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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, August 28, 2009

“Por amor a Che” de Ana Menendez (Civilização)


Apesar desta Autora, filha de exilados cubanos a residir em Miami, não ser muito conhecida no panorama literário português, a sua obra ficcional começa a causar impacto no universo literário internacional. E apesar, também, da máquina de marketing compará-la a Isabel Allende ou a Gabriel García Márquez, a verdade é que Ana Menendez distancia-se largamente dos seus dois colegas do Chile e da Colômbia. Da primeira, pela neutralidade, em termos políticos, que podemos observar na sua escrita; do segundo, pela ausência das marcas típicas do realismo mágico. A linguagem utilizada por Menendez reparte-se em dois estilos opostos, que estão presentes no romance e são a projecção da personalidade das duas protagonistas – mãe e filha –, completamente opostas. As cartas de amor de Teresa, escritas num tom intimista e emotivo, parecem retiradas das páginas de um diário no qual é relatado um romance clandestino entre aquela e o líder revolucionário argentino Che Guevara. Como contraponto, temos os relatos jornalísticos, elaborados pela filha, onde se pode observar uma escrita paisagística e fotográfica, mais fria e objectiva do que o discurso passional e inflamado da mãe. A narradora é pródiga em descrições detalhadas mas depuradas da componente emocional, mesmo durante os diálogos travados com os habitantes de Havana ao longo das suas deambulações e durante a realização das investigações voltadas para a reconstituição das peças do puzzle que é o próprio passado familiar, o qual parece estar ligado ao do líder revolucionário.

No discurso elaborado pela jovem, durante ambas as visitas efectuadas a Cuba referidas no romance, com um intervalo de cerca de dez anos, estão patentes os sinais que caracterizam uma mega reportagem, entremeada por várias entrevistas ou diálogos com os habitantes locais, que servirão de elo de ligação com a história da segunda protagonista – Teresa. No início do romance, é mencionada a infância e os primeiros anos de juventude da jovem com o avô, sendo de notar a ausência parental. Ambos estão – tal como a família da Autora – exilados em Miami, sendo esta cidade o ponto de partida quer para a investigação quer para o relato do romance propriamente dito.

As deambulações da filha de Teresa pelas ruas de Havana fazem-se em dois momentos distintos: a primeira, no início dos anos 1990; a segunda, nos primeiros anos do século XXI, já no final do “reinado” de Fidel Castro, que está já a anos-luz de distância do passado de guerrilha ao lado do revolucionário médico argentino.

A miséria crescente e os complicados esquemas para obtenção de dólares americanos pelos habitantes locais, que enganam descaradamente os turistas incautos, o peso do poder da moeda norte-americana entre os locais, o violento contraste social entre a esmagadora maioria que vive na extrema miséria e uma minoria arrogante e obscenamente endinheirada, as lojas de luxo ao alcance de apenas muito poucos e a proliferação da prostituição de luxo, são algumas das questões incómodas captadas pelo olhar objectivo da Autora, que desempenhou, tal como a sua personagem, durante muito anos, a função de repórter antes de se dedicar a tempo inteiro à ficção.

Na história obtida a partir das cartas de Teresa que são, a cada passo, integradas na trama que envolve o tempo dedicado à investigação, deparamo-nos com a recordação de uma época, os anos 1950 e 1960, e a reconstituição de uma Havana desaparecida que passou por uma viragem de 180º em termos políticos.

A temática abordada por Teresa incide, sobretudo, no mistério da atracção erótica que não cabe nos limites estreitos de uma explicação racional, mas que obedece a um estranho magnetismo animal e a uma espécie de instinto natural que os humanos desenvolvem para activar e receber o prazer. Através de Teresa, a Autora constrói uma estória de ficção, envolvendo uma personagem histórica, cuja verosimilhança nasce de uma investigação detalhada, documental e fotográfica, de onde emerge a escrita marcadamente imagética da Autora, sublinhada pela visita aos locais actuais das ruas de Havana que lhe permite comparar a paisagem contemporânea com a de há meio século atrás. É a partir desta necessidade de reconstituição de uma época que a Autora projecta na filha de Teresa, a obsessão por fotografias antigas, as quais utiliza como janelas para vislumbrar o passado.

