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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, November 26, 2005

“A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera (Dom Quixote)


A acção situa-se na época da invasão da Boémia pelo Exército Russo, à qual se sucede uma autêntica revolução cultural. Os textos dos intelectuais checos são censurados, as suas casas são confiscadas juntamente com as suas bibliotecas privadas. São saneados no emprego e obrigados a retratar-se, isto quando não são sujeitos a represálias por parte da Polícia ou deportados para a Sibéria.

A intenção do Autor é, sobretudo fazer a crítica ao estilo kitsch na arte. Sobretudo na literatura, na pintura e no cinema. E, principalmente, ao kitsch comunista – a ideia formatada pela intelligensia soviética, que pretende mostrar às massas o comunismo como destino edénico, ou o fim idílico da História.


Kundera consegue ir ainda mais longe. O seu objectivo é a desmistificação do culto do Kitsch em qualquer sistema político. "Porque o Kitsch mutila a Arte. O Kitsch é a cegueira. O Kitsch é a ideia falsificada da Perfeição. É a negação dos aspectos negativos das infraestruturas que servem de suporte a uma sociedade. É a negação da existência da merda” (sic). Isto é, o kitsch é o paraíso artificial prometido quer pelos filmes cor-de-rosa de Hollywood, quer pela propaganda do regime comunista, habilmente polida, lustrada pela censura. De facto, um regime cuja censura impede a visualização ou a consciencialização dos seus aspectos negativos, só pode ser comparado a uma flor de artificial. Ou de estufa. Uma estética perfeita, mas sem perfume. Por isso, um intelectual, escritor, pintor ou jornalista dificilmente conseguirá exprimir-se livremente num regime onde a arte como veículo de canalização das emoções ou do livre pensamento é mutilada.

É por esta razão que duas das personagens principais são, ou pretendem ser, a antítese do Kitsch: Thomas, o médico e intelectual rebelde; e Sabina a pintora inconformista, de “boas famílias” que sente o impulso incontrolável de cortar com a tradição.

Sabina e Thomas sentem, por isso, a necessidade compulsiva de fazer o contrário daquilo que a respectiva família ou instituições esperam deles. O seu móbil é a procura do oposto daquilo que é politicamente correcto. Não querem ser formatados. São seres cuja atitude anti-conformista se traduz numa tentativa de chamar a atenção da opinião pública, no sentido de mudar atitudes e comportamentos: Thomas, com os seus artigos de opinião, que publica no jornal; Sabina, com a sua pintura.

A Insustentável Leveza do Ser é, por isso, um romance que trata do dilema entre a manutenção da integridade do EU e a necessidade humana de integração, o impulso de constituir aquilo que Herbert Spencer chama de “a célula básica das sociedades humanas”: a família.

Relacionado com esta questão, está o golpe de audácia do Autor em recuperar o pensamento de alguns filósofos pré-socráticos como Heraclito e Parménides adaptando-o à realidade do sec. XX.

Em primeiro lugar, o Autor apresenta-nos a problemática do “eterno retorno”, aquilo que em economia se chama de “custo de oportunidade” – ou o custo de uma tomada de decisão – que implica a impossibilidade de sabermos as consequências ou implicações na nossa vida se tivéssemos tomado a decisão oposta. O eterno retorno assenta no pressuposto de que o curso da vida não segue em linha recta, mas em círculos. Ou em espiral. O que remete para a tese de Heraclito, de que “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”.


Da mesma forma, só podemos tomar a mesma decisão uma única vez, porque a vida não permite ensaios.
Porque, para Kundera, mesmo quando surge a oportunidade de refazermos as nossas vidas, as circunstâncias, ou melhor, a conjuntura envolvente já não é a mesma. O conjunto de variáveis já se alterou. Portanto, a decisão já não é a mesma.

Por outro lado, a dicotomia entre “leve” e “pesado”, que Kundera introduz, de forma algo irónica, acerca das relações afectivas entre homens e mulheres, remete-nos para a teoria dos opostos de Parménides. Para Thomas, o médico checo dividido entre duas belas mulheres, Teresa e Sabina, trata-se de saber o que é mais importante na relação amorosa: o peso ou a leveza. Qual deles é o pólo positivo e qual o negativo?

