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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, August 27, 2008

"História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar" de Luís Sepúlveda (ASA)


Esta será, juntamente com O Velho que lia Romances de Amor, a obra de maior sucesso comercial de Luís Sepúlveda. Trata-se de um conto destinado ao público infanto-juvenil, mas que não deixa de seduzir, também, os adultos. Escrita durante o período em que o Autor e a família viviam em Hamburgo, a trama subjacente a este conto incide na vida de um gato que habita as imediações do porto da cidade e, também, na amizade entre o felino e uma gaivota que tem o azar de ser surpreendida por uma maré negra.

Luís Sepúlveda escreveu a estória do gato Zorbas – que habitou realmente a casa e fez, durante largos anos, parte da família Sepúlveda – para os filhos colocando “o gato grande, gordo e negro” como personagem central. O verdadeiro Zorbas viveu com os Sepúlveda e a biografia deste simpático animal é-nos mostrada num lindíssimo relato incluído na colectânea As Rosas de Atacama. Estão, no entanto, impregnadas na trama central de História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar através não só do discurso do narrador mas, sobretudo, na linha de pensamento e nos valores transmitidos pelas personagens as principais marcas ideológicas que nos habituámos a ver no discurso de Sepúlveda: a defesa do meio ambiente, sobretudo no que respeita ao ecossistema dos oceanos, a solidariedade, a aceitação e integração das diferenças.

A personagem que desencadeia a trama é Kengah, a gaivota marinheira e piloto, integrada no bando migrante que efectua viagens transcontinentais. Tem características muito especiais. É uma cidadã do mundo que assiste a convenções internacionais de gaivotas, é poliglota, reconhece as várias bandeiras que correspondem a diversas nacionalidades e associa-as às diferentes sonoridades linguísticas, o que lhe proporciona a faculdade de distinguir vários idiomas humanos – ao perceber várias sonoridades diferentes para a o objecto “peixe”, por exemplo. Sabe, também, decifrar a linguagem dos gatos o que lhe facilita a comunicação com Zorbas.

Linguagem e Discurso

Logo nas primeiras páginas deste cativante fábula, aquilo que prende a atenção do leitor, ao ler as primeiras frases, é a projecção dos conhecimentos e experiência de voo do autor projectadas na linha de pensamento da gaivota e, ao mesmo tempo, a presença da gíria, típica dos marinheiros.

Banco de arenques a bombordo! – anunciou a gaivota de vigia, e o bando do Farol da Areia Vermelha recebeu a notícia com grasnidos de alívio. Iam com seis horas de voo sem interrupções e, embora as gaivotas piloto as tivessem conduzido por correntes de ares cálidas que lhes haviam tornado agradável aquele planar sobre o oceano…” (excerto do capítulo I).

Os personagens felinos

Outro aspecto que se destaca na obra é a solidariedade dos gatos que habitam as imediações do porto de Hamburgo é o sentido de compromisso, subjacente à coesão do grupo, e que reveste um carácter quase que sagrado, no que respeita ao cumprimento da palavra dada. Esta pequena confraria de gatos não chega a confundir-se com o gang dos gatos arruaceiros, precisamente pela interiorização de uma série de valores relacionados com o civismo. Por isso, assemelha-se, talvez, um pouco à guarda do Mosqueteiros de Dumas onde, na eventualidade de algum dos seus membros se encontrar em dificuldades, os restantes unem-se para o ajudar. É o que acontece quando Zorbas se vê a braços – ou a patas – com a filha de Kengah à qual promete ensinar a filha a voar logo que chegue à idade adulta.

Os personagens felinos são os que despertam maior curiosidade pelos traços particulares que exibem.

Zorbas, “o gato grande, preto e gordo”, bonacheirão e guloso, é tão bon vivant como Garfield embora sensível e coração mole. O que não o impede de exibir dentes garras quando encontra pela frente o bando dos gatos de rua – os provocadores e pseudo-valentões:

Estendeu lentamente uma pata da frente, pôs de fora uma garra tão comprida como um fósforo e aproximou-a da cara de um dos provocadores” (sic).

– Gostas? Olha que tenho mais nove! Queres experimentá-las no espinhaço? – miou com toda a calma.

