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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, March 31, 2010

“O Instituto Smithsonian” de Gore Vidal (Casa das Letras)



Gore Vidal é um dos nomes centrais da História da Literatura Americana do pós Segunda Guerra Mundial. Nascido em 1925, estudou na Universidade de New Hampshire e cumpriu o serviço militar entre 1943 e 1946. O seu primeiro romance, Williwaoo (1946) é uma história de guerra onde sobressai a influência do estilo de Hemingway. A maior parte da sua obra de ficção está relacionada com a América do século XX. No entanto, Gore Vidal situa, muitas vezes, a acção dos seus romances em épocas recuadas como é o caso de A Search for the King (1950), sobre Ricardo Coração de Leão, Juliano (1964), uma narrativa apresentada como a autobiografia daquele imperador Romano, e Creation (1981), uma revisitação às origens do budismo e confucionismo, passando pela civilização persa e o complexo mosaico cultural e civilizacional da região do Crescente Fértil da Idade do Bronze.


Entre os seus temas de eleição está, também, o mundo do cinema, mais concretamente os bastidores da Meca das grandes produções americanas, Hollywood, enquadrada num cenário onde impera a sátira e a mais fina ironia, como se vê em Myra Breckinridge (1968), Myron (1975) e Duluth (1983). Em 1995, publicou a sua autobiografia, Palimpsest: a Memoir. A Idade de Ouro e O Instituto Smithsonian são dois títulos que também se encontram no mercado português, assim como Em Directo do Calvário, uma obra tão polémica quanto Os Versículos Satânicos de Rushdie.


O Instituto Smithsonian é um romance distópico, que faz incidir um olhar crítico em relação ao imperialismo norte-americano, através de uma forma algo insólita de viajar no tempo, permitindo uma análise comparativa e transversal entre as várias épocas da História dos Estados Unidos.


O tempo presente da narrativa – às vésperas do ataque do exército japonês em Pearl Harbour – é o ponto de partida para outras épocas, cuja visita, a partir do mega museu, situado em Washington, para a investigação e análise das tensões de cariz diplomático, sentidas entre as principais potências económicas europeias e do Extremo Oriente.


A complexa trama elaborada por Gore Vidal em O Instituto Smithsonian envolve a fronteira entre Ciência e Ética, cujo desequilíbrio é potenciador do caos ou destruição. Trata-se de uma derivação das temáticas anteriormente abordadas pelo Autor, que se relacionam com as motivações profundas que despoletam os acontecimentos históricos de grande vulto, ao enveredar um pouco pela ficção científica, tal como faz no já referido romance Em Directo do Calvário.


O Instituto Smithsonian
é uma obra elaborada já após o ataque às Torres Gémeas em 2001 e, por esse motivo, a leitura da obra permite facilmente identificar o repúdio e a crítica face à actuação dos líderes políticos norte-americanos ao longo dos séculos desde o tempo do fundador da nação, George Washington, para além de permitir estabelecer todo um conjunto de analogias e paralelismos entre o desfecho da II Guerra Mundial e a invasão do Iraque que se seguiu ao atentado de 2001 pela Al Qaeda.

O Instituto Smithsonian, situado na capital dos Estados Unidos, é um museu histórico decorado com cenas ou quadros tridimensionais de cada época ou evento que se salienta pela sua importância na história do EUA. As personagens que nele figuram são apresentadas como manequins em cera, à semelhança do que acontece no Museu de Madame Tussaud, em Londres.

O protagonista de O Instituto Smithsonian é T., um jovem estudante especialmente dotado nas áreas da matemática e da física que se deixa fascinar pelas descobertas de Einstein, no campo da relatividade e da física quântica. Toma contacto com Frances Cleeveland, uma das mais admiradas primeiras-damas da História dos EUA. T. entretanto, apaixona-se pela figura de Mrs. Groover Cleeveland, durante uma visita ao Instituto Smithsonian. Ao entrar numa das salas, descobre, de uma forma súbita e duvidosamente acidental, uma fórmula que lhe permite viajar no tempo e cuja porta de entrada e saída para as diferentes épocas se encontra, precisamente, no referido Museu. T. e Frances Cleeveland conhecem-se em circunstâncias propiciadoras de circunstâncias hilariantes, pintando uma sátira à visão clássica de como os americanos encaram a relação entre os índios e os colonizadores de origem europeia. Mesmo as cenas de elevado teor erótico entre ambos são introduzidas sob o véu de fina ironia, onde se inverte a relação entre colonizadores e colonizados, e povoadas de sequências de diálogos marcados por um humor desconcertante, permitindo alternar momentos de hilariante descontracção com outros mais densos, que são, por sua vez, preenchidos com detalhadas descrições científicas ou históricas.

A realidade virtual é, assim, introduzida nos anos 1940 fruto do génio vanguardista de T., assim como a alusão a “máquinas de escrever portáteis” os antepassados dos actuais lap-top.
T. é clonado várias vezes de forma a conseguir estar em simultâneo em várias épocas diferentes e, a partir do momento em que consegue transitar de uma época para a outra, T. passará a conseguir alterar o passado e a interferir no futuro.


A possibilidade de mudar o rumo à História surge-lhe como a tentação suprema: interferir no destino dos homens parece-lhe, à partida, benéfico quando, aparentemente, a intenção é boa. Mas T. apercebe-se, rapidamente, da facilidade com que pode tornar-se numa marioneta nas mãos daqueles que integram as mais altas esferas do poder.

Na trama que está subjacente a esta obra, disseca-se, em particular, o papel dos Estados Unidos nas duas Grandes Guerras que assolaram o século XX. Gore Vidal defende que se a Alemanha não tivesse sido humilhada no final da Primeira Grande Guerra a segunda não teria acontecido ou, a acontecer, as consequências seriam muito menos devastadoras como mostram as palavras de Theodore Roosevelt, num dos muitos diálogos imaginários com os presidentes de outras épocas:


Lembro-me de ouvir dizer que a paz que Mr. Wilson (Woodraw) obrigou os alemães a aceitarem significaria outra guerra dali a vinte anos.


Tendo em conta o facto de que a entrada tardia dos EUA em ambas as guerras foi o factor que permitiu que o fiel da balança pendesse para o lado dos Aliados, Gore Vidal expõe, numa breve análise, através do diálogo com personagens históricas e, por vezes, também, de ficção, acerca do que acontece antes que, geralmente, os EUA se sintam ofendidos.

