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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, February 25, 2006

“Festas de Casamento” de Naguib Mahfuz (Difel)


Um intelectual egípcio, com graves dificuldades económicas, escreve uma peça de teatro intitulada de Festas de Casamento, inspirada nas pessoas que, com ele, partilham o quotidiano. E que é a chave para um estrondoso sucesso.

O êxito provém da curiosidade, relativamente às circunstâncias misteriosas da morte da esposa e do filho do autor da referida peça, Abbás Karam Yunis. Alguns acusam-no directamente, baseando-se na antipatia pessoal que lhe votam. Outros há que o defendem. A maior parte concede-lhe o benefício da dúvida.

Naguib Mafuz desfaz o mistério relatando os acontecimentos segundo os diferentes pontos de vista das principais personagens que intervêm na história: Abbás, o dramaturgo; Halima, a mãe; Karam, o pai; e Tariq Ramadán, o rival.

A voz de cada um destes narradores imprime um cunho diferente à história que é contada várias vezes. A trama circula, toda ela, à volta da concepção da peça de teatro Festas de Casamento e da especulação acerca do quanto ela tem de autobiográfico.
Cada qual imprime na sua própria narrativa, de acordo com aquilo que sabe, com a escassa informação a que tem acesso (cognições), a marca dos seus próprios traços de personalidade (componentes afectiva e comportamental das atitudes), colorindo-a com as suas próprias percepções e com a sua forma personalizada de interpretar a realidade.

Tariq Ramadán, o amante desprezado, dominado pelo ciúme e pela inveja, tenta incriminar o autor da peça pela morte da esposa e do filho, de forma a fazer coincidir o desenvolvimento da trama Festas de casamento com a vida real do autor – Abbás Karam Yunis.

O pai, Karam Yunis, ex ponto do teatro, dedica-se a actividades ilegais – jogo, tráfico de ópio. O cinismo é o traço principal da sua personalidade. A sua aparente aversão à hipocrisia leva-o a considerar-se como superior ao resto da humanidade. Acha-se mesmo o único capaz de se assumir tal como é, sem pretender agradar a ninguém e fazer às claras aquilo que os outros fazem de forma camuflada, a começar pelo próprio Governo.

No entanto, ao considerar a esposa Halima como hipócrita, tendo em conta o seu passado, é ele próprio quem cai na hipocrisia, persistindo na visão ultra conservadora relativa ao papel e comportamento sexual da mulher na sociedade.

Halima, mãe de Abbás, nutre um amor desmesurado pelo filho a par de uma confiança que raia a cegueira. Halima desmistifica a imagem de mulher fatal e até de prostituta, um estereótipo construído a partir das distorções efectuadas pelo seu próprio marido e por Tariq Ramadán, o Iago do romance.

Por último, o protagonista, Abbás Karam Yunis esclarece o mistério. Ele é um autodidacta que construiu a sua própria personalidade, ao longo de uma infância e adolescência, marcadas pela ausência dos pais.

Abbás recorre aos livros, os seus verdadeiros professores e socializadores, transforma-se num idealista. Idealismo esse que o coloca na fronteira do mundo oriental com o ocidental, recolhendo os aspectos mais positivos de ambos os mundos.

É ele que, como narrador omnisciente, porque fisicamente próximo e emocionalmente distante do mundo onde gravitam as restantes personagens, coloca as coisas nos seus devidos lugares.

O seu monólogo é destituído da intenção de convencer um possível interlocutor. Trata-se de um discurso reflexivo, totalmente voltado para si próprio. Desta forma, podemos avaliar as diferenças ocorridas no drama passional Festas de casamento, da banalidade do drama familiar de Abbás, marcado pelas dificuldades económicas típicas de um escritor pobre em início de carreira.

A descrição das ruas do Cairo, a corrupção generalizada a partir dos órgãos governamentais logo após o fim do conflito isrelo-egípcio no final da década de 1970, a acutilante crítica à desigualdade de oportunidades de quem quer triunfar escolhendo a via oposta à da corrupção, a chamada de atenção para o estatuto das mulheres numa sociedade muçulmana, mas ocidentalizada.

O autor foca, também, a dificuldade do público em estabelecer a fronteira entre a realidade e a ficção: “ O que é a virtude senão o símbolo enganador que se repete no teatro e na mesquita?”. Por isso, Abbás, o jovem dramaturgo, é “...um enigma obscuro(...)” na mente tortuosa do seu pai, Karam Yunis.