Sabina é a beleza sensual, a leveza, a paixão, a liberdade – a paixão de Thomas pela indomável pintora tem, por isso, algo de auto-erótico, pelo facto de parecerem tão semelhantes (como se vê na cena do espelho com o chapéu-de-coco como acessório sexual).

Teresa, pelo contrário, é uma jovem de família humilde, disfuncional, problemática e extremamente carente. Esta consegue prender Thomas usando as grilhetas da compaixão. Teresa é o peso que consegue agarrar o rebelde e inconstante Dom Juan à Terra e aos laços do matrimónio.

O custo de oportunidade de Thomas só se consegue observar mediante o desenrolar da vida de Sabina – a sua alma gémea – que escolheu “a leveza do ser”, isto é, a liberdade e independência absolutas.

Ao contrário de Thomas, Sabina mantém a integridade do EU até ao final pelo facto de não se deixar prender a ninguém.
Thomas pelo contrário passa a ser influenciado e a dirigir a sua vida em função das emoções de Teresa – o abandono da carreira profissional em Zurich e, mais tarde, em Praga, quando decide retirar-se para uma aldeia no interior.

A carreira de Thomas entra em entropia devido à sua indecisão em optar entre “o peso e a leveza”: Thomas quer o amor de Teresa e quer, simultaneamente, a sua vida antes de Teresa, isto é, a sua vida de cientista sexual.

Impedido de exercer medicina pelo regime comunista, Thomas prossegue a sua carreira de investigador do comportamento sexual feminino, utilizando as suas clientes, na sua nova carreira de lavador de janelas, como cobaias.

No final, o “peso” é que acaba por dominar a vida de Thomas. O sofrimento de Teresa é uma arma poderosa de persuasão. Paralelamente, o sofrimento de Karenine, o cão de Teresa, um ser cujo amor é partilhado por ambos acaba por aproximá-los e transformar o Dom Juan em Tristão, confirmando as previsões de Sabina acerca da relação de ambos.

O dilema de Teresa é diferente do de Thomas. Teresa está preocupada com a Alma. Com o culto do EU. Inteligente e autodidacta aspira a elevar-se intelectualmente. Preocupa-a a ligação, a correspondência, de cariz algo platónico, entre o corpo e a alma. Idealista e apaixonada, a jovem sucumbe à atracção fatal de Thomas, fruto de uma série de acasos sucessivos, que ela julga ser obra do Destino ou de qualquer outra entidade superior, algo que anula o livre-arbítrio.
A sua paixão por Thomas deixa-lhe, no entanto, a alma dividida, anula-lhe o equilíbrio psíquico e desenvolve um receio paranóico de ver-se abandonada, substituída.

Franz, o namorado de Sabina, é a versão masculina do Eu de Teresa. Mas como Sabina, ao contrário de Thomas, não se deixa prender pelos afectos, Franz refugia-se na Utopia, no saber e na inteligência. Franz é aquilo no qual Teresa poderia ter-se tornado se não se tivesse fundido, isto é, incorporado a sua vida na de Thomas.

Em Franz, a autenticidade manifesta-se na sua procura pelo ideal, seja ele político, afectivo ou emocional. A Grande Marcha contra a opressão e a violência do regime comunista é regida pela devoção, pela idolatria ao seu ideal de mulher que ele identifica com Sabina. Franz admira-a por ser igual a si mesma, porque nunca tenta agradar a ninguém, ao contrário da sua própria esposa, Marie-Claude, que vive em função das aparências.

Por isso, todas as suas atitudes são direccionadas no sentido de cativar a admiração de Sabina.

A respeito deste casal, o capítulo respeitante às diferentes significações atribuídas às mesmas palavras é um autêntico tratado de psicologia no que toca à terapia de casal.

E é, sobretudo, na terceira parte, intitulada de As palavras Mal-Entendidas, que nos apercebemos da dimensão da importância das cognições (a forma como estamos programados para entender determinadas palavras) em relação ao condicionamento das atitudes dos indivíduos.

Aliás, todo o livro é terapêutico no que respeita à análise da evolução das relações amorosas, independentemente do sistema político em que estas se desenrolam.

Por todos estes motivos, A Insustentável Leveza do Ser é uma das maiores obras literárias do sec. XX,..

Um livro que se lê de forma compulsiva, de capítulos pequenos, o que torna a leitura extremamente dinâmica. A escrita é introspectiva, demonstrativa, recorrendo, por vezes, à maiêutica socrática, o que ajuda a estimular o raciocínio.