Com a garra diante dos olhos, o gato engoliu cuspo antes de responder.”

Depois temos Colonello, que habita as redondezas da cozinha do Ristorante ItalianoO Baloiço”. Colonello exibe quase que a postura de um pater famílias siciliano, é o chefe da confraria dos gatos do porto, torna-se o patriarca dos gatos, “por ser velho e talentoso”. Tem uma vocação especial para aconselhar e confortar os outros, apesar de nunca solucionar um problema.

A seguir vem Secretário, o moço de recados de Colonello, ao qual cabe sempre aquilo que os outros não querem fazer, isto é, as tarefas mais ingratas.
E, por último, Sabetudo, o enciclopedista, que habita o Bazar do porto onde, entre muita tralha, se encerra a biblioteca mais eclética do mundo. O Bazar é guardado por Matias, o impertinente macaco que, apesar da petulância, não consegue impedir a iniciativa nem o apurado instinto de investigação deste quatro “mosgateiros”…

A Inspiração nos contos tradicionais

Há, inequivocamente, em História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar vários elementos que denunciam a inspiração vinda dos contos tradicionais, como as três promessas exigidas pela gaivota-mãe a Zorbas, onde o número três se reveste de um carácter quase que sagrado ou, pelo menos, mágico.

Depois os adjuvantes – os gatos do porto – e os oponentes – o gang dos provocadores, a Ratazana e o Homem.

Por último, a quebra do tabu, a título excepcional – isto é, a exposição ao risco – também presente na maior parte dos contos tradicionais, como recurso extremo e em caso de força maior. Nesta situação, trata-se de entabular diálogo com uma figura humana – um poeta, um idealista – que medeia os interesses assentes na defesa do ecossistema à escala global, dos humanos e dos animais.

A quebra do tabu – falar a linguagem dos humanos e mostrar que são por eles compreendidos – implica um elevado risco para os gatos: a perda da independência e da liberdade.
O grupo tem consciência do facto por analogia com o sucedido a outros animais: golfinhos, papagaios, primatas e até os felinos de grande porte que servem de brinquedo aos humanos ou que são submetidos a torturas em laboratórios, em nome do avanço da Ciência. Mais uma achega do Autor na defesa dos direitos dos animais...

…de onde emerge a importância da escolha de uma figura humana escolhida a dedo para integrar a missão de ajudar os gatos e a gaivota.

A solução será fazer com que pareça tratar-se de um sonho…
…uma vez que não é considerado incomum que um poeta sonhe com coisas aparentemente bizarras.

Uma fábula contemporânea, a exibir uma das melhores facetas da escrita de Luís Sepúlveda.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, August 20, 2008

"A Metamorfose" de Franz Kafka (Quasi)


“A Metamorfose” de Franz Kafka (Quasi)

Um jovem caixeiro-viajante que sustenta a família acorda, um dia, e vê-se (ou imagina-se?) transformado em escaravelho. A partir daí, começa, de uma forma progressiva, a ver o mundo e a sentir as coisas que o rodeiam através do olhar do insecto.

O apetite modifica-se, os objectos ganham outra dimensão, a relação com os pais e a irmã sofre, também, uma alteração progressiva à medida que estes começam a aceitar a sua nova existência e a vê-lo com um ser desprovido de coluna vertebral, isto é, começam a enxergá-lo da mesma forma que o protagonista se vê a si próprio – efeito espelho.

A estranha doença ou transformação de Gregor Samsa – seja ela física ou meramente psicológica, embora com efeitos somáticos – acaba por desencadear uma profusão de transformações radicais no quotidiano da família, não só no que respeita aos hábitos, como também à disposição dos objectos na casa.

A doença de Gregor – porque podemos facilmente associar este género de “metamorfose” a uma deturpação da percepção, característica de alguns tipos de esquizofrenia ou simplesmente a uma qualquer maleita destruidora do sistema nervoso central, progressivamente incapacitante – implica, desde logo, uma série de reajustamentos adoptados, quer pelos pais quer pela irmã, no sentido de assegurarem o sustento da família. O pai, preparado para assumir a condição de aposentado, regressa à vida activa, obrigado a um rejuvenescimento repentino, que se exprime não só na postura corporal mas também numa completa reenergização de toda a actividade mental e física; a mãe arranja forma de trabalhar em casa (costura) e a irmã, um emprego temporário, desistindo, pelo menos algum tempo, do sonho de estudar violino no Conservatório. Chegam, inclusive, a alugar parte da casa para arrecadar mais algum dinheiro.