Abbás, serve-se da imagem estereotipada que tem que tem dos pais para compor as duas personagens principais da peça, estilizando-as. O pai aparece na peça como o grande vilão. A mãe como mulher fatal. Apesar da consciência das nuances que separam a vida real do teatro, o dramaturgo sente necessidade de enfatizar as características negativas pois, para ele, “a maldade é a fonte do teatro”. Abbás serve-se do Mal como instrumento pedagógico com objectivo de mudar o mundo e transformar mentalidades.

O pessimismo e a depressão por ausência de um contacto social satisfatório, é que o levam a refugiar-se na ficção.

Em palco “as belas palavras não se transformavam em factos, mas em imagens. Dançavam a dança da morte (triunfo do espírito) e eu aplaudia-os fora da pista.”

Os pais extinguem-lhe a energia anímica, incapacitando-o de tomar qualquer tipo de atitude. Na página 120, há uma intertextualidade com Édipo Rei de Sófocles quando afirma que gostaria de matar o pai para libertar a mãe. O pai, por sua vez, considera que o filho “sofre da doença da virtude”.

Tahyia, a esposa, arranca Abbás temporariamente da vida dedicada ao ideal que queria levar. Abbás não consegue viver uma vida normal, mergulhada no quotidiano da banalidade.

A morte de Tahyia e do filho são, na realidade, a libertação para o mundo do Sonho e da Arte.

O desejo de viver é, apesar de tudo, mais forte do que a atracção pelo abismo.

Um livro pertinente.

Pelo cruzamento das diferentes vias que convergem para a auto-estrada da Verdade.

De uma perspicácia impressionante.


Cláudia de Sousa Dias

Saturday, February 18, 2006

“As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai (Dom Quixote)


A acção decorre no coração do Império austro-húngaro, em plena viragem do século XIX para o século XX, numa altura em que a situação geopolítica da Europa Central atinge o ponto de ebulição que irá desembocar na Primeira Guerra Mundial, marcada pelo assassinato do herdeiro do Império – o arquiduque Francisco Ferdinando – por um estudante sérvio.

Este período convulsivo termina com a desagregação do mesmo Império e o desaparecimento de todo um mundo associado à mudança das regras a ele inerente.

O romance é construído a duas velocidades e o ritmo, marcado pela presença de dois narradores diferentes.

O narrador não participante descreve os episódios presentes – já depois da segunda grande guerra – algures na actual Eslováquia – pintando um cenário onde se movimentam as principais personagens, como se assistíssemos a um filme mudo, entrecortado por algumas cenas de diálogo, constituídas por frases lacónicas, mas carregadas de subentendidos.

O segundo narrador é, também, a personagem principal cujo discurso, simultaneamente introspectivo e retrospectivo, está intensamente povoado de detalhes tanto no que se refere aos espaços exteriores e interiores, quanto às emoções que o ambiente despoleta, não só no seu íntimo mas, também, nas atitudes exteriores das restantes personagens.

O principal objectivo deste segundo narrador é, precisamente, o de descodificar os motivos que levaram a determinados comportamentos, aparentemente inexplicáveis, por parte daqueles que lhes eram mais próximos.

Ao desejo obsessivo de descobrir os sentimentos ocultos atrás das acções que lhes estão vinculadas, está ligado uma intensa sede de vingança, erodida, sublimada pelo tempo, mas intacta, na sua essência.

A fome de Verdade é saciada após um longo jantar à luz de velas. Anfitrião e convidado permanecem à mesa tentando, o primeiro, reconstruir o passado, enquanto o segundo se limita a escutar sem, praticamente, intervir. O interpelado está na posição do psicanalista, que ouve o paciente no divã, enquanto as velas ardem até ao fim, iluminando todos os cantos obscuros da mente.
No final, resta apenas a cera derretida nos castiçais. A cera e a dúvida que se desvaneceu pelo calor libertado das velas azuis (azul, símbolo de liberdade) e pelo poder das memórias, cujo impacto evocativo se reflecte na expressão do convidado, como a chama da vela que acaba por iluminar todas as sombras da consciência que possam, ainda, subsistir.

O Autor dota este segundo narrador de uma capacidade soberana de pintar a casa palaciana com as cores e emoções sombrias de um mundo extinto.

