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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, May 31, 2008

Babel Babilónia” de Nelson Oliveira


Babel Babilónia é uma obra que podemos considerar como uma novela atípica, uma vez que é constituída por vários segmentos – ou fragmentos –, pequenas estórias, as quais, apesar de poderem ser lidas separadamente, formam, na realidade, uma sequência cronológica.
O denominador comum, presente em todos estes fragmentos, que nos surgem sob a forma de pequenas estórias do quotidiano, é o conflito baseado numa dicotomia composta pelo trinómio Progresso-Ciência-Tecnologia
versus Natureza-Biologia-Mundo Vegetal. O final é aberto deixando-nos a possibilidade de, a esta narrativa, serem acrescentados novos episódios…

As situações do quotidiano descritas em Babel Babilónia têm, como cenário, uma pequena cidade rural , no interior do estado de São Paulo, onde a erecção de uma torre de várias dezenas de andares irá gerar acerada controvérsia, divisão de opiniões e, mesmo, algumas reacções que podemos, sem sombra de dúvida, classificar de extremistas.

Face à problemática da verticalização e das vantagens imediatas que este fenómeno normalmente associado ao crescimento urbano implica, as discussões germinam, mais ou menos acaloradas, em todas as classes sociais e níveis etários. As opiniões dividem-se entre aqueles que defendem o avanço da tecnologia e a emancipação da Natureza com base na rejeição da Biologia, isto é, que apoiam incondicionalmente a urbanização e a disseminação de uma cultura essencialmente urbana e tecnológica e daqueles que Luiz Roberto Guedes, autor do prefácio da obra, «valorizam a adaptação espiritual à inércia plena» do Mundo Vegetal, onde se pode talvez encontrar uma certa influência do budismo-taoísmo pela «busca do equilíbrio na eternidade do momento presente» (Sic).

Segundo o próprio Nelson Oliveira, na Grande Metrópole não falamos todos a mesma língua quando o tema é o chamado “Progresso Humano” no seu vector destrutivo.
Entre a pressão dos lobbies, a favor da verticalização, e a reacção da ala mais crítica da população que defende a manutenção dos padrões de qualidade de vida para a maioria dos cidadãos – baseada num planeamento urbano cuidado, de forma a impedir a excessiva concentração demográfica na mesma área, numa tentativa de minimizar as assimetrias no que toca à densidade populacional e consequente degradação do meio pela contaminação das águas, emissão excessiva de monóxido de carbono e outros factores que coloquem em perigo a saúde pública. O aumento da criminalidade é outra das consequências associadas ao fenómeno assim como situações de exclusão social devido à discrepância entre as reais qualificações da mão-de-obra existente e as exigências – irreais, para não dizer utópicas – do mercado de trabalho. Tudo isto acaba por desembocar em conflitos mais ou menos graves, casos dramáticos de pobreza, em violento contraste com uma opulência que atinge os limites da obscenidade.

A protagonista da trama central é Beatriz, que aparece em diferentes episódios e tem uma relação algo mística com a Natureza, como se esta fosse uma entidade humana. Aliás, logo no primeiro episódio, no mundo que rodeia a Beatriz, ainda criança, a Natureza e a Biologia sobrepõem-se ainda à Cultura, num tempo que corresponde, de certa forma, à idade do ouro da jovem protagonista que habita um paraíso protegido. Mas Beatriz não resiste a espreitar o que se encontra para lá do Muro…
E, para lá do Muro está um rio que traz na corrente a cultura urbana em cujas águas alterosas o pai perde a vida….O rio traz sedimentos da cultura da metrópole como a deificação do Trabalho, a voracidade do Dinheiro a Ganância, que se infiltram insidiosamente pelas fendas do muro, pelo concreto. Mas por entre as fendas espreitam, também, os líquenes, os musgos, a vegetação apodrecida, a terra o húmus, o odor do próprio rio…que tudo leva com ele: a vida, os olhos do Afogado, comidos pelos peixes…

No final, o ser humano converte-se em alimento da biologia Nemésica que reclama o terreno que lhe foi roubado…
A última cena é uma espécie de ritual antigo, a fazer lembrar os Mistérios de Elêusis, que Luiz Roberto Guedes apelida de «uma integração alquímica, órfica, mágica, consequência da batalha final entre conservadores e progressistas.

