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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, October 29, 2005

“Os Maias” de Eça de Queirós (Planeta DeAgostini)


O livro mais lido de Eça de Queirós, um clássico largamente analisado e discutido que reflecte a imensa e a vastíssima cultura do autor, à qual se junta um sentido crítico que deixa entrever um cepticismo refinado. Esta última característica é baseada num pensamento de raiz positivista e, paradoxalmente, numa fé absoluta no socialismo utópico de Proudhon. Eça defendia um humanismo que preconizava “a erradicação definitiva dos pobres na terra” através da implantação do ideal republicano.

Em Os Maias, a personalidade de Eça desdobra-se nas duas personagens principais: Ega, o cínico intelectual de Celorico, o seu alter-ego, praticamente um heterónimo; e Carlos da Maia, o Príncipe, o ideal de beleza e inteligência, nobreza e cultura, que o autor gostaria de ver em si mesmo – o seu super-ego.

Com uma sólida amizade construída no tempo da boémia em Coimbra, os dois jovens identificam-se a tal ponto que os laços que os unem resistem, incólumes, à erosão das décadas, às convulsões políticas e às oscilações sentimentais, nem sempre dotadas de bom senso por parte de Ega, ou aos devaneios passionais de Carlos.

Todos os frequentadores do Ramalhete – residência que Carlos partilha com o avô, Afonso – são homens com quem Carlos se identifica ou, simplesmente, admira: Craft, o fleumático inglês, coleccionador de antiguidades; Cruges, o músico sobredotado; Alencar, o poeta romântico que nutre uma devoção sincera pela família Maia, desde os seus tempos de juventude.

As amizades cultivadas fora do círculo restrito do Ramalhete são, normalmente, baseadas noutros interesses não raro ligados a estratégias de sedução que visam as requintadas esposas desses mesmos cavalheiros. Homens a quem não admiram nem respeitam: o Conde de Gouvarinho, político boçal que tem a seu cargo a instrução pública; o banqueiro Cohen, um homem que vive para o lucro e a quem Ega considera um dever moral humilhar seduzindo-lhe a sua bela Raquel.

O anti-herói, Dâmaso Salcede, é uma das personagens mais pitorescas do romance, devido ao seu carácter burlesco. Dâmaso é o estereótipo do saloio típico que se quer dar ares de aristocrata. Tenta, inicialmente, copiar todos os gestos e hábitos de Carlos com o objectivo de conseguir a imagem do “chique a valer”.

As reuniões na casa das janelas verdes – Ramalhete –, na qual Dâmaso consegue, durante algum tempo, infiltrar-se habilidosamente, fazem parte de um mundo totalmente masculino onde, amigavelmente, se discute literatura, filosofia, política. Onde se fala de mulheres, mas cuja ausência se faz sentir ao longo de todo o romance – excepto durante uma curta visita de Maria Eduarda, na altura em que Afonso se refugia temporariamente em Santa Olávia. No Ramalhete joga-se poker, whist e, ao mesmo tempo, degusta-se os mais requintados charutos. Voltaire, Guizot, Michelet e outros pilares do racionalismo agnóstico são trazidos à baila, enquanto se critica o lirismo de Hugo e se avilta o romantismo na poesia.

As Mulheres

Poderíamos começar por observar Maria Monforte, a mãe de Carlos e Maria Eduarda: bela e fatal, rica, exuberante ostensivamente imoderada. Uma mulher manipuladora, que sabe valer-se da sua estonteante beleza. Conhece o poder do seu corpo e a forte atracção sexual que exerce em Pedro da Maia e nos outros homens em geral, para melhor os dominar e conseguir os seus intentos.

Afonso é o único a escapar ao seu sortilégio: Maria tem uma mancha no seu passado que a torna inadequada a um casamento com um fidalgo da família Maia: um pai com um passado como traficante de escravos. A beleza fatal de Maria precipita o fim de Pedro da Maia.

As meretrizes Concha, Paca, Cármen Filósofa e Lola são, normalmente, mulheres de aspecto pouco saudável, vagamente sifilítico, pouco dadas a cuidados de higiene e ostensivamente grosseiras.