O estilo narrativo de Kundera é depurado, não há uma única palavra supérflua. Destituído de floreados poéticos, confere aos textos uma beleza (leveza) ática, que se lê com prazer.

Um livro de leitura obrigatória.

Revolucionário na forma de olhar o mundo.


Genial.

Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, November 22, 2005

“O Principezinho” de Antoine Saint-Exupery (Caravela, Vega)


Há treze anos atrás, por altura do meu vigésimo primeiro aniversário, a minha melhor amiga ofereceu-me O Principezinho com a seguinte dedicatória:

“Tu tornas-te responsável por aquilo que cativas”. Do lado esquerdo, um sol de nariz batatudo espreitava por entre as nuvens…debaixo de um guarda-chuva (ou guarda-sol)!

Na altura, li, mas fiquei com a sensação que o mais importante me escapava, perdido, algures nas entrelinhas, como o sol da Natacha que me observava por entre as nuvens…

Hoje, é esta a minha interpretação da mais conhecida obra de Saint-Exupery:

Trata-se de um conto que, definitivamente não é (só) para crianças, apesar da naïfté das ilustrações (aliás lindíssimas) do Autor e da ingenuidade das perguntas do Pequeno Príncipe.

Nada é aquilo que parece.

Em primeiro lugar, o Aviador e o Principezinho são o desdobramento da personalidade do Autor.

É o diálogo de Saint-Exupery adulto (o aviador, aquilo em que se tornou) com Saint-Exupery criança, que se torna a sua consciência, aquela que lhe faz as perguntas mais incómodas. O Principezinho incarna os seus sonhos e interrogações de menino. É o motor da consciência que o impele a buscar a resposta para os enigmas e para a perseguição dos seus desejos.

O conto tem um significado polissémico quase que infinito.

Por exemplo, as jibóias que engolem as presas “inteirinhas, sem as mastigar”podem ser perfeitamente aquelas pessoas - amigos-inimigos - que não olham a meios para atingirem os seus fins. Na mitologia clássica, a primeira mulher de Zeus, a titã Métis, depois de casada, deixa-se “engolir” isto é, deixa-se dominar, ou aniquilar pelo marido, depois deste a convencer a diminuir de tamanho.

O mesmo se passa com as jibóias humanas de Saint-Exupery que, tal como oportunista Zeus, eliminam os rivais, engolindo-os, para em seguida obterem a supremacia. Por vezes, apropriam-se do mérito alheio, em parte ou na totalidade - Zeus gabava-se de ser o único progenitor de Athena, por tê-la feito vir à luz já adulta e armada quando, na realidade, a sua mãe biológica era Métis. Athena esqueceu-se que tinha mãe, pois não lhe passava pela cabeça ser filha de alguém a quem não admirasse e que se anulava a si própria.

Esta interpretação está directamente ligada à crítica que o narrador faz, imediatamente a seguir, em relação à superficialidade e materialismo do mundo dos adultos.

O adulto Saint-Exupery consegue, por obrigação da sociedade, colocar-se ao nível dos seus contemporâneos, mas a criança Saint-Exupery vai definhando, lentamente, incompreendida e desvalorizada pelos adultos, consumida pela solidão, até ao golpe final…

O diálogo do Aviador com o Principezinho gera-se a partir de um sonho, logo após aquele se ter deitado, depois de constatar a avaria no avião, em pleno Sahara.

É por ser a voz da consciência do Aviador que o Principezinho nunca desiste de uma pergunta. Mas, curiosamente, nunca responde às perguntas do aviador. É este quem, enquanto adulto, tem de fornecer as respostas para satisfazer a curiosidade da criança que habita dentro de si próprio.

Em primeiro lugar, o que mais incomoda o aviador - e narrador - é o acto de julgar as pessoas pelas aparências, pela forma de vestir (o caso do astrónomo Turco), a falta de interesse dos adultos pelas características pessoais, gostos e afinidades de cada um, preferindo, ao invés, avaliar os indivíduos em função da sua situação sócio-económica e deixar-se fascinar pelos sinais exteriores de riqueza.

Os “embondeiros” têm um significado muito parecido com o da jibóia. São aquelas pessoas que ocupam demasiado espaço na vida de cada um. Não deixam margem para a individualidade ou a privacidade. São como as ervas daninhas. Impedem, inclusive a criatividade de florescer.Também podem simbolizar a pressão social, que molda a nossa personalidade, atitudes e condiciona as nossas escolhas.