Mas em Babel Babilónia existem, também outras personagens, protagonistas de outras estórias, paralelas à de Beatriz, que se relacionam directa ou indirectamente com ela, como Marlene e Jorge – dois jovens corruptos e ambiciosos, sendo a primeira suficientemente inteligente para se manter na sombra, utilizando a camuflagem dada por uma profissão que lhe confere respeitabilidade e o segundo, mais ingénuo, mas com uma tendência bastante vincada para dramatizar a situação e para a auto-indulgência. Por outro lado, o comodismo leva-o a optar sempre pelo caminho mais fácil para atingir os objectivos a que se propõe. Manifesta igualmente uma recusa irrevogável em entender que é exactamente pela inércia, quer do pensamento quer da acção, que o círculo se fecha à sua volta levando-o a afundar-se, cada vez mais, num charco de areias movediças como o sub mundo do Crime…

Há, também Onofre, um idoso saudosista, que revive a infância espelhada no brilho dos olhos que observam a energia despendida pelas crianças que jogam futebol na rua. No entanto, já só os olhos conseguem acompanhar as correrias.
A linguagem utilizada pelo narrador é idêntica à de um locutor de rádio ao fazer o relato de um jogo de futebol, usando o mesmo tom coloquial e interjeições, tal como a gíria do desporto mesclada com o calão dos miúdos de rua…

Os gatos vadios como Sansão e Dalila são protagonistas a mais uma história paralela à de Beatriz, após invadir o quintal da casa da jovem. Esta, desde pequena, tem vindo a desenvolver uma forma muito especial de comportamento anti-social, depois do desaparecimento do pai, uma vítima do chamado Progresso. Beatriz deseja humilhar os outros exibindo uma “perfeição” algo pedante, atirando-lhes à cara uma superioridade que conjuga com uma indiferença felina, superior à do casal de gatos vadios que habita temporariamente o seu quintal…

Mas o episódio mais violento da obra consegue ser aquele em que duas crianças discutam selvaticamente acerca da verticalização. As duas defendem pontos de vista opostos, inculcados pelos pais, como se percebe pelo discurso de ambas no episódio Corrida de Elevador.
Já o proxenetismo e o sexo utilizado como suborno por alguém que aproveita um pretexto para usufruir do prazer de ultrapassar os limites compõem uma estória onde personagens como Gustavo e Débora são meros brinquedos, manipuláveis e substituíveis, traduz a desumanização progressiva que a construção da selva urbana acarreta e onde os fins, aliados ao individualismo na sua forma mais extrema, justificam os meios e a fragilidade humana de uns dá lugar ao cinismo oportunista de outros.

Beatriz surge, novamente, cada vez com traços mais evidentes de desenvolvimento de personalidade anti-social, a fechar-se cada vez mais no seu mundo, onde os outros contam cada vez menos. A jovem age sempre de uma forma algo despótica, como se fosse ela, apenas e só, no centro do seu mundo, fechada na torre de marfim, imersa no próprio narcisismo. Neste episódio há, no entanto, um encontro entre misticismo, a tocar na fronteira do realismo mágico, com o racionalismo cartesiano, dois pontos de vista que se digladiam, mais uma vez, numa luta onde não há lugar para vencedores nem vencidos…

Depois, existem crianças como Dudu que desaparecem no Lusco-Fusco, a ilustrar a ineficácia e ineficiência das forças da ordem. O destino de Dudu só será conhecido mais tarde, ao surgir de uma forma totalmente inesperada e já crescido, noutro episódio.

Aqui termina a primeira parte da obra, intitulada de Anunciação, onde é propagada a mensagem, isto é, a divulgação de uma mudança a ser introduzida e as diferentes reacções que lhe correspondem, incluindo expectativas e medos relativamente às pequenas alterações, já em curso, no quotidiano da pequena comunidade.

Na segunda parte desta alegoria, a Mudança está a ser operada a todo o vapor.

A primeira deste conjunto de cenas de transformação do quotidiano é, aparentemente um banal diálogo entre mãe e filha, cheio de repetições, onde se nota a ausências de nomes próprios assim como de um verdadeiro diálogo entre dois dos intervenientes: os pais da jovem que ajuda a mãe a preparar o jantar. A jovem tem a única a função, em sentido restrito, de verificar se o pai toma os remédios. Trata-se de um lar onde a filha é, também, e num sentido mais amplo, a única ponte a unir o casal e onde paira a sombra de um irmão ausente, acerca do qual se percebe estar a enveredar por um caminho que cada vez mais o afasta da família. A metástase do individualismo, gélido e cortante, acaba por diluir cada vez mais os laços familiares empurrando os seus membros para uma inevitável dissolução.

Zen e a arte de ocupar os espaços vazios trata da estória dos já mencionados Jorge e Marlene – uma estória que se desenvolve única e exclusivamente através de uma troca de e-mails, onde a insistência de Jorge choca com a indiferença e frieza de Marlene. Jorge refugia-se no passado recusando-se a perceber que o laço que os unia de quebrou definitivamente.

