradicional ligada às forças armadas.
O clima de conflito, motivado pelas dissidências com a família, impeliram Poe a usar a escrita para sobreviver, uma necessidade de onde nasceria a presente obra, que reunia a projecção da vida interior e a imaginação do Autor. Imaginação e criatividade essas que foram adaptadas ao desejo de agradar ao grande público, fazendo-se publicar, periodicamente, na revista “Southern Literary Messenger”.


A trama de A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket consiste numa viagem mítica ou imaginária ao Pólo Sul, numa altura em que a Antárctida era um continente do qual se sabia muito pouco.
A vivência do protagonista do romance, junto de uma comunidade situada numa zona remota daquele gélido continente, faz lembrar um pouco a ilha perdida de Camões no Canto IX de Os Lusíadas, pelas características ligadas ao sonho e ao imaginário, como veremos mais adiante.
As inúmeras intertextualidades contidas na obra abrem-nos caminhos quase infinitos no que respeita à interpretação e ao imaginário dos leitores de Poe no século XIX e décadas seguintes. As afinidades literárias deste texto encontram-se reflectidas, por exemplo, em Jules Verne, em alguns dos seus romances de aventuras e, particularmente, no conto “A Esfinge de Gelo”. Ambos, aliás, são precursores do género a que hoje se chama de “ficção científica”.
O progresso nos vários domínios da Ciência, ocorrido na época em que o romance foi publicado e nos anos que se lhe seguiram, permite avaliar, em primeiro lugar, o elevado grau de conhecimento de vanguarda para a época, demonstrado pelo Autor, no que respeita ao conhecimento de técnicas de navegação. O preciosismo e rigor impressos na linguagem, na gíria normalmente utilizada a bordo de um navio de longo curso, a par do detalhado conhecimento geográfico e técnicas de navegação, é verdadeiramente notável, conferindo à obra um toque de realismo nos capítulos que relatam as condições em que se processa a viagem e a rotina a bordo.

A intertextualidade com Hermann Melville está patente na descrição do contacto com a tribo perdida na Antárctida, lembrando a adversidade da geografia e do clima com que se debate o protagonista de “Taipi”, assim como o romance náutico “Moby Dick”. Para muitos as influências literárias desta obra manifestam-se ainda em em Coleridge, que numa das suas obras fala, também, numa comunidade supostamente a residir no Pólo Sul que se pode observar no conto “A Descida ao Maëstrom”, e a Daniel Defoe em “Robinson Crusoe”. E, mais tarde,  em H.P. Lovecraft que recupera a presente obra para o conto “Nas Montanhas da Loucura” .

Allan Poe, além de projectar a vivência pessoal no imaginário e no discurso do protagonista, transmite-nos, também, através do olhar deste, o progresso do conhecimento científico da época, particularmente na área da química e da engenharia, sobretudo com a descoberta da electricidade, colorido pelo imaginário popular recheado de mitos e superstições.

A existência da Antárctida só tinha sido constatada em 1820, pouco mais de dez anos antes da publicação deste livro. Este (des)conhecimento incluía tanto  os contornos geográficos como a fauna, a flora, os pormenores das condições climáticas, em todo o território do referido continente, assim como o grau de desenvolvimento das populações que, supostamente, ali viveriam.


Trata-se de uma estória Atlântica que se assemelha um pouco à busca da mítica Atlântida.
Na edição portuguesa, a adaptação do vocabulário usado na marinha foi retirado do glossário da obra  “Como se fala a bordo” de Francisco Penteado (1912).
 Para o tradutor, trata-se de um livro “misterioso”, “inconclusivo”, “que aparenta estar inacabado na medida em que se sai dele ainda com mais incógnitas do que quando se entrou”, sendo essa mesma característica uma das grandes mais-valias da obra. Um aspecto curioso são as referências ao Brasil e a Cabo Verde, aos vinhos do Porto e da Madeira durante o trajecto da atribulada viagem.


