HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, September 28, 2005

“O Nome da Rosa” de Umberto Eco (Difel)


O livro que deu origem ao filme com Sean Connery e Christian Slater, lido com atenção, transforma-se numa bomba-relógio pela pertinência e subversão das reflexões nele contidas. Estas englobam a questão da pobreza de Cristo em contraste com a riqueza da Igreja de Pedro, por um lado, e a democratização do saber por outro.


Tudo começa com a chegada de William Baskerville a uma Abadia, situada numa zona fronteiriça entre Itália, França e o Sacro Império Romano. Onde entram em conflito os interesses económicos e políticos de duas forças opostas: o Papa João XXII – que não vê com bons olhos o peso crescente da ordem dos Franciscanos – e o imperador Ludwig da Baviera que os apoia.

A Abadia em questão é o local onde irá decorrer a cimeira que reunirá os representantes de ambas as facções.

Contudo, os resultados desta cimeira vêem-se seriamente comprometidos por uma série de misteriosos crimes perpetrados na Abadia…

…pela mão de um assassino invisível, aparentemente comandado por misteriosas forças maléficas, que circula a horas mortas pelos corredores secretos do Edifício….

A história é narrada por Adso, o assistente de William Baskerville. Adso – o Dr.Watson deste Sir Arthur Conan Doyle italiano – só no final da vida é que passa à forma escrita as memórias dos sete dias que constituíram a sua estada na Abadia com o seu Mestre, local onde ocorreram os acontecimentos mais marcantes da sua vida.

William de Baskerville é um homem de grande erudição, um detective medieval e analista político, pertencente à Ordem de S. Francisco de Assis, oriundo da região anglo-saxónica. Exibe uma capacidade superior de raciocínio dedutivo, expressa através de um esquema mental inspirado no modelo conceptual de Roger Bacon, em pleno sec.XIV, altura em que começa a desenhar-se a transição da Idade Média para o Renascimento. E, consequentemente, encontra-se no ponto de transição de um modelo explicativo, teocêntrico ou teosófico, de cariz sobrenatural, para o modelo científico, que é baseado nas relações de causa e efeito. Começa então a dar-se, cada vez mais, importância ao conhecimento experimental, complementando o método dedutivo com o indutivo.

Esta forma de raciocínio adoptada por William de Baskerville entra, inevitavelmente, em rota de colisão com a explicação baseada no paradigma dominante da época: a atribuição de uma explicação sobrenatural para fenómenos naturais para os quais os simples não conhecem explicação.

Adso, o ingénuo aprendiz de William, ou Guilherme, é encarregue de relatar os acontecimentos sucedidos na Abadia e de auxiliar o seu mestre franciscano.

Salvador aparece como uma personagem burlesca, em tudo semelhante à personagem “O Parvo” do Auto-da-Barca-do-Inferno de Gil Vicente. Exprime-se numa língua babélica, uma miscelânea de idiomas e dialectos que contém a marca dos sítios por onde passou. O que, aliado à sua extrema ingenuidade e à escravidão face aos seus apetites mais básicos, colocá-lo-á na posição ideal para servir de bode expiatório, não só para o que acontece na Abadia, mas também para servir os interesses da Inquisição, na sua caça desesperada aos heréticos de todas as facções possíveis e imaginárias.

O mesmo se passa, embora por razões diferentes, com a jovem de quem não se sabe o nome que, ao rondar a Abadia em busca de comida, acaba por se apaixonar por Adso, mostrando-lhe a vertigem do amor carnal…

A Mulher é vista, entre os religiosos da Abadia, como fonte do Mal ou a porta por onde o Maligno se insinua aos solitários e sexualmente reprimidos homens da Abadia…

Em O Nome da Rosa, o saber aparece como algo que deve permanecer oculto das mentes mais simples. O acesso à biblioteca é interdito, a totalidade das obras nela contida não é do conhecimento da esmagadora maioria dos membros da Abadia, salvo o Abade, o bibliotecário e uma misteriosa personagem que se esconde na sombra, que vive nas trevas. Aquele que, na verdade, controla o Edifício e conhece o segredo de todos os livros.

O principal receio das mentes mais fundamentalistas da Abadia é o de que a divulgação do saber implique uma distorção desse mesmo saber, através de uma interpretação errónea tal como, na época, sucedia com as escrituras, originando as mais variadas seitas. Por este motivo, torna-se necessário proteger os livros das mentes menos subtis, escondendo-os.