A violência extrema de crimes como sequestros, a impunidade, as vítimas que pagam pelos erros de terceiros proliferam em estórias como Retaliação. Ou como na do “gordo” Cácá, nascido em berço de ouro, na elite da grande metrópole, cujo ventre proeminente, físico deformado e precocemente envelhecido pela lassidão e por uma voracidade desmedida, transformam-no num ser mal-amado, apesar de rico. Cácá sonha com mulheres belas ou jovens púberes, mas tem de se limitar aos condicionalismos dos “feios”, “porcos” e pouco amados. A falta de disciplina e pouco afecto com que é brindado desde a infância ajudam ao desenvolvimento de uma faceta que em nada lhe ajuda a regredir o problema que se traduz numa tendência para ser “o bombo da festa”. A resposta é sempre a inércia, a indiferença, a escolha do caminho mais fácil. Mesmo quando se trata de ajudar alguém. Para quê afinal? Alguém, algum dia, faria o mesmo por ele? Se calhar, nem a própria mãe…

A visão do Autor acerca do apocalipse que é a invasão da pequena cidade rural pela Grande Babel começa com o projecto de construção do prédio de altura monstruosa, mas só se desenvolve na altura da sua implementação no terreno, o que desencadeia um verdadeiro Armaggedon ou o emergir de uma Nova Atlântida, marcada pela fatalidade…

Marlene surge novamente, a viver na sombra, mascarada sob a camuflagem perfeita de executiva perfeita, convive diariamente com o medo constante de ser descoberta a sua vida secreta, o esqueleto que guarda dentro do armário que é a sua vida privada... É o arquétipo oposto de Beatriz, cuja soberba consiste numa exibição agressiva - e, em muitos casos ofensiva -, da própria integridade e o pior defeito: o orgulho desmedido face à própria perfeição, traduzida no cumprimento rigoroso de todos os princípios que defende, o que a coloca acima dos demais.

Na estória Para onde vai a luz quando o medo acende o escuro as personagens da obra vão aparecendo sucessivamente à medida que se apercebem das consequências de uma decisão que se revelou nefasta, acabando por serem fulminadas com a Revelação da fúria nemésica da Natureza que decide impor a sua vontade aos homens.
O prédio foi erigido, o circo está armado e a sorte, lançada. O círio, esse arderá muito em breve.

Os últimos quatro mini-contos ou estórias formam como que um epílogo ao qual o Autor atribui o título de Redenção. Esta “redenção” é, nada mais nada menos do que o regresso do Homem às suas raízes biológicas e à fusão com o meio vegetal. Para tal recorre à imagem, do sacrifício de um ser imaculado, aumentando a dramaticidade através de um ritual a fazer lembrar os povos antigos da Arcádia…

A prosa de Nelson Oliveira é, sobretudo, um manifesto contra à urbanização e a destruição do meio ambiente assim como a progressiva degradação da qualidade de vida à escala Global. Tudo para usufruto de uma minoria de sátrapas a alta finança e das grandes multinacionais…
Ao lermos as frases deste Autor, carregadas de um pessimismo nihilista no que toca à crença da evolução dos seres humanos como pessoas – ao lermos Babel Babilónia – percebemos que o Autor pensa que, apesar dos progressos operados pela espécie humana na área da tecnologia, economia e cultura, o Homem não aprende com os erros. Por outro lado, o Autor acredita no romantismo da pequena minoria que tenta remar contra a maré. Dos que lutam contra os moinhos de vento. Os últimos textos da obra remetem-nos para a cegueira humana leva, invariavelmente, a que grupos extremistas, adversários da mesma guerra, esbatam, cada vez mais, as fronteiras entre o bem e o mal. Uma tendência que é, sempre foi, o grande flagelo da humanidade. Que aniquila o homem como ser social.

Babel Babilónia é, por tudo o que foi dito, o manifesto de um agnosticismo pagão ou se quisermos anti-cristão, pelas frequentes intertextualidades com a Bíblia, que visa destruir a ditadura de um Eu que já não consegue suportar o olhar do Outro.

Cláudia de Sousa Dias

Thursday, May 15, 2008

"À Procura do Imperador" de Roberto Pazzi (Dom Quixote)


Conhecido, durante muito tempo, apenas como poeta, Roberto Pazzi publica o seu primeiro romance em 1985, precisamente Á Procura do Imperador, o qual virá a obter o Prémio Campiello. Publica, ainda e posteriormente, mais dois romances intitulados La Principessa e il Drago (1986) e La Malatia del Tempo (1987).

À procura do Imperador é o relato do percurso do regimento Preobajenski, o qual, perdido na Sibéria durante a Revolução, tem a seu cargo a missão de procurar o Czar, entretanto em prisão domiciliária em Iecaterinemburgo, cidade mineira dos Urais, nos confins do Império, junto à fronteira asiática…

No prefácio, o ensaísta Giovanni Raboni comenta o facto de o Autor sempre ter sentido, desde tenra idade, um estranho fascínio pelo destino da família Romanov, episódio histórico que “sempre influenciou, de uma forma mais ou menos obscura, as raízes da suas imaginação” (sic). De acordo com Raboni, é após uma viagem efectuada à então União Soviética onde visita a Residência Imperial que Pazzi “é surpreendido por uma acutilante e inexplicável sensação de dejá vu” (sic) provavelmente fruto de reminiscências históricas, alimentadas e ampliadas por uma fértil imaginação e, simultaneamente, por uma forte sensibilidade, que o leva a constituir “o impulso originário de uma invenção romanesca (…); uma espécie de curto-circuito, uma identificação fulmínea e fatal entre narrador e narrado” (sic).

