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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, November 30, 2016

"Contos exemplares" Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugália Editora; Assírio¬Alvim)





Este post de hoje tem um duplo objectivo: em primeiro lugar, efectuar uma abordagem linguística, em termos comparativos, aos textos correspondentes à terceira edição de Contos Exemplares de 1970 pela Portugália Editora (a qual inclui, pela primeira vez, o conto “Os Três Reis do Oriente”), prefaciada pelo Bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes; e a edição de 2014, publicada pela Assírio & Alvim, reimpressa em 2015, com prefácio de Federico Bertolazzi.

Em segundo lugar, pretende-se encetar uma abordagem literária dos textos desta colectânea de ficção curta de Sophia Andresen, em diálogo inter-textual com os de outra colecção, também de sua autoria, e igualmente destinados ao público adulto, os quais já havíamos antes abordado: Histórias da Terra e do Mar.

Comecemos então por contextualizar os textos, na época em que foram produzidos, e as suas influências literárias.

António Ferreira Gomes escrevera o prefácio para estes Contos Exemplares que viria a ser incluída na terceira edição do Livro, publicado já depois do seu falecimento. Ferreira Gomes intitulou esse texto de “Pórtico”, como se as suas palavras marcassem a entrada para um templo da antiga Grécia Clássica, neste caso o conjunto dos textos de Sophia, publicados nesta colectânea, cada qual como uma sala desse mesmo templo. Mas antes de mais, este “Pórtico” funcionou sobretudo como a defesa desses mesmos textos, orientado a leitura de possíveis censores com vista a impedir mutilações nos contos ou mesmo o banimento total do livro. Ferreira Gomes focalizou assim a atenção na componente cristã e nas frequentes intertextualidades destes contos de Sophia, num primeiro plano, com os textos bíblicos e, depois, com outros autores clássicos da literatura universal como Cervantes, Goëthe ou Hölderlin frequentemente aludidas no discurso narrativo sophiniano, os dois últimos, sobretudo no campo da poesia. A evidente intenção de desviar as intenções censórias destes contos de Sophia ligava-se à possibilidade real de estes conterem uma forte componente de crítica social ao sistema e ao regime político do Estado Novo, como é tão evidente, por exemplo, logo na primeira história “O Jantar do Bispo”, mas também e, “Retrato de Mónica”, “O Homem” ou mesmo “Os três reis do Oriente”, prefaciado por José Saramago aquando da sua primeira edição.

Em “Pórtico”, Ferreira Gomes utiliza sofisticado estratagemas retóricos para valorizar os textos e iludir os censores: começa por desvalorizar, logo na página IX, 1 os autores do movimento modernista e o seu estilo fracturante, relativamente a aspectos formais de desenvolvimento de uma narrativa a qual, nas suas palavras, teria de ser respeitada por todo e qualquer texto literário que ambicionasse adquirir o formato de conto propriamente dito: “nestes tempos de literatura (…) sem heróis, sem personagens, sem enredo, sem desfecho…”2 contrapondo em seguida coma s histórias sophinianas que obedeceriam, supostamente a todos estes requisitos. Por outro lado, Ferreira Gomes enquanto fazia esta desvalorização dos autores pertencentes ao movimento modernista do qual Sophia Andresen e muitos dos seus contemporâneos eram herdeiros, colocava estes Contos Exemplares no extremo oposto a esta corrente. Por outro lado, enfatizava a componente moralizante do adjectivo “Exemplares” presente no título, situando a escrita de Sophia Andresen também no pólo oposto à da corrente existencialista, que era na altura diabolizada pelo regime. Colando o seu discurso e o estilo literário de Sophia a Cervantes, a Hölderlin, a Heidegger e a Rilke, e outros nomes incontornáveis da literatura universal, Ferreira Gomes reforçava, cumulativamente, a componente ética e estética de base humanista e cristã da autora, tornando-a e aos seus textos acima de qualquer suspeita. O falecido Bispo do Porto servia-se, assim, do seu ethos de autoridade como voz representativa da ICAR para assegurar a publicação integral das histórias contidas no livro. Mas só quase ao fim de 50 páginas de um longuíssimo prefácio, cheio de artifícios retóricos, entrava, finalmente, na análise dos contos incluídos nesta publicação estabelecendo, por exemplo, um interessante visão paralelismo entre o conto “A Viagem” e a terceira parte de Also sprach Zaratustra do nihilista Friedrich Nietzsche, para demonstrar também a maneira como a formação cristã de Sophia se inscreve na construção do retrato de figuras arquetípicas ou socialmente representativas a fim de tipificar categorias sociais não apenas servidoras do Criador ou as forças do Bem mas também o seu oposto: o Príncipe deste Mundo e seus aliados, numa alegoria do materialismo ou das forças do Mal, os quais personificariam na perspectiva exposta no texto do Bispo do Porto, aspectos da cultura universal e não um ataque directo ao regime da ditadura do Estado Novo. Seriam algumas destas personagens arquetípicas figuras como a de Mónica (“Retrato de Mónica”) ou o Dono da Casa (“O Jantar do Bispo”) em oposição a João e o Primo Pedro (“O Jantar do Bispo”), o desconhecido rosto da fome acompanhado pela criança em “O Homem” .