A progressão da doença de Gregor faz com que este se torne uma presença incómoda para os que o rodeiam – um inválido que começa a ser visto como um fardo.

Franz Kafka é particularmente duro, melhor dizendo, usa de uma capacidade de análise de tal forma fria e objectiva para descrever emoções tipicamente humanas – que não obedecem a condicionalismos morais nem ao sentido do politicamente correcto, servindo-se do recurso à ironia para o efeito, ao associar à imagem de um corpo deteriorado, ao aspecto exterior repulsivo de um escaravelho (um animal repugnante para a maior parte dos humanos) – ao criar um vivo contraste, entre o amor e adoração demonstrado pelas restantes personagens à beleza exterior, à “jovem frescura do corpo” da irmã e o incómodo crescente por ter em casa alguém que não é socialmente útil. Um aspecto da obra mediante o qual não nos podemos deixar de sentir em xeque pela exposição de atitudes que, não raro, queremos sublimar ou, pelo menos, racionalizar, dando-lhe uma coloração socialmente mais aceitável no que respeita às motivações que estão na sua origem.
Trata-se de expor, de forma assaz crua, o culto que a sociedade ocidental presta à Beleza e à Juventude, como mecanismos de selecção eugénica na espécie humana. Franz Kafka mostra-se particularmente visionário, ao prever o aparecimento de uma ideologia dominante no continente europeu que trouxesse uma forma de dominação semelhante ao nazismo, uma vez que, na altura em que escreveu este conto surgiam nos países mais desenvolvidos da Europa, as Teorias Raciais da História e o Darwinismo Social – esta última a enfatizar, particularmente, a necessidade de competição entre os mais aptos da mesma espécie, como forma de aperfeiçoamento e capacidade de adaptação ao meio…

E, numa antecipação de quase um século no que respeita à obsessão face ao mesmo culto da beleza e da eugenia que hoje vivemos (porque amplamente difundida pelos media), Franz Kafka conseguiu tecer o retrato dos já referidos mecanismos de selecção dos mais aptos, segundo os teóricos do darwinismo social. O que pressupõe uma capacidade de adaptação à mudança a toda a prova, quer no ecossistema social quer dentro da célula familiar.

Uma obra mais do que actual e que não deixou de inspirar alguns dos mais proeminentes autores do século vinte como Gabriel García Márquez e Salman Rushdie…

E cuja pertinência temática continua imune à passagem do tempo.

E uma mosca na sopa das consciências mais puritanas a arrotar hipocrisias pseudo-humanitárias…

Cláudia de Sousa Dias

Sunday, August 10, 2008

"Crónica do Rei Pasmado" de Gonzalo Torrente Ballester (Caminho)

 Gonzalo Torrente Ballester é um Autor que já nos habituou às suas irresistíveis provocações sob a forma de sátira. A arte de Ballester manifesta-se, no caso de Crónica do rei Pasmado, em tornar central um facto trivial – o desejo de um marido contemplar a esposa tal como veio ao mundo –  transformando-o num episódio romanesco. Ou  se calhar burlesco, face à controvérsia e intermináveis debates das personagens à volta do facto em questão lembrando o humor típico do teatro shakespeariano: trata-se de uma crónica ou novela adquire quase que a forma de uma farsa, podendo facilmente ser adaptada ao teatro. Por outro lado, a  polémica gerada à volta do assunto em questão poder-se-ia resumir em num único título do dramaturgo britânico: Muito Barulho por Nada. Porque o facto de um marido desejar contemplar a esposa nua não teria, aparentemente, nada de extraordinário. A não ser pela particularidade de o marido em questão se tratar do Rei Filipe IV de Espanha – II de Portugal – e a mulher em questão, a Rainha. Junte-se, ainda, segundo a nota do tradutor António Cândido, as contingências impostas pelo formalismo da corte espanhola no século XVII que exigia, na época, um requerimento formal de cada vez que o soberano pretendesse passar a noite no quarto da Rainha tendo, para tal, de apresentar justificação. O que implicava que um pedido, tão insólito para a época, colocasse a corte – e o clero em particular – em pé de guerra e desencadeasse toda uma rede de intrigas… 