Estilo e Personagens

O estilo utilizado pelo narrador é, predominantemente, narrativo, assemelhando-se à escrita de um diário de bordo, com a vantagem de colocar o leitor a dentro do quotidiano da tripulação de um navio de longo curso e, simultaneamente, dar-lhes a visão particular do protagonista que acumula a função de narrador participante, emitindo juízos de valor e morais.

Este narrador, Arthur Gordon Pym, é um jovem estudante que, juntamente com um colega e companheiro de quarto, decide embarcar num navio, rumo ao Sul, em busca de aventuras, após afastar o tédio da rotina das aulas com uma bebedeira. Escondido no porão do navio, depara-se, então, com um conjunto de dificuldades logísticas que não havia previsto.
À alegria proporcionada pelo encontro inesperado com um “amigo” canino segue-se o terror, quando se apercebe de um súbito ataque de loucura ou raiva do mesmo, no meio da fome, da sede e da escuridão. Sem saber que no convés está a decorrer um motim que transforma o navio num mar de sangue, onde a carnificina atinge um paroxismo quase que infernal, Arthur suspeita que algo de horrível se passa na parte superior do navio, mas não consegue ler a mensagem do colega.
O naufrágio sofrido, mais tarde, pelo navio onde viajam, obriga-os a mudarem-se para uma jangada onde aumentam, ainda mais, as dificuldades. A passagem de um navio fantasma, onde tripulação e passageiros apodrecem dizimados pela peste, acentua-lhes o desespero, dando-se neste momento da narrativa mais um surto de loucura temporária entre os náufragos, onde um breve episódio de canibalismo ilustra o desespero e a incerteza face ao futuro, inibindo os tabus socialmente instituídos e passando a imperar uma ética utilizada em situações limite, norteada pela lei da sobrevivência do mais forte ou mais apto. Este trecho permite colocar em evidência a importância das ideias do darwinismo social, que começavam a ganhar impacto na época em que a obra foi escrita.
Com a recolha dos náufragos e o embarque num navio rumo ao Pólo Sul, o rumo da história inflecte, passando a descrever a viagem com um itinerário definido e percorrendo várias fases: uma objectiva e realista, baseada na cartografia da época, e outra imaginária, a partir do paralelo 84º sul. Este seria o ponto mais longínquo, explorado até à data da publicação da obra. Ao atingir o Oceano Glacial Antárctico, a tripulação encontra dificuldades acrescidas pelo gelo, que impede um abastecimento eficaz, ao que se soma a ameaça do escorbuto.
A passagem do paralelo 84º sul marca a entrada num território desconhecido no qual o autor constrói uma estória ou narrativa secundária, envolvendo uns poucos exploradores aventureiros que dão de caras com um micro-clima quase tropical, onde habita uma comunidade de aborígenes.
 A partir daqui, o autor constrói uma alegoria onde estão presentes o choque de culturas e civilizações, traduzido numa luta pelo poder marcada pelo etnocentrismo, aludindo ao domínio colonial a partir da Europa. Ali, os sobreviventes do primeiro navio deambulam por um labirinto subterrâneo no sentido de escaparem à dizimação feita pela comunidade autóctone.
O Autor introduz, também, uma estranha fauna mítica-imaginária que delicia o imaginário dos leitores, como o urso gigantesco, maior do que o do Árctico, uma estranha doninha ou musaranho da cor da neve, “com o pêlo cor de gelo de um branco sedoso”, dentes e garras escarlates.
Os habitantes locais caracterizam-se por “mulheres tímidas mas solícitas” e por homens desconfiados, com medo dos forasteiros, que acabam por tornar-se agressivos, sugerindo um conflito, muito darwinista, pela posse das fêmeas, onde a animalidade se sobrepõe à sociabilidade.
A ameaça da fome e o medo de um ataque canibal, por parte dos dois aventureiros que restaram da tripulação inicial, acabam por precipitar a fuga do local.
Ao longo da narrativa, praticamente todos os companheiros do naufrágio do primeiro navio vão morrendo  de forma atroz, sobrando apenas dois e sendo um deles o narrador, Arthur, e Peters, o outro, que recolhe os apontamentos do companheiro para publicação.
A fuga para sul, o ponto para onde todas as águas parecem convergir, parece-se com um inferno branco onde o gelo e o calor se (con)fundem, proporcionando um final onde está presente um onirismo  delirante, febril – inspiração vinda , talvez, do láudano, do qual Poe era dependente -  um inferno de gelo escaldante sobrevoados pelos Tekeli-li, os sinistros pássaros cor de gelo, temidos pelos locais e que parecem ser os guardiões das portas do inferno. Ou do paraíso, estando, de uma forma ou de outra, conotados com a morte.
As portas para o centro da terra (ou para o céu) parecem ali estar recobertas por uma descomunal camada de gelo até então nunca vista, sob a qual se regista intensa actividade vulcânica, numa zona assolada por uma chuva de cinzas esbranquiçadas (semelhantes às de um forno crematório?)