Por sua vez, a Condessa de Gouvarinho é uma mulher bela, exuberante e carente, mas sem o fatalismo de Maria Monforte. Carlos não hesita em seduzi-la para logo dela se enfastiar. Trata-a de forma algo cobarde, ao conquistá-la por mero capricho, saturando-se dela ainda antes de a possuir. Uma atitude que condiz com a sua personalidade volúvel de diletante.

A audácia quase masculina da condessa, a sua aparência provocante, o fogo dos cabelos ruivos a inextinguível paixão por Carlos e os detalhes por vezes pouco harmoniosos das suas toilettes, dão-lhe um ar de cortesã de luxo. Um aparência que contrasta fortemente com o aspecto de deusa inatingível, que se eleva acima da humanidade, que Carlos tanto admira em Maria Eduarda – a mulher ideal que todos os homens gostariam de possuir, mas com a qual o feliz contemplado se regozija de não pertencer a mais ninguém.

Raquel Cohen, a bela judia de aspecto romântico, tem o ar de uma Dama das Camélias e despoleta o delírio passional em João da Ega. Um delírio passional que termina bruscamente na noite do baile de máscaras, dado pelo casal Cohen, ao qual o adúltero par pretende comparecer fantasiado de Mefistóles e Margarida. O cinismo de Ega exibe-se despudoradamente, na sua máscara de corruptor de almas, que nada mais é do que a sua verdadeira natureza. Ega inverte, literalmente, a situação, considerando-se como a vítima insultada com a expulsão perpetrada pelo marido traído.

Raquel não é inculta para os padrões de Ega. É, pelo contrário, uma mulher que consegue discutir literatura mas sem ser literata ou “produtora de literatura”, um tipo social que despertava, na época, a misoginia masculina e o desprezo e desconfiança femininos. Uma mulher que “desse cartas no ensino da filosofia, das belas letras” ou que fosse, simplesmente, dotada de pensamento crítico era, quer para a personagem, Ega, quer para o autor, Eça, como “um monstro de duas cabeças”.

Ega despreza Raquel por esta se submeter à violência do marido mas também não lhe oferece uma alternativa válida para viver com ela em sociedade, assumindo pública e corajosamente o seu romance.

Já Maria Eduarda entra em cena envolta como que numa auréola de luz branca e dourada, pairando acima do solo como uma deusa – Juno – deslumbrando tudo e todos com a sua helénica e fria beleza de mármore.

Eduarda mostra-se sedutora para com Carlos, enquanto objecto de sedução passivo – mulher objecto. E idílica, no cenário bucólico da Toca, tal como a Joaninha de A cidade e as Serras. O retiro dos dois apaixonados na Toca é como que o recanto íntimo do casal olímpico, Júpiter e Juno, personificado por Carlos e Maria Eduarda como sendo o casal de siblings, fechado em si mesmo.

Nada se sabe praticamente, pelo menos na primeira pessoa, sobre o pensamento, sentimentos, convicções ou valores de Maria Eduarda. As suas atitudes são-nos sempre transmitidas a partir dos olhos de outrem ou idealizadas e sublimadas pelo narrador que a descreve como o arquétipo perfeito de todas as perfeições.

É facilmente perceptível que Maria Eduarda é viajada, habituada a todos os requintes. Contudo, apesar de bem relacionada, não se lhe conhecem amizades femininas respeitáveis….Ex: quando demonstra não conhecer a esposa do Dr. Chaplain, seu médico pessoal em Paris.

Miss Sarah, a preceptora, ostenta uma aparência correcta e uma obsessão compulsiva pela ordem na disposição dos objectos no seu quarto. O que sugere uma forte repressão sexual, expressa na comoção face às atenções de Carlos, fazendo adivinhar uma forte carência afectiva.

A construção da personalidade de Carlos

A educação de Carlos é, desde cedo, tomada a cargo pelo patriarca da família – Afonso da Maia – um homem austero, detentor das virtudes de um patrício da antiga Roma republicana como Catão ou Múcio Cévola.

Carlos recebe uma educação de marcado teor britânico, cultura que Afonso da Maia admira pelo racionalismo e liberalismo económico. É sob a alçada do Avô e de Mr Jones, o preceptor, que Carlos desenvolve o gosto pelas ciências e pela educação física, quase marcial, cujo obectivo é o de desenvolver a sua robustez e virilidade.