A forma como Konrád – o amigo –, Krizstina – a esposa –, a mãe do general – e o protagonista – encontravam na música o refúgio ideal para as suas paixões, para a sua rebeldia, é o signo da fatalidade que marca o ritmo do romance.
A música era o lugar secreto que permitia às almas inconformistas serem aquilo que lhes era interdito pela sociedade. Onde o seu Eu recalcado encontrava lugar de expressão. Para Krizstina, era o lugar virtual onde poderia dar largas à sua fome de liberdade; para Konrád, o veículo que lhe permitia realizar o seu desejo de apreço social; para a mãe do general, a possibilidade de fuga à sensação de clausura, omnipresente, num palácio perdido no meio da floresta. A música distingue-os dos comuns mortais e proporciona-lhes momentos de fuga, grandes pequenos desvios, ao caminho que lhes foi predestinado. A música é a voz dissidente dos inadaptados, a expressão de revolta contra o sistema social. A música é a manifestação do individualismo. É por esse mesmo motivo que ela é olhada com desconfiança por uma sociedade militarizada onde o principal imperativo é obedecer. E é, também, por esse mesmo motivo que é considerada perigosa pelas personagens como o general e o seu pai, que estão perfeitamente integrados nesse mesmo sistema. O que não os impede que a admirarem, que seja amada ou mesmo idolatrada pela sociedade vienense...

Mas é a Música a ponte que une e, simultaneamente, traça a fronteira entre ambos os tipos de personagens presentes no romance.

Uma quarta personagem é Nini, a ama do general. É o oposto dos dois outros grandes rebeldes – Konrád e Krizstina. Nini é alguém que se enquadra perfeitamente naquele mundo, em vias de extinção, que é o Império Austro-Húngaro. É a alma gémea do general quanto à forma de exprimir os afectos. E mais: Nini é não só a alma do palácio, mas uma guardiã do lar, aquela que mantém aceso o fogo de Vesta, sem o qual as salas do palácio ficam como que transformadas em túmulos. A casa revive à passagem de Nini. A casa e quem nela habita.

A evolução da trama remete-nos para Freud e para a teoria do recalcamento; para a caracterização das personagens segundo o modelo dos arquétipos de Jung; por outro lado, o tema da rebelião e da traição colocam-nos perante uma intertextualidade com o Génesis da Bíblia na pessoa de Konrád\Lúcifer e Krizstina\Eva.

As velas ardem até ao fim para além de ser um verdadeiro tratado de psicanálise é, também, uma importante obra de reflexão sociológica. Ao tratar a situação na Europa da primeira metade do século XX, o papel do colonialismo na transformação das mentalidades – através das trocas culturais – e, principalmente, a dissertação antropológica acerca das causas residuais que estão na génese da situação no Médio Oriente, transformam-no numa obra de uma actualidade impressionante, pela acuidade das suas análises e poder visionário.

Um livro fora de série de um autor que nos chega do leste europeu e cuja obra só foi devidamente reconhecida após a queda do regime comunista. Ironicamente, Sándor Márai suicidou-se poucos meses antes da queda do Muro de Berlim a confirmar a tendÊncia depressiva manifesta no discurso pessimista e impregnado de uma melancolia crónica.

Um livro imperdível. Apaixonante.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, February 10, 2006

“O Amante” de Marguerite Duras (Difel)


A obra que trouxe a consagração definitiva a Marguerite Duras é um livro de teor autobiográfico. Trata-se do relato de um episódio marcante na vida da personagem principal. O ritmo do texto é marcado pela repetição anafórica no início de cada parágrafo, uma das características que lhe confere um encanto poético muito especial, acentuando a emotividade patente nas palavras e no exotismo tropical onde decorre a acção.

A temática explorada começa por ser a da desagregação das relações familiares e do enfraquecimento dos laços afectivos, numa família monoparental. A instabilidade emocional da progenitora (maníaco-depressiva), alia-se às dificuldades financeiras que levam à anomia, isto é ao desregramento pela dificuldade progressiva em incutir normas e padrões de comportamento. A conjuntura leva a família a mergulhar numa situação de “pobreza envergonhada” ou pobreza relativa, obrigando-a viver em função das aparências com o objectivo de manter o estatuto até aí usufruído.