O avistar, pelo protagonista, de uma gigantesca figura amortalhada marca o sucumbir deste à loucura e ao delírio, perdendo-se no inferno (ou paraíso) branco. A sobrevivência do companheiro Peters serve de justificação para a preservação do caderno de apontamentos de Arthur, que Peters decide publicar e, desta forma, explicar o início da trama. Esta, do ponto de vista da estória de Arthur Gordon Pym será uma narrativa aberta, mas circular, do ponto de vista global da narrativa, por englobar o período após o desaparecimento do protagonista.

O final da estória deixa muitos aspectos por explicar…remetendo para as epopeias clássicas, com viagens marítimas recheadas monstros, perigos e peripécias.

Um marco importantíssimo na História da Literatura de ficção científica.

Cláudia de Sousa Dias


Publicado originalmente no site orgialiteraria em Julho de 2009.

Sunday, March 18, 2012

"Lúcio Feteira – A História Desconhecida" de Miguel Carvalho (Quidnovi)



Este primeiro volume sobre Lúcio Thomé Feteira da autoria do Grande Repórter da Revista Visão Miguel Carvalho não é, propriamente, uma biografia, mas muito mais um retrato. Daí a imagem na capa – a fotografia de Lúcio Feteira, no auge da sua juventude – um retrato físico, que nos dá a conhecer as feições e o porte elegante do milionário, e o retrato psicológico, de grande complexidade, que nos é transmitido pela escrita jornalística, que tem o cunho do perfeccionismo de Miguel Carvalho nas suas reportagens. Um retrato que nasce da compilação de inúmeras entrevistas; que parte da consulta de um impressionante acervo documental, espalhado um pouco por todo o país, incluindo Vila Nova de Famalicão – na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, na Biblioteca Nuno Simões e, também, no acervo documental da Biblioteca da Fundação Cupertino de Miranda. 


Não é a intenção do Autor a de, ao escrever este livro, julgar o tempo ou o homem que são aqui retratados, mas a de descrever a envolvência ambiental, em termos socioeconómicos, e as atitudes individuais do protagonista da obra, na tentativa de ficarmos a conhecer um pouco melhor quem foi, na verdade, Lúcio Thomé Feteira: um homem megalómano, genial, louco, inteligente, de temperamento instável, explosivo, manipulador, racional, ambicioso ao extremo, sedutor – um ser a quem se ama ou odeia. Sem meio termo. Atrai prestígio, atrai invejas. Possui o toque de Midas. E há quem o persiga com sanha, por vezes com razão, outras nem tanto. O conflito de interesses, desencadeado pela sua visão estratégica do negócio – muito à frente do seu tempo –, e pela sagacidade demonstrada, a qual muitas vezes cruzava os limites da ética, assim o obriga. 