Esta é a polémica acerca da qual trata o romance. A democratização do saber. Ou a sua preservação. A pluralidade de opiniões. A procura da Verdade.

O estilo de Umberto Eco é erudito recorre inúmeras vezes à alegoria e à metáfora. O discurso é dialéctico, argumentativo. O que se torna uma grande ajuda para o leitor que se sente tentado a decifrar o enigma. De facto, as pistas estão visíveis desde o início do romance, apesar de dissimuladas com falsos silogismos.

Um livro que, apesar de já contar com mais de uma vintena de anos, continua actual pela pertinência dos temas tal como acontece nas grandes obras literárias que normalmente sobrevivem séculos ao seu autor.

É o que acontecerá certamente a O Nome da Rosa – um título enigmático pois, já na Antiga Roma, a simbologia da rosa remetia sempre para algo de secreto…

Porque, independentemente do nome a rosa, esta terá sempre o mesmo perfume (como afirmava Shakespeare em Romeu e Julieta).

Uma obra-prima da literatura do séc.XX pelo estímulo ao pensamento crítico.

Destinada aos amantes do Conhecimento.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, September 21, 2005

“Danças e Contradanças” de Joanne Harris (ASA)


No dia do lançamento do livro, na FNAC do Norteshopping, em 9 de Novembro de 2004, Joanne Harris afirmava que as personagens da obra foram inspiradas nas pessoas que foi conhecendo durante as suas viagens. Como boa observadora da natureza humana, serviu-se dessa qualidade para, a partir do modelo real, construir as figuras dos seus contos e romances.

A Autora confidenciou, durante o lançamento de Danças e Contradanças, que a necessidade de escrever nasceu da sua tendência para a introspecção. Sendo franco-britânica e, por isso, produto de duas culturas, foi obrigada a, desde idade muito precoce, dividir o seu tempo entre um país e outro. Por este motivo, JH sofreu as consequências de ser rotulada de outsider – forasteira – que impediu a sua total integração. “Era, normalmente olhada com uma certa dose de desconfiança e vista como a Estrangeira Perigosa – The Dangerous Foreigner”.
Segundo ela, as pessoas olham, normalmente, com suspeita todo aquele ou aquela que se atreve a ser diferente, que se recusa a deixar-se levar pela maré.

O isolamento relativo daí decorrente, obrigou-a a aprimorar as suas capacidades de observação que, aliadas a uma imaginação prodigiosa, ajudaram-na e muito, a impulsionar os primeiros passos na carreira literária.

Para JH, Danças e Contradanças é uma colectânea de contos que fala de magia e monstros. Interiores e exteriores. E da sua relação com todos aqueles com quem contacta, mas sobretudo da relação consigo própria.

A Autora refere que escrever Chocolate foi como uma terapia, um ponto de viragem na carreira. Com Vinho Mágico, que fala de uma espécie de elixir da amizade, sentia o peso da responsabilidade de repetir o sucesso anterior, facto que transparece na obra, nomeadamente, no desejo da personagem principal. Já Cinco quartos de Laranja ocupa-se da recuperação do passado, enquanto que A Praia Roubada – a obra que demorou mais tempo a escrever (quatro anos) – foi orientada pela preocupação com o confronto entre desenvolvimento económico e ecologia. Em Na corda Bamba, JH inspirou-se na personalidade de um colega da faculdade para construir o vilão “LeMerle”.
No entanto, Danças e Contradanças é a obra que expõe o lado mais sombrio da personalidade da Autora. E também a sua obra mais pessoal, intimista, onde foram projectados os seus desejos e as suas fantasias mais secretas.

Os temas são ousados e variadíssimos.