A História dos EUA e das suas contradições, das relações daquele país com vizinhos e rivais são exploradas debaixo de um olhar distanciado e o mais isento possível de etnocentrismo.
O Autor recorre, frequentemente ao sarcasmo, que usa como ferramenta modeladora do espírito crítico, cultivando um cepticismo quase voltairiano, sobretudo quando se refere aos símbolos do nacionalismo americano como no parágrafo que se segue:


Esta é a exposição militar americana em tempo de Paz. Somos os melhores do mundo. Inderrotáveis. Invencíveis. Desde as salas de Montezuma…”


O romance é, todo ele, uma crítica demolidora ao materialismo, de que é exemplo mais evidente o momento em que T. é incentivado por um dos directores do Museu, com fortes ligações ao Governo e à Banca, a usar o seu génio na produção de uma bomba que extermine as pessoas mas que deixe intactas as propriedades: A Bomba de Sonho dos Correctores de Imóveis.


O Instituto Smithsonian é marcado, também, por passagens de estilo surrealista com pendor fortemente freudiano:


O melhor era deixar o cérebro chegar sozinho a uma solução. Nos sonhos as soluções apareciam. O que vem de encontro ao modelo de interpretação do comportamento de vanguarda na época, uma vez que a psicanálise, nos anos 1940 era método clínico em voga no tratamento de perturbações psíquicas do comportamento ou distúrbios de personalidade.

Dr. Smithson, as viagens no tempo e a teoria da relatividade de Einstein


O fundador do Instituto Smithsonian, o milionário britânico, Dr. Smithson É o típico de inglês que deu aos Estados Unidos todo o dinheiro para construírem este sítio para tornarem este país civilizado.


Viveu no século XVIII – o Século das Luzes – daí o sonho de legar para a posteridade um centro cultural que contribuísse para o progresso da humanidade, no qual acreditava. Para contactar com ele e outras personagens históricas, as personagens fictícias como T. têm de se deslocar no tempo, socorrendo-se de alguns pseudo-desenvolvimentos da teoria da relatividade de Einstein, relacionando este conceito com a possibilidade de existência de uma fissura no Tempo: Quando a velocidade é muito grande, duas coisas em tempos diferentes, existem ao mesmo tempo.


O Autor considera, também, a tendência expansionista dos E.U. como o principal factor responsável ou potenciador da guerra com o México. Da mesma forma, dá a entender que as ambições hegemónicas dos EUA no extremo Oriente desencadeariam os acontecimentos em Pearl Harbour, independentemente do que se passasse na Europa de 1939-1945.


O eterno conflito entre Ciência e Religião


Aliado de T. durante a viagem deste até a altura da Guerra com o México, o Padre Lamy tem a sua capacidade de investigação limitada pelas convicções religiosas que o levam a por de parte hipóteses científicas que possam colidir com a sua fé.


O Padre Lamy era um bom companheiro, mas a sua religião tornara-o num cientista bastante inútil.


A ética será, no entanto, aquilo que serve de fiel à balança entre ambas as vertentes de pensamento.


A História e os diálogos com os representantes de cada época


O diálogo entre todos os presidentes dos EUA até à altura da 2ª Grande Guerra, presentes no Instituto Smithsonian, tem como objectivo a confrontação das questões geopolíticas apresentadas de forma transversal, permitindo analisar as contradições relativamente à tomadas de decisão de cada chefe de estado, em cada época histórica como no diálogo que se segue:


George Washignton – Porque é que os japoneses atacaram os EUA?


Frank Delana Roosevelt – Porque, General Washington, porque pretendem, tornar sua, toda a Àsia e todo o Pacífico, e só nós, a única democracia com maior potencial militar, os impedimos (…)

G.W. – E assim, para salvar os asiáticos, a raça branca, como eu talvez erradamente insisto em ver-nos, tem de combater um povo ilhéu distante, distante em todos os sentidos.

F.D.R. – General Washington (…). Nós não bombardeámos a frota deles em segredo, em Yokohama Harbour. Eles, bombardearam a nossa a vários milhares de Km de distância.

G.W. – Correndo o risco de ser monótono, vou repetir a pergunta. Porquê?


F.D.R. – Correndo o risco, General, de ser igualmente monótono, eles querem que o Oceano Pacífico seja deles, incluindo os vários campos de petróleo de Java…


G.W. – Se é isso o que pretendem, o que é que isso nos diz respeito, longe, no nosso hemisfério seguro?

F.D.R. – A nossa frota foi afundada em Pearl Harbour.


G.W. – Um porto situado numa ilha distante, no Pacífico. Deixe-me colocar a minha pergunta de uma maneira mais precisa. O que é que a sua administração fez para provocar esse ataque?


F.D.R. – Provocar? Nós…provocar? (…) Panay. Barco de guerra americano. Afundado. A sangue frio. Todas as provocações vieram… vêm deles. Por razões humanitárias fizemos o nosso melhor para ajudar a China, durante a sua longa guerra contra os japoneses (…). Para enfraquecer a força militar japonesa, barramos a venda de gasolina e de sucata a eles, em Junho último.

G.W. – Então tornou o nosso país no árbitro de guerra e da paz em todo o lado do mundo.


F.D.R. – Há alturas, General Washington, em que uma nação tem de agir pela voz dos outros. E não estamos sozinhos. Actualmente, a Inglaterra, A França, a Holanda e Portugal juntar-se-ão a nós, na nossa guerra para levar a democracia àquela parte do mundo que nos pediu ajuda. Refiro-me, é claro, à China.

G.W. – Não pensei que se referisse ao Japão. Então os seus aliados conseguem, cada um deles um império colonial asiático, desejam combater para assegurar a sua posse. Mas pensei que o senhor fosse anti- colonial. Agora opõe-se a que os Japoneses suplantem digamos, os Franceses no Continente da Ásia. (…) Lá se vai, Mr Roosevelt, o ritmo da sua História. Provocou os Japoneses, levando-os a atacar-nos e agora temos de ir todos atrás de si, para o mar – sendo o mar, neste caso, todas aquelas novas armas desenvolvidas (…).

A trama prossegue, juntando várias peripécias a implicar uma série de travessias temporais, experiências relacionadas com a alteração de dados do passado e possíveis desdobramentos em relação a cenários históricos alternativos de futuro.

A exposição da personalidade de mulheres como Frances Cleeveland e Eleanor Roosevelt, fazem-nos lamentar que não tenham podido governar no lugar dos respectivos maridos, contrastando com a pusilanimidade de um e a boçalidade paternalista do outro.


No final T. encontra-se, finalmente com Mr. Smithson o visionário iluminista que idealizou o Instituto Smithsonian cujo cepticismo iluminado fá-lo vaticinar que:


A raça humana acabará por se matar. Isso é certo. O vírus…nós…matará o seu hospedeiro, a Terra ou, pelo menos, torná-la-á inabitável para nós.


A principal ilação a retirar do romance é a de que, mesmo sendo possível viajar no tempo, toda e qualquer alteração ao passado acabará por gerar o caos. E que o fim da História não existe. Só metamorfose.