A necessidade de sol por parte do Principezinho significa uma forte tendência para a depressão, proporcionada pelo peso opressivo da solidão. Esta característica deve-se à enorme clivagem relativamente à sua forma de pensar e à dos adultos.

Por sua vez, a Rosa é o primeiro amor do Pequeno Príncipe. Um amor total, absoluto e ingénuo. Porque ele ainda não sabe que é amor. Não antes da sua estadia na Terra. “Eu era novo de mais para saber amar”. O receio que a ovelha lhe coma a flor é o medo que a namorada o tenha esquecido. A ovelha devoradora simboliza um possível rival.

A rosa é, pelas atitudes expressas, uma menina extremamente jovem, imatura, com pouca capacidades para sobreviver sozinha. Daí a necessidade da redoma, do biombo e todo e qualquer pretexto para cativar a atenção do pequeno Príncipe.

O Principezinho, antes de chegar à Terra, faz um périplo por vários planetas ou asteróides habitados, cada qual por uma figura-tipo. Estas figuras incarnam alguns dos aspectos mais fúteis e contraditórios da sociedade em que vivemos. É através delas, que o Autor, enfatiza o ridículo daquilo que mais o incomoda: a autoridade e o gosto por dar ordens e fazer-se obedecer, na persona do monarca; a vaidade e o egocentrismo daqueles que vivem para receber aplausos; a embriaguez como desculpa para fugir aos problemas; a avareza do homem de negócios, que vive somente para contar e amealhar dinheiro; o geógrafo-burocrata, que se aproveita do trabalho do explorador, complicando-o para justificar um mérito que não lhe pertence; a falta de autonomia do acendedor de candeeiros, que se limita a obedecer a instruções, mesmo que desprovidas de sentido. É, no entanto, este último, o único por quem sente alguma simpatia, por não ter a atenção centrada, unicamente, em si próprio.

Na Terra, o Principezinho encontra três personagens importantíssimas: a Serpente, a Raposa e o Aviador (que é ele próprio enquanto adulto).

A Serpente é a tentação do abismo, a vertigem que o atrai para a morte. O diálogo com o réptil torna-se premonitório para o desenrolar da história. Ela oferece-lhe o seu veneno para quando ele precisar. O Principezinho está imerso num estado de depressão profunda, por ter perdido ou ter-se afastado da sua rosa. A Serpente condu-lo sedutoramente para a morte.

O Pequeno Príncipe conhece outros amores – outras rosas, outras meninas – mas nenhuma é a sua rosa, mais nenhuma precisa realmente dele. Por isso, sente-se só, mesmo rodeado de muita gente.

No pólo oposto ao da Serpente, encontra-se a Raposa.

A Raposa pode, perfeitamente, ser uma mulher mais velha, mais vivida, que se deixa cativar, apaixonar, fascinar, prender, pelo Principezinho.

A Raposa ensina-lhe a importância dos rituais para cativar alguém, a “ver com o coração” e que é o Tempo que consolida o amor.

Um pormenor importante: a Raposa não “brinca” com o Principezinho antes de “estar presa”, isto é, de estar apaixonada.

Para esta mulher-raposa, os homens são predadores aos quais só importa possuir a presa (a raposa), para exibir como troféu de caça. Por isso ela prefere as galinhas - passivas. Depois de seduzida, a raposa entrega-se sem reservas, apesar de saber que o Principezinho não a pode amar – porque já ama a sua rosa. Para a raposa amar, por si só, vale a pena porque a lembrança do amor – no caso do Pequeno Príncipe,está na cor do trigo, dourado como os seus cabelos – é indelével. A mulher-raposa prefere amar a ser amada, mesmo que isso implique sofrimento.

A maior lição da Raposa é a de que somos responsáveis por aqueles que amamos e, sobretudo, por aqueles que cativamos, com quem criamos laços.

E, por último, temos o aviador, que é aquele em quem se tornou o Principezinho.

O Aviador transporta ao colo a criança, cada vez mais frágil, que acaba por desaparecer juntamente com o amor pela sua rosa agora inatingível, inalcançável.

O Principezinho, sucumbe ao abismo, ao fundo do qual espera encontrar a sua rosa...