A educação de Carlos é o oposto da de Eusebiozinho, hiper-protegido e mimado pelas mulheres da família, ignorantes e beatas. Este último acaba por receber uma instrução clássica, totalmente desadequada ao seu nível etário e descurando totalmente o desenvolvimento físico. O resultado é evidente...

Apesar da sua esmerada educação, o diletantismo e a dispersão de Carlos, já adulto, atrofiam a sua vida profissional e pessoal. Por outro lado, a inveja dos colegas quando começa a ter os primeiros sucessos, quer como clínico quer como investigador científico, fazem com que este caia no ridículo e seja desacreditado, levando-o a desinteressar-se do exercício da sua profissão.

Aliás, tanto Carlos como Ega, têm o mesmo problema de desmotivação no trabalho devido, em parte, à desafogadíssima situação financeira em que se encontram e, também, ao atraso intelectual que grassa o país e os precipita para uma vida ociosa para desespero de Afonso da Maia.

O próprio Cruges que vive apenas e só para a música tem dificuldade em encontrar público à altura, não só da sua própria música como até para os grandes mestres como Beethoven.

Eça, o sociólogo

A crítica e análise social são abundantes raiando, por vezes, a maledicência em Os Maias. São uma constante ao longo de toda a obra, sobretudo no que se refere ao domínio da Igreja na educação e formação da consciência colectiva. São igualmente, evidenciadas a falta de conteúdo nos programas políticos de desenvolvimento das infra-estruturas, tanto em Portugal como nas colónias, bem como a vacuidade relativamente a ideias válidas pelos políticos portugueses.

O episódio das corridas no hipódromo, no qual se salienta a falta de gosto nas toilettes escolhidas para a ocasião – demasiada exuberância ou demasiada austeridade – mostram alguns tipos sociais característicos da sociedade lisboeta de então, onde predomina, sobretudo a pobreza de espírito.

Outra situação semelhante é a do sarau literário e musical onde triunfam os medíocres e o público, particularmente as senhoras, que demonstram ostensivamente e de forma algo vexatória a sua ignorância.


Os Maias é sobretudo uma história que fala da hipocrisia das normas morais de uma época – patente na manifestação do repúdio à ofensa gratuita a alguém motivada unicamente pela inveja e pelo despeito – emoções incarnadas por Dâmaso e Eusebiozinho. A inveja é, sobretudo evidenciada pelo ridículo Dâmaso, ao tentar, invariavelmente, passar por aquilo que não é. Este estoura de despeito com a preferência de Maria Eduarda, Rosa e até da cadela Niniche por Carlos.

A inveja de Dâmaso é um dos motivos que farão despoletar a tragédia através dos seus laços de parentesco com o Sr. Guimarães – o elo de ligação de Maria Eduarda com as suas origens.

Ainda relacionado com a inveja e desejo de difamação, características que o autor quase que identifica como sentimentos nacionais, é a chamada de atenção para o jornalismo sensacionalista e difamatório tão apreciado pelo público português, mesmo nos nossos dias. Um jornalismo de pacotilha, personificada pela gazeta A Corneta do Diabo e pelo respectivo dono, o ascoroso palma Cavalão. Trata-se de um pasquim onde não figuram artigos científicos ou culturais cuja ausência é “proveniente do desejo dos medíocres em que não se aluda muito aos grandes”. Eça não resiste em espetar uma das suas mais contundentes farpas ao afirmar que “…os jornais que abdicam das funções de estudo e da crítica se terem tornado folhas rasteiras de informação caseira, calam-se por se saberem incompetentes”.

Segredo e Preconceito

O secretismo é, por outro lado, o útero onde se desenvolve a tragédia. Afonso da Maia alimentou o desenvolvimento da fatalidade pela intransigência manifestada, pelo afastamento total ao evitar conhecer a esposa de Pedro, bem como dos netos e ao refugiar-se na sua torre de marfim. E, sobretudo, em não verificar pessoalmente a morte de Maria Eduarda em Paris.