À Procura do Imperador é, sem sombra de dúvida, “um romance-obsessão (…) e é um romance “convencional”, na sua acepção mais nobre” (sic), onde “uma ininterrupta e intensa actividade mental cindiu em duas a obsessão” (sic), e onde está patente, também, a divisão da estrutura narrativa em dois planos distintos, formando duas narrativas paralelas. Uma delas espelha o fascínio claustrofóbico da prisão ou de um exílio em prisão domiciliária na cidade de Iecaterinemburgo, perdida nos confis dos Urais; e a outra a sedução através do fascínio aventureiro-picaresco da Viagem, o sonho da procura dos espaços incertos e hostis que é a a odisseia siberiana do Exército Branco, leal ao Czar. Raboni afirma serem estes dois planos “duas formas típicas do imaginário romanesco que Pazzi soube conjugar admiravelmente (…) por terem renascido dentro de si a partir da mesma estranha emoção”
Trata-se de duas histórias marginais, dois finais dramáticos, para não dizer marcados pela fatalidade. Duas causas perdidas, as quais, ainda de acordo com Raboni, “são sempre da predilecção dos poetas”.

Personagens

Em À procura do Imperador encontramos personagens que representam não só figuras, históricas, mas também personagens colectivas. Entre estas, duas em concreto, são representativas de duas épocas distintas e de dois sistemas sociais em conflito: o Exército Branco – o baluarte da Velha Rússia que mantém uma estrutura social ainda com todas as componentes do feudalismo – sobretudo nas relações entre camponeses e aristocratas latifundiários – mas que começa já a dar sinais de entrada numa nova era - uma mescla de Iluminismo com Revolução Industrial – e as forças revolucionárias do Exército Vermelho que reivindicam uma sociedade igualitária de inspiração marxista com o objectivo de conseguir melhores condições de vida para a classe operária e camponesa. O governo do Czar é derrubado e Lenine torna-se o novo “czar”, numa altura em que começam a ser lançadas as bases para o regime que vem a ser a URSS.

Mas nesta obra, o factor mais importante é o Drama e o crescente avolumar da Tragédia que atinge o seu ponto culminante com a chegada daquilo que resta do Exército Branco a Iecaterinemburgo.
A saga do regimento Preobajensky, chefiado pelo príncipe Ypsilante faz lembrar um pouco o episódio das Termópilas por se tratar da luta por uma causa, que se sabe perdida desde o início. Mesmo assim, o Príncipe persiste na estratégia desesperada que sabe ser praticamente um suicídio, por falta de alternativa ou de informações coerentes e fidedignas. A travessia da Sibéria, a partir da cidade de Vaquitino – cidade onde o telégrafo já não funciona há vários meses, e onde as notícias chegam deturpadas e desfasadas no tempo – em pleno Inverno, em direcção a Tobolsk, a cidade onde se julga estar preso o Imperador. A cruzada através do deserto siberiano lembra a viagem de Ulisses cuja travessia do Mediterrâneo, recheada de peripécias, cheia de imprevistos, tem muitas semelhanças com a saga destes jovens soldados, cuja dependência do álcool é uma porta aberta para todo o tipo de alucinações, delírios e comportamentos imprevisíveis. Para além do o frio, também o isolamento e a falta de conforto muito contribuíram para o deteriorar da sanidade mental da maior parte dos soldados. Na realidade, “Vaquitino era de tal modo distante que os mercadores Tártaros faziam sempre testamento ao partirem para lá, na Primavera”. A odisseia dos argonautas siberianos ao atravessar o frio impiedoso do Inverno, numa paisagem que tem tanto de bela – com o seu branco infinito, omnipresente e resplandecente na luminosidade da Lua e das estrelas – como de opressiva, é geradora de um sentimento colectivo de desesperança, onde o único antídoto usado no combate ao frio, à estagnação da circulação sanguínea e à depressão, reside nas reservas de vodka, cuidadosamente racionada.