Lúcio Feteira foi, sem dúvida, uma personagem inconformista, que deixou marcas por onde passou. Lembra um pouco uma figura da História, devido a algumas características muito particulares da sua personalidade: Caio Júlio César. Ambos possuem o mesmo carisma, a mesma inteligência invulgar, o mesmo espírito visionário e empreendedor e um impulso incontrolável de construir um império – geopolítico e militar, no caso do Ditador e Imperador romano, económico e financeiro, no caso de Lúcio Feteira. Ambos com um génio e ética muito própria, que intimida muita gente, pois trata-se de uma combinação invulgar de traços de personalidade que conferem aquele tipo de poder que se pode expandir em progressão geométrica. E, todos sabemos também que, quando o poder se torna absoluto, seja nas empresas ou no Estado, a tirania pode tornar-se uma tentação demasiado forte para se lhe resistir. Isto explica as fortes quezílias, intrigas e acesas divergências ocorridas com sócios, directores, homens de confiança do milionário, que se transformam em seus inimigos fidagais. E Lúcio Feteira, como Júlio César, é sempre o melhor dos amigos, generoso, e o pior dos inimigos, implacável.

Este não é um livro de literatura. Mas grande parte dos títulos dos capítulos em que se divide, remetem para várias obras literárias, com alusão a livros como Em nome do Pai (Proved Innocent de Gerry Conlon), Retalhos da Vida de um Médico (Fernando Namora) ou Era uma vez um Rapaz (Nick Hornby). O retrato de um homem e uma época que resulta de um intenso e demorado trabalho de investigação, envolvendo entrevistas a operários e descendentes de trabalhadores das Limas Feteira, visitas constantes ao Governo Civil de Leiria, à Torre do Tombo, incluindo aos Arquivos da PIDE, organismo que compreendia a polícia política do Estado Novo, o qual vigiava de perto Lúcio Feteira, homem que gostava de viver no fio da navalha, adulando o regime, mas fazendo na verdade o que muito bem lhe apetecesse.

O livro começa, nos primeiros capítulos, por assumir as características de uma saga familiar, logo após o prólogo, referente à contextualização das circunstâncias que envolveram o caso mediático da morte de Rosalina Ribeiro. Trata-se de um texto que assume o formato de uma crónica jornalística, a qual poderia servir de base a um romance policial: uma figura simpática, a imagem de uma mulher simples, discreta, selectiva com as companhias, receosa de exposição social. Em seguida é traçada uma genealogia que ajuda a seguir o emaranhado do percurso dos vários membros do clã, logo no início da obra. Os primeiros capítulos versam, essencialmente, sobre as origens familiares de Lúcio Thomé Feteira, as suas incursões em África, no Congo, onde dá já provas de audácia e visão no que respeita ao mundo dos negócios. E, depois sobre a estadia em Paris, onde vive temporariamente uma vida de playboy, antes de assumir funções na firma do pai, facto que o leva rapidamente a assumir uma posição de liderança.

É, também, traçada a evolução – lenta e, na maior parte das vezes, estagnada – da Vieira de Leiria nos anos vinte e trinta, altura em que se vive quase que exclusivamente da pesca naquela localidade e, em alternativa, do trabalho na Fábrica de Limas Feteira ou na fábrica de vidros do Sr. Dâmaso, que viria a ser o sogro de Lúcio Thomé Feteira. Ambas as indústrias são as únicas alternativas existentes face aos altos e baixos da actividade piscatória, que obrigava famílias inteiras a viver no fio da navalha. O crescente sucesso da Fabrica de Limas Feteira dá alguma estabilidade aos rendimentos de muitas famílias daquela região. Fora disso, o cenário em termos da existência de postos de trabalho nas redondezas região é desolador: Portugal não é um país economicamente desenvolvido e o pouco trabalho industrial existente rege-se por salários baixíssimos, sendo o poder de compra quase nulo entre os trabalhadores, onde a troca directa de géneros é um recurso assaz frequente.

