HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, December 26, 2008

“Suite Francesa” de Irène Némirovsky (Dom Quixote)


Poderia ser apenas mais um romance sobre o holocausto e a II Guerra Mundial, mas a incidência deste drama épico sobre as transformações sociais ocorridas durante a guerra e o processo de desestruturação de todo um sistema económico, em contexto de crise, que antecede o estalar do conflito, confere a esta obra a categoria de monumental ficando aquém do também épico Guerra e Paz de Tolstoi – em quem a Autora se inspirou por ser um dos autores que mais admirava – apenas pelo facto de esta ter falecido antes da sua conclusão: Suite Francesa seria composta por cinco volumes na sua totalidade. Irène Nemirovsky concluiria apenas os dois primeiros, deixando notas manuscritas, contendo as linhas mestras para a compilação de um terceiro, pouco antes de ser deportada para Auschwitz onde viria a falecer.
A inovação, patente neste romance, em relação àqueles que normalmente abordam esta temática, prende-se com a captação in loco das transformações no quotidiano decorrentes da crise, que antecedem a ocupação propriamente dita, traduzem-se numa visão panorâmica da realidade, da qual nos apercebemos pela forma como, ao longo da narrativa, se vão delineando as linhas gerais do romance. Da mesma forma, as características das personagens vão-se modificando face à sucessão dos acontecimentos. A intenção da Autora é a de retratar uma realidade em transformação que é, também, transformadora, isto é, que interfere e altera o carácter daqueles que fazem parte do elenco.

Dados Biográficos

Irène Némirovsky nasceu em Kiev, exilando-se em França, como refugiada do regime bolchevique, responsável pela perda da fortuna da família Némirovsky. Os pais de Irène converteram-se ao catolicismo sem, no entanto, renegar as suas origens judaicas. Durante a ocupação da França pelo exército nazi, a fama de Irène Némirovsky como escritora de sucesso está mais do que consagrada sendo algumas das suas obras destacadas para serem adaptadas ao cinema como David Golder. Conta, também, com a protecção de alguns amigos, que se revela fundamental em tempo de crise como o editor Michel Epstein ou a ama das filhas, Mlle Dumot, os quais ajudam a driblar a situação de miséria resultante das represálias em virtude da sua genealogia, até ser deportada, envolta no maior secretismo, para o campo de concentração onde seria gaseada logo à chegada.

Estilo

Segundo a nota do tradutor, a superioridade da obra de Irène Némirovsky consiste em evitar: uma visão redutora, sobretudo na forma como caracteriza os alemães, generalizações abusivas ou estereótipos; as personagens tipo que encarnam conceitos ou valores – a autora abstém-se cuidadosamente de julgar as personagens do elenco ao mostrar-se consciente, se não mesmo empática, relativamente às suas contradições, à sua ambiguidade, à sua complexidade. A Autora chega, inclusive a afirmar que “na construção de um romance, os factos históricos revolucionários devem ser apenas aflorados aprofundando, por outro lado, a visão quotidiana, afectiva” das personagens.

Irène Némirovsky ocupa-se do desenho do cenário com invulgar mestria, sem deixar de nele incluir a influência do meio social, cultural e económico “fruto do espírito da época” (n. do t.), ao transferir a conjuntura de um sistema económico que se desmorona e projectá-la no carácter, nas atitudes e comportamentos das suas personagens. Para tal a Autora utiliza o chamado “método indirecto” – influência de Flaubert – ao distanciar-se das personagens a fim de evitar julgá-las. Adopta, ainda, um estilo marcado pelo realismo de cariz balzaquiano, sobretudo quando descreve a província no volume Dolce.

O estilo narrativo de Némirovsky assemelha-se muito ao formato de crónica é activo dinâmico, contudo desprovido de divagações.

O sentido de tragédia encontra-se, por isso, diluído em consequência do já mencionado método indirecto e da visão quotidiana dos acontecimentos para além de se encontrar temperado por uma pequena dose de humor negro, quando descreve as atitudes de personagens como, por exemplo, o peculiar sentido de “caridade” de Mme Angellier ou o roubo da ceia do escritor Corte.