No capítulo XVI, assiste-se à luta desesperada do Aviador que tenta, em vão, dissuadir o seu pequeno amigo de se deixar levar pela Serpente.

A criança insiste, contudo, em morrer em nome do Amor.

O Aviador perde o seu pequeno amigo para sempre.

Também nunca chega a saber se a sua rosa foi ou não devorada por uma ovelha...


Uma história bela e pungente história de dor e solidão.



Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, November 16, 2005

“A Relíquia” de Eça de Queirós (Planeta DeAgostini)


A personagem principal, Teodorico Raposo, é um órfão criado por uma tia beata e rica, obcecada pela conquista da graça divina.
O pequeno Raposo, em criança, carente e sexualmente reprimido, cresce, alimentando, secretamente um ódio visceral à religião e à “querida” Titi, ao mesmo tempo que simula uma afeição sincera pela tia e uma devoção genuína pelos ideais desta.

A hipocrisia é a faceta predominante na componente comportamental das atitudes da personagem. Enquanto isso, a componente emocional da mesma atitude é revestida de um cinismo atroz, de uma crueza de sentimentos jamais vista.

Toda as acções de Teodorico são comandadas a partir do impulso sexual que se traduz numa obsessão omnipresente, desenvolvida a partir de uma infância totalmente deserta de qualquer tipo de afecto feminino.

Teodorico é, na fase infantil, uma criança muito sexuada, se considerarmos a voluptuosa sofreguidão com que com que avalia os mais dotados espécimes do género feminino como, por exemplo, “a inglesa do Senhor Barão”.

Na fase adulta, a sua relação com as mulheres obedece à mesma estrutura. Todas as suas aventuras amorosas são apenas passageiros delírios passionais, à semelhança do idílio de Ega e Raquel Cohen em Os Maias. Desde a horizontalíssima e venal Adélia, em Lisboa, às prostitutas do bordel em terras orientais, passando pela aparentemente angelical luveira inglesa de Alexandria. Tanto o bordel como o paquete no qual Raposo viaja para a Terra Santa, são palco de alguns ultra-cómicos episódios que salientam o carácter burlesco da personagem em tudo o que se relaciona com “saias” – o fruto proibido pela tia, poderosa, cuja degustação poderá impedi-lo de aceder ao paraíso financeiro que a austera senhora lhe legará após a sua morte.

A psico-castração forçada a que Raposo é submetido leva ao desenvolvimento de uma certa ambiguidade sexual que se traduz na sua relação com Crispim. Este exprime a sua afeição pelo colega um pouco fora dos cânones considerados “normais” entre dois indivíduos do mesmo sexo. Ambiguidade que está patente na admiração demonstrada por Raposo ao manifestar a sua admiração pela beleza feminil de um deslumbrante efebo árabe, fazendo lembrar T.E. Lawrence e a sua paixão em terras muçulmanas.

A peregrinação de Raposo à Terra Santa tem como objectivo a busca de uma relíquia sagrada que lhe permita conquistar definitivamente a afeição da sua tia e a certeza de ser o único contemplado na tão cobiçada herança.

A relíquia transforma-se, assim, no pretexto para uma aventura sem precedentes, em terras distantes sem o jugo opressivo da encarnação da Virtude que é a sua mãe substituta.

É nesta viagem que Eça tem, mais uma vez, oportunidade de, através do sapiente e eruditíssimo companheiro de viagem de Raposo –, o alemão Topsius, professor universitário, uma espécie de Indiana Jones –, que o Autor exibe a sua mais do que vasta cultura, no que respeita às civilizações antigas e ao conhecimento das descobertas arqueológicas e étnicas pelos mais eminentes académicos europeus seus contemporâneos (ou quase) como Champollion e Chateaubriand.

É ainda, através de Topsius, que Eça se propõe a criticar o pedantismo dos ideólogos alemães e da pretensa superioridade intelectual e militar germânica, antevendo o que se passaria daí a algumas décadas, no início do sec.XX, inclusive o massacre massivo da população judaica na Europa.

Outro episódio interessante é o do sonho de Raposo, uma regressão de dezoito séculos que lhe dá a possibilidade de assistir ao julgamento de Cristo, descortinando, simultaneamente, a “verdade” acerca da Ressurreição e do nascimento da religião cristã.

Um conto dentro do romance que vem retirar a originalidade a alguns autores contemporâneos como Dan Brown em O Código DaVinci e Catherine Clément em Jesus na Fogueira.

