HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, April 28, 2005

“O Bandolim do Capitão Corelli” de Louis de Bernières (ASA)



A ASA reeditou este ano
O Bandolim do Capitão Corelli, escrito no início dos anos 90, durante a guerra na Jugoslávia. Que quase que podemos dizer que foi como um epílogo ou consequência natural das duas Grandes Guerras que assolaram o século XX sendo despoletada pelo desmoronar da “Cortina de Ferro”, depois da queda do Muro de Berlim.

E é à luz destes acontecimentos que o autor elabora o romance, situando-o no período que abarca a segunda Guerra Mundial.

O Bandolim do Capitão Corelli
é um manifesto contra o fascismo, mesmo quando este se apresenta sob a máscara de ditadura do proletariado regime governado por uma oligarquia, encarregue de pensar por aqueles que não estão na posse do conhecimento.

As personagens são fictícias, mas a maior parte das situações descritas são a reconstrução de acontecimentos reais, coloridos com a interpretação do Autor e daqueles que as recordaram.

A bela ilha de Cefalónia, situada no Mar Egeu e tradicionalmente disputada, ao longo da História, por vários impérios cujos interesses se entrechocam, é ocupada pelo Exército Italiano.

A forte tensão diplomática que antecede o eclodir da guerra, o esforço titânico do primeiro-ministro grego para manter a paz e impedir o país de ser invadido quer pelos Aliados quer pelas tropas do Eixo, são algumas das preocupações que afectam o estadista. Este cai, então, na cilada armada por Mussolini cujos verdadeiros objectivos são, até ao último minuto, ignorados pelo próprio embaixador italiano na Grécia.

Benito Mussolini é a personagem histórica mais caricaturada ao longo de todo o romance, sobretudo do monólogo com que este inferniza os ouvidos do seu camareiro. Trata-se de uma passagem verdadeiramente hilariante em que o monólogo do “Duce”, logo no segundo capítulo, mostra um homem enfatuado, colérico, descontrolado, prepotente e, ao que tudo indica, com distúrbios maníaco-depressivos.

O autor desenvolve a narrativa, alternando dois cenários. Em primeiro plano, a pacata vida em Cefalónia com as suas gentes e costumes pitorescos, a cultura dos Helenos da época com as suas marcas culturais agregadas que os povos invasores lhes foram imprimindo ao longo dos séculos. Por outro lado, o enquadramento histórico-político na Europa da época, concretamente, da Itália e da Grécia e a extrema dureza das condições de vida dos soldados no terreno acidentado dos Balcãs, pela voz do heróico soldado Carlo Guercio.

Situada em cima de uma falha sísmica e, praticamente no umbigo do mundo, a ilha Grega de Cefalónia é o ponto de intersecção entre dois continentes e duas culturas: Oriente e Ocidente, cuja posição estratégica faz com que seja alvo da cobiça das várias superpotências.

O ritmo da narrativa prossegue em alternância, mas a dada altura ocorre uma mudança: a ilha é ocupada pela divisão Aqcui do exército italiano, que altera radicalmente o quotidiano dos seus habitantes.


Os habitantes de Cefalónia, irritados com a presença dos italianos não lhes facilitam a vida mas não entram em conflito directo com eles. Em parte, devido à proximidade das duas culturas e, por outro lado, devido ao carácter extremamente divertido e muito pouco bélico dos membros da divisão Aqcui, sobretudo do Capitão Corelli, tenor e tocador de bandolim, que fica hospedado em casa do Dr. Ianis, e Pelágia – a bela e indomável aprendiz de médica e de feiticeira…

O Bandolim do Capitão Corelli é um obra de elevado interesse sociológico, pela forma como descreve o quotidiano das mulheres gregas que como zeladoras do lar e trabalhadoras enquanto que os homens se dedicam, sobretudo a uma vida de ócio. É exaltado o desprezo da sociedade pelas viúvas, discute-se a questão do aborto, a falta de oportunidades para as mães solteiras numa sociedade patriarcal, a luta de mulheres como Pelagia, Drosoula e Antónia para mudar a situação ao longo das décadas subsequentes.


O romance sofre um volte-face quando a ilha é ocupada pelos alemães. Os nativos não conseguem estabelecer um relacionamento tão amigável com os novos invasores devido ao cinismo alemães em contraste com a bonomia dos italianos.

Com o terramoto que em 1953 dá-se o desmoronamento de todo um mundo e obriga à necessidade de uma reconstrução.

A música é, ao longo de toda a obra, a linguagem que facilita as relações diplomáticas entre ocupantes e ocupados. O temperamento artístico dos membros da divisão Aqcui ameniza muito a sua relação com os habitantes da ilha. A música serve, também, como um pedido de desculpa de Günter Weber a Pelágia quando lhe oferece o seu gramofone e uma substancial colecção de discos.

E é também a música do bandolim do capitão Corelli que vem colocar nos seus devidos lugares tudo aquilo que o tempo e a história separaram.


O Autor traça um retrato de um país em vias de desenvolvimento no século vinte. Um alerta final para o facto de, através do movimento das placas tectónicas, o Continente Americano estar a isolar-se do resto do mundo sem se lembrar que mais cedo ou mais tarde irá colidir com a China…

Um livro visionário.

Ou, pelo menos, tão sibilino como o antigo oráculo de Delfos…

Cláudia de Sousa Dias

Friday, April 22, 2005

"O Fantasma dos Canterville e outros Contos" de Oscar Wilde (Grandes Génios da Literatura Universal)


“O Fantasma dos Canterville e outros contos” foi escrito durante a juventude de Oscar Wilde e coincidiu com a infância dos seus filhos.A finalidade destas pequenas estórias é a de transmitir-lhes valores morais, éticos e códigos de conduta a fim de ajudá-los a construir a sua personalidade.

Nos seus contos, Wilde promove o Amor e a Solidariedade como as principais linhas de conduta pelas quais se devem orientar os seres humanos. A moral de Wilde é, sobretudo, uma moral Kantiana orientada pelo princípio - “Age segundo uma máxima que possa ser considerada como lei universal – e, simultaneamente, hegeliana baseada no pressuposto de que há uma entidade suprema , espiritual, que governa o mundo e à qual os homens se submetem – o Weltgeist – que, para o Autor, simboliza o Amor ou o Altruísmo.