Irène Némirovsky possui ainda uma apurada sensibilidade artística que se manifesta em várias dimensões: pictórica, cinematográfica ou cinestésica e musical, o que transforma a leitura de uma obra que, apesar de inacabada, consegue, mesmo assim, chegar às quinhentas páginas de verdadeiro prazer consagrado à leitura.

O romance foi inicialmente concebido segundo uma estrutura inspirada na quinta sinfonia de Beethoven: a Autora tinha planeado conceber cinco volumes, construídos como uma sinfonia, onde não faltaria – além da procura da harmonia, o recurso à fuga e ao contraponto, criando um delicioso jogo de oposições. Assim se expica a fluidez na leitura de um romance como Suite Francesa, com um título, também. de inspiração musical.

A trama

A primeira parte do romance, intitulada Tempestade de Junho retrata o panorama da desagregação económica francesa, como resultado da Grande Depressão dos anos 30, à escala global, a qual acabaria por fragilizar as estruturas que sustentavam a economia - uma situação que foi aproveitada pela demagogia ideológica subjacente à propaganda do partido nazi, o qual encontrou nessa fragilidade a oportunidade perfeita para dar largas aos seus objectivos expansionistas, que culminaria no eclodir do maior conflito ocorrido no século XX.

O local da acção, nesta primeira parte, situa-se na cidade de Paris, logo após ser declarada a guerra.
Para ficarmos com uma ideia mais precisa do crescente sentimento de angústia vivido pelas famílias – judias e não judias – da época, Irène Némirovsky, descreve-nos alguns quadros do quotidiano doméstico em diversos lares – desde o abastado banqueiro Corbin, ao já idoso casal de classe média (funcionários bancários), os Michaud, passando pela família Péricand, situada no limar que separa a classe média-alta da alta –baixa (com estatuto social e indicadores de conforto bastante acima da média mas sem poder ser considerada “rica” por não possuir grandes reservas de capital) e pelo pretensioso escritor de massas especializado em folhetins, Gabriel Corte.

O tema que serve de fio condutor às personagens dos vários planos narrativos é a forma como cada grupo de personagens encara a situação de guerra iminente e como procedem à debandada geral de forma a integrar o êxodo massivo em direcção ao campo, na esperança de encontrar um recanto tranquilo que passe despercebido ao invasor e escapar, assim, ao saque, à pilhagem e às bombas. Na memória das gerações mais idosas está ainda fresca a memória da guerra anterior (1914-1918).

Irène Némirovsky começa logo por confrontar as personagens com novas situações de forma a podermos perceber os múltiplos planos da personalidade humana. É o caso do presunçoso escritor Corte, o qual está profundamente convencido de que faz parte de uma elite e que, por isso, merece tratamento especial, mas na realidade limita-se a utilizar um discurso baseado em fórmulas mais do que gastas e de consumo fácil sem conseguir perceber que já está mais do que ultrapassado. Gabriel Corte vê-se, então, confrontado com uma realidade nova, totalmente desconhecida, onde o seu estatuto pouco ou nada consegue valer-lhe para dar a volta às situações mais complicadas – ex: o caso de fome generalizada e escassez de víveres. Trata-se de uma situação que nem sempre o dinheiro consegue resolver. Ou, pelo menos, não com tanta facilidade como seria de pensar. Um dos episódios mais divertidos do romance é, precisamente a história do roubo da ceia do escritor, desdenhoso e prepotente, por uma mulher do povo que nem hesita antes de lhe surripiar com a maior das desenvolturas o jantar que lhe custou uma pequena fortuna no mercado negro.

Também a hipocrisia de madame Péricand que oculta um impressionante snobismo e xenofobia sob uma capa de falsa boa vontade e espírito de “caridade cristã” contrasta violentamente com o desprezo demonstrado em relação aos proscritos judeus. O sentimento de solidariedade de Madame Péricand só consegue abranger aqueles que considera pertencerem ao seu meio social. Uma situação caricata envolvendo esta característica tão peculiar na personagem é quando esta se esquece do sogro inválido na cidade durante um bombardeamento, enquanto distribui migalhas de pseudo caridade durante a fuga para a aldeia, como forma de afirmar a sua superioridade moral sobre os demais.
Saliente-se ainda a hipocrisia do banqueiro Corbin, aliada à tacanhez de espírito e à pusilanimidade, patente na recusa em ajudar a amante inconveniente deixando-a entregue a si própria, mediante o medo de ser descoberto pela família.