A s últimas frases são crípticas, criando uma intertextualidade com o Novo Testamento, uma vez que as últimas cenas decorrem no fim de semana de Páscoa, durante o último ano da Guerra, através das Palavras chave “Morte”, “Ressureição” e “Metamorfose” precisamente.

De onde parece ter renascido uma humanidade exactamente igual à anterior…mais esplendorosa em termos de desenvolvimento económico, científico e tecnológico, mas igual na sua essência.

Como a Fénix. Para o Bem e para o Mal.




Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, March 24, 2010

“O Outro pé da sereia” de Mia Couto (Caminho)



Duas épocas distantes entrelaçam-se numa estória de grande beleza, na tentativa de encontrar o fio condutor que une a cultura emanada de África, no tempo do tráfico negreiro, e disseminada por outros continentes.



Neste romance de Mia Couto do início da primeira década do novo milénio, vencedor do Prémio Literário do Brasil no ano de 2007, o tema principal é a condição humana, a (des)igualdade de género e o inter-culturalismo versus o relativismo cultural. O romance é constituído por duas estórias paralelas, separadas por um abismo temporal de cinco séculos. Numa delas, passada a bordo de um navio negreiro que faz a travessia do Índico de Goa à Costa Oriental africana, viaja o Padre Manuel Antunes, cuja alma sofre uma estranha metamorfose: está a “mudar de raça”. Isto é, identifica-se cada vez mais, com a cultura e o estilo de vida que os portugueses desejam dominar. Esta transformação, subtil de início, mas cada vez mais evidente à medida que prossegue a viagem, proporciona sérios atritos com D. Gonçalo da Silveira, o Inquisidor, membro da Companhia de Jesus, encarregue de transportar uma estátua de madeira que representa a imagem da Virgem Maria. Esta estátua causa enorme perturbação entre os escravos, que viajam no porão do referido do navio, por associarem aquela figura feminina à divindade das águas, dos mares e dos rios – Kianda – aquela que no panteão dos orixás brasileiros corresponde à deusa- sereia Iemanjá.


A outra estória, é passada no tempo presente na narrativa, em 2002, em Moçambique, e protagonizada é a jovem Mwadia Malunga, filha da ex-costureira Constança e de Edmundo Capitani, reformado do antigo Exército Colonial. Constança casa em segundas núpcias com o alfaiate de origem goesa, Jesustino, encetando uma vida de sucessivas desilusões.



A aproximação dos Tempos



A diminuição da distância temporal que separa as duas narrativas – diferenciadas até na cor do papel (os capítulos que narram a época histórica respeitante ao sec XVI estão escritos em papel que se assemelha ao pergaminho) – processa-se através do fio condutor que une ambas as narrativas: a estátua da Virgem que atravessa não só o Índico mas o próprio Tempo. A mesma estátua é trazida para o mundo actual pelo marido de Mwadia, Zero Madzero, o qual não temos a certeza se se encontra ou não no mundo dos vivos, após ter encontrado uma estrela que parece ser mais um fragmento de um meteorito ou os estilhaços de uma bomba. Zero desenterra a estátua acidentalmente e entrega-a a Mwadia para que esta possa colocá-la no seu devido lugar, isto é, onde possa repousar em paz. Por isso Mwadia, cujo nome significa “canoa”, é o veículo que transporta um elemento cultural que é, simultaneamente, unificador e divisor dos seres humanos na terra, trazendo ora a paz e o amor, ora o ódio e a guerra entre os homens, não só de um lugar para outro - da aldeia de Antigamente, onde vive com o marido (ou a sua sombra) para Vila Longe, uma aldeia semi-morta onde habitam os seus parentes e conhecidos – mas também de uma época, do longínquo século XVI, para o século XXI.



A Metempsicose



Uma das chaves da interpretação de O Outro Pé da Sereia poderá ser a de que os mortos na realidade não desaparecem, mas permanecem vivos na memória dos que ficam, dos seus descendentes e restantes entes queridos que as recordam e que são transpostos para as gerações seguintes pelas memórias, relatadas através da tradição oral, que os transformam em personagens lendários.

Os que morreram
não se retiraram
Eles viajam
Na água que vai fluindo.
Eles são a água que dorme.
Os mortos
não morreram.
Eles escutam os vivos e as coisas
Eles escutam as vozes da água.


A passagem do tempo é também a areia que traz a medida certa das coisas: os feitos heróicos deixam de ter valor enquanto alimentam apenas um desejo egoísta de notoriedade. A vida e o respeito pelo outro é, acima de tudo, o mais importante.



Em todo o mundo é assim:
morrem as pessoas, fica a História.
Aqui é o inverso: morre apenas a História
os mortos não se vão
.”



O estilo literário em Mia Couto



A nota dominante no discurso narrativo de Mia Couto continua a ser o realismo mágico, onde as coisas são e, ao mesmo tempo, não são. Por este motivo, não sabemos se as personagens, mesmo as do tempo presente, tanto em Antigamente como em Vila Longe, estão de facto vivas ou não.
Mwadia parece ser a única que pertence realmente ao mundo dos vivos embora se divirta a saltitar de um mundo para o outro, transitando numa zona fronteiriça. Ele é o canal, a via de comunicação entre ambas as esferas.



O recurso à metáfora e à linguagem poética são uma constante na escrita de Mia Couto e o romance O Outro Pé da Sereia não foge à regra, sobretudo nas cenas protagonizadas por Mwadia:



O amanhecer costumava ser um beijo no vidro de sua casa. Naquela manhã, porém, a luz era mais tensa do que intensa .


A desigualdade de género



Outro dos temas principais tratados em O Outro Pé da Sereia e que é recorrente na obra de Mia Couto (abordado, também, em Vinte e Zinco e Venenos de deus, remédios do Diabo) é a desigualdade de género e, no caso concreto das personagens femininas deste romance, Constança e Mwadia, da servidão feminina. Veja-se o caso de Zero Madzero e Mwadia:



Zero Madzero “Recusava banhar-se sozinho: um homem fica menos macho se passeia as mãos pelo seu próprio corpo.



Em relação a Mwadia:



quando lhe vinham os sangues, gostava de ser guardada em silêncio. Uma esteira diferente à entrada da porta: era o que bastava para Zero saber que eram dias interditos.



Dona Constança, a mãe de Mwadia é das personagens femininas mais maltratadas na estória. É uma mulher que se alimenta das próprias mágoas ao procurar refúgio na comida que lhe serve de camuflagem aos desamores e ao abandono das filhas – as quais, exceptuando Mwadia não sabemos também se estão ou não no mundo dos vivos. Constança passa por dois casamentos infelizes, mas nem por isso é avessa ao prazer. Os constrangimentos a que é sujeita durante o acto sexual obrigam-na a procurar alternativas, causando alguma surpresa em Mwadia ao tomar contacto com a realidade conjugal da mãe.