Já o prefácio que serve de introdução a Contos Exemplares na edição da Assírio e Alvim de 2014 (reimpressão de 2015) da autoria de Federico Bertolazzi apresenta um teor discursivo completamente diferente deste que acabámos de descrever: numa escrita bastante mais despojada, o discurso de Bertolazzi constrói-se já não com uma intenção de persuadir, mas para adoptar antes um teor mais expositivo ou explicativo: começa por contextualizar a obra no tempo em que foi escrita e a desvendar a intenção da autora ao escrever contos que classifica de “exemplares”, em claro diálogo com as Novelas Ejemplares Cervantinas que Sophia Andresen cita logo em epígrafe, no início da obra, como já havia feito Ferreira Gomes, mas de uma forma bastante mais sintetizada. Bertolazzi continua depois a explicação da obra, apontando para a sua ligação com diversos outros textos literários, sem deixar de explorar a vincada vertente de crítica social e política do discurso sophiniano implícitas nos contos desta colecção, cuja importância o anterior prefaciador havia tentado desvalorizar.

É incluído também nesta edição o prefácio de José Saramago ao conto “Os Três Reis do Oriente”, que havia sido apenas publicado na primeira edição desta história publicada separadamente dos outros contos e apenas incluída em Contos Exemplares a partir da sua terceira edição.


A análise individual dos contos será publicada na revista Caliban.

Wednesday, November 23, 2016

"A Gramática do Medo" de Maria Manuel Viana e Patrícia Reis (Dom Quixote)



Um romance escrito a duas vozes, a história de Sara e Mariana: duas mulheres “banais” que nunca chegam a sê-lo, porque de banais não têm nada. Em primeiro lugar, porque não se enquadram nos estereótipos sociais do meio de onde são originárias: Mariana provém de uma família abastada, tradicional, apegada às convenções, larga um noivo de “boas famílias”, aprovado pela família, para abraçar uma carreira de actriz e viver uma paixão censurada pela “boa” sociedade com um homem casado; Sara provém de uma família de classe média-alta, que prefere optar não por uma profissão estável e bem remunerada, mas antes pela errática carreira de actriz, seguindo os passos da mãe enquanto jovem, antes de casar, para dar à luz Sara e o seu gémeo. Além do mais, Sara e Mariana possuem um apurado sentido crítico na forma como olham a sociedade e, em especial, o meio artístico onde se movimentam. Na verdade, nem a si mesmas parecem, à primeira vista, levar-se a sério ou, pelo menos, não demasiado, troçando amiúde bastante mais de si próprias do que dos outros. No entanto, ambas são diferentes na forma como reagem às dificuldades e perseguem os seus objectivos. A Sara, move-a, por exemplo, a demanda da amiga desaparecida, a qual todos pensam ter falecido. Já a Mariana, impele-a antes a fuga à pressão, exercida pela sociedade, para não se anular e lutar pela sua sobrevivência, para se reencontrar com o próprio Eu, numa procura obsessiva pela autenticidade. Em comum, têm ambas o desejo e paixão por uma vida plena de intensidade, a qual ameaça escapar-se-lhes por entre os dedos. Une-as ainda um amor (e um desamor também) passado que depois se desdobra no presente, apanhando o leitor de surpresa, e se repercute no desenvolvimento da narrativa como uma figura geométrica ou fractal, a partir de um ponto de intersecção, como numa sala de espelhos, onde a imagem de ambas se multiplica e repete como numa sequência periódica, em busca desse ideal amoroso, representado pelo o gémeo de Sara, loucamente amado por ambas. As convenções de uma sociedade claustrofóbica de onde são oriundas (sobretudo Mariana) sufocam-nas, pois, a uma e outra, mas cada qual reage de forma diametralmente oposta, para não se deixar formatar pelas expectativas dos outros. Uma procura a distância, a outra luta contra ela.