A protagonista, uma jovem adolescente de quinze anos possui, para além do seu temperamento rebelde e indomável – expresso até na sua forma de vestir com uma certa androginia em consonância com a sua ambiguidade sexual –, um tipo de inteligência invulgarmente perspicaz e uma sensibilidade fora do comum. A situação familiar obriga-a a um amadurecimento relâmpago, despoletado pelo despertar sexual ocorrido antes de completar dezasseis anos. Uma das melhores cenas do livro prende-se, exactamente, com a descrição da transformação radical ocorrida no seu rosto. Por outro lado, é ela quem, desde o início, domina a relação com o homem mais velho. A jovem que descobre o poder da sua própria beleza e da sua sexualidade. E cujo principal trunfo reside na a capacidade de tirar partido dos seus defeitos, transformando-os em qualidades.

A mãe é um ser cativante mas frágil, sexualmente reprimido, e conservadora. Uma mulher de temperamento bipolar – maníaco-depressivo –, que sucumbe a um esgotamento nervoso, motivado pela perda do marido e pela crescente instabilidade económica. Nutre, ao mesmo tempo, um certo desprezo pelos seres fisicamente mais débeis.
Por isso mesmo, o temperamento dos dois irmãos irá condicionar o comportamento da mãe e consequentemente o destino da família: o irmão mais velho é um indivíduo indolente, violento e irresponsável ao passo que o irmão mais novo é sensível, meigo submisso e carente.

As mulheres e a sua situação social neste contexto particular são objecto de análise de Marguerite Duras nesta obra. São mulheres desajustadas - “Sós, umas rainhas” - afundadas na solidão, no tédio e no descontentamento. Como Marie-Claude, a misteriosa americana que usa “vestidos neutros estreitos e muito claros como o Estio no coração do Inverno”. Ou seja, que veste uma personalidade que não é a sua. Ou como Betty Fernandez: bela, soberana e démodé, uma mulher que organiza reuniões para as quais convergem os intelectuais da época, a maior parte deles ilustres desconhecidos. O marido é extremamente culto, admirador de Balzac e que cativa a admiração da protagonista - “Tinha uma civilidade sublime, até no saber” – uma amizade que se prolonga no tempo apesar das diferenças ideológicas: Marguerite Duras é militante do Partido Comunista Francês e Fernandez é colaborador do regime nazi.

O namorado oriental da jovem adolescente é alguém extremamente rico, filho de um próspero empresário chinês, apaixonado, emocionalmente frágil – patente no servilismo e na extrema devoção votada à família, dependente e de constituição física delicada. O conjunto de todas estas características proporciona-lhe o desprezo da família da namorada. Neste contexto, a Autora aborda a dimensão do racismo europeu em relação aos orientais na Indochina e, também, o reverso da medalha, isto é o racismo dos orientais em relação aos colonos (exploradores).

O Amante é uma obra de elevado teor emocional, contada num registo poético que, perde bastante da sua expressividade original após a tradução. Esta limitação é, em grande parte, sanada pelo belíssimo final que foge ao tom melancólico ao longo do romance.

O livro é colorido, na sua maior parte, com as tonalidades da paixão; o discurso é, para além de emotivo é extremamente sensorial, cinestésico, onde predominam as sensações tácteis. E é opressivamente quente, húmido e pesado o clima tropical da Indochina, recriando um cenário onde se encontram dois amantes com uma nitidez quase que palpável. O “clima” emocional entre os dois protagonistas confunde-se com este clima geográfico. Trata-se de um relacionamento cuja intensidade atinge, por vezes, laivos de obsessão, desespero, pelo facto de não ser socialmente aceite e ver-se obrigado a permanecer confinado ao limites do apartamento onde se encontram.

Ao ponto de o nome dele nem ser sequer mencionado ao longo do romance. É uma bela história de amor de um amante sem nome. O que só vem aumentar a intensidade na narrativa que envolve as duas personagens, algo de mútuo e de intensidade compatível de parte a parte. É, talvez, por este motivo, que a Autora se refere aos amantes apenas como “Ela”, “Ele”.

O mesmo não se passa com a colega de quarto por quem se sente atraída. O nome de Hélène Lagonelle é constantemente repetido de forma a criar um jogo fonético interessantíssimo e musical na versão francesa que se perdeu completamente com a tradução. Hélène Lagonelle é o objecto para onde converge a líbido masculina da personagem, cuja psique tem tanto de andrógino como a sua forma de vestir. Mas não é uma atracção correspondida. Para além de efémera, pois dura somente enquanto a orientação sexual da jovem não está ainda completamente definida.