A Paixão de Carlos

Os Maias é também uma obra que fala do poder da paixão sobre a razão. O facto de Carlos saber que Maria Eduarda é sua irmã, não faz com que o desejo desapareça. Mas é talvez, o manípulo que o obriga a olhar a sua deusa mais desapaixonadamente – por sabê-la já parte de si, não precisando de a possuir – com maior objectividade, um interruptor que lhe desliga a paixão. Apercebe-se que ela se tornou uma fêmea activa, durante o acto sexual, fazendo-lhe aflorar a sua misoginia. A fêmea inibe-o. E o desejo animal da mulher apavora-o, matando-lhe gradualmente a virilidade. Tal como com D. Juan, Carlos gosta de mulheres receptivas, mas semi-frígidas, de preferência que não tenham orgasmos.

Eduarda deixou de ser a mulher ideal para ser apenas…mulher. E, com isso, perdeu o encanto.

A (des)codificação da tragédia

A utilização de indícios e presságios é frequente ao longo da obra. Logo no primeiro capítulo, Vilaça, o administrador dos Maias, refere que “…eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete…”, uma predição sibilina, confirmada no final “…pois fatais foram!”

Tal como a sombrinha escarlate de Maria Monforte “uma mancha de sangue” no meio do omnipresente rosa da toilette – presságio de morte.

Outra profecia, desta vez a respeito de Carlos, é ditada por Ega quando o compara a D.Giovanni – cap VI – dizendo que Carlos”… haveria de vir a acabar como ele (D.Giovanni ou D. Juan), numa tragédia infernal”.

O penúltimo capítulo está povoado de sinais de tragédia desde a melancolia do tempo de Inverno, que se reflecte no olhar de Pedro da Maia, no retrato a óleo, como que observando o destino dos seus descendentes, até à vela que “…ia morrendo” no castiçal segurado por Afonso da Maia quando este olha para Carlos pela última vez; “…a luz que sobre o veludo espalha um tom de sangue”, ao cair da cortina, com as armas dos Maias, logo após o patriarca ter deixado o escritório – indício de que, para a personagem, foi aquela a última cena.

No final, após o abandono do Ramalhete, assiste-se ao triunfo da inércia e do hedonismo, no qual Carlos e Ega mergulham. A busca do prazer como objectivo último na vida. Apesar de pregarem o estoicismo – nada perseguir, nada desejar – não conseguem evitar correr atrás dos seus desejos…

O retrato perfeito da sociedade portuguesa oitocentista.

Inquietantemente actual.

Cláudia de Sousa Dias

Saturday, October 15, 2005

“Viagem sem Regresso” de Katy Gardner (ASA)


“Duas amigas visitam a Índia e só uma regressa…” Este é o mote que apenas levanta a pontinha do véu e desperta a curiosidade do leitor…A Amizade é o tema deste aliciante romance da autoria de uma jovem antropóloga, que lecciona na Universidade do Sussex (Brighton, Reino Unido) tendo já publicado alguns ensaios sobre a diáspora bengali.
Destaque especial para a beleza e originalidade da capa, perfumada com sândalo indiano e para o rendilhado na última badana em forma de Fénix – o pássaro mitológico que simboliza o renascimento, a mudança e o corte com o passado.

A escrita de Gardner é, apesar de objectiva, dotada de grande riqueza pela abundância de pormenores na descrição de cenários – urbanos e rurais -, gentes, cheiros e sons. Sem falar na quantidade de referências culturais, desde a música à moda, na Inglaterra dos anos 80.

A Autora põe em evidência a exposição a que duas jovens sozinhas estão sujeitas, tendo de se movimentar num mundo onde as normas que regulam a conduta individual das mulheres na Europa não se aplicam – apesar das marcas culturais deixadas pelos povos colonizadores.

É, principalmente, por este motivo que duas jovens temerárias, ao aventurarem-se na exploração de uma cultura que lhes é desconhecida, ou que só conhecem através de livros e documentários, tenham de adoptar toda uma série de procedimentos para que a viagem se efectue em segurança.

E é precisamente por ignorarem alguns dos procedimentos mais básicos que são assaltadas travando, depois, conhecimento com uma jovem europeia que interpreta as normas locais à sua própria maneira e terá um papel fundamental no desenvolvimento da trama.