Enfatiza, também, o culto da Beleza ou do Belo como valor absoluto e o respeito pela Arte.

O seu helenismo está patente na forma como descreve as figuras masculinas cuja ênfase descodifica, sem sombra de dúvida, a orientação sexual do autor.

As personagens femininas são, regra geral, fúteis, frívolas, superficiais, ou então, dotadas de uma frieza gélida que as torna incapazes de sentir e demonstrar um afecto verdadeiro e total, salvo duas excepções: a Menina Virgínia, a menina-anjo de “O Fantasma dos Canterville” (que ainda não é totalmente mulher) e a sereia de “O Pescador e a sua Alma” (que, tal como no conto de Andersen, pode ser conotada com uma personagem pertencente a um terceiro sexo).

“O Fantasma dos Canterville” é um conto em que Wilde recorre à mais fina ironia e critica, de forma demolidora, a alta sociedade britânica e norte-americana ao destacar a fleuma e “snobery” enraizados no orgulho pedante pela genealogia expressa nos pergaminhos, postura típica da aristocracia britânica, que contrasta com a arrogância dos novos-ricos vindos do novo mundo convencidos que o dinheiro tudo pode comprar.

E é, exactamente, uma família com todas estas características que adquire o castelo assombrado dos Canterville e que passa a infernizar a vida ao pobre fantasma que aí habita.

O seu pragmatismo, rebeldia e incapacidade de se impressionarem com uma “curiosidade excêntrica”, como um fantasma, é para eles, sinal de “chic absolut”, uma marca de distinção e nobreza que pretendem adquirir seja a que preço for. De facto, não há fantasma que aguente. Com uma mentalidade destas, como é que é possível daí em diante assustar alguém? E que pode fazer um fantasma que foi destituído das suas funções? É então que surge em cena a menina Virgínia, personificação da inocência e do Amor no seu estado puro…

Em “O Príncipe Feliz” temos duas personagens principais que vivem um amor impossível: o Príncipe e a Andorinha; impossível quer pela personalidade – o príncipe está agarrado à terra, preso ao seu pedestal; e a Andorinha, andarilha, sonha viajar para o Egipto, após ter vivido uma paixão passageira por um junco, habitante de uma lagoa inglesa.

Estas duas personagens apesar de, à primeira vista parecerem uma estátua e um passarinho são, na realidade, duas almas que se completam: o Príncipe, pelo poder, pela visão estratégica e omnisciente em relação a tudo o que se passa na sua cidade; a andorinha, pela sua mobilidade, pela sua cultura e conhecimentos adquiridos ao longo das suas viagens. O príncipe delibera e a andorinha executa e informa àcerca dos resultados. Juntos formam um governo imbatível no combate às dificuldades sociais. Mas não por muito tempo. Não no mundo real. Apenas no supra-real, talvez na República de Platão…ou no Paraíso. Porque os recursos de que dispõem esgotam-se rapidamente e quem possui poder de compra ou capacidade de produção investe, geralmente, em bens privados e não no bem comum. Tal como podemos observar ao analisarmos a personalidade do Mayor e dos seus yes men, inclusive o Professor de Matemática, que só entende a lógica dos números.

O mesmo acontece com o amor do Príncipe e da Andorinha que bem poderia ser o amor de um homem maduro por um jovem. A sua vida estiola devido ao gelo do Inverno e do coração das pessoas que nunca aceitariam tal ligação.

“O Rouxinol e a Rosa” é a mais pungente de todas as pequenas histórias de Oscar Wilde.
Tal como em “O Príncipe Feliz” está presente o sacrifício extremo de um pequeno pássaro (que poderia ser um belo e delicado efebo) por um humano – um estudante – não correspondido. O Rouxinol sacrifica-se para oferecer a felicidade àquele a quem ama.

A crueldade da roseira que exige o sacrifício do Rouxinol pode, perfeitamente, ser a de um velho pervertido, que chantageia a pequena ave em troca da Rosa Vermelha – a prova de amor que o estudante terá de oferecer à sua amada.

No final, o Autor dá a entender que todo o sacrifício por um amor não correspondido é inútil, pois conduz, apenas, à autodestruição e à indiferença do ser amado.

É, no fundo, uma história de desamor que trespassa o coração de adultos e crianças.

“O Gigante Egoísta” exalta os valores da partilha, da generosidade e da inocência. Porque o egoísmo e o egocentrismo acabam sempre por gelar a alma, que passa somente a ser habitada pela Neve e pela Geada, levando ao seu envelhecimento prematuro.

Só quando o Gigante consegue esquecer-se de si próprio e dos seus haveres é que lhe é permitido usufruir da felicidade sendo-lhe, então, facultada a entrada no Paraíso.

Em “O Amigo Dedicado” Wilde explica, recorrendo a uma fábula, a diferença entre o ser e o fazer. Trata-se de uma história que pretende mostrar a clivagem existente entre a verdadeira e a falsa amizade. Extremamente útil, até para os adultos. Aqui, o Autor recorre ao sarcasmo para ilustrar tanto a hipocrisia do Rato d’Água, como a de Hugo, o Moleiro. Duas personagens cuja perfídia e avareza contrastam fortemente com a ingenuidade do pequeno Hans (um pouco à semelhança do que acontece em “O Jardineiro e o Senhor” de H.C.Andersen). A poesia e o estilo sublime dos três contos anteriores são substituídos pelas cáusticas indirectas do Autor, face àqueles “amigos”que exigem absolutamente tudo sem dar absolutamente nada em troca.

Na mesma linha, “O Notável Foguete” critica a vaidade desmedida, o ridículo daqueles que se sobrestimam. É uma denúncia face ao patético snobismo de uma aristocracia decadente.

“O Jovem Rei” destaca a necessidade de respeitar o trabalho dos outros já que, as coisas mais belas, para atingirem o tão desejado grau de perfeição, exigem, muitas vezes, o sacrifício das vidas daqueles que as executam.