A escrita posta nas cartas de Teresa torna-se bastante rica, em termos literários, pela exposição de uma personalidade solitária e melancólica - e é unicamente neste ponto que Menendez se aproxima de García Márquez –, de grande poder de atracção sexual. Teresa perece ser uma figura bastante carismática no que respeita à capacidade para cativar a atenção do sexo oposto, apesar de não se enquadrar nos cânones dos ideais de beleza da época, onde são valorizadas as mulheres loiras, de olhos e pele clara e formas voluptuosas. Teresa exibe, pelo contrário, uma figura esguia e morena, mas que aprisiona olhares masculinos que, de forma sub-reptícia, se deixam atrair pela figura andrógina, enigmática e, principalmente, pelo seu incisivo e penetrante olhar de artista plástica.

Teresa escreve um romance em forma de cartas, dirigido à filha, o qual só lhe chegará às mãos em idade adulta, onde desvenda o mistério das suas origens.
O tom em que é descrito reveste-se de uma beleza outonal, nostálgica, de uma mulher que está a entrar na velhice, um tipo de “beleza pesada e estranha” (The Times), carregada de melancolia latina, mas “com um toque subtil de aço” ( The New York Times Book Review).

O intenso erotismo despido de qualquer tipo de vulgaridade, a expressão da erosão dos sonhos, causada pelo tempo e a ausência de sentimentalismos piegas vêm conferir à obra um estatuto que coloca muito acima daquelas que seguem a receita do “óbvio” ou do “fácil” pelo qual muita gente se deixa seduzir ao copiar as receitas de sucesso de vendas.

De notar que, a Ana Menendez já lhe tinha sido atribuído o título de The Notable Book of the Year do New York Times pelos seus contos o que deixa, desde já, entrever ser este um livro, com todas as marcas que distinguem a escrita da Autora, uma obra maior e que se lê com prazer de um verdadeiro bibliófilo.


Cláudia de Sousa Dias

Sunday, August 16, 2009

“Diego & Frida” de J.M.G. Le Clézio (Relógio d’Água)


A biografia de Le Clézio sobre o mais mediático casal de pintores do século XX é, na realidade, um ensaio cuja finalidade é a de interpretar o estilo pictórico de ambos. Inserido no contexto histórico em que se projecta a carreira artística de cada um e as respectivas correntes estéticas a eles associadas, o Autor estabelece a relação entre a pintura e a personalidade específica de cada um.

Le Clézio debruça-se, também, sobre as motivações que levam ao despoletar, à consolidação e ao prolongamento da paixão que os une.

Diego e Frida não têm em comum apenas e só as afinidades artísticas: partilham também, o amor pela cultura índia e os ideais revolucionários de pendor marxista. É também, de acordo com o Autor, o tipo de amor que Freud apelidou de “multidimensional”, ao abranger a componente fraternal, maternal e erótica. O que os une é, sobretudo, um temperamento anti-convencional, uma ânsia infinita de liberdade. Todos estes elementos acabam por tornar possível a existência de um entendimento quase perfeito ou, pelo menos, possibilita ultrapassarem divergências e minimizar os efeitos de algumas das mais graves crises pelas quais passaram.

Uma combinação de factores que explica o facto de Frida ter permanecido ligada à vida de Diego apesar de este sempre se ter ligado a outras mulheres relacionadas com as artes, mesmo depois do divórcio de ambos.

A cultura mexicana é o elemento que aproxima a forma de expressão artística de ambos apesar das diferenças subtis no tocante à temática: a pintura de Diego Rivera é, sobretudo, ideológica, ao passo que a de Frida retrata o seu próprio mundo interior, recorrendo, para isso, à linguagem simbólica dos surrealistas. No entanto os quadros de Frida não retratam propriamente o nonsense surrealista mas antes os sentimentos vulcânicos que a assolam e dimensão incomensurável da dor que a acompanha durante a vida e que aparece codificada na simbologia dos surrealistas que se inspiram na linguagem freudiana. Após o acidente, Frida Kahlo refugia-se na pintura para não sucumbir à depressão e como forma de se manter agarrada à vida. A pintora foca-se, principalmente, na cultura mexicana com raízes nas civilizações pré-colombianas, sobretudo na cultura azteca e maia, cujos elementos estão presentes nos seus quadros, tais como o uso de máscaras, e símbolos como o sol, a incarnar a figura mitológica de Hochitl. A pintura de Frida é assim, arquetípica, ao passo que Diego utiliza símbolos da cultura mexicana contemporânea à época em que viveu, ao representar sobretudo, cenas do quotidiano das classes trabalhadoras.