O próprio príncipe Ypsilante tem sérias dúvidas quanto à veracidade das informações obtidas em Vaquitino, acerca do paradeiro do Czar. Dúvidas essas que consegue cuidadosamente ocultar do exército, de forma a impedir rebelião. Ypsilante decide, assim, insistir na procura do seu Imperador, através do deserto siberiano, numa última e cega esperança de preservar o mundo onde sempre viveu. Por que a Rússia do presente que está a viver já não é “a sua”, nem a dos seus soldados. È a dos Sovietes, dos Burocratas do Exército Vermelho.
Os soldados Brancos começam por atravessar o rigoroso Inverno siberiano, passando depois à violenta e inóspita primavera, cujo degelo transforma o terreno num mar de lama e a marcha num pesadelo. Segue-se-lhe a beleza fulgurante do Verão das imediações do Círculo Polar Árctico. Entretanto, a Morte vai ceifando impiedosa e inexoravelmente as hostes, cada vez mais débeis, dizimando um exército que não trava uma única batalha. Salvo com os elementos da Natureza. Como por exemplo, a profundidade misteriosa da floresta, onde se esconde o fantasmal tigre siberiano, já próxima dos Urais, aterroriza os soldados, divide opiniões dificultando uma coordenação eficaz. Alguns aventuram-se apenas pela segurança que lhes transmite o conhecimento da região do pequeno mongol, experiente na caça ao tigre um conhecimento ancestral, transmitido pelos anciãos da tribo de onde é originário.
Passam Tobolsk, onde constatam desanimados não se encontrar lá a família imperial, como adivinhava já Ypsilante. São, já, pouquíssimos os soldados que conseguem chegar a Iecaterinemburgo, esfarrapados e sem condições de defenderem seja o que for. Para além de terem também chegado demasiado tarde.

Desde o início, que na prisão domiciliária, em casa do Engenheiro Ipatiev, na cidade mineira de Catarina a Grande, os Romanov aguardam o salvamento heróico pelo Exército Perdido, mas à medida que os meses passam a esperança vai-se esvaindo pouco a pouco, tal como os sonhos. Enquanto isso, um contingente anormal de várias espécies de pássaros, bandos e bandos de aves de várias espécies vão chegando sucessivamente à cidade e rodeando o palácio Ipatiev, numa estranha migração fora de época.

Pássaros em vez de soldados.
Tudo leva a crer tratar-se de uma alegoria-personificação, utilizada pelo Autor, a simbolizar as almas que se libertam e cujas asas transpõem todos os obstáculos, naturais e humanos, até chegar ao Imperador, atraídas por ele como por um íman. Para a sua águia imperial. A rainha das aves que pousa no telhado do palácio, pouco antes de chegarem os últimos elementos do exército do Czar. O César da Terceira Roma. A Águia levanta voo, finalmente, após a morte do Imperador.
Este tipo de alegoria confere ao romance uma nota de realismo mágico e fá-lo ultrapassar as fronteiras do convencional romance histórico. Um recurso que confere à trama uma aura de drama que se torna sublime, impressionante, porque emanada directamente da veia poética do Autor.

Nos dias que antecedem a sua morte, Nicolau II recorda o passado, analisa-o à luz dos acontecimentos recentes que puseram fim à monarquia e retira lucidez e coragem dessas recordações, ao mesmo tempo que coloca de parte todas as loucas esperanças de que as coisas voltem a ser como antes.
A Czarina e as filhas afundam-se, pelo contrário e cada vez mais, em ilusões e falsas esperanças.

A Czarina Alexandra, conservadora e saudosista dos privilégios reais recusa-se a aceitar a realidade ao enfrentar os seus carcereiros com sobranceria. Por outro lado, o sofrimento do pequeno Czarevitch, hemofílico, sensível e cada vez mais débil, flagela-a com uma angústia que cresce a uma velocidade galopante. Refugia-se na religião como analgésico, relembrando com saudade o mago Rasputine, o monge dissidente, odiado pelo Czar, que percebia nele um charlatão, sedento de poder.

Por outro lado, o maquiavelismo de Tatiana, a mais rebelde das filhas e, simultaneamente, a mais frágil, procura na magia e nos ensinamentos do Mestre a fuga ao pesadelo do seu quotidiano, leva-a a encarar com desprezo a candura dos irmãos, responsabilizando, simultaneamente o pai pelo sucedido à família e ao seu mentor, Rasputine.
Já a empática Olga tenta sempre apaziguar as angústias de todos enquanto que a beleza e vivacidade de Maria, a candura de Anastasia, a debilidade e a alma sensível de Alexis deixam no ar uma impressão de tragédia, como se estivéssemos no meio da trama da Ilíada a assistir ao destino de Ifigénia, aos dotes visionários de Cassandra, à coragem de Heitor, ao fatalismo conformista de Príamo e Hécuba.
A casa Ipatiev é isso mesmo. A cidadela de Tróia sitiada e, posteriormente, imolada pelos invasores – o Exército Vermelho.

O presságio de morte é anunciado pela árvore raquítica que dá à luz um fruto doente – uma romã, envenenada, provavelmente, pela jazida de minério radioactivo - à semelhança do príncipe Alexis, o herdeiro de sangue doente como os grãos vermelhos contaminados do fruto que liberta a família real da humilhação de ser exterminada pelas mãos dos seus carrascos…

Um final belo, trágico, cheio de poesia, que poderia, muito bem ter inspirado o autor do guião de A Queda de Hitler e do Terceiro Reich, numa das suas últimas cenas…

Uma recriação de um poeta e romancista italiano, do final do século XX, daquilo que poderia muito bem ter sido os últimos dias dos Romanov.