Neste conto, Wilde chama a atenção para as condições de trabalho dos artesãos de fiação de lã, para os riscos de vida a que diariamente se submetem os pescadores de pérolas e para extrema dureza do clima dos trabalhadores das minas de pedras preciosas na Índia. O trabalho dos artífices que executam o manto, a coroa e o ceptro do Jovem rei é realizado em condições idênticas às do trabalho escravo, tanto no seu próprio país como nas colónias do Império que se supõe ser o Império Britânico, fazendo lembrar um conto de Charles Dickens.

“O Aniversário da Infanta” fala de uma Princesa real espanhola que habita uma corte onde pululam o luxo e a extravagância.

Mimada e caprichosa, a herdeira do trono, está habituada a olhar as pessoas como brinquedos com os quais se diverte. Apreciadora da Beleza sem, propriamente, atribuir-lhe qualquer valor, vê o grotesco como uma curiosidade aberrante, que destoa do resto do ambiente. Fria e superficial, aprecia apenas a beleza exterior quer dos objectos, quer das pessoas sem olhar ao seu valor intrínseco ou emocional.

Porque uma futura rainha “sabe” que não lhe é permitido conhecer o significado da emoção. Sobretudo porque não há nada nem ninguém que se compare a ela própria.

“O pescador e a sua Alma” é uma das mais belas e poéticas histórias de amor de Oscar Wilde retomando a temática de “O Príncipe Feliz” e “O Rouxinol e a Rosa”.

Mas, ao contrário da história de Andersen – “A Pequena Sereia” – o pescador e a sereia de Wilde apaixonam-se e amam-se. O pescador entrega o coração à sereia contra tudo e contra todos, inclusive o padre que vê a sereia como uma figura pagã e, por isso mesmo, anti-cristã, condenando um amor que não cabe nos parâmetros da religião.

Para juntar-se à sereia, o Pescador corta com as suas raízes cristãs, desfaz-se da Alma, o seu alter-ego, que passa a errar pelo mundo entregue ao domínio das Trevas.

No entanto, a Alma do pescador que é o seu Ka, o seu duplo ou o seu gémeo, regressa e, por três vezes, tenta o Pescador. Primeiro tenta seduzi-lo com Sabedoria. Depois com Riqueza. E, por último, oferece-lhe sexo em quantidade e variedade, simbolizado pelos pés brancos das mais belas dançarinas do mundo. O Pescador sucumbe apercebendo-se depois, tarde demais, que o Amor não é apenas melhor do que a Sabedoria e a Riqueza. É, também, superior ao Prazer – a tentação suprema.

O Pescador apercebe-se que, ao abandonar o amor, a Alma perde-se, torna-se cínica, sucumbe às emoções negativas e passa a não respeitar os outros. Porque as emoções positivas, isto é, o Amor e seus derivados ficaram com a sereia e o dever, ou seja, o travão que impede a maldade diluiu-se quando vende a alma ao Diabo por intermédio de uma bruxa. Uma bruxa que é o arquétipo negativo do feminino, tal como no conto de Andersen. O arquétipo positivo da figura feminina em Wilde nunca é totalmente mulher como é o caso da sereia e da supracitada Virgínia, a menina-anjo.

Uma vez instalado o ódio e a maldade é extremamente difícil efectuar o caminho de volta. Por vezes, não se consegue ou, quando se consegue, é tarde demais. A mensagem final é a de que o ódio não é construtivo.

“O Filho da Estrela” é a história de um líder, que se impõe pelas suas qualidades naturais, mas cuja arrogância, narcisismo e crueldade fazem com que ele se desvie do caminho traçado pelo destino. É então obrigado a expiar a sua falta à semelhança de Orestes, condenado por Apolo a vaguear pelo mundo para expiar o seu crime.

O Filho da Estrela perde a beleza e é humilhado da mesma forma que humilhou a progenitora.

Wilde pretende, aqui, fazer ver que quem semeia ventos colhe tempestades. Aqueles a quem maltratou mais tarde não puderam ajudá-lo.

Ao chegar à sua terra o jovem sofre a tortura do usurpador e só ao sacrificar-se por outrem consegue recuperar o seu verdadeiro EU ficando, desta forma, preparado para exercer a função para a qual tinha nascido: governar.

Expulsa o usurpador, liberta os pais, reina com justiça e equidade, mas sucumbe ao desgaste sofrido durante o período da expiação. O seu sucessor não lhe segue as pisadas.

Esta é uma história que poderia ser considerada quase como um capítulo que precede “Príncipe Feliz”, pois as duas poderiam estar perfeita e cronologicamente encadeadas.

As histórias de Oscar Wilde são, em geral, trágicas, fazendo lembrar os mitos que estão na base das obras dos clássicos, semelhança patente até na forma como exalta a beleza masculina.

A sua escrita é extremamente bela, dotada de uma infinita riqueza estilística. Oscar Wilde é único na utilização da personificação atribuindo sentimentos e pensamentos humanos aos pássaros, às árvores às flores, ao Gelo, à Neve (“A Neve é cruel para aqueles que dormem nos seus braços” in “O Filho da Estrela”); é o mestre da alegoria quando fala da Dor em “O Pescador e a sua Alma” ou do Amor representado pelo menino loiro de “O Gigante Egoísta”. Utiliza, também, com arte a adjectivação sobretudo quando recorre à ironia.

Por tudo isto, Wilde, ao elaborar os seus “Contos”, realizou uma obra prima que lhe dá o direito de ser incluído no panteão dos Grandes Génios da Literatura Universal.

Sem dúvida.

Cláudia de Sousa Dias

Saturday, April 16, 2005

"Um mal antigo" de Paul Doherty (Bertrand)


Um romance histórico, medieval situado na Inglaterra do século XIV. Um livro que é um óptimo entretenimento, que enfeitiça pelo seu suspense in crescendum.


Durante uma peregrinação a Cantuária, um grupo de peregrinos reúne-se, à noite, à volta de uma mesa numa estalagem e, para passar o serão, decidem, cada qual, contar uma história.

Mas é um misterioso cavaleiro, acompanhado do seu lindíssimo filho adolescente quem monopoliza a atenção dos restantes peregrinos, despertando neles o fascínio mórbido, típico do ser humano, pelo horror ao explorar aquilo que de mais profundo, atávico e, por isso mesmo, incontrolável se esconde no inconsciente humano: o Medo.