A ganância, a avidez e o desejo de poder são os traços de personalidade mais básicos desta personagem, que se tornam vincados no cinismo com que trata o casal Michaud, empregados bancários de Corbin, propondo-lhes uma situação impossível de resolver, sobretudo em contexto de guerra, de forma a poder despedi-los. Os Michaud são das poucas personagens do romance que ainda conseguem manter intacta a ingenuidade e conservar a integridade, pelo menos durante as duas primeiras partes do romance. Desesperança e angústia são as emoções dominantes do quotidiano deste casal de classe média face à situação de desemprego e ameaça de fome, enquanto aguardam notícias do filho, desaparecido em combate.

O marchand coleccionador de arte, Charles Languellet, é outra figura de humanidade questionável, cuja sensibilidade se mostra indiferente à cena de genocídio que se desenrola diante dos seus olhos, durante um bombardeamento, mostrando-se somente interessado em salvar as obras de arte, sobretudo a colecção de porcelanas da qual se recusa a separar-se até à morte.
A maior parte das personagens de Némirovsky são, nesta primeira parte, não exactamente más, mas de carácter medíocre, que reduzem à sua medida tudo aquilo em que tocam.
Com algumas excepções, como é o caso do Cura Phillipe, filho mais velho de Mme Péricand, cujo idealismo lhe custará a vida face à selvajaria daqueles a quem pretende proteger, como resultado da ausência de regras e do fracasso das instituições. Ou o imaturo e bem-intencionado Hubert, irmão de Phillipe, o qual encontra a protecção fora do nicho familiar junto da calorosa – em todos os sentidos – Arlette Corail, a corista e ex-amante do banqueiro Corbin. Uma mulher que consegue conjugar o interesse com os impulsos naturais como o amor, no sentido de se adaptar às circunstâncias e sobreviver e com a qual não conseguimos deixar de simpatizar.

Na segunda parte, Dolce, são finalmente mostrados vários quadros da vida campestre, com particular incidência na descrição dos interiores, onde está patente a já referida sensibilidade visual e pictórica da Autora na descrição dos ambientes, sobretudo no que respeita aos afectos. Há inclusive, a referência à pintura flamenga que desperta a sensibilidade do intérprete da Kommandantur, em casa de Madeleine, uma das figuras femininas que mais captam a simpatia do leitor e que mais tarde teria um papel de vulto no romance, pela proximidade com Jean-Marie Michaud – o filho do casal de empregados bancários da primeira parte.

Némirovsky presenteia-nos ainda, nesta segunda parte, com a figura de um alemão sensível, culto e educado – Bruno von Falk – que é utilizado como contraponto face a outras figuras do exército ocupante como, por exemplo, Kurt Bonnet o tenente intérprete do Kommandantur fascinado por pintura flamenga.

Mas é principalmente pela criação de um irónico contraste entre a delicadeza de alguns soldados alemães – não judeus – e a indiferença, pusilanimidade mesquinhez e tacanhez de espírito da França colaboracionista: a esmagadora maioria ao contrário da ideia que se generalizou em resultado do pós-guerra. O objectivo da Autora é o de dissecar a ambiguidade das personagens para lhes retirar a sua quota-parte quer de responsabilidade quer de justificação.
Na realidade, na altura em que Némirovsky escreve estes capítulos, as pessoas ainda não têm consciência do perigo do nazismo, não estão na posse da totalidade dos acontecimentos a nível global, nem têm a possibilidade de utilizar a técnica de regressão algo que provavelmente influenciaria o seu olhar sobre o invasor.

É por este motivo que temos traçado um quadro doméstico como o da família Angellier onde surge Lucile, uma jovem viúva, maltratada e desprezada quer pelo marido quer pela sogra, Mme Angellier, cega de amor pelo filho, azeda e mesquinha, devota um ódio visceral a todos os alemães, a par de uma total indiferença face àqueles que são proscritos pelo inimigo.
Mas nas anotações deixadas pela Autora a integrar o projecto para a terceira parte do romance, esta parece já começar a esboçar outras facetas do invasor, talvez um insight, que a leva a aperceber-se da aproximação da barbárie.