Em casa de Constança também os mortos partilham do quotidiano dos vivos. Esta possui uma galeria de retratos dos parentes já desaparecidos, debaixo dos quais coloca recipientes de água que apanham goteiras mas está convencida serem estas provenientes das lágrimas dos mortos. Isto apesar de os vivos estarem por ela interditos de chorar dentro de casa para não atrair a desgraças ou o infortúnio. No entanto, Constança tem o hábito de mascarar a tristeza sob uma falsa alegria chegando a fingir celebrar um acontecimento que lhe traz infelicidade: a menopausa, uma vez que a gravidez, para as mulheres africanas, coincide com um curto período de libertação.
uma mulher grávida está sempre certa.
Para Constança, o choro apesar de estar interdito em casa é inerente à condição humana na medida em que consiste na linguagem primordial da humanidade. Estas tradições sãoa inda vestígios de uma sociaedade matriarcal nas quais a figura feminina era divinizade pela capacidade de gerar a vida.



Nascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma.



A principal actividade socializadora das mulheres consiste em pilar o milho, a qual implica uma espécie de dança:



Pela dança voltamos ao ventre materno. Foi lá, nesse oculto abrigo, que libertámos o primeiro tambor e executámos os primeiros movimentos de embalo. Foi lá que fomos peixes, fomos água, adormecida onda, incessante maré.



Em Constança a presença da filha é um bálsamo para a tristeza, fazendo-a emagrecer de felicidade.

Outra personagem trágica é a Tia Luzmina, culta, feminista e elitista. Luzmina é uma mulher provocadora, que gosta de desafiar convenções, apesar de parecer, no início ser uma pessoa que gosta de cultivar hábitos austeros. Mas, a certa altura, começa a manifestar comportamentos insólitos, fazendo lembrar um pouco a Irene de Vinte e Zinco. Este mudança comportamental tem a ver com uma paixão interdita. Decide emigrar não sem antes envergonhar a família atirando-lhe à cara a hipocrisia com que todos se empenham em esconder o que sentem durante um jantar e na presença de convidados: Não é para me gabar, mas tenho muito jeito para puta!

Luzmina lança a frase como uma granada de gás venenoso com o mesmo à vontade com que comentaria um cozinhado ou a capacidade de bordar melhor do que qualquer mulher sentada àquela mesa. Luzmina é suficientemente culta para fazer um jogo semântico com o próprio nome e, simultaneamente, cravar a farpa em se quer ver convenientemente livre dela como mostra a frase: Sou Santa Luzmina, mãe dos pecadores, padroeira das prostitutas.

Luzmina morre no exílio e o seu corpo regressa mas já sem o fogo que a anima. Trata-se de outra personagem que não sabemos se está realmente morta ou cuja tristeza se passeia pela casa, envolta num mutismo permanente.

Ao entrar no quarto da Tia, Mwadia é acompanhada pelo padrasto e repara que “havia uma cansada lamparina que fantasmeava o quarto”. A chama da lamparina é o último vestígio da antiga Luzmina. Esta, no entanto faleceu sem nunca ter chegado a morrer (…)a sua alma ficara acesa, brilhando entre sombras, suspiros e silêncio.
Luzmina é uma jovem que, durante o período em que vive em Vila Longe, conserva o sentimento de casta, herdado dos seus antepassados goeses. Por outro lado, teme perder a liberdade e a relativa independência a que estava habituada: “Tenho medo que me abracem com força (…). Ainda me partem as asas.” Por essa razão, ignora as demonstrações de interesse da maior parte dos homens da região.

O desgosto exibido por Jesustino pela morte da irmã magoa Constança, que utiliza a costura como pretexto para se refugiar no seu mundo e nos seus pensamentos.



- Enquanto ia costurando, seu pai (Jesustino) não imaginava que eu estava pensando. Minha cabeça viajava por todo o lado (…) – Nesses escassos momentos, Constança era mulher sem ter de pedir licença, existindo sem ter de pedir perdão.

Mwadia, por sua vez, na procura de um lugar para depositar a santa, atrai a si o rio do tempo e da memória. E o rio das memórias atrai, também, Mwadia para o seu leito de uma forma perigosamente insidiosa, acordando velhas feridas e mágoas daqueles que vagueiam nessas águas turbulentas. Mwadia sonha, frequentemente, acordada com pessoas que já partiram, Zero e Luzmina, sobretudo.

Os ciúmes de Jesustino em relação à enteada são outra farpa cravada em Constança a qual, decide engordar até deixar de ser sedutora - A velhice é uma gordura na alma, diz.
E também:



A tristeza é uma doença, a alegria, um veneno.

A felicidade, para uma pessoa tão crédula como Constança, é sempre enganadora.
Sobretudo se depender do género masculino. Constança, em conversa com a psicóloga Rosie, enumera os constrangimentos a que se vêem submetidas grande parte das mulheres africanas, sobretudo no que toca ao acesso ao prazer.

- Os homens aqui são péssimos amantes (…). – Os homens de Vila Longe (…) não queriam saber do prazer das suas companheiras. Serviam-se delas. E elas não esperavam da vida mais do que isso. Por isso, não se questionavam. As mulheres de Longe são sempre as últimas a falar, as últimas a comer, as últimas a adormecer

Personagens pitorescas, cómicas e burlescas

O barbeiro de Vila Longe é uma das personagens mais divertidas do romance. Adepto das teorias da conspiração é perito em elaborar raciocínios desconcertantes como

A melhor maneira de fugir é ficar parado (…). É a fuga da presa que engrandece o caçador. O ficar parado é o mais astuto modo de enfrentar o predador: deixar de ter dimensão, converter-se em areia no deserto. Desaparecer para fazer o outro se extinguir.

Ou então,

A melhor maneira de mentir é ficar calado (…). O silêncio não é a ausência da fala é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra. O homem (Zero) calava cobras e lagartos.

O barbeiro é uma das personagens chave do romance, com uma vida misteriosa antes de se estabelecer em Vila Longe:



De tanto tesourar tem o polegar calejado. O polegar e a alma.



Arcanjo Mistura é um homem desiludido, amargado com o rumo político do país, inconformado com aquilo a que chama de “O prateleirar da Revolução”. A barbearia, essa está em ruínas, tal como o resto da cidade. São as consequências da guerra e da falta de vontade de reconstruir tudo a partir de quase nada.



A cidade de Vila Longe parece-se segundo Arcanjo Mistura com uma cidade morta. O próprio cemitério está votado ao abandono.



Uma terra que não cuida dos seus mortos é porque está sendo governada pela própria morte.
E para deitar mais lenha na fogueira deste caldeirão surrealista que é o romance O Outro Pé da Sereia, em Vila Longe Não são os mortos que ressuscitam, são os vivos (…). Em Vila Longe (…) só o impossível é natural, só o sobrenatural é credível.