O livro nasce a partir de uma experiência piloto, encenada pelas autoras, que vem já da estreita colaboração de ambas na revista Egoísta, publicação onde Patrícia Reis exerce as funções de editora. Foi precisamente nesta revista que as duas autoras de Gramática do Medo haviam encetado um primeiro ensaio de escrita a quatro mãos para o número 53, subordinado à temática “Anjos”. Gramática do Medo é o resultado da experiência desenvolvida, partindo da ideia iniciada na revista, mas apenas em termos estruturais, para ser aplicada depois a um romance a duas vozes. Na verdade são mais que duas vozes, este é um romance nitidamente polifónico, embora haja dois pontos de vista predominantes na narrativa, o das duas protagonistas, a cujas vozes é imputada a maior parte do conteúdo enunciativo. O resultado é uma prosa reflexiva, intimista onde cada uma das protagonistas dialoga com a outra e consigo própria em simultâneo. Ambas são como que gémeas siamesas cujos corpos não se podem separar.


Dados Biblio-biográficos das Autoras

Maria Manuel Viana é natural de Figueira da Foz e licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra – Faculdade de Letras. Foi, durante trinta e cinco anos, professora de Português e Francês, coordenadora do Centro de área Educativa em Castelo Branco e Presidente da Comissão Distrital de Protecção de Menores, vereadora da cultura e coordenadora do Gabinete para a Igualdade. Como tradutora, tem no currículo a conversão para Português obras de autores como Ignacio Martínez de Pisón, Enrique Vila-Matas, Peter Hanke, Clara Usón e muitos outros. É autora dos romances A Paixão de Ana B. (2002), Damas, Asas e Valetes em co-autoria com Ana Benavente (2007), O Verão de todos os silêncios (2011) e Teoria dos Limites (2014), antes de publicar Gramática do Medo (2016) também em regime de co-autoria, desta vez com Patrícia Reis.

Patrícia Reis, que assina também a obra de que hoje tratamos, nasceu em Lisboa e tem já um longa carreira ligada ao jornalismo, à edição e, também, como escritora de ficção, dirigida quer ao público adulto, quer ao público infanto-juvenil. Escreveu para O Independente, para o Expresso e para a Sábado, tendo estagiado na Time (EUA). É, desde 2000, editora da revista Egoísta. Publicou a novela Cruz de Almas (2004), os romances Amor em segunda Mão (2006), Morder-te o Coração (2007), No Silêncio de Deus (2008) Antes de ser feliz (2009), Por este mundo acima (2011), Contracorpo (2013), a biografia Vasco Santana, o Bem-Amado (2004) e um romance fotográfico em parceria com João Vilhena, Beija-me (2006). A novela O que nos separa dos outros por causa de um copo de Whisky (2014) arrebatou, por unanimidade, o Prémio Nacional de Literatura da Fundação Lyons. E ainda autora do blogue O Vão Combate.