Uma palavra para as mulheres Feteira, que nos conseguiram cativar a simpatia, aliás, salvo uma única excepção que não vou mencionar, é impossível resistir-se-lhes. Enquanto os membros masculinos da família se dividem em heróis (Joaquim Thomé, Raul), crápulas (Albano) e outros com virtudes e defeitos (Lúcio Thomé), as mulheres Feteira, são geradoras de empatia, à maneira das tradicionais heroínas românticas – provavelmente porque o Autor é um romântico incurável. A começar, logo, pelas irmãs Feteira, Júlia e Olímpia, esta última a noiva infortunada que morre precocemente, deixando por longas décadas uma chaga aberta no seio da família. Ambas as irmãs de Lúcio Feteira são cultas e sensíveis, desempenham as funções de assistentes sociais na povoação, numa altura em que a profissão nem sequer existia em Portugal. São mulheres educadas segundo os valores e preceitos da Primeira República. Depois, tornamo-nos solidários com a doçura de D. Laidinha – uma grande senhora, que foi a esposa de Lúcio Feteira – a qual vive um amor doloroso por um homem irresistível, mas incapaz de se dedicar a uma só mulher. D. Adelaide Feteira vive um desgosto calado, com a tristeza a morar no fundo dos olhos, sobretudo nas últimas décadas de vida, após a morte do filho. Depois, outra Olímpia, a sobrinha de Lúcio, que casa com o filho, Lucito. Uma Mulher que mostra, com as suas atitudes desprendidas, como a nobreza não se encontra apenas nos pergaminhos.


A saga prossegue, numa segunda parte, que se pode considerar a partir do momento em que Lúcio Feteira decide expandir a Cooperativa de Vidro Nacional – a COVINA – para o Brasil e, aí, fundar o empório equivalente naquele país, a COVIBRA. A tentativa de conseguir o monopólio vidreiro naquele país gerou-lhe alguns dissabores, desde fortes conflitos dentro da empresa, lealdades quebradas e ódios de estimação, até ao boicote de algumas empresas americanas que pretendiam concorrer com a COVIBRA.

O desenvolvimento da história da fortuna de Lúcio Feteira prossegue nos capítulos seguintes, mostrando o crescimento de um império económico construído com engenho, inteligência estratégica e charme, mas também com manha e, não raro, uma boa dose de batota.

Lúcio Feteira e os amores

A mistura de anjo e demónio é, provavelmente, o grande factor responsável pelo sucesso de Lúcio Feteira junto do sexo feminino, sendo de notar um extenso currículo de aventuras amorosas: desde a secretária, mãe da sua filha Olímpia, fruto de uma paixão breve, até à malograda Rosalina Ribeiro, que conheceu contava já com sessenta anos. Isto apesar de se dizer que a grande paixão da sua vida terá sido a assessora Celeste Pastorini, que possuía uma quota na empresa, um relacionamento que durou até pouco antes de Lúcio Feteira conhecer Rosalina, altura em que o fogo passional por Celeste começava a desvanecer.

Lúcio Feteira, o Mecenas

Lúcio Thomé Feteira foi também um grande patrono das artes, chegou inclusive a ceder as suas extensas terras em Maricá para o cenário da telenovela Tocaia Grande, um dos mais violentos romances do escritor brasileiro Jorge Amado.

O livro termina precisamente na altura em que Lúcio Feteira conhece uma jovem de dezanove anos que casa com um amigo seu: Rosalina Ribeiro. Com este final, podemos já entrever um interesse suspeito, adivinhado em expressivas trocas de olhares...

O que é uma verdadeira maldade por parte do Autor. Não se faz. Teremos mesmo de esperar pelo segundo volume, que sairá no final do ano. Não há outro remédio. Até lá...teremos que esperar.


Cláudia de Sousa Dias
09.03.2012

Friday, March 09, 2012

“A Criança em Ruínas” de José Luís Peixoto (Quetzal, Quasi, )