Talvez por isso Hélène L. (Elle=Ela) tenha direito a nome. Afinal trata-se de uma transgressão não consumada. O mesmo não acontece com o amante chinês, uma paixão/transgressão social concreta, consumada e transposta para o plano real.

Finalmente, os dois últimos parágrafos são a vingança face à prepotência ditada pelas circunstâncias sociais, culturais e psicológicas que marcaram o passado e condicionaram o futuro das duas personagens principais.

Um livro que fala do amor inter-racial no contexto do imperialismo francês.

Uma catarse pela pena de uma das autoras mais lidas no século XX.


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, February 02, 2006

“Memória das minhas putas tristes” de Gabriel García Márquez (Dom Quixote)


Num registo um pouco diferente de Cem anos de Solidão, Gabriel García Márquez apresenta-nos um conto pautado pelo sentido de humor e pelo toque poético, numa prosa típica de quem ama o amor em si mesmo sem condensá-lo numa pessoa concreta, real.

É neste contexto que Memória das minhas putas tristes surge, num registo mais fluido, com uma cadência mais leve e um estilo mais depurado, contrastando com a densidade dos trabalhos anteriores mas mantendo, simultaneamente, a “voz” do Autor. Esta está patente no humor apimentado de Gabo, com aquela ânsia sempre juvenil, sequiosa e insaciável de liberdade.

Na escrita e no amor.

Gabo, ao escrever, não conhece a palavra pudor. De facto, parece mesmo ser a única que se permite censurar no âmbito do seu vasto e riquíssimo vocabulário. Bom, a única, não. A Mentira também não cabe no universo do Autor. Só a verdade dos factos o impele a escrever.

O protagonista do romance é um telegrafista reformado, professor, poliglota, cronista e crítico musical. Dotado de uma sólida cultura clássica, mostra-se extremamente progressista nas suas crónicas, o que lhe granjeia alguns conflitos com a censura.

Também a aversão à censura ou a qualquer restrição à liberdade de expressão é um aspecto típico da escrita de García Márquez. Em Memória das minhas putas tristes a personagem principal refere-se várias vezes ao censor do jornal como El Abominable Hombre de las Nueve por este chegar pontualmente ao jornal a essa hora “com o seu lápis sangrento de sátrapa godo”; ou “O seu lápis de Torquemada”, comparando-o ao célebre inquisidor pela dor naquele que escreve pela mutilação dos seus textos ou até pela completa adulteração dos factos.

Directamente relacionada com a sua necessidade absoluta de liberdade de expressão está também uma imperiosa liberdade de expressão sexual.

O jornalista deste divertido romance goza, até aos noventa anos, de uma merecida fama de Dom Juan, não conseguindo enquadrar-se nas regras ou padrões de conduta social que tentam espartilhar a sua sexualidade dentro da instituição do casamento. É por esta incapacidade social de ser como toda a gente, que comete a afronta social não comparecer à igreja no dia do seu casamento com Ximena Ortiz – uma bela e morena Vénus de Velásquez, de olhar felino.

O rebelde jornalista é, sobretudo, um homem, fora do horário de trabalho, dedicou toda a sua vida à boémia - “...as putas não me deixaram tempo para ser casado”. E que se incumbiu de transformar o amor numa troca de favores, reduzindo-o a uma mera transacção comercial – “Nunca fui para a cama com uma mulher sem lhe pagar”. É por esse motivo que a personagem aos noventa anos decide escrever a memória das suas putas tristes – a história de todos os amores que poderiam ter sido e não foram.

É por isso, também, que, no dia do seu nonagésimo aniversário, o cronista decide visitar o bordel da sua velha amiga Rosa Cabarcas, uma mulher de “olhos diáfanos e cruéis” em cujo sorriso maligno ostenta a sua índole de traficante de carne humana.

O objectivo da sua visita é o de comemorar a passagem à décima década de vida com uma noite de amor louco na companhia de uma adolescente virgem.

Gabo explora o tema do amor na terceira idade, ao relativizar a gravidade das consequências do envelhecimento, principalmente no que toca à dissolução da memória. Esta, no seu entender, torna-se volátil para o supérfluo e perene para aquilo que mais interessa o sujeito.