Estado da Arte: O que diz a crítica a Gramática do Medo

Após algum desconcerto inicial na imprensa “mainstream” fruto alguma estupefacção manifestada por determinadas vozes críticas face à capa do livro (DN, de 25 de Junho de 2016), ou mesmo de alguma confusão manifesta relativamente às instâncias narrativas (blogue Bom-dia). As autoras haviam já levantado um pouco o véu acerca da construção deste romance, escrito a quatro mãos, para a secção “Livros” da revista Sábado, cerca de um mês antes, em entrevista a Catarina Homem Marques. Maria Manuel Viana começava por esclarecer que “as personagens não somos nós, mas são duplicações nossas”. E Patrícia Reis acrescentava, por sua vez: “elas são absolutamente banais, como nós; sabem é que têm um poder de escolha, que não teriam há 41 anos”. Mas No Diário de Notícias, João Céu e Silva mostra alguma consternação face à capa de Gramática do Medo, sem dúvida impactante, feita a partir de um óleo de Dino Valls. E, enquanto Céu e Silva a classifica de “obscenamente bela”, a autora do blogue Bom-dia já só a vê como “perturbadora”. Perturbadora? Sê-lo-á sim, no nosso entender, mas não devido ao nu frontal – como é sugerido pelo jornalista do DN –, de uma das gémeas, mas antes pela sugestão de sofrimento, implícita na jovem que está “vestida” com a gaze à volta dos seios e pelos instrumentos cirúrgicos a ela associados como acessórios, a que se junta a sugestão de que o corpo da gémea nua, atravessado por ferros, mostra trata-se esta de um clone, espécie de cordeiro sacrificial, criado para salvar a gémea doente.
Outros críticos, fora da imprensa mainstream haviam já optado por uma análise mais profunda, revelando bastante maior acuidade na apreensão do sentido da obra, embora num caso ou outro continue a haver alguma confusão relativamente aos dois principais enunciadores do texto, as protagonistas Sara e Mariana, um das características que confere maior complexidade à obra. O que leva, por vezes, a alguma dificuldade em destrinçar a qual destas duas entidades imputar o que é dito, como faz notar a autora do blogue bom-dia, que passamos a citar:
«Estamos perante uma obra onde tudo se esbate, onde pouca coisa tem contornos muito definidos e onde imperam contrastes, antagonismos, relações pautadas por um lado pela indiferença, distância e apatia e, por outro, pela dependência pela união e por um medo irracional de ver-se separado, de laços quebrados. Sem o seu avesso. Desde relações supostamente normais até aquelas condenadas, antinatura, a obra serve-se de Mariana e Sara para levar-nos a questionar até que ponto a nossa identidade está amarrada aos outros, ao social, ao comum.»
É, no entanto, David Pimenta, na secção Mil Folhas do blogue Deus me Livro quem, no nosso entender, mais acerta no alvo, ao falar no papel da ficção para a compreensão do mundo como uma das grandes molas impulsionadoras da acção deste livro. David Pimenta explora a narrativa através da análise psicológica e social das personagens, da técnica do contraste utilizada na narrativa para atingir o tema central à volta do qual gravitam as duas protagonistas: o significado de uma amizade onde “o elemento primordial e unificador é o medo”.