É desta forma que o cavaleiro eclipsa por completo a voz dos restantes peregrinos propondo-se contar “um conto de mistério que nos gele o sangue, nos faça parar o coração e nos ponha os cabelos em pé”.

Consegue-o.

Com um conto de crime e morte “povoado de horrores saído das profundezas do Inferno”.

Trata-se de descobrir o(s) assassino(s) que vêm a assolar a cidade universitária de Oxford, semeando o terror na população ao fazer recair as suspeitas nos estudantes universitários que, por tradição, possuem já o hábito de causar distúrbios: estes envolvem-se, constantemente, em rixas com os restantes habitantes da cidade. O clima de ódio adensa-se e, tal como a Peste, ameaça multiplicar as mortes servindo, desta forma, os interesses do verdadeiro e maléfico assassino cujo objectivo último é o de disseminar o ódio.

O livro é uma viagem pelas lendas que povoam o universo medieval, habitando o imaginário das gentes da época, num sincretismo religioso que mescla o cristianismo com as lendas celtas pré-cristãs, enriquecidas com os mitos das longínquas e misteriosas terras do extremo leste europeu como a Moldávia e a Valáquia trazidas por imigrantes ou fugitivos. Lendas que nos falam de demónios ou drakuls , vampiros, strigoi - conceito incluído na demonologia medieval utilizado para descrever tanto os mortos-vivos como os espíritos malignos que se apoderam de uma alma viva.

Todas as personagens são fruto da época em que se situa o romance, pelo facto de atribuírem, quase sempre, uma explicação sobrenatural a tudo aquilo que não conseguem explicar. Daí a sua fragilidade sendo, por isso, extremamente manipuláveis e que, para conseguirem conservar a sanidade mental, só têm um único refúgio possível: a sua fé.

Dame Edith Mohun, a principal aliada dos dois protagonistas do conto, cuja cegueira a obrigou ao aperfeiçoamento dos restantes sentidos, nomeadamente o olfacto, a audição e o sentido cinestésico é, por isso, considerada como sendo detentora de poderes sobrenaturais.

Sir Godfey é o cavaleiro encarregue pelo rei de resolver o mistério e eliminar o assassino e Alexander MacBain, o erudito escrivão, uma peça fundamental para o desenvolvimento e conclusão da trama.

O estilo de Paul Doherty é completamente veiculado para provocar no leitor um sentimento de ansiedade que despoleta um arrepio na espinha servindo-se brilhantemente da adjectivação. Utiliza-a não só para ilustrar o ambiente lúgubre à volta da mesa, onde se sentam os peregrinos enquanto escutam a história, mas também para sugerir, na descrição do cenário à volta da estalagem, o perigo expresso pelo silêncio anormal e pelo estado de alerta do gato que, desconfiado, procura lugar que lhe sirva de refúgio, esgueirando-se logo que surge a primeira oportunidade. E para mostrar a desolação do campo de batalha após a carnificina, logo no início da narrativa do cavaleiro. Todos os adjectivos são intencional e inteligentemente utilizados de forma a imprimir no leitor a sensação de medo, terror e repugnância mas que, simultaneamente, exercem nele um fascínio hipnótico que o agarra à narrativa e o colocam na expectativa de saber o que se vai passar a seguir.

Mas…por vezes a curiosidade, para o gato, é fatal…

Uma obra que só não é aconselhável a quem sofrer de esquizofrenia.

Ou insónias…



Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, April 13, 2005

"Letra Só" de Caetano Veloso (Quasi)


“Letra Só” é uma colectânea de poemas de Caetano Veloso com selecção, organização e prefácio de Eucanaã Ferraz, que reúne todas as letras das canções do poeta e compositor publicadas até ao início do presente século.

A letras de Caetano Veloso surgem-nos em formato de livro, despidas da sua moldura habitual e à qual estamos habituados a associá-las: a música que as acompanha.

Mesmo assim, na sua nudez integral, os poemas de Caetano, quando lidos em voz alta, ouve-se perfeitamente que são dotados de um ritmo cantabile pela profusão de rimas, por vezes no princípio, meio e fim de cada verso, pelas constantes repetições e por um sem fim de trocadilhos fonéticos que aumentam, significativamente, as já de si, diversas possibilidades de interpretação.

Tudo isto em poemas aparentemente simples.

Neles, Caetano exprime, também, a sua vastíssima cultura, os seus valores, e principalmente a consciência acerca da realidade social do seu país. A temática da sua poesia é muitíssimo variada e distribui-se por dezassete segmentos ou capítulos.

O primeiro consiste num elogio à sua cidade Natal – Santo Amaro – e os poemas que o compõem são um compromisso situado algures entre a saudade e o desejo de libertação das amarras que o mantém amarrado às suas raízes (ver “Acrilírico).

Depois, a “Bahia, estação primeira do Brasil”, a primeira paragem de Caetano Veloso após deixar a sua terra natal.

O terceiro capítulo aborda o “Tropicalismo”, corrente da que inspirou a música dos anos 60 e 70 e que, segundo Eucanaã Ferraz, se baseia “na inserção do efémero, do volátil, do circunstancial, uma trilha que levaria a uma certa desintelectualização muito semelhante aos movimentos daquilo a que se chamou de “contracultura”.
Ferraz classifica as letras de Caetano como “dotadas de uma medida valiosa tanto para a poesia escrita como para a canção, versos de pulsação acelerada (…), brasilidade, dança, corpo…”

Neste segmento, dedicado ao tropicalismo, encontramos alguns poemas de intervenção política manifestando forte oposição à ditadura militar como”Enquanto o Lobo não vem” e “é proibido proibir” fazendo lembrar o Maio de 68.

A seguir vem “Alguém Cantando” onde se faz a apologia do canto, da música, das vozes dos intérpretes…

Destituído de qualquer pretensão afirma: “Sou um homem comum”, o quinto segmento deste poemário que se debruça sobre o EU e onde achamos o seu lado rebelde, o seu lado romântico, recheado de idealismos, desejos e…um canto intocado da mente.


Segue-se a “Gente” mais próxima: os afectos e as pessoas mais significativas para o poeta (“Gente viva brilhando, estrelas na noite” - extracto do poema “gente” do capítulo com o mesmo nome).