Fé e Esperança vão às compras mostra que o envelhecimento físico não se estende à mente. A vaidade, o gosto pelas coisas belas, a sede de conhecimento e o espírito crítico continuam intactos.
A Irmã Feia trata da síndrome da irmã relegada para a obscuridade, em contraste com o protagonismo da Bela. Aqui dá-se uma inversão de papéis. A beleza nem sempre corresponde a uma personalidade cativante…A linguagem com que é caracterizada a irmã bela é depreciativa, tal como em muitas das restantes short stories em que a beleza aparece como algo de ofensivo e, quase sempre, aliada à estupidez, frivolidade e mau feitio.
Gastronomicon é um caldeirão de magia contido num livro de cozinha. Uma mulher que se esforça por agradar a um marido exigente, mas convencional e sem imaginação. O sentimento de inferioridade em relação à sogra – a Mulher Perfeita. Rival e, ao mesmo tempo, fada-madrinha, esta oferece à protagonista uma arma de sedução poderosíssima, recheada de exóticos feitiços gastronómicos – um livro de receitas árabe. Que só não resulta porque o parceiro não está à altura. Um conto suculento.
Falso Ouro é uma estória de soberba, cobiça e inveja. O ciúme do brilhantismo alheio num professor avaro em reconhecer o talento dos seus alunos. Ciúme esse que se manifesta num desejo desmedido e irreal de fama e protagonismo.
O Curso de 1981, o encontro das colegas do curso de magia – um divertido cocktail de venenos e maledicências. E onde a verdadeira amizade e solidariedade têm de ser procuradas à lupa. Onde se fala da perda dos poderes mágicos que pode ser identificada com a perda do magnetismo sexual (Ex: a incapacidade acender uma vela usando os poderes sobrenaturais pode significar a incapacidade de conseguir despertar sensações eróticas no parceiro!).
Olá, Adeus manifesta o ridículo face ao falso glamour, uma paródia às revistas cor-de-rosa como Hello (a protagonista trabalha para a Goodbye, note-se a ironia). O culto obsessivo da imagem, das marcas, a anorexia. O desprezo pelas relações sociais pelas relações sociais fora dos parâmetros da estética. O sarcasmo é a nota dominante.
Um espírito livre mostra o percurso assassino do maior dos psicopatas – um vírus mortífero que passeia displicentemente pela Europa e se diverte a enumerar as vítimas que colecciona.
Auto-de-fé personifica a inveja no masculino, transformada em violência física e verbal, ao volante de um carro. Uma válvula de escape para todas as frustrações.
O Espectador enuncia uma fábula futurista que explora o medo psicótico incutido nas crianças, sempre que estas se deparam com um adulto desconhecido.
O Mundo de cabedal de Al e Christine é uma estória divertida com uma pitadinha de perversão maliciosa…Ingenuidade, traição e vingança são os ingredientes…
O último comboio para Dogtwon revela um mundo onírico onde a vida de um escritor mundialmente reconhecido e a das suas personagens se confundem a ponto de, a dada altura, não se saber quem escreve o conto…
O gene G-sus é a estória mais complexa desta colectânea. Onde se procede à análise química e genética do factor G que transforma o chumbo em ouro, ou seja, a crueldade em bondade. A genética ao serviço da causa divina. A reencarnação como redenção ou punição. Final altamente polémico de sabor levemente herético.
Em Um lugar ao sol está, mais uma vez, patente a temática da beleza física como desenvolvimento de Olá, Adeus. O culto do corpo e a obsessão doentia pela beleza que serve de instrumento de ascensão social nas praias brasileiras, onde os utilizadores são seleccionados ou excluídos pelo seu aspecto físico. Uma reprodução do sistema de castas indiano? Ou um incentivo à eugenia herdado directamente das teorias raciais da História?
Chá com pássaros é um autêntico manual de bom relacionamento com os vizinhos. Um estória de grande beleza e humanidade. Um chá verde vindo do extremo oriente com um ligeiro travo a saudade.
Pequeno-almoço no Tesco’s é a sátira relativa a Pequeno-almoço na Tiffanny’s onde se analisam os factores que levam uma mulher a sujeitar-se às maiores humilhações e à privação da liberdade por medo à solidão. O cinema como terapia ou lugar do sonho.
Venha Mr.Lowry, chegou a sua vez torna real o sonho impossível perante a lei das probabilidades ou a fortuna que se transforma em ruína.
À espera de Gandalf faz-nos ver a estreita linha que separa o sonho e a fantasia da vida real. Utilização de uma paródia a Midsummernight dream para criticar a violência nas ruas de Londres.
Qualquer miúda pode ser uma miúda bom-bom mostra como a utilização do vestuário como veículo de expressão dos desejos e fantasias mais secretas, pode expor as crianças em demasia. A autora pretende, com esta estória, chamar a atenção para o conteúdo sexual explícito, presente na roupa para crianças.
A Pequena Sereia é uma estória de dor, como a de Andersen. Onde se explora o universo dos afectos no mundo dos deficientes, sujeitos ao olhar crítico ou piedoso, mas sempre cruel dos “normais”. Onde se trata da inutilidade do sacrifício em prol de um amor não correspondido.
Peixe é a estória de fazer crescer água na boca. As tentações de Nápoles. Ou, mais uma estratégia de sedução pelo estômago. Gula e malícia. Um toque de luxúria. Só para Gourmets.
Nunca Beijes um Vampiro prova que os novos vampiros não vêm da aristocracia nem sugam sangue, mas extinguem-nos a vitalidade. Uma metáfora sobre a exploração no trabalho.
Eau de Toillette é um conto de época, passado em Versalhes, num período onde os hábitos de higiene não eram democratizados e, por isso, grassava a necessidade de substituir a beleza natural pela artificial. Objectivo: esconder a sujidade. Ou a falta de saúde…