As duas incautas turistas reagem de forma completamente oposta face à adversidade e ao desconhecido: a atraente, optimista e bem sucedida Esther (o alter-ego da Autora, não só pela profissão como pela semelhança física), quando as coisas começam a fugir do seu controle, o seu sistema de vigília entra em alerta máximo. O que determina, talvez, o facto de ser a única das duas e regressar sã e salva a Inglaterra; Gemma, inteligente, auto-destrutiva, pessimista e hiper-carente patinho feio, torna-se o alvo perfeito para os oportunistas que procuram turistas desprevenidos.

Viagem sem Regresso é, por isso, um romance que explora o amadurecimento e a ética nas relações de amizade.

Com Katy Gardner aprendemos que nenhuma amizade resiste ao desgaste do tempo quando a dinâmica que impulsiona o relacionamento é a competição.

A Autora ensina também a olhar para além das aparências, a ver através das “máscaras” com que muitas vezes se camuflam aqueles com os quais nos relacionamos.

Por vezes, uma aparência de “vítima” nem sempre corresponde a uma personalidade frágil, sem defesas, servindo antes de camuflagem a uma personalidade que não olha a meios para atingir os seus fins.Principalmente quando se trata de destruir as pessoas mais próximas em benefício próprio.

Katy Gardner consegue demonstrar, recorrendo a exemplos e à dramatização, que a inveja e a frustração desencadeados pela falta de amor ou referências positivas é normalmente, propiciadora de comportamentos anti-sociais.

Por outro lado, a frustração e o remorso, agregados ao sentimento de que algo ficou por explicar levam, cinco anos depois da fatídica viagem à Índia, Esther de volta à terra dos marajás.

Algumas perguntas sem respostas, cristalizadas no passado, impedem-na de viver o presente e construir o futuro.

Este é o objectivo inconsciente que leva a protagonista a regressar ao local onde, alguns anos antes, ocorreram acontecimentos traumáticos.

Para incinerar os fantasmas e renascer das cinzas…

…como a Fénix.

Um livro trepidante, mas sobretudo introspectivo.

Uma terapia para varrer o lixo do sótão e arquivar a informação nos ficheiros correctos (secretos) da mente…

Um livro pertinente e construtivo.


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, October 11, 2005

“A Cidade e as Serras” de Eça de Queiroz (Planeta DeAgostini)


A história do intelectual Jacinto, um rico herdeiro de família brasonada, oriundo de nobreza antiga, contada por José Fernandes, o seu melhor amigo, um alegre burguês, que vive à sombra daquele a quem chama de “o meu Príncipe”.

A acção decorre em dois locais. Inicialmente, somos colocados diante de uma esplêndida mansão, num dos bairros mais elegantes de Paris, onde Jacinto reside desde a mais tenra infância. A casa de Jacinto, na Cidade-Luz – que equivale àquilo que hoje em dia seria a residência de Bill Gates no que toca à mais moderna tecnologia – é o ponto de encontro para onde convergem as mais belas e frívolas cocottes, os intelectuais mais proeminentes, os empresários mais bem sucedidos. No meio desta élite, altamente selectiva, Jacinto é o expoente máximo de todas as virtudes: beleza, riqueza, inteligência e cultura…

No entanto…

…definha a olhos vistos, enclausurado no palácio das mil e uma maravilhas, como detecta o olhar de lince do seu amigo Zé Fernandes.

Na casa parisiense de Jacinto, proliferam as mais espectaculares inovações tecnológicas, com o objectivo de facilitar a vida ao ser humano e poupar-lhe ao máximo o esforço despendido. Sendo, na altura, a maior parte delas produto de ficção tornaram-se, no sec. XX, realidade, o que faz com que a obra, apesar de escrita em meados do sec.XIX, esteja envolta numa atmosfera de grande actualidade, uma vez que, ao lermos os primeiros capítulos, temos a sensação de que a história se passa, de facto, no último quartel do sec.XX.

Os amigos de Jacinto são os intelectuais de vanguarda, em cuja casa se organizam tertúlias onde se discutem as ideias de Schopenhauer a Kierkgaard e as últimas novidades em termos de tecnologia que fazem parte da sua infindável colecção de brinquedos. As mais variadas e vanguardistas obras literárias amontoam-se, também, um pouco por todo o lado.