Na trama, a situação ficcional escolhida pelo autor insere-se no contexto histórico de uma Espanha dominada pela Inquisição que instila o temor do Inferno num povo que pretende obediente, trabalhador, servil e pagador de pesados tributos. Tem, à cabeça do reino, um monarca semi-virgem – uma vez que, mesmo sendo pai, estava ainda longe de saber o significado da palavra erotismo – e cuja ingenuidade (ou falta de autonomia) o leva a manifestar publicamente, alto e bom som, a vontade em observar a nudez da Rainha, após ter dormido com uma prostituta e, pela primeira vez, ter contemplado o corpo nu de uma mulher. As dificuldades criadas pelo protocolo, que regula todos os actos do rei – públicos e privados – obrigam o monarca a submeter-se à humilhação de tornar públicos os seus desejos mais íntimos. Esta ausência de distinção entre vida pública e privada, num chefe de estado, imposta tanto pelos cortesãos como pelo clero, traduz-se numa feroz luta pelo poder entre aqueles que lhe estão próximos. Esta situação encontra apenas terreno fértil quando o poder está ocupado por alguém com uma personalidade dita “demasiado branda”, para não dizer frágil e imatura. E de um povo manipulável, porque rude e ignorante, subjugado pelo terror supersticioso de uma vingança divina, face aos supostos “pecados carnais” do Rei que representaria a divindade na Terra. 

Personagens – Análise actancial 

O Rei Filipe IV de Espanha O protagonista da trama, tímido e inseguro, não consegue fazer ouvir a própria voz, diante dos cortesãos, que se fingem de surdos. 

A Rainha Isabel de Bourbon Filha de Henrique IV de França, tem uma educação bastante mais liberal do que o marido, o qual exibe constantemente uma voz titubeante e veste quase sempre de luto. O humor contagiante da Rainha manifesta-se nos gestos e expressões faciais, assim como no vestuário, apesar de a sua sensualidade ser reprimida pelo protocolo. 

Marfisa, a exuberante cortesã de beleza loira vagamente veneziana – mas bastante menos diáfana do que a da Rainha, talvez porque temperada pelo sol de Espanha e pelo estilo de vida que leva – torna-se uma das grandes aliadas de ambos os soberanos. Em relação a Filipe, ao fazê-lo descobrir o erotismo, que não se esgota no acto sexual em si, nem do primário instinto de procriar. No que toca a Isabel, Marfisa ajuda-a a refinar o seu poder de sedução (uma vez que, segundo a própria Marfisa,  ao elevado potencial da Rainha falta uma boa dose de experiência...) de forma a que o casal usufrua plenamente do prazer sexual. 

O Primeiro-Ministro, começa por ser um dos principais oponentes do Rei – detendo o título de Valido, na pessoa do Conde de Olivares – e aliando-se a um clérigo ambicioso tem como principal objectivo o de conservar a posição privilegiada que detém na corte. No trono, interessa-lhe um Rei fragilizado, sem voz activa. E, uma vez que Espanha se encontra no centro da linha de fogo cruzado entre França e Inglaterra, cujos interesses económicos colidem com os da super potência Ibérica, o Valido pretende que o povo associe os fracassos da nação, ou um qualquer erro estratégico no teatro de guerra além fronteiras, em terras da Flandres, ou nalguma escaramuça com piratas ou com navios otomanos no Mediterrâneo, aos “pecados” sexuais do rei. Há, portanto, que agradar ao clero para conseguir um aliado, uma vez que este, mediante o hábil uso da retórica e do hiper-dramatismo, controla as massas populares, ignorantes e brutais, sedentas da vingança sanguínea que as redima da condição de pobreza, fatalmente decretada pelo “destino.” para servir as próprias ambições (que incluem gerar um herdeiro) este Valido encontra-se também na disposição de sacrificar o seu (do Valido) desejo sexual e a imensa torrente de lascívia da própria esposa, cujo comportamento lhe parece mais digno de uma amante do que de uma respeitável aristocrata, casada e mãe de família segundo os parâmetros do frade capuchinho que o aconselha a cair nas graças divinas para gerar descendência. O Primeiro-Ministro decide, então, procurar o padre  German de Villaescusa para intervir junto da divindade.