Um crítica feroz a quem rege a sua vida pelo superficial.

Uma bofetada com luva de pelica a todas as formas hipocrisia e frivolidade.

O primar do Ser em detrimento do Ter.


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, September 15, 2005

“Clara e a Penumbra” de José Carlos Somoza (Quetzal)


No mundo das Artes plásticas, idealizado pelo Autor para o ano de 2006 – uma vez que a obra foi escrita no dealbar do século XXI –, triunfa a corrente do Hiperdramatismo que consiste na exibição e aluguer de obras de arte vivas. Ou seja, as figuras humanas posam, isoladas ou em conjunto, formando quadros ou murais, com os corpos totalmente pintados. Trata-se de uma forma de representação do real que excede, em muito, as prerrogativas do actual bodypainting. As “obras de arte” humanas são treinadas, desde idade muito precoce, num processo contínuo de despersonalização. Para isso, são controladas psicológica e biologicamente, a fim de eliminarem limitações quer de ordem biológica quer emocional. Ao ponto de, aqueles que diariamente com elas contactam, deixarem de vê-las como pessoas…

Clara Reyes é uma modelo ambiciosa que, pretende ser a melhor e, para isso, submete-se às duras leis do mercado, colocando em risco, inclusive, a sua integridade física…

Tudo em nome da Arte. Da imortalidade.

Do ponto de vista da psicopatologia, quase todas as personagens apresentam distúrbios de personalidade.

Os modelos de Arte hiperdramática são obrigados a anular todo e qualquer traço de autonomia ou vontade própria, visando a satisfação de uma necessidade patológica de protagonismo.

Todo o staff ligado à mesma corrente artística manifesta comportamentos anti-sociais pelo facto de não considerarem os modelos como pessoas.

Miss Wood, responsável pelo marketing da galeria, afirma que “Hiperdramatismo são pinturas que se movem e que às vezes parecem pessoas”.

Jacob Stein, marchand de arte hiperdramática, um homem que vive para o dinheiro está convicto que “O dinheiro é Arte”. Trata-se de um homem que não hesita em traficar sexo sob a capa de “espectáculos de arte hiperdramática interactiva com o público”.

O pintor Van Tisch, é um homem aparentemente calmo mas encerra em si algo de sinistro, devido à sua aparência sombria.

Sendo o líder da corrente hiperdramática, Van Tish acredita que “a luz e as trevas são extremos que, por si só, não comportam a verdade”. Esta encontra-se num ponto intermédio. “A verdade está na penumbra”. Este é o limiar onde se encontra a personalidade do pintor pelo menos até ao final do romance…

No entanto todas estas personagens, que revelam comportamentos anti-sociais, apresentam outras perturbações da personalidade associadas tal como o narcisismo e o histrionismo.
Só Clara Reyes sofre da perturbação histriónica da personalidade, sem contudo revelar explicitamente comportamentos anti-sociais. A modelo gosta de ser o centro das atenções. De ser admirada. De causar choque. Mas a sua maior ambição é contemplar a face do Horror.

Todas estas personagens manifestam um ostensivo desprezo em relação às pessoas consideradas normais, olhando-as como inferiores.

Salvo duas excepções, que constituem o ponto de referência em relação ao eixo de padrões comportamentais daquilo que pode ser considerado como a norma: Gerardo, o assistente de Van Tisch - “ A arte pertence à vida e não o contrário” - (sic) e Lothar Bosch, responsável pelo departamento de segurança da galeria, encarregue de descobrir o serial killer responsável pela morte de vários modelos de quadros hiperdramáticos.