A arte de Diego aparece, na maior parte das vezes, como forma de contestação do estilo de arte colonial ou colonialista. Um estilo que é importado da Europa e direccionado à burguesia mercantilista do tempo da ditadura de Porfírio Díaz.
Diego refutava o fausto, exibido à época pelas classes privilegiadas, um estilo de vida que era projectado nas artes plásticas do período romântico, mas que contrasta violentamente com a realidade e a miséria observadas nas ruas da cidade do México, envolvendo o dia-a-dia das classes trabalhadoras.

Diego passa uma temporada na Europa, no início do século XX, onde em primeiro lugar toma contacto com o estilo de mestres como Goya, Cézanne, Picasso e outros nos anos que antecedem a primeira Grande Guerra começando, logo a segui, a contactar também com os artistas ligados ao movimento surrealista.

Frida, por seu lado, torna-se revolucionária no que toca à sua própria forma de expressão plástica, ao utilizar a cor como forma de expressão das emoções. De onde o amarelo surge como associado à loucura ao desespero ou, dependendo do contexto, à alegria. O magenta, está normalmente associado à vitalidade. Enquanto isso, o verde pode representar tanto a tranquilidade como a tristeza ou a dor, conforme a tonalidade utilizada. Por fim, o azul, sobretudo na tonalidade índigo, representa para ela o amor.

À pintura de Frida parece estar, segundo Le Clézio, relacionada com a terra, com as forças designadas por “telúricas”, ao quotidiano emocional dos afectos mais primitivos, mas uma linguagem codificada que acaba por se revestir de alguma violência ao retratar não só a dor, mas a revolta, que se manifesta tanto numa forma de protesto contra a violência doméstica como na forma de atrair a atenção para a sua própria pessoa. Um exemplo é a forma como transporta para a tela a desolação pela perda de um filho ou o esboroar do sonho de ser mãe: vísceras e os restos sanguinolentos daquilo que poderia ser uma criança são a máxima expressão do estridentismo na pintura de Kahlo. Da mesma forma, a solução irrevogável de uma amiga, Dorothy Hale, que se suicida, ao defenestrar-se do alto de um arranha-céus nova-iorquino. O estridentismo é caracterizado, sobretudo, pela violência na expressão das emoções no sentido de provocar uma reacção no público.
A paixão erótica também se encontra presente na temática de Frida Kahlo, embora codificada ao estilo dos surrealistas. A linguagem pictórica relacionada com esta vertente da sua expressão artística é sobretudo composta figuras humanas quase todas auto-retratos, conjugadas com elementos vegetais, conotados com os órgãos sexuais, tanto femininos como masculinos, o que vem lançar mais uma achega para atestar a bissexualidade da pintora. Ou simplesmente para a intensidade do desejo de ter filhos. Diego aparece frequentemente identificado com o sol, o astro-rei ou como o “terceiro olho” a representar o lugar central que ocupa no universo das suas emoções.

Segundo o Autor, Frida vê no casamento com Diego como uma espécie de religião, um quase dogma, cuja base reside na crença de unidade e complementaridade entre ambos. Esse mesmo dogma quebra-se quando Diego se envolve com Cristina, a irmã e confidente de Frida, à qual sempre se via como aliada apesar de todas as divergências ou rivalidades.

Todos os meus motivos de discussão com Diego me passam pelos ovários” (pp 201-202).

Após a separação, o voto de confiança quebra-se. Frida terá alguns romances extraconjugais e heterossexuais que acabaram por lhe atribuir fama de sedutora.

Ainda segundo Le Clézio, Frida teria inicialmente captado a atenção de Diego pelo olhar – “travesso, frontal, e revelador de autoconfiança” – ainda antes do acidente; após um segundo encontro, já depois do acontecimento, que a deixou inválida durante longos meses, captava-lhe a expressão de revolta, a profundidade e um grau de sofrimento invulgar para a idade, onde se misturava uma generosa dose de doçura.

No início da relação com Diego e por influência deste, Frida abraçou a causa da ideologia marxista-leninista actuando como militante em parceria com a fotógrafa Tina Modotti, na difusão de propaganda revolucionária. Posteriormente, Frida revela-se como anti-estalinista apesar de nunca deixar de ser revolucionária, afirmando que “A Arte não poderia estar ao serviço da política”.