Arcanjo Mistura mostra-se, também, extremamente desconfiado em relação aos afro-americanos que visitam o país, uma vez que foram aculturados. São pessoas que já não conservam qualquer elemento da cultura ancestral africana: Vocês não saíram de África quando vos levaram de África como escravos. Vocês saíram quando ajoelharam na Igreja e se ajoelharam perante Jesus.

Também Zeca Metambira, funcionário dos correios, é uma personagem cativante e, tal como o barbeiro Arcanjo, com um passado nebuloso, cheio de segredos. Homem de figura elegante é tratado por Rosie, a psicóloga americana de origem brasileira que acompanha o marido em visita de estudo ao País.

Zeca confirma a impressão de Arcanjo Mistura acerca da cidade: Esta gente aqui em Vila Longe é que está morta.

Uma das personagens do romance que incarna o humor cáustico e profundo sentido crítico do Autor é Chico Casuarino, capaz de vender a própria alma, a da mãe, a da filha e a da irmã a quem licitar mais alto. Neste caso, aos americanos, os quais chegam a Moçambique em busca da História e da ligação cultural e mística que una as populações africanas e os descendentes dos antigos escravos, transportados nos navios negreiros para o Novo Mundo. O casal Southman firma estar a realizar um estudo antropológico e histórico da cultura local.



Mas o empresário Casuarino possui, além do mais, ambições políticas acenando ao eleitorado com a bandeira do “progresso” a qualquer custo, inclusive ambiental, não se coibindo inclusive de deitar lixo para os rios. É considerado um empresário duvidoso e de ainda mais duvidoso sucesso (…) escrevia torto onde não havia linhas.

Chico Casuarino, é uma das personagens mais burlescas do romance, o qual assume a missão de reunir a pessoas mais influentes, distribuindo cerveja por todos – excepto as mulheres – de forma a elaborar uma estratégia em conjunto e cativar o interesse do dito historiador, em troca de dólares.

Outra personagem divertidíssima é o adivinho Lázaro Vivo, o qual após comprar um telemóvel pede a todos os conhecidos que lhe liguem, sempre que desejem uma consulta, logo que tenha rede na aldeia onde vive, claro. Lázaro, mal pode esperar que a cidade se urbanize só um pouquinho para poder estrear o novo brinquedo. A febre do consumismo parece já ter contaminado Vila Longe…

Performances mediúnicas fingidas ou nem tanto

Mwadia é persuadida a usar os seus talentos como actriz para desempenhar o papel de médium, integrada na estratégia de embuste, para envolver os americanos. Finge-se possuída pelos espíritos dos antepassados, habitantes da região e por “anamadzi”, almas de antigos escravos, traficados em navios negreiros.



Para conferir maior convicção à performance, Mwadia consulta os apontamentos dos americanos de forma a dizer exactamente aquilo que este pretende ouvir. Consulta, também, os documentos contidos na arca encontrada junto à santa, aos quais consistem em cartas de D. Gonçalo da Silveira e do diário do Padre Manuel Antunes, desenterradas na aldeia de Antigamente po Zero.



Mwadia tenta fazer passar a ideia de que a Virgem encerra em si o espírito de uma nzuzu, a deusa-sereia que mora nas águas limpas, não contaminadas pela presença masculina. Esta nzuzu vive com Nyoka, a serpente que espalha a peste, a maldade, quando as águas estão, segundo a crença local, contaminadas. Esta é a explicação para a transmissão das doenças venéreas, à luz da cultura local.



A aproximação dos tempos e a ligação entre as duas épocas históricas do romance começa a intensificar-se a partir deste ponto do desenvolvimento da trama.

Conflitos culturais

A chegada dos afro-americanos desencadeia alguns pequenos conflitos culturais, motivados pormenores aparentemente insignificantes: questões de linguagem, vocábulos impregnados de conotação pejorativa e formas de disfarçar, algo hipocritamente, um preconceito fortemente enraizado. De notar que, nesta obra, cada lado tem os seus estereótipos e preconceitos bastante vincados. Por exemplo, os norte-americanos manifestam um pudor excessivo em utilizar a palavra “preto” associada a pessoas, por estar ligada a uma forte carga pejorativa em identificada com um sistema de organização económica de carácter esclavagista. A este respeito, Arcanjo Mistura chega a advertir o americano para o perigo de um racismo “invertido”que parece bastante enraizado no pensamento pseudo-humanista americano.



Irrita-me, Sr. Benjamin esse discurso de “afirmação dos negros” (…). O que diria você se encontrasse uns brancos proclamando o orgulho de serem brancos: não diria que eram nazis, racistas?

Do lado africano, existe um estereótipo enraizado na mente dos locais acerca da credulidade, desconhecimento da cultura autóctone e deslumbramento americano. Paradoxalmente, nota-se que gostariam de imitá-los, sobretudo nas questões materiais, na exibição de sinais exteriores de distinção social ou poder económico, algo que se nota, sobretudo, nas tentativas frustradas de imitar a língua inglesa.

O primeiro elemento cultural que chama a atenção dos americanos é de carácter religioso: interessam-se pela deusa das águas que é confundida com a Virgem do Cristianismo. A psicóloga constata o desinteresse pela vida das populações locais ao observar o estado de conservação das casas.

Estas casas não foram destruídas. Estas casas morreram . Uma casa morre se não é habitada com amor.

Os americanos ficam surpreendidíssimos ao tomarem contacto com a realidade de uma categoria social local, de tempos ancestrais, os “vangunis”, vindos do sul. Trata-se de tribos de traficantes de escravos, constituídos muitas vezes como coadjuvantes dos portugueses.

Mas entre os dois membros do casal existem diferenças abissais: Rosie acabará por se sentir envolvida e sensibilizada pela fragilidade demonstrada por alguns habitantes locais, chegando a exercer clínica em alguns deles. As pessoas a quem mais se irá dedicar são Constança e Zeca Metambira.

Enquanto isso, Benjamin procura culpados históricos e a respectiva condenação. À medida que investiga o passado das gentes locais, Benjamin Southman acaba por descobrir que os antepassados de Jesustino estavam ligados, também, ao comércio de escravos. Isto desperta a ira do americano que pretende ajustar contas com o Passado histórico local e os seus descendentes…



Singério, o ajudante de alfaiate, encarrega-se, no entanto, de lhe mostrar as cores intermédias da realidade:

Sabe por que é que nós aqui não temos brancos? É porque sempre estivemos todos juntos, todos misturados: vítimas e culpados.

O misterioso desaparecimento do ainda mais misterioso visitante

Benjamin Southman perde-se na busca das próprias raízes ao mesmo tempo que se esbatem os contornos que delimitam a fronteira que separa a loucura da sanidade.