Bosch é a personagem que mais se opõe à distorção dos valores dos Hiperdramáticos “somos mais do que simples aparências” (sic) o que remete para a temática de A Caverna das Ideias, também da autoria de Somoza e já publicado pela Quetzal- romance onde também se tenta descobrir um assassino em série, desta vez na célebre Academia de Platão.

A atitude de Bosch contrasta frontalmente com o materialismo cínico de Miss Wood e das restantes personagens: “ o Hiperdramatismo são as pessoas que ficam quietas e que os outros afirmam tratar-se de pinturas”.

Clara e a Penumbra é um romance de grande impacto, onde se lê nas entrelinhas uma acutilante crítica ao capitalismo desenfreado no mundo da Arte e, por analogia, ao mundo da moda. Duas esferas em que o espectáculo é, muitas vezes, pretexto para a implementação camuflada da prostituição de luxo.

Para este autor cubano, trata-se da herança do nazismo na sociedade actual, em que o mundo é dividido em cidadãos de categoria A – aqueles cuja vida vale a pena preservar a todo o custo e cuja genialidade justifica as maiores atrocidades que um génio incompreendido possa conceber, isto é, em que os fins justificam os meios – e os cidadãos de categoria B, os inferiores, que podem e devem ser manipulados pelas pessoas superiores, submetendo-se à sua pseudo-divindade.

Um livro cuja leitura incomoda pelo cinismo explícito no discurso das personagens e pela lógica tortuosa das mesmas. Clara e a Penumbra é uma obra literária com uma qualidade sem precedentes quer pela imaginação prodigiosa do Autor quer pela mensagem nela contida. Uma mensagem que traduz uma caricatura magnificamente elaborada sobre os valores éticos e padrões de conduta que vigoram na sociedade actual.

Que, cada vez mais, se rege pela ditadura dos números.

A escrita é rica, as descrições pormenorizadas, sensoriais, impregnadas de uma grande dose de realismo.

Somoza não deixa, mais uma vez de nos reservar uma surpresa para o final – a finalidade do assassino, algo totalmente inesperado – apesar de não tão perfeitamente arquitectada como em A Caverna das Ideias, onde se assiste a uma reviravolta precisamente no último parágrafo.

Um livro perturbador. Onde a arte e a desumanização de uma sociedade marcada por um capitalismo desenfreado desempenham os papéis principais.

Que marca pela (im)pertinência.

Um autor que se impõe pela diferença.

Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, September 07, 2005

“A Vaca-Loura” de Luísa Monteiro (Caleidoscópio)







A escritora famalicense Luísa Monteiro lançou, este Verão, mais uma obra literária. Desta vez, trata-se de uma novela, que poderia facilmente ser enquadrada na categoria de conto, devido ao elevado nível literário que predomina no texto. A adjectivação, a atribuição de características típicas de determinadas espécies animais a seres humanos, as metáforas utilizadas, ilustram o estado de espírito e sentimentos da protagonista e narradora em relação as pessoas ou coisas que lhe são próximas.

A classificação da obra como novela explica-se, unicamente, pela alternância do discurso literário com os diálogos em linguagem corrente e pela estereotipificação das restantes personagens por parte de Lurdes, a narradora.

O tema é o amor (tal como em O Evangelho das Rãs e A Guardadora de Gansos), aqui, visto pelo olhar de uma criança de sete anos cujo maior desejo é o de possuir uma bicicleta. Um desejo que irá desencadear alterações significativas no destino das principais personagens.

Para a Autora, “O amor é tudo – excepto o que devia ser.” Por não caber dentro dos limites que a sociedade estabelece como o correcto ou normal.

Trata-se da forma de intuir e detectar o amor nos olhos, nas palavras e nas atitudes dos outros. Os afectos da jovem protagonista depreendem-se unicamente através da sua linguagem, da qual se serve para exprimir desprezo (ex: na referência aos “ranhosos” que torturam animais, na atribuição da alcunha de “lesma” ao padrasto ou “Cudauga” à vizinha) ou afecto (ex: na forma como descreve a mãe adoptiva, a irmã ou o tio).