Os episódios parisienses são abundantemente coloridos com o agudo sentido crítico de Eça de Queiroz ao descrever a miséria, a indiferença e o anonimato referentes às condições de vida do proletariado da cidade.

As convicções do Autor estão igualmente implícitas na descrição do definhar de Jacinto, preso na sua gaiola dourada, rodeado de requintadas, insapientes e entediantes beldades.

São, aqui, descritos alguns episódios divertidíssimos relativos às falhas da Tecnologia com os quais, o Autor pretende demonstrar a falibilidade da obra humana. São, disso, exemplo o desconcertante blackout de energia eléctrica, o embaraçoso encalhar do elevador com o preciosíssimo peixe que Sua Alteza, amigo de Jacinto, trouxe especialmente para a requintada ceia ou a trapalhada resultante de um inconveniente rebentamento da canalização.

Eça serve-se abundantemente da ironia e do sarcasmo quando se trata de demonstrar a superficialidade relativamente à utilização da maior parte das invenções tecnológicas da casa de Jacinto que, na sua opinião, apenas estimulam a preguiça (ex: a referência ao aparelho para abotoar as ceroulas!).

A dada altura, a melancolia de Jacinto é de tal ordem que Zé Fernandes aproveita um problema surgido numa das ancestrais propriedades da família de Jacinto, para o arrastar até à Serra.

Depois de uma viagem atribuladíssima onde, já ao entrar em Espanha, se nota a diferença quer em atraso tecnológico quer em termos de (des)organização burocrática, os dois amigos perdem as bagagens durante o transbordo. Despidos de qualquer traço de “civilização”, chegam a Tormes à propriedade de Jacinto, após uma série divertidas peripécias, onde o “príncipe” se vê obrigado a mergulhar na Natureza e a regressar às origens culturais.

O despojamento de Jacinto impele-o a recuperar os seus atributos naturais e genéticos - atrofiados pela sociedade civilizada -, entre as gentes simples, sem sofisticação ou artificialismo. Por outro lado, austeridade e a falta de sentido de humor das senhoras da “boa sociedade” serrana contrastam vivamente com a exuberância das hiper-sofisticadas e ocas parisienses.

O lirismo bucólico, por vezes excessivo, de Eça aproxima-o da concepção humanista de Rosseau de que o homem, ao nascer “animal”, isto é, próximo da natureza, é realmente bom e que é a sociedade que o corrompe, sendo o grau de corrupção tanto maior quanto maior o grau de “civilização”.

Por isso, na óptica do amigo Zé Fernandes, a cura de Jacinto está, precisamente, no isolamento numa terra no meio do nada.

Curiosamente, é na solidão de uma pequena aldeia na Serra, na pequena localidade de Guiães, que Jacinto encontra a mulher ideal, a esposa e dona-de-casa perfeita, fisicamente muito semelhante à Maria Eduarda de Os Maias – o arquétipo queirosiano de deusa perfeita – na pele da Prima Joaninha.

Joaninha está, por isso, destinada a transformar-se em fada do lar encarnando o estereótipo de mulher ideal que se prolonga até aos anos 50 do sec XX.

Porque Eça não era, na altura, capaz de conceber uma mulher que se lhe equiparasse em saber, talento ou cultura. Não deixa de ser sintomático que durante os episódios da estada dos dois amigos em Paris, as mulheres que frequentavam os saraus e tertúlias onde se discutia literatura e ciência, serem todas cocottes ou mulheres de reputação duvidosa, nunca intelectuais genuínas. Os nomes de Jane Austen, das Irmãs Brontë ou George Sand nunca são mencionados.

Sinais dos tempos…

Caso contrário poder-se-ia dizer que a história de A Cidade e as Serras se passa nos dias de hoje.

Um livro intemporal.

Um clássico que nunca passa de moda…


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, October 06, 2005

“O Oráculo” de Catherine Fisher (Presença)


Ao ler o primeiro volume desta deliciosa trilogia da autoria da arqueóloga britânica que agora se dedica à escrita a tempo inteiro, fica-se com a nítida impressão que a história é interrompida no ponto mais “quente”. Ou seja, quando o verdadeiro conflito vai, na realidade começar.