Outras personagens vêem-se, também, a braços com a mesma dificuldade mas encontram formas de lidarem com a loucura e de se adaptar à vida quotidiana. Arcanjo mistura por exemplo, teve de esquecer o passado e recomeçar uma nova vida.

Esta particularidade, que se traduz num mecanismo de defesa do ego é explicada pela epígrafe que antecede o capítulo:

Primeiro perdemos a lembrança de termos sido rio
A seguir esquecemos a terra que nos pertence
(…)
A seguir, não temos sequer ideia de termos perdido alguma coisa
.

A solidão e a desolação começam a afectar uma mente obsessiva como a de Southman. Este sente-se perseguido pelos olhares dos retratos dos desaparecidos da galeria da casa de Constança e Jesustino, alguns dos quais derrubou acidentalmente ao sair de casa. Sempre com a ideia fixa de capturar os culpados históricos do passado escravo dos seus antecessores.

Arcanjo Mistura está convencido tratar-se o Americano de um espião dos serviços secretos norte-americanos.



Quanto a Zeca Metambira o principal problema é o da adaptação, num mundo onde ser-se mulato é quase garantia de exclusão, uma vez que pessoas como ele não perecem enquadrar-se totalmente nem num lado nem no outro. Metambira é um homem que alguém como Rosie, por exemplo, não fazia ideia do quanto era difícil existir num mundo que exige que se tenha a raça certa e a acertada riqueza.



Southman, representa o etnocentrismo, tipicamente americano, camuflado debaixo da capa da defesa dos direitos humanos afirma, já depois de ser encontrado, que os habitantes de Vila Longe também são americanos, frito de uma globalização levada a cabo pelos media.

Afinal, Quem não o é neste mundo em que os céus se encheram de antenas e se vazaram de deuses?



Interculturalismo


A aproximação cultural de ambos os continentes é feita por intermédio de Rosie. Ela é, ao contrário de Southman, um elemento unificador que procura o fundo cultural comum, composto por padrões de cultura de cariz religioso e cuja matriz africana irá encontrar ecos e ramificações por toda a América do Sul, com especial incidência no Brasil. Tenta identificar, também, um conjunto de esquemas de representação mental, comuns em ambos os continentes assim como padrões de comportamento e normas de conduta. O que nem sempre é fácil, uma vez que a lei, a doutrina e a jurisprudência entram mais das vezes em conflito com os usos e as tradições:



As leis de Vila Longe e as da América eram areia e vento; às vezes escritas; às vezes ilegíveis.



No entanto:



Somos todos parecidos; santos para viver, demónios para sobreviver.



No Tempo Antigo – Século XVI durante a travessia do Índico



Onde a aculturação se dá em todas as épocas por ambição das classes detentoras do poder e que neste caso – quase sempre – é feita pela via religiosa, como no tempo do Descobrimentos e da colonização portuguesa:


Os naturais da terra (colónias) contraíram debilidades ao serem baptizados. Essa fraqueza não provinha da água (…) mas das palavras que acompanhavam o acto. Sobretudo quando se afirmava que as razões de Deus são as mesmas das do Rei de Portugal…

Há dois protagonistas cujo percurso de vida desemboca num final trágico: Nimi Nsundi, escravo encarregue de transportar a santa para o barco e de vigiá-la durante a viagem, e Dia Kumari, a aia de origem goesa de Dona Filipa Caiado. Dona Filipa encontra na jovem viúva a companhia de que necessita, durante as prolongadas ausências do marido, que até lhe permitem gozar de uma certa independência, e esta encontra na protecção da sua senhora a oportunidade de escapar à pira funerária ou a uma existência de pária. Cria-se, aqui, uma relação simbiótica que parece ser de utilidade para ambas pelo menos durante algum tempo, uma vez que Dia não parece minimamente inclinada a adoptar o cristianismo ou em assimilar a cultura ocidental.



A jovem embarca na mesma nau que D. Filipa por achar preferível esta solução temporária ao invés de tornar-se sati, uma vez que, na época, as viúvas não tinham lugar na sociedade indiana.
D. Filipa parece ter uma relação matrimonial com o marido mais dotada de carácter institucional do que de qualquer outro género. Algo que provém da forma como é integrado o papel de provedor masculino na sociedade lusa da época e, se calhar na desumanização em geral verificada nas relações entre os géneros uma vez que deixa escapar durante a viajem ser o elefante que viaja a bordo da nau a …alma mais humana que eu possa tocar.



A presença do tema das relações de dominância do género feminino pelo masculino utilizado por Mia Couto em duas épocas tão distintas prova como esta forma de estruturação social está enraizada nas três culturas – indiana, africana e europeia ( esta última pela via do judaísmo-cristianismo) –, implantadas nas mentes humanas através dos séculos, pelas diversas religiões.



Dia Kumari e a Tia Luzmina parecem-se bastante. Não só pela origem goesa, mas pela personalidade ardente, fome de independência e autonomia, inadaptação à ordem estabelecida uma vez que são mulheres que desafiam as convenções: Luzmina, à mesa, quando tece comentários inconvenientes; e Dia, vestida de chamas, com um sari vermelho fogo, quase uma sati, que se despe e tenta o suicídio lançando-se borda fora. Os tripulantres, perturbados, julgam-na parceira do Demo; os familiares de Luzmina, envergonhados, julgam-na louca.
Dia critica a submissão de Nimi Nsundi ao ajoelhar-se perante a Virgem e, aparentemente, seguir os mesmos rituais religiosos dos portugueses mas este encarrega-se de, na carta de despedida a Dia, explicar as suas razões:



Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não vêem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar.
(…)
aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem.



A estátua exerce um fascínio muito especial sobre o rei de uma localidade na costa oriental africana que D. Gonçalo da Silveira pretende converter. Longe de imaginar que este rei da tribo local julga vê na Santa uma mulher terrena, o que despoleta uma divertida confusão.



O final desta história passada no Tempo Antigo, remete um pouco para o romance de Joseph Conrad O Coração das Trevas onde se dá um assassínio, um autor misterioso, vários suspeitos, mas a verdade fica oculta nas trevas ensombradas da floresta… Neste caso concreto, enterrada na margem lamacenta de um rio.



A morte de D. Gonçalo da Silveira encontra-se, assim, associada, no imaginário popular, a uma intervenção sobrenatural, sendo que o sangue que lhe escorre das veias e macula a estátua, não provém do inquisidor mas do lugar do outro pé da sereia, serrado por Nimi Nsundi durante a viagem, na tentativa de lhe devolver a sua forma primitiva de mulher-peixe…



É o fanatismo de D. Gonçalo que desencadeia a tragédia e faz voltar as sortes contra si próprio:
Esta nação gentílica, afinal está contaminada, por mouros e judeus pestilentos.