O Padre Villaescusa É o grande vilão desta crónica-novela. Fanático, demagogo, com uma sede ilimitada de poder, faz lembrar Savonarola, até no perfil aquilino. Adepto dos autos-de-fé, gosta de sentir o cheiro a carne humana carbonizada, pelo que se revela incansável ao exigir a perseguição da cortesã Marfisa, junto do Inquisidor-Mor, numa pseudo-tentativa de purga, uma vez que defende a existência da actividade sexual unicamente para fins reprodutivos. Aconselha o Conde de Olivares e a esposa a relatarem-lhe todos os pormenores íntimos, relativamente à sexualidade de ambos para, em seguida, os humilhar e culpabilizar, ao recomendar-lhes que o acto seja praticado exclusivamente com fins reprodutivos e de forma santificada, isto é, no altar e no meio de uma novena, recitada em voz alta por um coro de freiras, de costas voltadas para os nubentes. O que dá origem a uma das cenas mais hilariantes da obra, num ritual hierogâmico, a fazer lembrar antigos ritos babilónicos e gregos e as cerimónias dedicadas a Ishtar e Aphrofite respectivamente. Outra curiosidade a respeito deste padre é a forma derrogatória como considera a população quer da Galiza quer de Portugal, sobretudo a população feminina, afirmando especialmente em relação à mulheres Galegas que 'as que não são bruxas são putas' [1992:20] e que 'Deveria haver uma maneira de o Rei, sem se desfazer dessas terras, se libertar de semelhante gente' [idem]. Não sendo o primeiro nem o último a usar de semelhante estratégia para se apossar do território, o Padre Villaescusa, logo no início mostra ao que vem, quais são as suas intenções e ambições.

 O Padre Almeida é um Jesuíta português, exilado durante décadas em Inglaterra, que está a passar uma temporada na corte Ibérica e torna-se, juntamente com o Conde Peña Andrada, num dos principais aliados do Rei, ajudando à fuga de Marfisa. Esta é a personagem-chave que acciona o mecanismo que potencia o desenrolar dos acontecimentos. È, simultaneamente, um homem de acção e o cérebro que comanda as operações, uma vez que detém as ligações de amizade e influência com as pessoas certas. É um estratego.  E a amizade a amizade com o Inquisidor-Mor, o Padre Valdevielso, sucessor de Torquemada que , ao contrário deste, se apresenta na corte impregnado do banho cultural do renascimento, após viver largos anos em Itália, é muito mais esclarecido e brando do que o seu antecessor, levando-o a nutrir uma verdadeira estima por este jesuíta liberal e a apreciar a beleza de Marfisa, digna de figurar num dos quadros dos artistas italianos que mais admira. 

O Padre Valdevielso é um homem de saúde frágil, mas avesso a autos-de-fé  por isso torna-se um homem incómodo para pos cortesãos e clérigos mais radicais. 

O Conde Peña Andrada  é um Corsário, ao serviço de Filipe IV que o ajuda nos seus encontros clandestinos e, mais tarde, a preparar o encontro dos dois monarcas a sós, longe dos olhares indiscretos dos cortesãos. 

O Padre Luís de Góngora é uma personagem histórica e figura chave da história da literatura do país vizinho dá voz à escrita ballesteriana:  a “voz” de Ballester, a de D. Luís e a do Poeta como figura histórica aparece como que sobreposta em vários momentos na voz do narrador. Está, sobretudo, incarnada no discurso malicioso e satírico do Padre D. Luís, o qual gosta de compor poesia erótica bem como cantigas de escárnio e maldizer a respeito das personagens da corte e em cuja pena maliciosa o episódio de Marfisa com o Rei, mas também na forma assaz concupiscente com que o narrador se refere e representa as mulheres sexualmente apelativas, independentemente da idade ou condição.