Uma saga que mergulha directamente no berço da Grande Literatura da civilização ocidental: as obras dos antigos mestres gregos.

Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, May 06, 2008

“Os Mistérios de Havana” de Zoe Valdés (Dom Quixote)


Zoe Valdés é natural de Havana, nascida em 1959 e vive, actualmente, em Paris. Frequentou a Universidade de La Habana, onde estudou Filologia, tendo colaborado com a UNESCO na Delegação de Cuba e no Gabinete Cultural da Embaixada de Cuba em Paris. Foi guionista de cinema e subdirectora da Revista de Cine Cubano no Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica até Dezembro de 1994.

Até aí tinha já publicado: dois volumes de poesia –
Respuesta para vivir e Todo para una Sombra –, a colectânea de contos Traficantes de Belleza e os romances La nada quotidiana, Ira de Angeles e La Hija del Embajador, este último vencedor do Prémio Novela Breve Juan March Cencillo, 1996. Publicou, ainda, Te dí la vida entera - finalista do Prémio Planeta, 1996 e Café Nostalgía. Em Portugal, foram publicados os romances Querido Primeiro Amor e Milagre em Miami.

Mistérios de Havana é, por sua vez, uma compilação de contos e lendas do imaginário tradicional cubano, ou então, de figuras carismáticas retiradas da História de Cuba, homens e mulheres que deixaram a sua marca na memória colectiva e que foram, por sua vez, transformados em mito por via da tradição oral.

Zoe Valdés recria, desta forma, muitos destes episódios transformados em lenda, após serem recontados ao longo de sucessivas gerações correspondendo, cada um deles a um cenário da capital cubana quer antes quer depois da Revolução, dando lugar a vários paralelismos e analogias entre épocas diferentes e encontrando padrões de comportamento recorrentes que se vão repetindo ao longo do tempo e que caracterizam a maneira de ser do povo
habanero.

Sonhos, visões, premonições, cartas, biografias, relatos são o ponto de partida para várias estórias, (re)construídas, na maior parte das vezes, a partir de documentos cuidadosamente guardados ou de depoimentos de testemunhas oculares que inspiraram a Autora, a qual, a partir daí, parte para a montagem das peças do puzzlle que engloba vários episódios históricos da cidade de Havana, polvilhando-os com uma pitada de realismo mágico, misturado com um pouco de ficção como acontece na belíssima estória intitulada A Pena de José Martí.

O objectivo da Autora é o de mostrar a História e a Cultura cubana do ponto de vista poético e fazer o levantamento de lendas e tradições às quaisl adiciona a componente ficcional.

Jorge Manach, cronista habanero a quem a autora dedica a obra, afirma que "o tradicionalismo mais não é que uma nostalgia, uma atitude estética para com o passado…”.

Zoe Valdés publicou o presente livro na Colômbia e depois em Espanha, encontrando sérias dificuldades em conseguir a autorização da sua publicação em Cuba, o que não surpreende ninguém que percorra as páginas de Os Mistérios de Havana, visto que alguns dos episódios contados, apesar de conterem uma forte dose de ficção, adquirem um teor crítico face ao regime político de Fidel Castro, tornam o livro assaz inconveniente, para um chefe de estado que não admite que a sua autoridade seja posta em causa, omitindo a todo o custo toda e qualquer falha ou contradição decorrente das suas decisões políticas menos felizes.

Mas também os amores trágicos, os choques culturais provenientes do colonialismo, em estórias como Habanaguana – uma possível explicação, ou várias, para o nome da capital cubana – ou a prepotência de uma classe dominante, patente na frieza com que se executa um crime teor passional perpetrado com a precisão e a minúcia dos movimentos de um cortador de carnes verdes, as origens multiraciais dos ritmos da música cubana, a beleza fatal de duas crioulas matadoras, são outros dos temas escolhidos e que inspiram a fertilíssima imaginação e criatividade de Zoe Valdés. Assim como a figura de um esteta, homem das lides políticas, crítico literário e de moda, bem como as suas paixões, que servem, também, de motivo de inspiração para um conto um pouco autobiográfico onde o exílio surge como solução face à incompatibilidade entre a livre expressão e o desenvolvimento intelectual dentro de um regime autocrático – apesar de a estória se passar no século XIX – onde domina um cenário propenso à criação de mal-entendidos, onde vigora um regime censório. Mesmo assim há, ainda, espaço para o nascimento de uma amizade que consegue atravessar a distância de um oceano.

As lendas continuam a ser desfiadas como as contas de um rosário.

Uma deleas é a decorrente do misterioso desaparecimento de uma criança que dá origem às hipóteses mais mirabolantes, o mesmo acontecendo com a presença de fantasmas e misteriosas aparições – mistura de elementos factuais com ficção e sonho, têm também lugar nos Mistérios… de Valdés.