Alguns dos poemas mais sublimes de Caetano estão em “Bruta flor do querer”, poemas de amor, desamor e ciúme.

“Projecto Brasil”, o oitavo capítulo, pretende mostrar a realidade social, o desfasamento económico em relação à América anglo-saxónica, com especial destaque para a extrema pobreza que grassa nas principais cidades brasileiras abrangendo a esmagadora maioria dos seus habitantes, para a criminalidade, para a ineficácia da justiça…

No nono segmento ou capítulo, intitulado “Essa cidade me atravessa” temos a cidade do Rio de Janeiro do ponto de vista do nativo e do ponto de vista do outsider ; a comparação com outras cidades, o que mostra o quanto o Autor é um cidadão do mundo (ver “Vaca profana” e “London, London” uma lindíssima composição escrita na língua de Byron, povoada de rima perfeitas e imperfeitas, sobre um ponto do planeta onde o autor é, desta vez, ele próprio, um outsider). Extremamente crítico em relação às certezas dos americanos que vivem num mundo cheio de compartimentos, como um apartheid não oficializado, que adoram, antes de tudo, o deus do dinheiro, (ver “Americanos” e “Manhatã”). E também o canto de saudade do Rio, com os seus contrastes, a espontaneidade e joie de vivre das suas gentes, do clima a partir do”saco de São Francisco” no poema intitulado “Meu Rio”.

O décimo segmento de “Letra Só”, chamado “Pedra, Vida, Flor” fala-nos das coisas da natureza: o coro das rãs, numa noite pacífica, a terra, a liberdade na asa de um pássaro, cuja deslocação de ar provocada pelo movimento ateia as brasas debaixo das cinzas; o verde do deus dos fetos nos olhos verdes da mulher amada; liberdade do amor sem tabus simbolizada no corpo e asas de uma borboleta e em “A grande borboleta” – uma das jóias da poesia de Caetano -, a doçura dos frutos tropicais (ou das mulheres tropicais), a Lua como cúmplice do amor em “Lua de S. Jorge”, “Queda d’Água” e “Shy Moon”; os poemas de água – ligação directa a Iemanjá, deusa das águas, da beleza e do amor (a Vénus dos orixás) e o poema de intervenção contra a poluição aquática “Purificar o Subaé”.

A existência vem no segmento seguinte, o décimo primeiro - “Existir, a que se destina?” - : a Terra por onde passa a alma do navegador, a tentação, a fome carnal de afecto, em “Pecado Original”, “Cajuína”, “Pele” e “O Homem Velho” e, o lado negro do amor, em “Ciúme”,

Os deuses e a santidade são abordados no capítulo “Os Deuses sem Deus”: o panteísmo em “Génesis”, o tempo como ser eterno ou não-ser em “Tempo”, uma deusa Diamantina em “Gema” e a apologia a um “Menino Deus” muito terreno, os milagres dos orixás em “Milagres do Povo” fazendo lembrar um texto de Jorge Amado retirado de “A tenda dos Milagres” ou “O Sumiço da Santa”, a mediatização dos ritos e do sobrenatural em “Santa Clara, padroeira da Televisão”.

A seguir vem a experimentação, os jogos de palavras, a pesquisa da linguagem num conjunto de magníficos poemas intitulado “Outras palavras”. Alguns extremamente simples, outros mais complexos cujos trocadilhos abrangem dissertações e uma infinidade de associações de carácter filosófico (“Outras Palavras”), históricas (“Ele me deu um beijo na boca” e Alexandre”) ou sociológicas (“Eu sou Neguinha?).

O cinema serve de inspiração ao capítulo seguinte como nos poemas “Cinema Olympia”, “Giulietta Masina” (ícone do cinema italiano) e “Cinema Novo” com múltiplas referências cinematográficas brasileiras ou não. Em suma, o cinema como motor de emoção.

Os livros e a literatura ocupam o capítulo que se segue, intitulado “Mundos no Mundo”, precisamente por permitirem ao leitor viajar virtualmente e que, além disso, possibilitam um aumento exponencial do conhecimento semelhante à explosão do Big Bang (ver poema intitulado “Livros”).

O Carnaval, a festa emblemática do Brasil da nação brasileira, é de-batido em “O Bater do Tambor”, décimo quinto capítulo da obra.

O último segmento é composto por uma temática variada, é como que uma síntese dos capítulos anteriores onde reencontramos: o amor, a saudade, o samba, a religião, e uma das pessoas que mais admira – “Tom” .

Um tom a mais ou a menos na música uma variação musical. Um tom.

Um Tom. Na música.

Jobim, só pode.

Caetano Veloso.

Sempre no tom.

Irrepreensível.

Na poesia e na Música.

Não acham?



Cláudia de Sousa Dias

Friday, April 08, 2005

Série “Roma sub-rosa” de Steven Saylor – “A Sentença de César” (Quetzal)


Capa: Sangue Romano, o primeiro volume da série

O décimo volume da série “Roma sub-rosa” de Steven Saylor, vem relatar-nos, mais uma vez, as aventuras de Gordiano, o Descobridor, desta vez na terra dos faraós. Gordiano é o detective romano mais requisitado pelos grandes senhores de Roma: Cícero, Catilina, Cláudia Pulcra, César, Pompeu…e muitos outros.

Gordiano é um verdadeiro Sherlock Holmes nos últimos decénios do período da República Romana. Os seus Dr.Watson são quase sempre detectives de palmo e meio cuja vitalidade, curiosidade, traquinice e tendência para se meterem em confusões acabam sempre por se revelarem indispensáveis, obrigando Gordiano a tropeçar na verdade, ou nas pistas que a ela o conduzem, valendo-se do seu acutilante espírito dedutivo aliado à sua quase infalível intuição.

No que toca á acção, encontramos, sempre em primeiro plano, Gordiano e a sua família. Esta é composta pela sua esposa Betesda, pelos seus dois filhos adoptivos, Eco e Meto, pela sua única filha de sangue, Diana e, por último, pelos dois pequenos e hiper-traquinas escravos, Mopso e Ândrocles, os mais recentes membros do agregado que, nesta última aventura, se entretêm a vaguear pelos misteriosos labirintos de passagens secretas do palácio de Cleópatra, em Alexandria.