O Padre Rivadesella Uma personagem curiosa, este padre que dirige agradáveis e refinadas tertúlias/conversas a dois, autênticos desafios literários e filosóficos, com alguém que se diz ser o Diabo (uma vez que se trata de alguém que ninguém vê e que se calhar é a própria consciência), ao qual chama de Trasgu, debaixo de uma árvore ao entardecer. 

Colette, a aia ou açafata da rainha, uma mulher culta e refinada que a instrui nas sobre as armadilhas na corte e forma de escapar às intrigas do Paço, mediante a experiência adquirida na Corte Francesa. Colette é a aia de confiança da Rainha.

A Camareira Real A sedutora viúva, prima do Valido Conde de Olivares, a lembrar vagamente a Milady de A. Dumas a grande intriguista feminina, é adepta de longas e intermináveis proles para fazer face a maleitas e pestes que eliminem a descendência. 

A Madre Superiora Parente do Inquisidor-Mor, aliada dos reis, mulher culta e surpreendentemente tolerante. 

E está completo o desfile de uma galeria das principais personagens tipo, cuja evolução plana – porque mantêm os traços principais da sua personalidade ao longo da trama – faz com que esta obra caia na categoria de novela e não de romance curto. Um conjunto de figuras pitorescas que, assim, compõe esta farsa cujo intuito é a exibição dos defeitos daquela sociedade sendo precisamente, esses mesmos defeitos que revestem a história de interesse.

Crónica do Rei Pasmado é, segundo o próprio Autor, um scherzo em Re(i) menor, alegre mas não demasiado onde a riqueza dos diálogos maledicentes é polvilhada pelas mais pimenta das mais descarada hipocrisia. Ninguém escapa da língua e pena ferina do narrador. Nem mesmo as duas heróicas figuras do Conde da Peña Andrada e do Padre Almeida que abandonam duas mulheres perseguidas pela Inquisição a meio do caminho sem antes se certificarem de que ficam em segurança. O autor pretende despir mais do que os corpos, as almas toda a espécie de máscaras e falsos pudores, expondo a alma de toda uma corte e dissecando a anatomia sócio -cultural de uma época que acabou por se constituir como um ponto de inflexão na história de Espanha (e Portugal) por marcar o começo do declínio do maior Império de todos os tempos. 

Uma obra literária que foi transformada em obra cinematográfica – dirigida por Imanol Uribe, com Joaquim de Almeida no papel do Padre Almeida, um jesuíta com alma de cavalheiro – mas que é talhada à medida para ser transformada em peça de teatro... 

 Ficamos à espera. 


 Cláudia de Sousa Dias

Saturday, August 02, 2008

"A Selva" de Ferreira de Castro (Guimarães Editora)


A leitura deste romance, escrito em 1926, quinze anos depois de o Autor abandonar o Seringal, junto ao curso do Rio Madeira, afluente do Amazonas, é um autêntico mergulho no clima de humidade “opressiva e sufocante” daquilo que o Autor chama de “inferno verde”.

O carácter auto-biográfico da obra encontra-se explícito no respectivo prefácio, que nos permite percepcionar as transformações, os acrescentos, que distinguem o romance de da biografia.
A experiência do contacto com a selva amazónica é tão evidente, na prosa de Ferreira de Castro, que seria de todo desnecessária a confirmação pelo próprio Autor de que este tenha, de facto, vivido junto da selva equatoriana e contactado de perto com os trabalhadores do Seringal.

A profusão descritiva e a minúcia dos detalhes. relativos ao clima e à variedade da flora local, atestam-no de forma inequívoca, conferindo-lhe uma autenticidade e verosimilhança a toda a prova.

Ferreira de Castro escreve como quem compõe um diário de bordo, à semelhança de Joseph Conrad, tratando ao mesmo tempo – tal como o supracitado autor naturalizado britânico –, a selva como um ser humano dotado de alma e não como uma pluralidade de seres, na sua relação com a espécie humana. No entanto, a relação entre os seres que pertencem à selva, sobretudo aqueles que pertencem ao mundo vegetal, é muito semelhante àquela que se estabelece entre os seres humanos, num lugar isolado da chamada “civilização”, no meio do nada, onde as instituições não funcionam ou simplesmente nem existem.