Análise da Obra – Enunciação e Conteúdo
Este é um romance mais complexo do que poderia parecer à primeira vista tanto para quem lê a sinopse ou mesmo algumas das recensões publicadas quer na imprensa de referência quer na web. A começar na questão da enunciação e da percepção acerca que quem narra o quê. Apesar de os estilos narrativos e a estética da escrita de ambas as autoras serem bastante diferentes, elas vão-se aproximando à medida que a narrativa avança. Maria Manuel Viana é dona de uma prosa literária inconfundível pela sua complexidade, vertendo uma caudalosa torrente de palavras, frases complexas, cheias de modulações de voz, com orações coordenadas e subordinadas, pontos de vista que ora se encaixam ora se sobrepõem, a dar voz a um narrador normalmente de terceira pessoa que cita outro de forma directa, indirecta, em discurso indirecto livre ou mesmo em quasi-pec (do conceito de Alain Rabatel quasi pris-en-charge). Por vezes, o ponto de vista do narrador aproxima-se de tal forma da personagem cujo pensamento está a reproduzir que se torna difícil a percepção sobre a quem deve ser imputado o discurso, como se narrador e personagem citada pensassem em uníssono, tal como acontece, tipicamente em narrativas cinematográficas. Patrícia Reis, por sua vez, exibe um discurso pautado pela simplicidade em termos frásicos, associada a ora uma lógica desconcertante, plasmada da sua vertente ligada ao jornalismo, ora tingida de emotividade ligada à escrita memorialista.
Por outro lado, e escrita que identificámos como sendo de Maria Manuel Viana aparece no romance quase sempre associada ao ponto de vista de Sara, mesmo quando a locução do seu discurso é feita por um narrador homodiegético. Sara é também a personagem cujo inconformismo faz desenrolar o plot pois, mediante o desaparecimento da amiga, será ela quem toma todas as diligências no sentido de lhe descobrir o rastro. Aliás, ela própria atribui-se o cognome de “farejadora”, a detective cão-de-caça. A partir do momento em que Mariana desaparece, Sara ocupar-se-á em trilhar os caminhos de Mariana, tentando pensar como ela, ocupando o seu espaço, vestindo a sua pele, de que o colar de pérolas rosa que a amiga lhe deixara pedindo-lhe para se livrar dele, acaba por se tornar é uma espécie de metonímia do corpo de Mariana e de que Sara se serve, quase que lhe tomando a identidade, qual gémea siamesa da amiga-amante-irmã ausente:
«A mulher definitivamente banal passa os dedos pelas pérolas rosa, num gesto ancestral que vira muitas vezes fazer às mulheres da aldeia onde em tempos vivera, só que essas eram contas pretas, acompanhadas por uma ladainha em que a expressão virgem maria aparecia frequentemente. Sempre gostara dessa possibilidade de exorcizar demónios e de pedir bênçãos, embora nunca lhe tivessem ensinado. Ao contrário do que Mariana lhe pedira, fora ao lixo recuperar o colar, último presente de um homem amado e amante: ao tocar cada pérola, via o rosto da amiga, ouvia o seu riso, recordava os gestos nervosos, a rapidez com que decidia e actuava. Sabia que era uma questão de tempo, por isso esperava, sem sobressalto nem tentativas de antecipação, que as pérolas se lhe encrustassem, definitivas, primeiro na pele, depois no corpo, por fim no sangue. Sara não mais seria Sara, e esse pequeno truque seduzia-a.»
Em contrapartida, a locução da narrativa feita pelo ponto de vista de Mariana é vertida numa escrita que nos habituámos a ler nas obra da autoria de Patrícia Reis, marcada por frases curtas e incisivas, muitas vezes atiradas à queima-roupa, como quem dispara um tiro. A maior parte do discurso imputado a Mariana é feita quase totalmente em discurso directo, numa escrita que poderíamos chamar de epistolar ou, talvez diarística. A história de Mariana começa com o recurso a uma analepse, utilizando depois toda uma dança de avanços e recuos no tempo, em alternância com o ponto de vista de Sara. A progressão narrativa é feita utilizando a técnica de contraponto, criando uma dinâmica contrastiva entre o ponto de vista de ambas as personagens, fazendo do romance Gramática do Medo uma obra especialmente interessante do ponto de vista dialógico. Aqui, a diferença no tocante à estética, escolhas lexicais, ritmo narrativo e prosódia entre ambas as escritoras vem conferir uma extraordinária verosimilhança quando se fala da diferença de vozes nas personagens que constroem em permanente dança discursiva.
Mas há, ainda, partes do texto em que a narrativa se torna híbrida, a parte que corresponde a “Sara e Mariana”, com um narrador de terceira pessoa que cita ora uma ora outra em discurso directo, normalmente grafado a itálico, o que torna a obra ainda mais complexa, deixando inicialmente o leitor algo desconcertado ao tentar identificar a origem daquela terceira voz, algo que só será completamente esclarecido no final da leitura do livro.
Do ponto de vista do conteúdo temático, Gramática do Medo não é apenas um romance que desafia tabus sociais universais, como o incesto, ou que rompe algumas das convenções mais tradicionais da sociedade patriarcal, como a exclusão das relações homossexuais (de notar que a relação erótica e lésbica entre as duas personagens principais ocorre sempre, se não em total secretismo, pelo menos numa discreta penumbra que fica sempre algures ensombrada por uma relação ambivalente de amor-amizade). O amor que surge entre Sara e Mariana dá-se sempre na quase obscuridade social ou pelo menos, no limiar entre a aceitação/ocultação social, evitando quase sempre a transposição da fronteira física do espaço doméstico ou, na melhor das hipóteses, do espaço privado.