O pai de Nimi, um chefe tribal que habita a região, vassalo do rei apaixonado pela imagem da Virgem Maria, acredita que se D. Gonçalo ou a Santa forem um dia desenterrados a terra será alvo de uma catástofe.



- (…) è que esse homem não é pessoa. É como a água. Não nasce nem morre. Voltou ao rio, à casa da eternidade.


O Padre Manuel Antunes, amigo de Nimi, é um padre liberal e humanista que, à medida que atravessa o Índico se vai solidarizando com a condição humana dos negros, aprisionados e maltratados no porão infecto do navio de carga. Em relação aos rumores que correm sobre a suposta crueldade do povo Monomotapa, encontra nas palavras do médico Fernandes os ecos do próprio pensamento:



Quando se inventam assim maldades sobre um povo, é para abençoar as maldades que se vão praticar sobre ele.



A alma de Manuel Antunes vai gradualmente “mudando de cor”, quando desembarca no continente africano torna-se nyanga (feiticeiro) e passa a lançar búzios e a conservar junto de si uma relíquia: o outro pé da sereia, que Nimi serrou durante a viagem. No entanto ao recuperar de entre os pertences de Gonçalo da Silveira os diários de bordo que escreveu durante a viagem decide enterrá-los num baú, envoltos em panos impermeabilizados, juntamente com a imagem da Virgem…



Dia Kumari e D. Filipa partem novamente com Xilungo, filho do chefe da tribo e um dos que encontrou morto a D. Gonçalo. No meio da sua solidão, a grande dama portuguesa medita sobre a condição feminina das mulheres da sua classe que não difere grande coisa da da sua serva, Dia Kumari:



A gente ama alguém que desconhece, casa com quem conhece, vive com uma pessoa irreconhecível. Às vezes temos luas-de-mel, outras vezes, luas melosas. A maior parte do tempo, (…) são noites sem luar nenhum.



O final



O último capítulo passado no século presente contém uma série de revelações que servirão para atar as pontas soltas e colocar as coisas no seu devido lugar.



A poesia de Luzmina é a chave de que dispomos para decifrar o enigma e interpretar aquilo que se passa em Vila Longe e Antigamente, no século XXI e no Século XVI.

Olhos
vale tê-los
se de quando em quando
somos cegos
e o que vemos
não é o que olhamos
mas o que o nosso olhar semeia no mais denso escuro

(…) e o que vivemos
não é o que a vida nos dá
nem o que dela colhemos
mas o que semeámos em pleno deserto
.


E Mwadia continua, no tempo presemte, a desempenhar o seu papel de mensageira atravessando o rio do Tempo. Ela é a canoa que transporta a memória de um povo.

Cláudia de Sousa Dias

Thursday, March 11, 2010

“As Horas “ de Michael Cunningham (Gradiva)





A construção deste desconcertante romance da autoria de Michael Cunningham desenvolve-se em três planos distintos – situados, também, em três momentos distantes no tempo – , mas desenvolvidos paralelamente e em sincronia, um elemento que se torna particularmente notório no filme de Stephen Daldry.



A trama envolve, assim, a história pessoal de três mulheres que, apesar de pertenceram a gerações diferentes, experimentam os mesmos dilemas e emoções a par um conjunto de angústias inquietantemente semelhantes. Estas parecem dar consistência ao fio condutor da trama principal e permitirem não só a aproximação dos tempos em que se desenrolam as três narrativas secundárias, as quais por vezes parecem sobrepor-se, de tal forma o autor nos faculta a visão, quase em simultâneo, dos mesmos gestos ou expressões (sobretudo no filme) das três heroínas.
As questões com que se debatem Virginia Woolf, Laura Brown e Clarissa Vaughan prendem-se essencialmente como o tédio, implantado como uma doença crónica, progressivamente destrutiva, que vai corroendo o quotidiano. E, também, a escolha da identidade sexual, dificultada pelos constrangimentos impostos pelas convenções sociais, bem como um forte desejo de autonomia e auto-realização.



O primeiro plano de acção foca os dilemas e angústias da escritora britânica Viginia Woolf, entre os anos 1920 e 1940, altura em que decide por termo à vida, afogando-se no afluente do Tamisa que passa próximo da sua casa, em Richmond. A história desta personagem baseia-se, sobretudo, nos diários da escritora e estende-se às restantes narrativas secundárias, influenciando a conduta e o destino das duas outras personagens femininas que, ao contrário desta, são puramente ficcionais. O episódio relativo a Virgínia, construído por M. Cunningham a partir dos seus diários, gira à volta da escrita do romance Mrs. Dalloway numa casa onde a luminosidade feérica e se declina numa escala de cinzentos não aquece nem dá vida ao ambiente interior, o qual contrasta violentamente com o verde luxuriante, embora sombrio também, do exterior. Virgínia, refugiada em Richmond, é tratada como uma boneca de porcelana pelo marido, o qual receia a sua fragilidade emocional. A escritora sente falta da vida trepidante da cidade, das animadas tertúlias com os intelectuais e escritores seus contemporâneos (entre os quais se encontravam James Joyce e D.H. Lawrence). As suas frustrações pessoais, a incapacidade de se fazer respeitar pelas criadas e a extrema solidão a que não consegue fazer face estão na base da construção da personagem e do romance “Mrs. Dalloway”, a qual se mostra sempre a anfitriã perfeita, que a própria Virginia jamais conseguirá ser, pois é incapaz de dar ordens. Para compensar-se procura refúgio na alegria e azáfama no convívio social de que se vê privada em Richmond para esquecer o vazio, o tédio que se agarra “como uma carraça ao dorso do quotidiano doméstico”. Às horas. Que passam em vão. Dia após dia.



A Clarissa Dalloway de Virginia Woolf inspira, anos mais tarde, já em pleno período do pós guerra e expansão económica nos anos 1950, a segunda heroína de Cunningham, Laura Brown, a qual se sente fascinada pela a personagem de Woolf. Laura fica de tal forma “viciada” no romance, a ponto de um dia alugar um quarto de hotel, por uma tarde, só para poder ler sem ser interrompida. O nome Laura Brown, dado por Cunningham, está também relacionado com a obra de Woolf, multiplicando, assim, as inúmeras intertextualidades e alusões referentes ao romance Mrs Dalloway. ~



A Laura Brown desta segunda época de As Horas é uma mulher culta, amante da literatura, que opta por se casar por ser aquilo que se esperava dela e não como impulso sustentado pela paixão. Está-se em plena década de 1950 e os ex-combatentes norte-americanos na Europa e no Pacífico procuram uma vida calma e estável de forma a compensar os horrores da guerra e recuperar a economia do país.