É desta forma que nos apercebemos que as arbitrariedades que tiveram lugar no último quartel do século XIX continuam a marcar presença ao longo de todo o século XX como faz notar o narrador de Os oito Estudantes de Medicina.

O erotismo também marca a sua presença, sobretudo em estórias como A condessa Crioula, onde se fala de dois amantes intelectuais que mantém a paixão na sombra, devido aos respectivos casamentos de conveniência decretados pela família…uma conflito entre a ética individual e a pseudo-moral familiar. Um tema recorrente no imaginário da Autora.

Também o abismo entre a lenda e a realidade dos factos, atestados por documentos históricos, mostra a acentuada “queda” para o romantismo, a tragédia, as paixões dramáticas e violentas em lendas como a de Santa Flora.
O idealismo romântico e o pronunciado gosto pela Utopia que envolve as relações afectivas são projectados em estórias como a do intelectual sonhador, de origem germânica, apaixonado por negras e mestiças de Cuba, pela comida local e pelo clima dos trópicos, como ilustra o sugestivo título O Barão Alemão da esquina da Rua dos Inquisidores com a Rua da Muralha.

A lenda do belo mulato de olhos verdes – Andrés Petit – dá-nos uma descrição física que se repete por várias vezes em personagens masculinas valdesianas detentoras de forte carisma sexual, a sugerir o ideal de beleza e sensualidade masculinas, presentes no imaginário da Autora e transportado para a sua escrita.
A estória do feiticeiro e curandeiro Andrés Petit deixa a dúvida no ar em relação às suas origens e morte, envolvidas em mistério, acerca das quais não há versão unânime. Fica assim, cristalizado para a posteridade, o carisma de um Rasputine cubano…

Os amores clandestinos da aristocrata e idealista Emília Casanova, do marido Eugéne, da crioula Cecília Valdés e do jornalista-escritor, Cirillo Villaverde, formam um quarteto invulgar cujas paixões momentâneas os levam, numa quente tarde de Verão, a ingressar nos prazeres do swing, são os quatro pilares de um conto de grande ousadia…

Sequem-se os poetas que caminham no limiar da lucidez e da loucura como no conto O Observador Invisível, a trágica estória de Juan Clemente Zenea e de Adah Menkhen, numa terra e num lugar onde as vozes visionárias dos poetas soam como as trombetas do juízo final nos regimes despóticos, onde são, normalmente, encarceradas e abafadas atrás dos muros das prisões…

Dos Mistérios… habaneros fazem parte, também, estórias contadas no feminino, como a da precoce e sobredotada menina-poeta, Juana Borrero, que compôs um brilhante texto erótico com apenas doze anos de idade e que a Autora enquadra num conto sublime intitulado de A Virgem Triste.

Mas dos Mistérios de Havana fazem parte, também, estórias contadas exclusivamente no masculino. Como a da paixão impossível do poeta pelo general, cuja marca principal é a da intensa electricidade expressa num erotismo contido, mais sugerido do que explícito, num requintado quarto do Hotel Inglaterra, à média luz…

Outra estranha e surpreendente forma de (d)escrever o erotismo é-nos revelada através da inverosímil afinidade entre uma aristocrata e uma estranha turba de macacos cujo amor à dona permanece intacto e fiel até à morte, numa estranha alegoria de um amor que supera as diferenças de carácter intelectual.

Por outro lado, a importância das afinidades intelectuais é, também, destacada numa estória de amizade, onde duas mulheres de inteligência invulgar, embora provenientes de épocas e origens sociais diferentes, trocam impressões acerca daquilo que sentem relativamente à problemática que afecta a vida de ambas: o exílio. Uma, no passado, e outra, num futuro muito próximo.

Os pregões tradicionais do início do século XIX, proibidos pelo regime de El Comandante-en-Jefe, como El Manisero e a presença das notas sopradas pela flauta de Pã do amolador de navalhas, são também motivos para elaborar uma estória assim como a hipocrisia de um estado que tenta ocultar uma das principais chagas sociais que pulula nas ruas de Havana: a miséria e a crueldade indiferente do Estado para com aqueles que sofrem na pele as consequências dessa carestia – sobretudo as crianças – na estória Marta Abreu visita o Paseo del Prado,72.

Da mesma forma, a invulgar circunstância de uma mulher hermafrodita que hesita entre duas orientações sexuais opostas em Paulina, a grande, no Teatro de Shangai, faz parte do insólito que povoa a o imaginário colectivo das gentes de Cuba e dos Mistérios Valdesianos.