Desta vez, Gordiano vê-se compelido a descobrir quem terá tentado envenenar César e Cleópatra para salvar a vida ao seu filho Meto, a quem as circunstâncias apontam como o principal suspeito.

Mas as descobertas de Gordiano acabam, invariavelmente, por conduzir à Verdade. E esta, por provocar uma inflexão de cento e oitenta graus no curso da história…

Como se isso não bastasse, tem ainda de desfazer as brumas que envolvem o desaparecimento da sua esposa que o acompanhou ao Egipto com o objectivo de encontrar a cura para a sua estranha doença nas águas do Nilo…

Esta colecção de dez volumes que compõem a série “Roma Sub-Rosa” (que é o mesmo que dizer “Roma secreta”, pois os romanos tinham o Hábito de pendurar uma rosa no tecto quando queriam ter uma conversa confidencial ficando, nessas circunstâncias, obrigados a guardar segredo acerca dos conteúdos abordados) é um autêntico casamento entre a história e a ficção. O Autor elabora, a partir da História oficial, uma História paralela, construindo hipóteses alternativas que poderiam estar na base de alguns acontecimentos históricos que conhecemos, mas cujas causas poderão ter ficado para sempre enterradas no segredo dos deuses.

As personagens históricas são aquelas que solicitam os serviços de Gordiano, directa ou indirectamente. Gordiano é, em toda a obra, a única personagem com profundidade suficiente para ser considerada modelada ou redonda, isto é, aquela acerca da qual nos apercebemos sempre, em primeira mão, de todas as mudanças de humor ou estado de espírito.

As personagens históricas movimentam-se em cena dando muito pouco de si no que respeita à sua vida interior, aparecendo-nos como nos filmes, como se fossem deuses, acima dos míseros mortais.

As personagens ficcionais, no que toca à família de Gordiano, são os seus coadjuvantes mas cuja importância e protagonismo vão diminuindo à medida que crescem ou envelhecem, deixando de poder acompanhar o detective romano nas suas andanças.

Os temas abordados neste último volume têm camuflada a sua vertente polémica já que se debruçam sobre a problemática da pena de morte, sobretudo quando as provas que incriminam alguém são meramente circunstanciais, a arbitrariedade nos julgamentos, os regimes despóticos e a anexação disfarçada de uma nação com o aparente motivo de a pacificar, fazendo lembrar o que se passa entre os EUA e o Iraque na actualidade. De facto, ao lermos algumas passagens de “A Sentença de César” parece mesmo que estamos a ouvir um noticiário da altura em que G.W.Bush ordenou a invasão do Iraque!

De qualquer forma trata-se de uma obra imperdível para quem gosta do género policial histórico e pela sua vertente lúdico-pedagógica.

Porque Roma é eternamente sedutora.

Principalmente se for sub-rosa…


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, April 05, 2005

"Inventar a Solidão" de Paul Auster (ASA)


Este é mais um best-seller austeriano que, apesar de já ter sido publicado em 1982 nos EUA, só agora foi editado em Portugal.

O livro é composto por duas partes sendo a primeira intitulada de “Retrato de um Homem Invisível”. Aqui o autor tenta, ao longo de cerca de 90 páginas, recuperar a memória do seu pai, num esforço de reinventar a sua vida após uma morte súbita.

É então que dá de caras com o inesperado. A descoberta das circunstâncias que rodearam a misteriosa morte do avô e condicionaram a vida e a personalidade do pai bem como o grau de coesão da sua família e natureza dos laços afectivos que ligam os seus membros.

O teor deste livro genial é-nos dado logo na epígrafe inicial de Heraclito que avisa o leitor de que: “Na busca da verdade, prepara-te para o inesperado, pois é difícil descobri-la e, quando a encontramos, encontramos a perplexidade”.

O choque provocado pela morte do pai que impulsiona o autor a tentar reconstruir a sua vida, leva-o a recorrer à memória – tema que ocupa toda a segunda parte intitulada “O Livro da Memória” – obrigando-o a fazer uma regressão no tempo e a dissecar as diferentes facetas da personalidade do seu progenitor, expondo os seu aspectos positivos e negativos e, simultaneamente, a encontrar-se a si mesmo.

Durante o período que medeia essa mesma reconstrução, o Autor tem um encontro com o inesperado numa velha fotografia de família, rasgada e colada na qual a avó posa, rodeada de todos os seus filhos.

A fotografia faz lembrar, um espelho quebrado, na qual parece haver no entanto algo ou alguém que foi obliterado, apagado do registo fotográfico e das vidas dos restantes membros da família…

É então que a verdade vem colidir violentamente com o autor, deixando-o como que esmagado. Subitamente, tudo se torna inteligível…

Na segunda parte, já referida e intitulada “O Livro da Memória”, o autor tenta reconstruir os passos e toda a ambiência que precede o processo criativo do profissional da escrita. Trata-se de um conjunto de narrativas cujo objectivo é a construção de episódios com detalhes susceptíveis de cativarem a atenção do leitor e, sobretudo, de quem escreve.

Auster decompõe todo o acto de escrever, bem como toda a envolvente física e psíquica que fazem parte do processo de reconstrução da memória.

Para isso, tem de recuperar os momentos e episódios que marcaram a sua vida, coincidências e paralelismos que estabelecem um fio condutor quando se trata de escrita criativa, que o escritor reveste com as suas próprias significações.

Neste Livro da Memória, o discurso de Auster é, sobretudo, argumentativo, técnico, recorrendo o Autor aos saberes e experiências adquiridos. Mas também está presente o discurso emocional, como no episódio em que Auster descreve o quarto de Anne Frank ou um campo de refugiados do Cambodja no qual destaca a indiferença do mundo Ocidental face ao extermínio em massa. A banalização do Holocausto transformado em espectáculo televisivo ou em propaganda política.

Auster prossegue a exploração dos caminhos da memória estabelecendo um paralelismo entre a sua própria vida e a de algumas personagens que cruzaram o seu caminho: o pai ou o compositor com o qual compartilhou o quarto durante a sua estada em Paris; a relação de Rembrandt com o seu filho Titus justaposta com a sua e do seu próprio filho, Daniel.

Escrever é, para o autor, evitar o desaparecimento daqueles que mais ama; é uma forma de lhes conferir imortalidade, numa luta insana contra a morte para salvar os seus entes queridos de serem tragados pelo tubarão.