Mas, mais do que tratar questões relacionadas com o amor fora da heteronormatividade, Gramática do Medo é um romance que reflecte a época em que foi escrito, a segunda década do século vinte em Portugal, um pequeno país, que só aparentemente surge isolado das grandes catástrofes mundiais e de consequências directas das mais destrutivas girândolas de conflitos bélico-ideológicos e convulsões económicas que então afectaram o globo e, sobretudo, o mundo ocidental. O tempo retratado no romance evidencia nas entrelinhas as consequências da devastadora crise económica de 2008, a qual acaba por se reflectir, também, nas relações afectivas e familiares. Por exemplo, as dificuldades económicas que enfrenta Sara levam-na a aceitar papéis menores para pagar o internamento da mãe numa clínica privada. E este é ainda um romance acerca de uma sociedade afectivamente repressiva – questão que, em si, transcende a sexualidade e se estende a todas as relações afectivas – a fazer germinar em si a semente do mal, ao reproduzir o medo de abertura ao outro, patente na omnipresença de um discurso que se rege pela omissão e leva à manutenção de segredos mesmo entre aqueles a quem mais se ama. É esta a gramática (eu arriscaria antes dizer a pragmática) do medo que leva à solidão e à morte. É este mesmo medo de partilhar segredos inconfessáveis que leva Mariana à fuga para uma das regiões mais isoladas da Europa, nas montanhas do Montenegro, palco da última grande guerra civil ocorrida neste continente, no início da última década do século XX, e que teve como origem precisamente o medo do outro, da sua alteridade, da não aceitação da diferença.
As referências ao destino de Milosevic e à fragmentação da Jugoslávia são alguns dos acontecimentos que ajudam a situar a acção no tempo nas primeiras décadas do séculos XXI. A vertente de ensaio filosófico está também presente, sobretudo a partir do ponto de vista de Sara a personagem mais activa e cerebral da intriga, abordando questões ontológicas como a natureza do mal (ver pag 115). No discurso que pode ser imputado a Mariana, percebemos uma torrente de emoções, onde o discurso entrecortado sugere um pensamento em rodopio, contudo febril e difuso, um torvelinho de emoções onde dominam a angústia e, obviamente, o medo da não aceitação da doença, da fragilidade, o medo da morte. As duas protagonistas, Sara e Mariana, são tão semelhantes quer física quer psicologicamente que poderiam ser gémeas, mas em termos de personalidade funcionam como pólos opostos, algo que se reflecte não apenas no teor do discurso, estrutura gramatical e escolhas lexicais, mas em termos de atitude perante a vida: enquanto que Mariana escolhe a fuga, preferindo esconder-se de todos inclusive dos que mais ama, Sara opta antes pela perseguição incansável do seu fim último: o amor, pela eliminação das distâncias, segredos e abismos que as separam e de que é ilustrativa a última cena que protagoniza no romance como “...a última hipótese para poder reconstituir as peças do puzzle e desaprender as declinações cruéis e oblíquas das palavras tu, eu, nós, medo”.
Uma última consideração para o epílogo: esta última secção do romance surge de forma completamente alheia ao plot, sendo o narrador-locutor uma entidade a projectar um ethos que nada tem a ver com o ethos dos narradores de nenhum dos capítulos anteriores. Na verdade, este locutor, quando não está a fantasiar ou a dar largas ao seu narcisismo, apenas repete ipsis verbis o discurso que ouviu da entidade que lhe contou a história em primeira pessoa, como se o tivesse gravado e depois transcrito ou lhe tivesse sido entregue um manuscrito que depois publica com o seu nome. A verdadeira narradora de terceira pessoa, o narrador-locutor dos capítulos anteriores comuns a ambas as protagonistas, não é nenhuma das heroínas anteriormente mencionadas, nem o narrador-usurpador do epílogo (uma personagem hilariante que surge como uma espécie de anti-climax face ao dramatismo do final), mas sim Romina, figura que só aparece no final do romance e detém o conhecimento privilegiado da história de Sara e Mariana. No entanto, apesar de a introdução deste locutor com pretensões de escritor, fazer com que o meta-discurso, que domina este epílogo, faça perder um pouco a verosimilhança que havia sido conquistada ao longo do desenrolar da trama, (querendo parecer-nos que o texto ganharia, por seu turno, mais força, se fosse Romina a falar em primeira pessoa, apenas nesta fase), o efeito principal é o de quebrar a tensão extrema que se havia criado no final do último capítulo, a qual que não se havia dissipado nem na última frase proferida.
Gramática do Medo é, pois, um romance intrigante sobre a procura do eu, da sua projecção no outro e posterior dissolução, no culminar de um processo de oposição dialéctica, em que ambas as personagens parecem evaporar-se com a névoa que envolve as montanhas montenegrinas.




Cláudia de Sousa Dias