No seringal, vigora a lei do mais forte, tanto no mundo vegetal como animal, inclusive entre os animais humanos. E é no mesmo seringal que a faceta animalesca do ser humano se manifesta nos impulsos mais bestiais, que vêm ao de cima e se sobrepõem à cultura, às normas sociais, à moral, à religião, à ética, à justiça. Na selva, só os seres mais fortes e mais aptos sobrevivem.

Ao longo do romance Ferreira de Castro põe em evidência alguns paralelismos particularmente interessantes: por exemplo, tal como as lianas e as orquídeas se alimentam de forma parasitária da seiva das árvores que as sustentam e transformam a luz solar em alimento – nalgumas delas o parasitismo acabará por destrui-las – e ao fazer extinguir a própria fonte de alimento; também os homens que detém o poder conferido não só pela supremacia económica mas sobretudo pela força, conseguem subjugar os mais frágeis, cuja vulnerabilidade os impede de se lhe oporem, e escraviza-los, parasitando-os até à morte.
Outra semelhança que podemos encontrar na temática de Castro e Conrad é o facto de o primeiro se dedicar, nesta obra a relatar algumas experiências do seu passado adolescente na selva amazónica sob a forma de romance. Conrad, por seu lado, projecta, também parte da própria juventude passada na floreste húmida do continente africano em O Coração das Trevas. Ambos se preocupam em expor a rapacidade dos povos europeus durante a época colonial e o choque cultural entre colonizadores e colonizados. O objectivo seria, no caso de Conrad, o de denunciar a falta de ética que leva a um crescimento económico desenfreado, mediante a exploração do marfim, pelo comércio ultramarino inglês, no coração da selva africana na obra supracitada ou, através da exploração das minas de prata sul-americanas, em Nostromo.
Ferreira de Castro faz o mesmo no tocante à exploração do comércio da borracha na Amazónia e do trabalho dos “seringueiros” que se ocupam da extracção do látex da árvore da borracha – a seringueira – e que são escravizados pelo dono da empresa – Juca Tristão – o magnate da borracha.

Os capatazes Balbino e Caetano encarregam-se de “engajar” os trabalhadores agrícolas, que vivem em situação de extrema pobreza, nas regiões secas do Ceará. Estes empreendem uma viagem duríssima, muitos deles acabam, inclusive, por morrer no caminho. E os que chegam ao detino ficam endividados pelo resto da vida ao patrão que se oferece para custear as despesas da viagem e ao consumo de géneros na "venda" que o mesmo explora, junto ao seringal, praticando os preços correspondentes aos do mercado negro, ao vender as mercadorias por um valor cinco vezes superior àquele pelo qual as adquiriu. Enquanto isso, a margem de lucro das vendas da borracha que o patrão reserva para si mesmo impede que os trabalhadores possam saldar a dívida que se vai acumulando, sobretudo no tocante aos que se tornam dependentes da “cachaça”, a qual funciona como anestésico e como elemento alienador da realidade.

O protagonista da estória é um jovem, monárquico – Alberto – expulso do País após a implantação da República.
Em Belém do Pará, Alberto Alberto fica sem emprego, vítima da crise conjuntural, fruto das flutuações na cotação do preço da borracha. O Tio Macedo, irmão da mãe de Alberto, supostamente seu protector, não quer assumir o fardo de sustentar o sobrinho, após dois meses na situação de desemprego.

Alberto aceita, por orgulho, a sugestão do Tio em ir para o seringal, apenas para não ter de se sujeitar à humilhação de se ver sustentado como um “parente pobre”, pelo Tio.

Ao chegar à selva, após a viagem no porão infecto de um barco fluvial, em terceira classe, Alberto depara-se com a beleza esmagadora da selva amazónica, cuja profusão de espécies obriga à formação de complicados esquemas de sobrevivência como o mutualismo, o parasitismo e o comensalismo.

A relação dos exploradores do seringal com as tribos índias locais, que habitam as redondezas, não é pacífica. O choque de valores existente entre uma cultura perfeitamente integrada no meio físico local – onde a propriedade não existe – e os valores subjacentes ao capitalismo, é inevitável, atingindo paroxismos de violência.