Ao reconciliar-se com Diego, após a separação, a união nunca mais será a mesma. Trata-se de um acordo onde está presente a marca da solidão, pois vivem em quartos, camas, estúdios, vidas separadas. Uma vida com um vazio que Frida tentará colmatar com romances de curta duração, até o seu estado de saúde piorar inexoravelmente.

Frida e as Cidades

Durante os seus exílios temporários fora do México, motivados sobretudo pelos imperativos associados à carreira e Diego e, posteriormente, por motivos pessoais e profissionais, Frida sentia-se muitas vezes como um peixe fora de água, facto que é corroborado pelo Autor em vários momentos da obra.

A pintora achou sempre Nova Iorque uma cidade hostil, principalmente por causa da barreira da língua. Frida falava mal inglês, mas mais do que isso, achava a cidade fria, impessoal, recheada de pessoas superficiais. A então esposa de Diego Rivera não suportava o puritanismo dos norte-americanos, acabando por mergulhar num período marcadamente depressivo, durante a estadia naquela localidade, devido ao trabalho de Diego, relacionado com a Fundação Rockefeller.

O mesmo já não parecia acontecer em S. Francisco, devido à presença de imigrantes mexicanos e à aceitação, pela população em geral, do exotismo de Frida como uma lufada de ar fresco, em particular pelas mulheres, que adoravam imitá-la.

Mas mais do que a Big Apple, Frida odiou sobretudo Paris e a Europa do surrealismo, ao manifestar o mais virulento desprezo aos adeptos deste movimento e, particularmente, a André Breton. Frida achava os surrealistas superficiais, demagogos, irrealistas e ridículos, uma vez que face a um problema tão grave como aquele pelo qual a Europa estava a passar, com a ascensão do nazismo, aqueles passavam o dia “preocupados com questões fúteis”. A pintora ficou, desde então, com uma impressão assaz negativa dos franceses a par da “insuportável hipocrisia e puritanismo dos gringos”.

Um obra magnífica, o retrato de duas vidas fascinantes retratadas pelo vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2008: a de um homem do mundo e de uma mulher que ama e odeia com a mesma intensidade.

Um livro para devorar de um só fôlego.


Cláudia de Sousa Dias

Sunday, August 02, 2009

“Escritos de Frida Kahlo” por Raquel Tibol (Quetzal)


Uma colectânea de pequenos textos, notas, cartas e poemas que é uma verdadeira caixinha de surpresas, pelo facto de a maior parte dos textos aí incluídos não serem “literários” ou, pelo menos, de não terem sido escritos com essa intenção – a de impressionarem pela beleza ou com o intuito de causarem impacto na opinião pública ou no seu destinatário – mas antes a de resolver, na maior parte dos casos, pequenas questões práticas da vida quotidiana ou simplesmente desabafos.

No entanto, através deles, pode-se desvendar um pouco da personalidade da verdadeira Frida Kahlo, independentemente de todas as ficções e distorções, criadas à volta da sua figura e, assim, quase se poder escutar a “voz” ou as várias vozes de uma das melhores artistas plásticas não só do século XX mas de toda a história da pintura.

Nos Escritos de Frida Kahlo estão contidas todas as “Fridas” que compõem a mulher única e inimitável que foi Kahlo e cuja poesia pictórica de que se serve para exprimir as mais intensas emoções e sensações nos seus quadros, integrados no movimento estridentista causaram um impacto de tal forma grande no público e na crítica. Impacto esse que, associado à lenda de mulher sedutora, sensual e revolucionária muito contribui para fazer perdurara a lenda de mulher sedutora e ardente, fazendo simultaneamente perdurar o seu fascínio muito para além da erosão da beleza, e dos fantasmas da doença e da morte.

Nestes “escritos” começamos por ver uma Frida adolescente, algo naïf, mais propensa a acreditar na força das próprias convicções ideológicas ao mesmo tempo que sofre a tortura da convalescença de um aparatoso acidente, que lhe deixou sequelas para o resto da vida.