A temática relacionada com a perda e o desmoronar da felicidade perfeita da infância, semelhante à expulsão do paraíso dourado, um reduto que parece estar apenas reservado aos mais jovens, é a temática desenvolvida pelo Autor desenvolve em A Criança em Ruínas.
A inspiração, vinda do Livro do Génesis, serve de pretexto para explorar a eterna questão da busca da felicidade, que nunca será total, uma vez que as circunstâncias temporais dos momentos perfeitos nunca se repetem. Esta é a linha que norteia o discurso da obra de José Luís Peixoto e do homem que se oculta por debaixo dos escombros, num título tão intrigante como A Criança em Ruínas.
A desintegração/dispersão da família mais próxima, num primeiro tempo que compõe esta obra tripartida, culmina com a morte da figura de referência central: o pai. Depois, segue-se o processo do luto e o percurso do caminho inverso – o regresso do limiar dos infernos –, onde o Poeta não consegue resistir ao apelo da vida, exterior aos muros do edifício parental, em ruínas. Por último, o encontro com o amor como forma de redenção após o que se segue, de novo, uma perda.

O primeiro poema, intitulado Arte Poética serve de introdução, à laia de prefácio, ao conteúdo propriamente dito. Nele, o Autor explica não só o próprio conceito de poesia como também o caminho percorrido no sentido de transformar a escrita em arte. Esse caminho é calcetado de emoções. E a emoção sentida expressa-se como forma de arte, cuja meta é causar no leitor o impacto de um meteoro ao embater no planeta. Neste caso é um meteoro que provoca ondas de choque emocionais, arrancando o Homem a uma asséptica e doentia indiferença.

A visão do Autor acerca da vida e dos afectos aproxima-se muito da do estridentismo – movimento artístico surgido nos anos trinta, do qual fazia parte Frida Kahlo – onde “O poema não tem mais do que o som do seu sentido” - , ou seja, é fruto dos diversos sentidos ou significados emocionais que desperta no leitor.
Na primeira parte, a poesia de José Luís Peixoto traça um cenário idílico, embora já distante no tempo, arrancado aos arquivos da memória; a mesma poesia é identificada com a idade áurea onde tudo é perfeito, onde tudo é dado, oferecido, onde a felicidade é absoluta, mas da qual só se toma consciência depois de perdida. Aqui é introduzido o elemento ou o travo a tragédia, à maneira dos clássicos, em simultâneo com a intertextualidade com a Bíblia com a alusão ao mito da expulsão do paraíso, como alegoria ao ciclo da vida humana. A poesia é, assim, para o Poeta a memória do tempo da felicidade e do amor que já não estão presentes, nascendo da evocação de momentos perfeitos, mas cristalizados no Tempo e ofertados pelos deuses, sempre que estes decidem ser generosos.
Desta forma, o poema não surge unicamente de uma intenção estética, de jogos de palavras sem sentido, mas como fruto do amor, em todas as suas formas de expressão. E, na primeira parte deste volume tripartido, o foco situa-se na desintegração do universo familiar pela erosão do Tempo como podemos constatar mo poema:

na hora de pôr a mesa éramos cinco…
(…)
enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco”.

O Autor mostra-nos que o casamento e a morte são os principais agentes que actuam em conspiração com o Tempo e, com ele, colaboram na diminuição do número de presenças físicas à mesa. No entanto, os lugares vazios, os espaços ocupados tradicionalmente por cada um continuam lá, a sublinhar a presença de quem já não está mas cujos traços se encontram gravados na memória e no quotidiano das presenças físicas. A ausência só se torna, assim, presença pelo recurso à memória, a qual por sua vez é veiculada pela saudade.

As anáforas sublinham sentimentos de perda como badaladas fúnebres, a marcar o ritmo da leitura, ditando o compasso e ampliando a dimensão do páthos. Daqui surge o desejo de imortalidade, que se imprime na escrita, como herança a deixar às gerações vindouras. O término do ciclo é marcado por uma certa desorientação ou desolação, face a um futuro onde falta a principal figura de referência, à qual a palavra “partilha” deixou de fazer sentido.

Na segunda parte descreve-se, como já foi referido, o caminho de regresso das imediações do Hades, estrada a partir da qual o Poeta observa, em atitude contemplativa, as mais obscuras profundezas da alma humana. A pontuação sincopada como que segmenta alguns dos textos, dividindo sintagmas, cortando frases, dissecando-as e seccionando o ritmo da leitura. Ao mesmo tempo, é enfatizado o sentido emocional do poema, ao dotar-se o texto poético da aura trágica, característica dos clássicos, como se pode ler no poema da página 39 “espelho, és a terra onde as raízes rebentam de mistérios”.