É especialmente significativa a interpretação que Auster faz do episódio de Pinocchio e Gepeto no ventre do Tubarão: o filho, para crescer, tem de salvar o pai. O Autor para assumir a sua função de pai, tornando-se adulto, tem, antes de mais, de resgatar o próprio pai das garras da morte.

O título do livro “Inventar a Solidão” tem, a ver com o acto de escrever. Porque, para ele, cada livro é a imagem da solidão e cada livro escrito é um acto de solidão partilhada, construído num abismo de silêncio, como explica na parábola bíblica de Jonas no ventre da baleia.

O autor fala, sobretudo, do passado, mas lembra que falar do futuro implica a utilização de uma linguagem que aqueles que vivem no presente não entendem, por isso as profecias estão, desde logo, condenadas ao descrédito como acontecia com Cassandra, a princesa visionária. Auster faz uma análise brilhante do extracto de da “Ilíada” de Homero que corresponde ao discurso da princesa troiana. Tal como no poema, existe a tendência, neste “Livro da Memória”, para o leitor mais desatento se perder um pouco, ao contrário do que acontece na primeira parte, onde é mais fácil seguir o fio condutor do raciocínio deste genial escritor-poeta.

A escrita de Auster é fria, argumentativa, extremamente analítica e dialéctica. Mas também de carácter associativo, em que cada pensamento remete para um outro numa pluralidade de ramificações e significações que se desdobram e que se aglutinam umas às outras num alucinante vórtice cerebral.

Um livro que pretende demonstrar que escrever é inventar a solidão para depois partilhá-la. Que, sem ser directivo, mostra o caminho para o auto-conhecimento.

Porque todo o livro que implique uma escrita criativa é um livro de memória.

Para prolongar o momento até à eternidade.


Cláudia de Sousa Dias

Saturday, April 02, 2005

"A Pequena Sereia" e "Os Sapatos Vermelhos"


Contos de Andersen: uma leitura psicanalítica

A que tipo de público se destinam os contos deste autor dinamarquês?

Às crianças? Ou a adultos de mente altamente esclarecida?


Tudo leva a crer que, para entender em profundidade os contos de Andersen, é preciso lê-los com um olhar adulto, de preferência com o olhar de alguém, que vê para além das aparências, das significações mais imediatas.

Mesmo quando lidos por crianças, estes contos, conseguem transmitir-nos a impressão de que há qualquer coisa que nos escapa.

Durante muito tempo, interroguei-me acerca do porquê da "Pequena Sereia" não conseguir casar com o príncipe; e também me parecia algo excessivo um castigo como a pena de morte para alguém que apenas desejava possuir ou exibir uns sapatos vermelhos.

O facto é que há qualquer coisa nas entrelinhas dos textos de Andersen que tem directamente a ver com os conflitos mal resolvidos no inconsciente humano - os medos, os desejos, as fraquezas humanas que não ousamos exprimir abertamente - as pulsões do inconsciente.

E porque o final nem sempre é feliz, os contos de Andersen aproximam-se, muitas vezes, mais da tragédia grega do que do típico conto de fadas.

Estes últimos, exploram mais os conflitos ligados ao crescimento e amadurecimento âmbito da sexualidade e integração social; Andersen, pelo contrário, explora, na maior parte das vezes, os comportamentos desajustados, as parafilias e, até, as desigualdades sociais (A menina dos Fósforos) usando a tragédia embora, por vezes, recorra também à sátira (o Trajo novo do Rei).

A Pequena Sereia é um conto que, para alguns, pode remeter facilmente para o fenómeno da transexualidade, no qual o despertar do amor obriga a sereia a uma dolorosa transformação morfológica de forma a tornar viável o relacionamento sexual com o Príncipe.

Para outros, pode apenas representar as tensões pela passagem da infância à adolescência com todas as alterações fisiológicas e psíquicas que isso implica.

De qualquer forma, a transformação física da sereia não foi acompanhada por uma adequada integração psicológica.

A princesa-sereia não conseguiu adaptar-se à vida palaciana, impossibilitada de falar não consegue ir ao encontro das necessidades do príncipe o que deixa entrever um défice de inteligência emocional.

Para salvar a sua sanidade mental, a sereia tem não só de eliminar o príncipe do seu campo de visão, mas também da própria mente - fazer delete - para sanar uma obsessão.

As irmãs tentam socorrê-la utilizando a persuasão, para tentar convencê-la a anular os seus desejos e regressar à vida anterior em vez de orientá-la a transferir os seus afectos para outro objecto possível ou a tentar desenvolver nela as capacidades de comunicação que lhe faltam.

Infelizmente a regressão não é possível. O desejo já tomou conta dela. A personalidade entra em entropia acelerando o processo de autodestruição.

A não aceitação do próprio corpo, perturbação pela mudança, défice de comunicação/ forma de autismo e obsessão e suicídio.




Os Sapatos Vermelhos


Andersen começa por falar, na necessidade de uma jovem em ser o centro das atenções.

Esta deixa-se fascinar ou tentar pelos sapatos vermelhos (que simbolizam a vaidade, o amor narcísico pela fama, reconhecimento, sucesso).

Os sapatos estão amaldiçoados.

Para conseguir o protagonismo - dado pelos sapatos vermelhos - a jovem tem de trabalhar, dançar arduamente sempre com o objectivo de se ultrapassar a si mesma, sem pausas para descansar, para o lazer, para a vida afectiva - tal como acontece em muitas empresas hoje em dianas quais, para alcançar um lugar de topo tem de se "calçar os sapatos vermelhos".

Para manter o protagonismo, a jovem arruína a saúde a ponto de passar de uma simples obsessão a um estado maníaco-depressivo revelando uma incapacidade de dormir (motivada pelos sapatos vermelhos - desejo de fama, reconhecimento que inibem as enzimas encarregues de atenuar o estado de vigília) inibindo a sensação de sono durante dias, semanas, meses.

Depois vem o esgotamento total, o estado de prostração típico da fase depressiva que se segue à fase maníaca – que Andersen - traduz na necessidade expressa pela jovem bailarina em cortar os pés para se livrar dos sapatos e poder descansar.