A Autora inicia a história através da utilização de uma comparação de padrões de comportamento servindo-se da repetição anafórica da expressão “Riam” para evidenciar o sadismo dos “ranhosos” em contraposição à convicção solene das duas irmãs – Lurdes e Olga – que julgam estar aplicar um tratamento eutanásico às vacas-louras – espécie de escaravelhos de grandes dimensões, semelhantes às baratas mas com uma “antenas” semelhantes a chifres.

A Vaca-Loura é também uma história que fala de liberdade. Um sentimento experimentado por Lurdes e Olga quando cavalgam pelos campos montadas numa vaca-loura gigante – uma bicicleta velha e enferrujada demasiado grande para duas crianças de sete e quatro anos.

A bicicleta “vaca-loura” é a mola que desencadeia a tragédia na vida das personagens. Mas é também o golpe do destino que coloca em acção o mecanismo da mudança, permitindo que a verdade surja sem cambiantes, véus ou disfarces.

A tragédia faz com que os arquétipos puros do bem ou do mal se entrelacem aparecendo em todas as nuances intermédias. Ou seja, Lurdes compreende, afinal, que todo o comportamento é despoletado por um conjunto de causas.

Destaque para as referências culturais como a utilização da expressão “Moço Bonito” retirado da telenovela “Gabriela, cravo e canela”, símbolo sexual e ícone de beleza e sedução nos anos setenta – protagonizado pela exótica Sónia Braga – que as jovens portuguesas de então tentavam, a todo o custo, imitar na sua sensualidade inocente (e insolente) e na doçura especiada e quente do bronzeado da pele.

A ambivalência sexual de algumas personagens, é uma constante na obra de Luísa Monteiro. A Vaca-loura não foge à regra frisando a Autora, mais uma vez, a importância de respeitar os vários tipos de orientação sexual.

A presença do amor possessivo e do ciúme, marcadamente sexuado, quase que patológico, de Lurdes pela mãe adoptiva, faz parte dessa ambivalência sexual.

Também estão presentes o amor filial – expresso na adoração do tio Francisco – e o amor fraternal no companheirismo, ternura e dedicação absoluta de Lurdes a Olga, a irmã muda e quase autista.

Uma estória lindíssima, que se lê com prazer, quer pela autenticidade e intensidade das emoções expressas, quer pelas personagens, todas elas – com excepção de Lurdes, a protagonista – tipificadas. Delas, só conseguimos deduzir o estado de espírito ou as emoções através das descrições das atitudes e comportamentos observados por Lurdes. Esta personagem fornece – com total franqueza e candura – ao leitor todas as pistas que lhe permitem construir o carácter de cada uma dessas mesmas personagens e intuir as causas que despoletam um dado comportamento. E é precisamente neste ponto que se evidencia o talento da Autora que, sem efectuar qualquer juízo de valor, dá-nos, através da limpidez do olhar de uma criança, todo um manancial de beleza e drama contidas nas diferentes expressões de (des)afecto.

Uma obra que se lê como quem saboreia um gelado numa esplanada à beira-mar.

Pungente.

Nostálgico.

Catártico.




Cláudia de Sousa Dias



Friday, September 02, 2005

“O Prazer de Eliza Lynch” de Anne Enright (Teorema)


“O Prazer de Eliza Lynch” de Anne Enright (Teorema)


Eliza Lynch é uma cortesã de origem irlandesa, amante de Francisco Solano López, o ditador que governou o Paraguai na segunda metade do sec. XIX.

Bela e vulgar, demasiado exuberante e espalhafatosa para os padrões europeus, sociedade onde jamais poderia ser considerada uma senhora, Eliza cultiva o prazer do luxo e da ostentação. O seu objectivo é o de submeter as senhoras do Novo Mundo pelo deslumbramento. Ser idolatrada.

No momento em que conhece Solano López, em Paris, a sedutora coccote vê a oportunidade única de dar um volte-face na sua vida: emigrar para outro continente e recomeçar a vida do zero.

A acção é narrada a duas vozes: a de Eliza e a do Dr. Stewart, aliado da cortesã e médico do Ditador. Stewart mantém, apesar das suas tendências pedófilas, uma paixão platónica por Eliza quase até ao final do romance, altura em que outros valores e sentimentos menos elevados falam mais alto.

A narrativa a cargo da voz de Eliza é constituída pelas crónicas/memórias que descrevem os prazeres da amante do Ditador. Trata-se de uma biografia romanceada contada no tom da mais pura sátira. A forte carga irónica presente no texto denuncia o carácter amargo da personagem. Sobretudo em relação ao sexo feminino, a quem se refere sempre com desprezo, inclusive as mulheres da própria família.
As personagens e as situações são estilizadas ao máximo de forma a aparecerem ao leitor como autênticas caricaturas, envolvidas numa atmosfera balzaquiana.