A Frida deste período é apaixonada, dependente e um bocadinho manipuladora, faceta que surge nas entrelinhas das cartas de amor escritas a Alejandro Gómez Árias, o primeiro namorado. Mas também sabe ser mordaz e impiedosa na crítica quando se trata de traçar o retrato psicológico e social das gentes de Nova Iorque, Paris ou Los Angeles ou até mesmo da personalidade de alguém de quem não gosta, como é o caso de André Breton. O pedantismo dos intelectuais franceses que preconizam a corrente do surrealismo, ou a superficialidade dos norte-americanos endinheirados têm o dom de a irritar fazendo aflorar uma verborreia carregada de cianeto emocional. Temos, também, a oportunidade de constatar a forma como a pintora mascara o sofrimento, ao colori-lo com e seu humor cáustico. O cromatismo da linguagem passa, também pelo uso da gíria e calão populares da região do México. A finalidade do uso de uma linguagem desbragada é a de, em primeiro lugar, quebrar o gelo, desdramatizar a própria situação e o próprio sofrimento. No entanto, quando precisa de conseguir um favor de alguém, Frida não hesita em fazer exactamente o oposto, valendo-se da sua situação para conseguir os seus objectivos.

Segundo o autor do prefácio, Antonio Alatorre, professor de literatura na Universidade do México, a linguagem ácida de Frida “torna-se especialmente acerada, quando dirigida especificamente aos intelectuais e artistas do surrealismo os quais, com excepção do dadaísta Marcel Duchamp, despreza de forma radicalmente visceral, por estar convencida de que estes apenas se preocupam com o lado fútil e superficial da vida, enquanto a Europa sofre a ameaça crescente do nazismo – corrente que na época prolifera a um ritmo preocupante – para além de não suportar a postura indolente desta corrente ideológica.

A escrita apaixonada e acutilante que utiliza como forma de crítica servindo-se da sátira atinge uma tonalidade muito pitoresca ao utilizar expressões locais como, por exemplo, “espinhela” ou “espinhaço” para designar “coluna vertebral”.

Esta linguagem brejeira assim como a tendência viperina são características que se atenuam de forma notória quando Frida se refere a Diego Rivera, uma vez que o afecto a obriga, inconscientemente, a adoçar a linguagem.

O acidente que a deixa fisicamente inválida durante largos meses e com sérias limitações físicas durante toda a vida, obriga-a a realizar um sem-número de intervenções cirúrgicas. Frida consegue exprimir-se, muitas vezes em surdina, usando de um estoicismo revelador de uma enorme coragem e vontade férrea de aproveitar o melhor que a vida lhe possa proporcionar.
Outro aspecto que se destaca nos seus “Escritos” é o amor que nutre pelo pintor Diego Rivera, seu marido, o qual se manifesta de forma incondicional e multidimensional. Frida parece ter sido, pelas emoções manifestas nas cartas e pequenos escritos, uma mulher de sexualidade intensa e ardente, faceta que também se manifesta na sua pintura.

Mas tanto na expressão da sua paixão adolescente por Alejandro Gomez Árias quanto após o divórcio de Diego, nos relacionamentos passageiros com o fotógrafo Nicholas Murray e outros que se lhe seguiram, Frida evidencia sempre os sinais característicos de uma paixão dramática, avassaladora, característica da expressão do estridentismo, a sua imagem de marca impressa em tudo o que faz desde o sexo à pintura, passando também, é claro, pela escrita.

O afecto demonstrado a Diego mostra ser, no entanto, multidimensional, por se exprimir numa faceta maternal – patente quando o apelida de “mi niño”, uma simplicidade maternal que se manifesta no companheirismo que se baseia nas múltiplas afinidades que os unem – e, claro, na intensíssima sexualidade e atracção erótica que os une.

O facto de Frida não ter conseguido escrever a sua autobiografia , deveu-se, sobretudo aos efeitos das elevadas doses de Demerol que era obrigada a tomar para conseguir suportar as dores atrozes de que sofria na coluna. Raquel Tibol, viu-se, assim, na necessidade de organizar cronologicamente os escritos de Frida, sobretudo após a saída para o mercado da biografia de Haider Herrera, que serviu de base ao filme protagonizado e co-produzido por Salma Hayeck. Esta organização dos escritos de Frida por Tibol teve como objectivo “a criação de uma autobiografia tácita com a inclusão dos escritos pessoais da pintora na categoria de literatura confessional e intimista mexicana do século XX”, ainda segundo Alatorre.

O discurso de Frida está situado algures num continuum onde, de um lado, está a sinceridade e, do outro, a manipulação, ocupando posições diferentes nesse mesmo continuum, consoante as circunstâncias chegando, por vezes, a revestir-se de uma máscara de auto-comiseração ou auto-flagelação, a evidenciar uma necessidade insaciável de afecto.