Na vida real as pessoas, em regra optam por cortar os pulsos. Mas esta solução não significa a cura. Em Andersen a cura para este género de desarranjos emocionais é a morte.

Na época, a psicologia ainda não se tinha constituído como ciência (A psic tal como as restantes ciências sociais só se autonomizou como ciência a partir dos meados do Séc XIX ). Mas Andersen, visionário e homem de grande sensibilidade conseguiu identificar toda uma gama de comportamentos desajustados que são a base de trabalho dos profissionais de psicologia clínica dos dias de hoje.

Andersen não consegue ver ainda a hipomania, o autismo, as dificuldades de comunicação como doenças do foro psíquico ou parafilias mas, apenas, devido à sua educação religiosa, como um desvio à virtude e, no caso concreto dos sapatos vermelhos, como o sucumbir ao pecado da vaidade.

Podemos, contudo, notar nos seus contos, uma sensibilidade para detectar problemas de ordem psíquica e nos quais devido à falta de conhecimento das terapias adequadas na altura são revestidas de uma aura de fatalidade aproximando-se das tragédias clássicas nos contos já mencionados e também noutros como (O Soldadinho de Chumbo vítima da inveja de um brinquedo sociopata, ou da Donzela de Gelo em que o jovem sucumbe ao perigo dos excesso de racionalismo).

Só uma leitura do ponto de vista psicanalítico possibilita uma total compreensão dos contos de Andersen. A leitura superficial pode levar a uma impressão negativa pois, a morte, parece-me uma pena demasiado pesada para alguém que apenas deseje possuir uns sapatos vermelhos, amar a pessoa inadequada ou almejar a perfeição absoluta.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, April 01, 2005

"Seraglio" de Janet Wallach (Fio da Navalha)


“Seraglio” é um romance histórico que relata a vida de Aimée du Buc de Rivery, filha de um aristocrata latifundiário da Martinica, prima de Josefina Bonaparte. Aimée foi, durante uma travessia no Mediterrâneo, capturada por corsários argelinos quando tinha apenas 13 anos e entregue ao bei da Argélia que a ofereceu como presente ao sultão Abdul Hamid, o imperador otomano.

A Autora pretendia, inicialmente, elaborar uma biografia da jovem, mas durante a sua estada na Turquia, onde efectuou a maior parte das suas pesquisas para a obra, decidiu , dada a quantidade de elementos romanescos aí encontrados, optar pelo romance histórico.

É então que Wallach, já dentro do domínio da ficção, começa por proporcionar um encontro entre um padre católico e o chefe dos eunucos negros do harém – Tulipa, o devotadíssimo servo da rainha-mãe.

Tulipa faz uma entrada triunfal em cena requisitando, sem deixar margem para qualquer tipo de recusa, o espantadíssimo padre Crisóstomo para uma entrevista forçada com a sultana moribunda, Aimée-Nakshidil, mãe adoptiva do sultão Mahmud.

Após a extrema-unção concedida à sultana, o eunuco tem um prolongado desabafo com o padre, durante o qual irá desfiar os episódios da atribulada vida da recém-falecida sultana: o rapto, o ultraje do exame para venda, a sua chegada ao harém, as dificuldades de adaptação – que implicam a aprendizagem de outra cultura e o esquecimento de toda a sua vida anterior -, as rivalidades, a competição e a inveja - , despoletadas, pelo seu aspecto físico tipicamente europeu – e, por fim, a ascensão ao poder depois de tornar-se a toda-poderosa sultana valide – a mãe adoptiva do sultão Mahmud e a única mulher em quem este pode confiar.

Paralelamente à vida romanesca daquela que se supõe ser Aimée du Buc de Rivery (hipótese que parece confirmar-se pelos registos de uma conversa que terá tido lugar entre Napoleão III e o sultão Mahmud aquando da visita deste último a Paris e durante a qual terá confidenciado ao chefe de estado francês que as suas avós eram parentes), a Autora dá-nos a conhecer as convulsões históricas que afectaram as relações entre o Império Otomano e o ocidente e, por conseguinte, entre o sultão e a sua concubina de origem francesa.

O Império Otomano é uma peça fundamental no complexo jogo do xadrez euro-asiático, funcionando como um pêndulo no intrincado jogo de interesses entre a França e a Inglaterra ou entre a Rússia e o Império Austro-Húngaro.

Todos estes condicionalismos afectam, obviamente, a vida da jovem dentro do ninho de víboras que é o harém otomano, tornando-a vulnerável à inveja e às intrigas palacianas. Intrigas essas que, aliadas à revolta dos Janízaros (a guarda pessoal do sultão), instigados pelos líderes religiosos fundamentalistas, ajudam a minar a estabilidade e a coesão do império.

O estilo de Janet Wallach é simples, maioritariamente denotativo, com uma estrutura narrativa clássica, na qual o narrador participante efectua uma regressão ao passado, contando a história ao seu interlocutor.

Quanto às personagens, temos uma heroína típica – Aimée ou Nakshidil – uma mulher que consegue ascender ao topo da hierarquia feminina pelas suas qualidades pessoais; uma vilã ou anti-heroína – Aisha – nome e aspecto de mulher-fatal ou mulher demónio segundo a tradição árabe., manipuladora, sem qualquer tipo de escrúpulos e que não olha a meios para atingir os seus fins; Tulipa, o aliado de Aimée, detentor de uma fidelidade absoluta; e os restantes homens possuidores de uma característica comum – a volubilidade em relação às mulheres para os quais elas são simples objectos. O papel da maternidade é exaltado em detrimento da sensualidade, devido à necessidade de gerar herdeiros que garantam a continuidade do império.

O harém era, na época, encarado como um refúgio para as jovens oriundas de famílias desfavorecidas e onde uma vida de pobreza e privações era de bom grado trocada por uma existência de luxo e solidão.

Wallach explora, socorrendo-se de documentos históricos e entrevistas, o mundo misterioso e desconhecido da sexualidade dos eunucos e das bizarras ligações ocorridas no mundo secreto, proibido e misterioso do harém.

Um retrato, simultaneamente, romântico e cruel de um estilo de vida num império desaparecido.

Para quem gosta de viajar no passado.

E não só.

Cláudia de Sousa Dias