É ler para crer…

De facto tudo parece ter sido originado a partir de um mal-entendido e de um plano que o casal romano – Pilatos e Cláudia – que correu mal à última hora…

Da mesma forma a Fatalidade apodera-se do destino de Raposo. Um descuido faz inverter a Roda da Fortuna para o nosso (anti) herói.

E é sempre verdade que “mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo…

O estilo predominante em A Relíquia está impregnado de sarcasmo, enquanto que a estrutura narrativa em relação à sucessão dos factos, exibe a profunda ironia face ao prazer sádico dos deuses, ou qualquer força superior que se assemelhe a uma divindade, em brincar com os desejos humanos – da mesma forma que o felino se diverte com a presa antes de a aniquilar, devorando-a.

O último capítulo está particularmente recheado de situações deste género. E, quando o autor, já nas últimas páginas, parece atribuir um final moralizante à história, de inspiração assaz hegeliana – exaltando o primar da consciência e a noção de que a hipocrisia não compensa –, não resiste a terminar com uma tirada de um cinismo contundente, ao professar a crença de que só não triunfa quem não sabe mentir de forma convincente, mesmo quando desmascarado…

Mais uma obra acutilante feita para abalar consciências e espetar a farpa bem no meio da ferida.

Para bom entendedor…


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, November 08, 2005

"A Criança Medusa" de Sylvie Germain (Ulisseia)


A construção da personalidade de Lucie d’Aubigné, a personagem principal do romance, pode ser comparada ao percurso de vida de Perséfone, a mitológica Rainha dos Infernos.
Tal como a filha de Deméter, Lucie sofre o trauma da violação, após o qual se refugia num mundo de trevas dominado pelo ódio e pela depressão. O processo de cura e as motivações das diferentes personagens são dissecadas, numa perspectiva evolutiva, até ao mais ínfimo detalhe.


O romance é construído como se fosse uma pintura. As cores sobrepõem-se umas às outras, fazendo as variações de luz sucederem-se ao ritmo das estações do ano. As sensações predominantes são as visuais e auditivas, onde se registam todos os cambiantes de luz e sombra que alteram as cores, a perspectiva, a interpretação dos factos e o estado de espírito. Da mesma forma, o canto formado pelo coro das vozes da Natureza harmoniza-se com as emoções das personagens podendo como, por exemplo, a manifestação do cântico de alegria do sapo Melchior como solista da Noite, ou o cântico de guerra que denuncia a revolta da Natureza contra o Mal – o canto de Némesis –, personificado na violência do vento e da raiva mortífera do trovão.

O estilo poético da Autora transforma um tema de tratamento particularmente difícil num texto de grande beleza sem, com isso, lhe retirar as cores da dura realidade que revestem o acto de profanar o corpo de uma criança.

O desenvolvimento da personalidade, em todas as personagens do romance tem sobretudo como base o modelo teórico do construtivismo/cognitivismo, embora também se note a influência do modelo conceptual de Freud e Jung na construção do Ego e Superego, sobretudo em relação a Lucie, Ferdinand e Lou-Fé.

A acção desenvolve-se em quatro partes ou actos, após o que se segue o epílogo. Cada acto é precedido de uma citação bíblica – epígrafe –, de teor sibilino que deixa o leitor entrever o que se irá passar no íntimo das personagens.

A cada um dos três capítulos que compõem cada acto, corresponde um texto introdutório – a voz de um deus ou a voz da Terra como deusa-mãe ou da Natureza personificada – em prosa poética que narra, nas entrelinhas, aquilo que se está a passar com as personagens ao longo do capítulo. Trata-se do ponto de vista de Alguém que tudo vê e tudo compreende a partir de uma plano superior de uma vista panorâmica. A linguagem está codificada, esconde as motivações que despoletam as atitudes de cada um através de uma profusão de metáforas, animismos, personificações, sinestesias que só pode ser decifrada pela leitura do capítulo que lhe corresponde.