As emoções afloram à pele manifestando-se na forte expressão do seu erotismo, verbal e pictórico, acompanhado de um grande poder de auto-análise e, ao mesmo tempo, de uma grande dose de humildade. Esta forma de expressão artística integra-se, como já foi referido, no movimento intelectual surgido em finais de 1931, denominado de “estridentismo”. Esta corrente, inspirava-se no futurismo e dadaísmo e visava enaltecer a emoção como fonte de criação estética, cuja expressão era baseada em associações livres, autênticas pirotecnias verbais, como é o caso da pintura de Frida, cujo impacto no público tinha a força de um grito ou um berro de dor.

No que respeita à escrita Frida Kahlo consegue por vezes criar o mesmo impacto. Frida afirmava não se considerar uma pintora surrealista, apesar de utilizar algumas das técnicas do surrealismo, uma vez que a sua linguagem “não diz respeito aos sonhos mas sim ao estado de vigília”, ao domínio do consciente. Na linguagem utilizada nas cartas, a pintora serve-se, também, frequentemente dos recursos utilizados pelos estridentistas, como é o caso da descrição do ambiente da palestra dada por Diego num clube de senhoras idosas:

Ayer, Diego dió una conferencia en un club de viejas. Había como que unos cuatrocientos espantajos, todas como de doscientos años, con el pescuezo amarrado, porque les cuelga en forma de olas. En fín, unas viejas espantosas, pero todas muy amables. La mayor parte escupen al hablar, y todas tienen una dentadura postiza que se les hace para todos los lados. Bueno, te digo que había cada iguanodonte ancestral…”
(…)
Los gringos me cáen muy gordos, com todas sus cualidades y sus defectos. Me cáen bastante gacho sus maneras de ser, su hipocresía: eso de que para todo tiene uno que ser very decent, very proper, etc., etc. Pero no sé porqué, aún las más grandes cochinadas las hacen con un poco de sentido del humor; los gringos en cámbio, son sunpones de nacimiento”.

É um facto que a a data de 1925 é um marco no discurso escrito de Frida. A escrita dela evolui “por degraus” como também afirma Alatorre: “degraus de palavras que servem para evadir-se dos muros do enclausuramento, desenvolvendo-se simultaneamente a partir da mesma motivação que a levou a pintar: a necessidade de catarse e fuga ao tédio”.

A sintaxe, os ritmos e a ambiguidade idiomática que a levam a misturar o castelhano com o inglês, fazem das cartas de Frida uma forma de expressão, que é herdeira directa do estridentismo da sua pintura.

Apesar de, como já foi dito, grande parte do conteúdo destas cartas ser apenas constituído por “desabafos”, a pintora começa, a dada altura, por utilizar jogos sintácticos e polissémicos onde a sátira e o despudor são a arma que usa para combater a solidão.

Frida parece já expressar desde idade muito precoce, um vulcânico e telúrico impulso sexual, no qual a dimensão da sua tragédia pessoal não a impedem de dar rédea solta à sua coqueteria, tratando mesmo o amantes esporádicos após o divórcio de Diego, como se fossem amores eternos e intemporais.

A linguagem utilizada é sempre uma tentativa de exorcismo quer da dor quer da solidão, a traduzir-se num ponto de convergência entre o racional e o irracional, com o objectivo de regressar a si mesma pela eterna busca do êxtase.

Deixo-vos com um magnífico poema de Frida oferecido postumamente a Diego:

Poema

na saliva.
no papel.
no eclipse.
em todas as linhas,
em todas as cores, em todos os jarros.
no meu peito.
Fora. Dentro.
No tinteiro. Nas dificuldades da escrita.
Na maravilha dos meus olhos – nas últimas
linhas do sol (o sol não tem linhas), em
Tudo (I). Dizer tudo é imbecil e magnífico.
O DIEGO na minha urina – o Diego na minha boca –
- no meu
Coração, na minha loucura, no meu sonho – no mata-borrão – na ponta da caneta –
Nos lápis – nas paisagens – na comida – no metal – na imaginação
Nas doenças – nas vitrinas – Nas lapelas dele – nos seus olhos – na sua boca.
Na sua mentira.



Frida Kahlo


Arrebatadora.


Cláudia de Sousa Dias