Quando decidiu escrever O Oráculo, a Autora criou um cenário onde impera um sincretismo cultural e religioso baseado nas civilizações grega e egípcia.

A acção desenrola-se, precisamente, algures numa ilha do Mar Egeu cujas coordenadas se interceptam num ponto geograficamente situado entre estas duas culturas.

A trama circula à volta do culto de um deus em forma de Escorpião – o deus da vida e da morte – cujos rituais em tudo se assemelham ao culto de Osíris. E da Rainha da Chuva, num país açodado pela seca, uma deusa que pode facilmente ser identificada com a deusa egípcia Ísis, esposa de Osíris.

A acção prossegue centrada numa teia de intrigas relacionadas com a ascensão na hierarquia do culto. Esta situação é desencadeada pela morte do velho Arconte, o sumo-sacerdote ou a encarnação viva do deus, cujo sacrifício tinha como objectivo trazer a chuva de volta à terra. Uma história que remete para o mito das estações que envolve deuses como Ísis, Osíris, Hórus, Seth…

A traição aparece como um tema sempre actual porque sempre presente no quotidiano, quer nas relações pessoais quer laborais, proporcionando ao leitor a possibilidade de se identificar com as personagens e projectar nelas as suas próprios vivências.

O Oráculo é também uma história de fé, onde se trata de acreditar ou não nos deuses, contrapondo a postura dogmática do povo iletrado ao cepticismo dos mais eruditos. E onde se fala, também, de valores, de ética.

Fisher apresenta-nos um cocktail de personagens fascinantes porque moduladas, redondas e, por isso mesmo, surpreendentes.

Seth, apesar do nome do deus da traição da mitologia egípcia, é um jovem adolescente, amigo leal, da sacerdotisa Mirany e possuidor de um lado humano muito forte. Os erros que comete não são despoletados pela ambição, mas em prol da necessidade de ajudar os outros e pelo impulso que desencadeia a vontade de quebrar regras, própria da fase da adolescência.


Mirany, a sacerdotisa do deus escorpião, é a heroína do romance e, por isso, a menos surpreendente das personagens moduladas por sabermos, desde o início, o que se passa no seu íntimo. Contudo, vai amadurecendo ao longo da trama e passa a defender com mais segurança as suas convicções, apesar de os valores fundamentais permanecerem intactos.

Alexos, o novo Arconte, é uma criança “especial” porque diferente. Vive no mundo do sonho, como se o seu pensamento pairasse algures no limiar entre a vida e a morte, entre a sanidade e a loucura.

Oblek, o principal aliado de Mirany e Alexos, é um indivíduo aparentemente incontrolável. Bêbado, irresponsável, de temperamento bilioso, aspecto burlesco e repulsivo. Alguém em quem, no início se reluta em confiar, mas…

Os dois grandes vilões são: Hérmia, a Oradora, cujo nome tem a ver com Hermes, o deus do comércio, dos ladrões, o mestre na mentira – é a grã-sacerdotisa; e Argelim, o general ambicioso, amante de Hérmia. Ambos usam a religião para manipular o povo crente com o objectivo único de amealhar riqueza. São as duas únicas personagens que mantêm o carácter constante ao longo de todo o romance.

Rhetia e Crisis, são duas jovens oriundas da aristocracia, sacerdotisas como Mirany. São as personagens que mais surpreendem o leitor mostrando, no final, uma faceta até então completamente oculta da sua personalidade.

Cada capítulo corresponde a cada um dos nove dias que completam as cerimónias fúnebres do Velho Arconte, ao longo dos quais se procederá à procura do sucessor no qual o deus terá, supostamente, reencarnado. Cada um destes capítulos inicia com um texto introdutório que dá voz ao deus-escorpião. São textos de extrema beleza e poesia em formato de prosa, pela pena de uma autora, já habituada às lides poéticas.

Um livro que serve de aperitivo para os volumes que se seguem.

Que abre a porta para o gosto pela literatura junto dos mais jovens e os sensibiliza para a beleza da Palavra e para o encanto das civilizações antigas.

Deliciosamente lúdico.


Cláudia de Sousa Dias