Apesar de tudo, o chamamento da vida sobrepõe-se ao lado sombrio da personalidade do Poeta cuja juventude e vitalidade o impele para o Sol, para a Luz e para a felicidade porque, o Poeta é, afinal, antes de tudo, amante da vida e do Belo… Como todos os poetas. Ao lermos “A primavera chegou antes do tempo a esta sala” percebemos que o apelo da vida, do lado de fora das paredes e das sombras a entrar pela janela, distraem o pensamento da dor, dissolvendo-a, ao mesmo tempo que dificultam a introspecção. É aqui chegado o momento em que o intui a vinda do amor que afasta o Inverno. Mas enquanto este não chega, a beleza e a felicidade são cantadas estridentemente pala natureza que se abre à vida e ao prazer e agudiza, ainda mais, a mágoa de uma alma que se encontra doente…

“…a minha dor é esta primavera que nasce e me mostra
que o inverno se instalou definitivamente dentro de mim”.

No poema que descreve a atitude da personagem, sentada na cadeira do alpendre a ver cair a chuva, o discurso poético lembra o “Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo” e a fase melancólica da escrita de Gabriel García Márquez em “Olhos de cão Azul”, onde a melancolia é a tonalidade emocional dominante.

Eu sou um céu morto. Venceu-me o inverno e eu luto a seu lado para me
destruir. nunca fui criança. Nunca encontrei ingenuidade ou arrependimento.”

Aqui, o chamamento da vida e do quotidiano nesta fase de “A Criança em Ruínas” implica a prossecução de um caminho marcado pela errância, o caminhar às cegas, numa procura incessante da felicidade: a porta secreta para ao paraíso.

A terceira parte fala de um amor erótico e sublime, o qual pressupõe a quase que idolatria do ser amado e uma a admiração incondicional, aliada à vulnerabilidade de um eu submisso e deslumbrado”.

“…o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa
parte de nós que já não é nossa”.

O lirismo toma posse da alma do Poeta, onde tudo parece ser, mais uma vez, perfeito, num cenário sempre idílico para os amantes. O vislumbre do acesso ao paraíso perdido. Ou do seu sucedâneo. Aqui homenageia-se o amor sublime que vitimou Inês de Castro, num poema de destruição pelas Fúrias que, por vezes, se servem de mão humana para, assim, privarem os mortais do acesso a uma felicidade perfeita. Um prelúdio ao conteúdo dos textos que se seguem e giram à volta, não de sujeitos históricos, mas de figuras anónimas. O presságio de mais um episódio de perda que será,  e de uma felicidade novamente perdida que será, então, idealizada e cristalizada, imbuída de uma aura de perfeição,pela acção selectiva da memória.

A saudade tinge-se, então, de melancolia e aflora ao âmago do Poeta pela evocação do bem-estar, associado à presença do sol de Estio. Como contraponto, a chuva despoleta um estado de espírito propenso à melancolia e ao spleen  de cariz baudelairiano.
A recordação de um primeiro amor de adolescente surge como um bálsamo e, a procura do sexo, como paliativo para mitigar o desânimo, são os elementos que compõem a criança em ruínas que é o adulto, cujos sonhos se liquefazem:

esse filho só de sangue que te escorre pelas pernas
sou eu…”

Segue-se, mais uma vez, o caminho de errância, ditado pelas Parcas. O Poeta terá de percorrê-lo, acompanhado da solidão que arde em fogo lento e o obriga ao um longo e moroso processo da reconstrução do edifício de uma felicidade arruinada, um trabalho incessante e inglório…

“…amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga”.

Ociclo da vida. O eterno retorno. Um incessante recomeço a partir das ruínas.
A “criança” chama-se Sísifo.

Cláudia de Sousa Dias
Publicado originalmente em "orgialiteraria" em 2010.