Laura, como muitas outras mulheres na altura tem, unicamente, por missão a de tornar a vida do homem com quem casa o mais agradável e confortável possível. Ao ponto de se sentir culpada por não conseguir, um dia, levantar-se Às 7:00 para conseguir preparar-lhe o pequeno-almoço, antes deste ir para o trabalho, por ter adormecido.



Laura, apesar de se dedicar a tempo inteiro ao trabalho doméstico e ao cuidado do filho, que a idolatra com paixão absoluta e edipiana, não consegue encontrar espaço ou tempo para si mesma. As tarefas domésticas ocupam-lhe, também, os pensamentos, a tempo inteiro, sempre iguais, sem variações e Laura sente-se a atrofiar. De dia para dia. E as horas, esmagam-na. Como se morresse um pouco a cada dia que passa.



No terceiro plano, temos uma mulher de meia idade, Clarissa Vaughan, no auge da carreira, embora sem grande desafogo económico, a viver em Nova Iorque, já na viragem do milénio, no final dos anos 1990, casada com Sally (outra personagem relacionada com a obra de Virginia com que a qual a heroína tem uma breve ligação amorosa na infância). O ex-marido Richard projecta nesta Clarissa, que conheceu nos anos setenta em tempo de Woodstock, a protagonista de Mrs. Dalloway de Woolf, uma personagem que faz parte das suas fantasias.



E esta Clarissa nova-iorquina é uma editora de sucesso relativo – edita livros excelentes mas que não são sucessos de bilheteira. No entanto, as elevadas expectativas, tanto pessoais como profissionais, parecem começar a ameaçar de forma ainda incipiente mas insidiosa, o equilíbrio emocional desta terceira personagem. Por outro lado, quer a azáfama da vida profissional quer a os conflitos que começam a emergir na relação com a filha Julia, não a deixam sucumbir à depressão como acontece com as outras heroínas do romance. A Clarissa, o vazio das horas não consegue instalar-se de forma a destruí-la. Ainda não. Mas a melancolia perece por vezes querer introduzir-se e ensombrar-lhe a felicidade nos momentos mais solitários.



A dimensão psicologia e identidade sexual das personagens


A primeira das heroínas de Cunningham, Virginia Woolf, sofre de episódios mais ou menos prolongados de depressão, que se transformam progressivamente em esquizofrenia, à medida que começa a ouvir vozes e a manifestar-se outro tipo de alucinações. Virginia é um ser extremamente sensível, tendo sido violada por um meio-irmão na infância. Cresce com um imaginação exacerbada e atribui múltiplos significados a detalhes que à maioria das pessoas passam despercebidos, como a morte do melro e as homenagens fúnebres que lhe prestam as crianças. Virginia é uma mulher que, mediante as convenções sociais do período post vitoriano nos anos 1920, se vê obrigada a abdicar da sua verdadeira identidade sexual ao reprimir a paixão adolescente pela sua primeira irmã, Vitória, e optar por um casamento convencional.
Virginia só se afasta da sua personagem, Mrs Dalloway, na medida em que esta é demasiado agarrada à vida: Mrs. Dalloway sobrevive no final do romance, tal como todas as personagens femininas de Cunningham das épocas posteriores, que se identificam com ela.



Richard, o único protagonista masculino é também aquele que estabelece o elo de ligação entre elas, servindo de ponte por forma a proporcionar a interligação das três estórias. Richard é também a única personagem que se identifica, em praticamente todos os aspectos da sua personalidade, com a primeira heroína, Virginia. Este possui a mesma fragilidade emocional, que despoleta o final trágico que escolhe para si, tal como a autora de As Ondas. É também, tal como Virgínia um ser de sexualidade predominantemente homossexual. E é, também, sexualmente abusado na infância mas por uma vizinha, como é sugerido pelo narrador. No entanto, apesar desta orientação sexual, não deixa de demonstrar algum sentimento de posse em relação à ex-mulher. No ambiente doméstico onde vive Richard é notório o contraste entre o glamour das festas dos lançamentos dos livros que escreve e a degradação, a obscenidade da miséria em que vive.



Laura Brown é uma mulher de identidade sexual ambígua ou ambivalente, sendo capaz de sentir uma espécie tipo de “desejo selvagem pelo marido”, proveniente do lado feminino da sua sexualidade e, por outro lado, um impulso de oferecer protecção, proveniente do seu lado masculino, como se vê na cena em que abraça Kitty, e de onde nasce um avassalador beijo clandestino.



Mas apesar de tudo, a Laura o papel expressivo é o único que lhe cabe ou lhe é permitido desempenhar na vida conjugal. Até ao dia em que decide tomar a atitude que desencadeia a mudança.



Quanto a Clarissa “Dalloway” Vaughan é, tal como Laura, uma mulher de sexualidade ambivalente, ora homossexual ora heterossexual, conforme as fases da evolução do ciclo de vida. Cunningham dá-nos assim a entender, sobretudo no percurso das personagens femininas, que a orientação sexual do ser humano não é algo de estático, geneticamente predeterminado, ao contrário do que defendem uma boa parte dos profissionais da psicologia/psiquiatria, mas algo de dinâmico, sofrendo modificações conforme as experiências sexuais vividas. Assim, Clarissa Vaughan tem uma paixão adolescente pelo também bissexual Richard Brown, escritor como Virgínia Woolf e, numa primeira fase, casado com uma mulher que se tornará editora – mais uma semelhança com o estado conjugal de Woolf no início da história.



Nos anos 1990, Clarissa é casada, já em segundas núpcias, com Sally. O amor homossexual de ambas é estável e agradável, mas Clarissa sente a nostalgia da juventude, da esperança e do infinito leque de possibilidades que este estado então representava, à medida que descobria ao paixão pelo jovem intelectual, que se deixava deslumbra pela sua beleza.



Clarissa é uma mulher activa, como a Mrs. Dalloway do romance, profissionalmente reconhecida mas não é rica nem tão valorizada profissionalmente como sally que no casal assume o papel sobretudo instrumental. Em contrapartida, a maternidade também contribui para a realização pessoal de Clarissa havendo, assim, vários factores que contribuem para o seu equilíbrio.


Laura e Clarissa, encontram a porta para a sobrevivência e estabilidade ao refugiarem-se no trabalho, no reconhecimento do seu valor pessoal e ao tomarem as rédeas da própria vida.
As outras duas personagens, Virginia e Richard são, por sua vez, consumidas pela doença que as afecta e pelo vazio das horas. Optam, no entanto, por fugir-lhes e suprimir a lenta espera dos dias sempre iguais, na antecâmara da morte.



Quanto às restantes personagens, as Horas, as Moiras, ou as Parcas apenas aguardam o momento certo para actuarem. Esperam pacientemente o instante de vulnerabilidade que lhes permitam cortar o fio da Vida.


Cláudia de Sousa Dias