Os textos introdutórios dizem respeito à tríade de capítulos de cada acto.
Na primeira parte – que apelida de Infância, isto é, os três meses da Primavera – os três capítulos que a compõem, denominam-se Iluminuras e são construídos pelas experiências que se destinam a colorir o livro branco que é o cérebro de uma criança, inscrevendo-o de cores brilhantes e vivas, como no caso do ingénuo Lou-Fé, ou de cores sombrias, como no caso de Lucie. A mais notória impressão que marca a memória dos dois amigos é a do eclipse, fenómeno de beleza sobrenatural que consegue impressionar as crianças e condicionar a vida de ambos de forma diametralmente oposta – o gosto pela ciência e a explicação racional dos fenómenos em Lou-Fé e a paixão pela cor e pelas variações de luz reflectidas nos objectos em Lucie. Uma existência que ó se realiza com a vocação para as artes plásticas e o uso da cor como terapia.

A segunda parte intitula-se, precisamente, Luz.

Trata-se de uma luminosidade estival que ilumina cruelmente a realidade das paixões adultas: a luz sanguínea da alvorada, impregnada de dor pela morte prematura da infância. Os belíssimos textos que antecedem cada um destes três capítulos foram precisamente chamados de Sanguinas, exprimindo a tortura, a solidão e o medo, omnipresentes, da criança que é violada e a cegueira dos adultos, que dormem fechados nos quartos comas persianas corridas e onde a luz não entra.

A repetição anafórica do início de cada parágrafo realça cada um destes aspectos.

A terceira parte intitula-se Vigília.

Aqui a luz adquire a tonalidade sépia do Outono, associada ao envelhecimento e apodrecimento das folhas. Tal como o belo corpo do ogre louro de olhos de luar que jaz, impotente no leito, vítima da sua própria perfídia e distorcida luxúria.

As Sépias são os três textos introdutórios que antecedem estes capítulos outonais. Sépia como a melancolia da mãe; o lento definhar do agressor, agora transformado em vítima pela magnífica imagem metafórica dos três tempos (O tempo que passinha – a aranha que tece a sua teia para apanhar a presa; o tempo que rasteja – simbolizado pelo movimento dos ponteiros do relógio que se arrastam; e o tempo que se esvai – o soro que pinga na garrafa); e sépia é também, a luz crepuscular como a vida que se estiola, reflectida nas madeiras escuras e dourados da Igreja.

Os papéis inverteram-se. A vítima torna-se agressor e o agressor é agora presa da criança imersa num mar de ódio. O ódio que lhe transfigurou o olhar. Doravante, o olhar da Górgona Medusa.

A quarta e última parte, corresponde ao Reinado das Sombras, ao Inverno, período em que Perséfone está sob o domínio de Plutão ou Hades. Este último acto, intitula-se Apelos e exprime o desgosto infinito de três personagens que habitam o Inferno dos Vivos: o desespero de uma mãe cujo amor se esgotou num filho a quem julgava perfeito; o pai de Lucie e padrasto do violador, uma alma-sombra emurchecida pelo desamor da mulher e pelo carácter bravio da filha; e da própria criança Medusa, para quem a vingança não lhe devolveu a felicidade perdida. As tonalidades são, evidentemente, escuras – Carvões, é a designação nome atribuída aos capítulos de que é composta esta última parte – declinações dos tons de negro e cinza, extraídas dos terrenos pantanosos onde outrora reinava o sapo Melchior e dos céus de tempestade.

O epílogo é inspirado num fresco de Tadeo Gaddi. E é precisamente chamado de Fresco o texto introdutório, mostrando o quão difícil e penoso é o longo e lento processo de recuperação da identidade. Tal como a libertação da prisão de ódio e amargura pelo amadurecimento e recuperação da capacidade de sentir algo aparentemente tão simples como… alegria.
Para tal, é imperativo o regresso às origens. Torna-se necessário recorrer corajosamente à introspecção para enfrentar, muitas vezes, aquilo que de mais terrível existe em nós mesmos – o nosso lado monstruoso, segundo Carl Jung. Para este autor, ninguém é totalmente bom ou mau, podendo apenas um arquétipo dominar o outro em alguma altura da vida. E é, por vezes, é o nosso lado mais sombrio que se sobrepõe ao “outro”.

Um livro que, pela força telúrica das sensações presentes nos seus textos mais descritivos e pela capacidade de obrigar o leitor a olhar o homem como o lobo de si mesmo, só pode ser comparável a uma obra como O Perfume de Patrick Süskind ou Cem anos de Solidão de Gabriel García Marquez.

Porque as mais belas flores são, por vezes, as mais mortíferas…


Cláudia de Sousa Dias