Memória das minhas putas tristes é a exaltação do amor platónico, construído à base de um desejo onírico de uma grande beleza plástica. A descrição de Delgadina adormecida assemelha-se quer pelas cores quer pelas características físicas da jovem, a um quadro de Frida Kahlo. O protagonista, a quem Rosa Cabarcas chama de “meu sábio triste” ama mais Delgadina adormecida do que acordada. Ama uma figura idealizada, transfigurada, tal como Pigmaleão apaixonado pela sua estátua.

A imagem de Delgadina muda o teor crítico das suas crónicas. O “sábio triste” passa a romântico escrevendo sobre a sua loucura de amor aos noventa anos por uma adolescente de catorze. As audiências disparam, seduzidas pelos seus modelos codificados de cartas de amor. Crónicas de um nonagenário que não aprendeu a pensar como um velho. Renasce o culto da nostalgia entre os jovens, transformado em moda. O cronista imagina a sua amada de olhar sombrio e passos leves que se confundem com os passos de veludo do seu gato angorá. A jovem é a sua última esperança para resgatar todos os amores que não vingaram.

O diálogo com Delgadina é muito incipiente. Praticamente só o narrador é quem fala. O que reforça a tese relativa ao amor ideal e sublimado.
Delgadina encontra-se drogada por Rosa com uma elevada dose de valeriana para evitar comportamentos imprevistos. Um facto que impede a plena interacção entre as duas personagens. É uma relação vivida exclusivamente na imaginação do jornalista, apesar dos argumentos, ora persuasivos, ora sedutores, da dona do bordel que nega à sua pupila a liberdade de acção e expressão dos seus sentimentos. Tratar-se-ia de uma contradição entre as convicções da personagem e as suas atitudes se não tivermos em conta o que antes foi dito.

A história termina em aberto, embora sem nada ter sido ainda consumado. A não ser, no imaginário do protagonista, num futuro muito próximo...

…ou na eternidade.

O apurado humor de Gabo está impresso na obra como se se tratasse da sua própria assinatura vestindo a pele do cronista, na forma como coloca o jornalista a criticar a sua própria aparência ou a parodiar a sua fama de Dom Juan, em companhia das secretárias do jornal onde trabalha, no dia do seu aniversário.

O seu acutilante sentido crítico está patente quando mostra o desprezo profundo face ao artificialismo da vida social norte americana. – “Nunca tive grandes amigos e os poucos que tive estão em Nova Iorque. Quer dizer: mortos, pois é para onde suponho que vão as almas penadas.” Ou seja, onde se refugiam, aqueles que querem apagar um passado obscuro.

O nonagenário é, pelo vocabulário utilizado ao descrever as suas musas, uma pessoa sobretudo visual – a caracterização de Delgadina e de Ximena faz lembrar algumas obras dos grandes mestres da pintura. E também uma pessoa de elevada sensibilidade auditiva, não só pelas constantes referências musicais ao longo do texto, mas também pela sensibilidade ao mais pequeno cambiante na tonalidade da voz. É por esse motivo que o incomoda a “nota falsa” na voz do director do jornal. É também sensível à ausência de linguagem verbal – “Tenho má química com os animais, assim como com as crianças antes de começarem a falar” – pela dificuldade em negociar com eles. É por este motivo que demora a adaptar-se ao gato angorá, um presente que não pode recusar e cuja presença, muitas vezes, o faz pensar em Delgadina que, tal como o gato, também não fala.

É também através do gato envelhecido e incontrolável que Gabo aborda o problema da eutanásia. O jornalista identifica-se com ele ao associar a sua condição de idoso à velhice decrépita do animal, aproximando-se do bicho por solidariedade.

A história progride numa espiral de ciúme e obsessão própria das circunstâncias em que a paixão se desenvolve, havendo alturas em que se esbatem as fronteiras entre o imaginário do cronista e a realidade.

Memória das minhas putas tristes é a história do sonho de amor não vivido.

Um romance injustamente desvalorizado pela crítica.

E, contudo, o García Márquez de sempre encontra-se impregnado no discurso e nas entrelinhas das frases do velho Casanova.

Um discurso mais depurado.

Mais polido.

Menos politizado.

Mas com a marca típica de Gabo.

Como sempre, igual a si próprio.

Único e inimitável.



Cláudia de Sousa Dias