No entanto, à Autora interessa, mais do que tudo, expor a reacção da população francesa na situação de país ocupado tendo consciência de que a guerra como o culminar de uma situação de crise na sua fase mais aguda, evoca o que há de pior no ser humano. Dá por isso, ênfase à atitude colaboracionista, adoptada pela maioria da população gaulesa que se cobre com os louros daqueles que ofereceram oposição – uma minoria – e optaram por actuar de forma diferente, ao fazerem parte da Resistência.

É, sobretudo, no campo, com a chegada dos refugiados vindos da cidade, que se nota o receio cobarde da população face à prestação de auxílio aos refugiados, dominando a custo o desejo de que estes desapareçam, ao mostrar relutância em compartilhar géneros com estes: onde o medo e a privação anulam qualquer vestígio de solidariedade.

Irène Némirovsky mostra-se, apesar de tudo, empática com estas fraquezas humanas ao traçar um retrato realista e lúcido dos caracteres e ao encontrar, na ausência de segurança e escassez de recursos, a motivação para a resignação cobarde e a explicação para a indiferença egoísta face ao poder abusivo das autoridades do exército alemão.

A entrada dos alemães em território francês faz lembrar algumas situações dos nossos dias. Ao lermos algumas passagens de Suite Francesa não nos podemos deixar de lembrar de alguns episódios similares, observados a partir das notícias televisivas da presença norte-americana no Iraque, quer pela atitude condescendente e paternalista para com a população local, quer pelo abuso de autoridade e poder, exibidos durante a ocupação.

Mas nada que se compare à instalação de todo um sistema de delação entre os próprios franceses, onde cada qual denunciava o vizinho na esperança de obter um bónus ou qualquer tipo de recompensa.
Esta edição de Suite Francesa termina com as anotações da Autora, para os volumes seguintes, seguida da troca de correspondência entre os membros da família, os amigos da escritora no sentido de mover influências para descobrir o do seu paradeiro após ser deportada e proceder à sua libertação. Informação que só foi conseguida no pós-guerra, ao examinarem os registos do campo de concentração onde deu entrada.

A tragédia abateu-se inexorável sobre uma personagem excepcional do mundo das letras que, se vivesse, teria, muito provavelmente, chegado ao Nobel.

Uma perda inestimável para a humanidade.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, December 10, 2008

“A Tia Júlia e o Escrevedor” de Mário Vargas Llosa (Dom Quixote)


“Escrevo. Escrevo que escrevo, Mentalmente, vejo-me a escrever que escrevo e também posso ver-me a escrever que escrevo.

Recordo-me já escrevendo e, também, vendo-me que escrevia.

E vejo-me recordando que me vejo a escrever e recordo-me vendo-me recordar que escrevia e escrevo vendo-me escrever que recordo ter-me visto escrever que me via a escrever, que recordava ter-me visto a escrever que escrevia, que escrevo que escrevia.

Também posso imaginar-me escrevendo que já tinha escrito que me imaginaria escrevendo que tinha escrito que me imaginava escrevendo que me vejo a escrever que escrevo
.”

Esta epígrafe retirada de El Grafografo de Salvador Elizondo é a chave que decifra – codifica? – o enredo do romance A Tia Júlia e o Escrevedor. Trata-se de um livro autobiográfico que o autor dedica à sua primeira mulher – Júlia Urquidi Llanes – e que é a raiz da maior parte da obra do Autor, uma vez que, pela mão de um dos protagonistas saem outros personagens que irão protagonizar, por sua vez, outros romances de Llosa.