As relações humanas em geral formam-se, naquelas paragens, com base no nível de selvajaria mais primário devido à impossibilidade de funcionamento dos mecanismos de controlo social legais, no que toca à criminalidade como sendo os tribunais ou a fiscalização por parte do Estado.

Por outro lado, a ausência de elementos do sexo feminino dá azo ao eclodir, num lugar como este, dos mais bestiais impulsos nas bestas humanas: o caso de Agostinho e da agonia do seu desejo por uma criança de nove anos, do impulso de a violar que acaba por vitimar o pai da criança a consequentemente a si próprio, a busca de alívio da tensão sexual através do coito com animais. Mesmo Alberto, o expoente máximo da “educação civilizada”, tem uma série de reacções inexplicáveis pela via racional, patentes na tentativa de sedução da velha negra – Nhá Vitória – ou no impulso irresistível de espreitar Dona Yáyá no banho .Tudo fruto do excessivo isolamento a que é submetido. No auge do seu violento desejo por Dona Yayá, a única mulher branca naquelas paragens, Alberto chega a desejar a morte de Guerreiro, director da contabilidade dos negócios de Juca Tristão, seu chefe e amigo – reminiscências vagamente freudianas relacionadas com a tragédia de Édipo Rei – envolvendo Dona YáYá (figura maternal Jocasta), Guerreiro (figura paternal Laio) e Alberto (Édipo perdido e reintegrado num reino desconhecido onde se apaixona por uma rainha com idade para ser sua mãe).

A diferença entre Alberto e Agostinho está na educação e na intensidade do impulso. Alberto nunca chega ao ponto de concretizar os seus desejos pela força ou a recorrer ao crime. O que não acontece com o seringueiro, apanhado em flagrante, na tentativa de violar uma criança.

A personagem Alberto torna-se fascinante porque modelada. Alberto é, inicialmente, um jovem pedante, defensor da supremacia hereditária das elites, um monárquico típico, orgulhoso da sua estirpe, dos pergaminhos e privilégios de classe, do seu “sangue azul”. No entanto, à medida que a trama avança, que penetra na selva, vai sentir-se progressivamente em paridade de circunstâncias com os companheiros de viagem e dos trabalhadores do seringal. Alberto muda gradualmente de convicções ao passar por uma série de conflitos internos, sobretudo após exercer o duro ofício da extracção da borracha, principalmente quando se apercebe da ganância do patrão e da forma como manipula as vidas dos trabalhadores.

O ponto de viragem da história dá-se quando Alberto toma a cargo a gerência da loja. É nesta altura que o jovem se apercebe até que ponto a vida dos seringueiros está a ser vampirizada por Tristão.

Alberto vê-se, então, obrigado a mudar de convicções e a forma de encarar a vida no seringal. Apesar de tudo, a tentação de ficar rico continua a acenar-lhe, pela deferência causada pela nova posição social e pela adulação do patrão.

O Negro Tiago – de alcunha Estica, que detesta de morte, por lhe lembrar o defeito na perna – nutre um afecto genuíno pelo patrão. Mas a crueldade deste faz emergir a revolta interior causada por décadas de humilhação na senzala, durante o período da escravatura, abolida há pouco mais de vinte anos. Tiago, o Estica, decide fazer justiça pelas próprias mãos…em nome da Liberdade.

Estes acontecimentos vincam a verdadeira intenção do Autor ao escrever a obra: a de mostrar a fragilidade das estruturas que sustentam um determinado regime político, sobretudo se se tratar de uma falsa democracia, quando esta assenta na desigualdade e as clivagens sociais atingem proporções obscenas. A Selva de Ferreira de Castro pode-se considerar, tendo em conta a época em que foi escrita, como um manifesto anarquista em defesa dos direitos humanos, mais propriamente dos direitos dos trabalhadores.

No final, à laia de epílogo, Alberto, no papel de narrador, chama a atenção para as falhas do sistema judicial, sobretudo para os critérios de aplicação do Código Penal, pelo que decide, a partir de então, dedicar-se apenas ao ramo civil, uma vez que o Direito Penal ou Criminal já não serve o Ideal de Justiça como valor absoluto…

Um livro fascinante.

Talvez porque cada vez mais actual.

Cláudia de Sousa Dias