Recheada de realismo mágico é, tal como A Pena de José Martí, a lenda de um feitiço de beleza e juventude no conto intitulado Catalina e a Rosa de Carne assim como o insustentável peso da fatalidade na pequena estória a que a Autora dá o título de A Milagreira.
Após o drama segue-se um divertido episódio que descreve uma hilariante confusão num funeral, atribuída ao carácter brincalhão do defunto, cujo espírito se supõe andar pelas imediações a semear a discórdia…
Segue-se uma estória de guerra civil, emanada do sub mundo ligado à prostituição, onde dois bandos rivais se defrontam pelo domínio do território. O conflito estala entre Yarini e Radamés, dois proxenetas de bairros vizinhos, desembocando numa rixa monumental que culmina na batalha de San Quintín entre franceses e cubanos…tudo por causa das putas…(sic).

Depois é o fantasma de Jorge Manach que aparece a uma menina, vestindo a pele de Lujan, a sua criação literária, o seu alter-ego, num sonho erótico a diluir as fronteiras entre passado e presente…

A síndrome do exílio, a nostalgia da cidade e a saudade da família continuam a guiar a pena de Zoe Valdês no relato O Peregrino Imóvel, numa crítica (in)directa a Fidel.

São muitas as farpas e virotes apontados quer de forma explicita, quer nas entrelinhas ao Comediante-en-jefe (sic), tal como é satiricamente parodiado Fidel Castro nalguns dos seus relatos mais violentos. Verificámos que, na realidade, à medida que os mistérios e as lendas da cidade de Havana vão avançando no tempo, o teor da escrita de Valdés vai-se tornando progressivamente mais violento e menos romântico: a linguagem apaixonada e sonhadora, contida nas frases dos primeiros textos que envolve as personagens na neblina do Tempo, neblina essa que tempera os sentimentos mais violentos, vai dando lugar a um discurso transbordante de fel, cuja acidez é ampliada pelo calor esturricante do eterno verão cubano, onde as variações de temperatura praticamente não existem ao longo do ano.
A alegoria da Miséria prossegue, encarnada num mendigo que julga ser a reencarnação de Vítor Hugo – um “miserável”. Um retrato contundente daquilo em que se transformaram as ruas de Havana, ou melhor, da Havana à qual não têm acesso os turistas – uma cidade suja e faminta que tenta passar uma falsa imagem de sofisticação, é-nos dada a conhecer em O Cavalheiro de Paris.
Menos directa e mais subtil, o conto Flor dedicado a uma insólita poetisa, a mais nova dos irmãos Loynez, dotada de tal sentido de independência que não hesita em apagar a própria beleza para não ser objecto de disputa ou posse masculina. Uma atitude que é confundida com loucura, como geralmente acontece com aqueles que defendem as próprias convicções entrando em choque com as normas de conduta social em vigor ou quando essas mesmas convicções entram em conflito com a opinião da maioria.
Por seu lado, Carlos Manuel, irmão de Flor, poeta também, revela uma acentuada tendência para a auto-destruição, enquanto que Enrique, o outro irmão, sofre de fotofobia renegando a luz e assumindo-se como o poeta apaixonando pela Noite.
Menos insólita mas igualmente pouco verosímil é a lenda da dançarina de rumba Alicia Paula e um suposto exílio da mesma com o sedutor Errol Flynn.
Já o despudor, presente no conto A Chinesa, é uma machadada no tradicional machismo latino, introduzida no imaginário cubano, através de uma curiosa inversão de papéis - num conto cheio de humor onde uma mendiga assedia violentamente os homens que se cruzam com ela na rua.
Também o mito do boxeur habanero de Kid Chocolate pôs-te K.O. exibe o talento para a efabulação do povo cubano.
A estórias continuam com os relatos dos excluídos, enlouquecidos e miseráveis que deambulam pelas ruas de Havana, enfatizando a hipocrisia de todo um regime como em O Equilibrista dos Contentores ou em A Marquesa do Tencent – esta a história de uma anciã, pateticamente aprisionada no passado. A crítica social, impertinente e pícara, d’As Anedotas de Pepito – a fazerem lembrar o “Joãozinho” português – que se serve da sua suposta inocência para parodiar descaradamente o regime, é um dos relatos mais virulentos de toda a obra.
Mas é com alegoria da mais grotesca Miséria, da Fome e da Sede de O Pior dos Verões que Valdés atinge um grau de violência na escrita que raia a obscenidade.

Por último, a autora finaliza este conjunto de estórias com dois relatos satíricos cujo intuito seria o de exibir a mediocridade dos falsos intelectuais que vêem em Miami o paraísos das suas ocas vaidades. Enquanto isso, a narradora sonha, pelo contrário, com a fusão entre a Havana natal com o alegre veaudeville a evocar a belle époque da capital francesa preferindo, de longe, a sua fantasia à boçalidade americana.


Os Mistérios de Havana são, portanto, um conjunto de “fotografias” que atravessam mais de dois séculos de episódios insólitos, numa terra onde os tiranos não conseguem apagar a alegria de viver e a vivacidade de um povo, cuja liberdade de expressão só se consegue manifestar, na sua plenitude, na distância imposta pelo exílio…


Cláudia de Sousa Dias