O prazer de “La Lincha”, como era chamada no Paraguai, é, sobretudo, o da ostentação no sentido de mostrar aos outros a sua superioridade. Ostentação essa que está patente tanto no vestuário, como na decoração e na opulência das ementas quando recebe.

O primeiro capítulo, que pode ser considerado como um prólogo, é aquele em que o discurso é mais ousado. Enright mistura com inigualável maestria, a provocação e a inocência ao narrar em vinte passos (ou vinte investidas sexuais de López nas entranhas de Eliza) a forma como os protagonistas se envolveram, projectando alguma luz sobre o escandaloso passado da cortesã. Tudo isto contado num registo tipicamente britânico em que uma cena considerada escabrosa para os latinos adquire a trivialidade do acto de beber uma chávena de chá ou de falar do estado do tempo.

O desenvolvimento do romance prossegue, já na América do Sul, com a travessia do Rio Paraná até ao ponto de convergência entre este rio e o rio Paraguai.

Em “O Rio” – Parte I, o clima e a paisagem são descritos ao pormenor num registo marcadamente sensorial. A fauna e a flora inebriam os sentidos, apesar da dureza do clima – alguns passageiros do barco a vapor, onde viajam Eliza e Solano, não conseguem resistir às febres tropicais – ao qual Eliza resiste com uma saúde de ferro.
O que faz de Eliza uma sobrevivente pertence à casta daqueles que Darwin classificaria de “os mais aptos” aqueles que se adaptam e triunfam nos meios mais adversos…


“O Rio” – parte dois, descreve o estalar da Guerra entre o Paraguai e o Brasil. Está em causa a delimitação das fronteiras e a posse do rio Paraguai – essencial para efectuar as trocas comerciais entre o Paraguai e o estrangeiro.
O cenário de guerra descrito é semelhante ao “Inferno” de Dante. Eliza acompanha o marido. Instala-se numa tenda de campanha, fugindo ao desprezo da família do Ditador, em Asunción.

Em “O Rio” – parte três, a frieza de Eliza é mostrada, mais uma vez, na impassibilidade com que desfruta, de uma chávena de café ou taça de champanhe diante da carnificina que se desenrola a sua frente, facto que serviu para disseminar o boato do seu pseudo-canibalismo. Ao longo, do texto são, várias as referências face às pulsões canibalísticas de Eliza que incorporam algo de fetiche sexual. Na realidade, a única carne humana consumida pela cortesã, é aquela que se destina a satisfazer os seus apetites eróticos, nada tendo a ver com a antropofagia.

“O Rio” – parte 4, recorda o passado remoto de Eliza na Europa como se fosse uma outra vida.
Solano López e o filho mais velho de Eliza morrem tragicamente e esta surge despojada de artifícios, de volta ao pó, mediante a dimensão quase que homérica do seu desgosto. Sem o seu protector, a cocotte é alvo da piedade dos que a rodeiam e, mesmo, dos que a não amam, agora que perdeu o seu aspecto majestoso. A sua postura é patética mas ninguém mexe um dedo para a ajudar.

Neste capítulo, Autora recorre ao sarcasmo para criticar os regimes totalitários e a postura ditatorial que implica que os fins justificam os meios. Aproveita também para frisar que todo o homem, mesmo o mais poderoso está sujeito à traição.

Mas Eliza é uma vencedora. “La Lincha”, uma das mulheres mais detestadas da América Latina e da Europa de há século e meio atrás, consegue triunfar revertendo a situação sem ser, apesar de tudo, aceite nas camadas mais puritanas da Alta Sociedade.

Pode-se dizer que Eliza foi o despojo de guerra do vencedor da guerra Brasil-Paraguai.

À semelhança de Helena de Tróia, foi uma mulher que semeou paixões e ódios. Sem meio-termo.

Nem sempre é fácil ser-se amigo de alguém demasiado belo. Sobretudo quando se sabe demasiado bem tirar partido da Beleza.

Um livro provocador.

O cinismo do humor britânico no seu melhor.

Para ler e desfrutar capítulo a capítulo.


Cláudia de Sousa Dias