Mas o tema principal desta mesma obra é a paixão do jovem “Varguitas”, “Marito” para a família, uma tribo composta por tios e tias, primos e primas e uma bela e carismática “tia” que só o é por afinidade, recém-divorciada, na casa dos “trinta”, de quem todos esperam que, mediante a sua condição de mulher “de classe” mas sem fortuna, realize um casamento conveniente por forma a garantir a estabilidade material necessária de modo a não se tornar um encargo para a família por um lado, e a fugir ao estigma de solteirona, onde se encaixa como uma luva segundo os parâmetros da ultra-conservadora alta sociedade limenha dos anos cinquenta, pelo outro. A família de “Varguitas” espera que “Julita” seja possuidora de uma generosa dose de bom senso calculista a sobrepor-se a uma qualquer paixão inconveniente, susceptível de lhe comprometer o futuro, ao apresentar-lhe os mais cobiçados partidos, verdadeiros portentos económicos, sem olhar à evidente decrepitude física dos mesmos, inclusive os cabelos ralos, dentaduras postiças ou ventres pronunciadamente convexos.

Já de “Varguitas”espera-se que consiga uma vantajosa aliança quer em termos económicos quer em termos políticos após a conclusão da licenciatura em Direito, satisfazendo, assim, as aspirações do pai que se move nas mais elevadas esferas da política e alta finança de Lima.

Contudo, a juventude de “Marito” e a solidão de Júlia acabam por minar os projectos megalómanos da família…

Da mesma forma a pulsão que leva “Varguitas”, o qual acumula, juntamente com os estudos, a função de locutor de uma rádio local –, a escrever e a amar os livros vem contrariar um futuro cuidadosamente arquitectado pelos pais e pelos tios, que passam de ora a vante a tratar “Julita” como uma perigosa e nefasta mulher fatal.
As retaliações não se fazem esperar. Esbarram, contudo na forte personalidade e persistência de Marito – que só faz “o que lhe dá na gana” – e no romantismo de Júlia, a qual não tem nada a perder e em quem a audácia e a frontalidade de “Varguitas” exerce um fascínio irresistível…

Mas A Tia Júlia e o Escrevedor é um romance que se desenvolve a duas velocidades: paralelamente a uma trama de contornos folhetinescos entre “Varguitas” e Júlia – uma pedrada no charco, sobretudo numa família tão tradicional como a dos Llosa –, é desenvolvido, em ritmo de alternância, o drama de Pedro Camacho, o “escrevedor” de rádio-novelas, xenófobo – o qual vai deixando transparecer na obra o ódio visceral que nutre face a tudo o quanto provém da Argentina – e a quem o director da rádio decide contratar para elevar o nível de audiências. Camacho é um homem enfezado, misantropo, ferreamente agarrado a hábitos de rotina que lhe preenchem a jornada – o oposto da caracterização dos seus protagonistas masculinos. Trata-se, na realidade de uma personagem burlesca, cuja tacanhez de espírito confere ao romance a comicidade necessária para nos apercebermos do forte sentido crítico do Autor que se mescla com um humor de cariz satírico um pouco ao estilo de um Boccaccio ou Gil Vicente.

Llosa pretende caracterizar a figura típica daqueles escritores que escrevem para sobreviver, tendo para isso de fazer algumas concessões: para tal, dedicam-se à produção de uma escrita industrial – Camacho chega a produzir nove novelas diárias a serem transmitidas na rádio, povoadas de personagens planas, onde o protagonista tem sempre a mesma aparência física, diferindo apenas no nome. Tanto as personagens como o estilo narrativo de Pedro Camacho exibem os mesmos preconceitos e emitem os mesmos juízos de valor em todas as estórias ques acabam por se fundir, confundir e misturar numa amálgama incompreensível até mesmo para os ouvintes mais fiéis que assistem religiosamente a todas as emissões.

O escrevedor Camacho é um ser quase analfabeto que, apesar de não conseguir produzir textos muito elaborados, consegue torná-los cativantes para a maioria do público – mesmo aquele considerado intelectual - que consegue ver nas cenas mais rocambolescas uma deliciosa comédia, apimentada por um humor incisivo e, simultaneamente, ingénuo.
Camacho acaba por sucumbir a um esgotamento nervoso, vítima de excesso de trabalho e falta de tempo para reciclar a informação e buscar novas fontes de inspiração.

O drama de Pedro Camacho é desenvolvido e rematado por Varguitas o qual, dentro do próprio romance, “agarra” no novelo caótico das estórias de Camacho para as desenvolver, tornando-se a partir de então, um verdadeiro escritor.

Audácia, ficção e realidade que se misturam e marcam a génese de uma estrela no mundo das letras.


Cláudia de Sousa Dias