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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, July 24, 2013

“O Retorno” de Dulce Maria Cardoso (Tinta-da-china)



Romance premiado pelo Ministério da Cultura Francês, em 2012, que valeu à Autora o Título de Cavaleira da Ordem das Ates e das Letras, em virtude do impacto da obra de Dulce Maria Cardoso em França e, particularmente , junto das Comunidades Portuguesas naquele País. Este Prémio concedido pelo MCF constitui uma das mais elevadas distinções honoríficas atribuídas em França com vista a homenagear figuras que se destacam pela contribuição para a difusão da sua cultura em terras gaulesas.

As suas obras anteriores Campo de Sangue, Os meus sentimentos e Até nós tiveram em Portugal uma boa recepção por parte da crítica, sendo posteriormente traduzidas para o francês e outras línguas. A autora escreve também argumentos para cinema.

O Retorno
” obtivera o Prémio Especial da crítica, o Prémio da revista Ler e o Prémio Blogtailors 2011.

A Autora havia já sido brindada com o Grande Prémio Acontece pelo romance Campo de Sangue.

Dulce Maria Cardoso é originária de Trás-os-Montes, mas passou a infância em Angola, tal como os dois jovens protagonistas de O Retorno. De regresso a Portugal, licenciou-se em Direito vivendo, actualmente, em Lisboa.

O Retorno” é um romance que aborda o tema delicado e polémico que foi para Portugal a descolonização, o fim do Império Ultramarino e o conturbado regresso dos Portugueses que habitavam as colónias, após a Revolução de Abril de 1974.

A trama do romance é desenvolvida pela voz de Rui, narrador auto-diegético, cuja missão é a de relatar o regresso da família de Angola, no período “quente” em que ameaça explodir a Guerra Civil mediante a cisão política que grassa em Angola, após o fim imediato da Guerra do Ultramar. No discurso de Rui está patente sobretudo uma perigosa dose de inconformismo, que ameaça transformá-lo um ser inadaptado, ao chegar à capital portuguesa, mas que acaba por se sublimar num implacável instinto de sobrevivência. Este inconformismo provém-lhe sobretudo do facto de milhares de portugueses residentes em Angola serem condenados ao exílio, para não morrerem às mãos dos locais, destacando o sentimento de impotência do narrador face à fragilidade física e psíquica da mãe, agravada ainda mais pela sensação de desenraizamento e perda de todos os bens.

Outro problema vivido na época por quem regressava das ex-colónias e equacionado pela Autora é o violento choque cultural face à forma de viver na metrópole e que se encontra patente no discurso de Rui ao qual está muitas vezes implícito um certo desprezo pela forma de viver, de ser e estar dos portugueses da metrópole – habituados a meio século de austeridade, repressão e pobreza, preconizadas pela ditadura do Estado Novo, forma de viver que contrastava fortemente com o estilo de vida dos portugueses das colónias,pautado por padrões de comportamento que implicavam uma maior liberalização de costumes, que se reflectia até no vestuário, sobretudo das mulheres.

O romance inicia com a exaltação do contraste resultante entre o diferencial de expectativas e realidade com que se deparavam à chegada. O imaginário do Portugal bucólico de Rui, polvilhado de belas jovens dríades com cerejas no lugar de brincos dos postais ilustrados, dá lugar a um Portugal de gente cinzenta de ar anódino e triste que opta quase sempre pela ausência de cor no vestuário.
A dor de deixar uma vida e uma casa para trás como os refugiados de Gomorra está alegoricamente representada no pungente abandono de Pirata, a cadela que era como um membro da família, dada a impossibilidade de transportá-la no avião sobrelotado. A isto junta-se a incerteza quanto ao paradeiro do pai com forte suspeita de este já não constar no mundo dos vivos.

O Retorno tem o mérito de explorar as consequências psicológicas da Guerra do Ultramar na mente dos jovens de então, dominados pelo cenário de incerteza e precariedade que caracterizavam a situação de anomia social, vivida durante os anos conturbados da descolonização logo após o 25 de Abril.

Mal chegam a Portugal, Rui e a família e milhares de refugiados vêem-se obrigados a habitar por tempo indeterminado
um hotel de cinco estrelas no Estoril, disponibilizado pelo Governo para receber os “retornados”.

Mas a desagregação mental da mãe de Rui – resultante do agravamento de um quadro clínico de esquizofrenia que não foi adequadamente diagnosticado ou, na melhor das hipóteses, de uma perturbação delirante, que se traduz em surtos psicóticos ocasionais e chega a ser confundido pelos familiares, o marido inclusive, com possessão demoníaca – agrava-se mediante o quadro de instabilidade social e do clima de medo em relação ao futuro que se vive no país. Já não se trata da ameaça das bombas, ou da tortura vividas em Angola. É antes a lembrança da prisão e desaparecimento do pai e a sensação de desenraizamento juntamente com a falta total de apoio dos parentes que residem em Portugal.

As condições de vida no hotel rapidamente se degradam devido à sobrelotação. Os hóspedes “especiais” sentem-se a viver numa colmeia ou num formigueiro. Surgem os conflitos com a direcção do hotel, que emite normas cada vez mais apertadas. As chamadas de atenção tornam-se constantes.

Aumenta o sentimento de raiva, revolta e desprezo social por parte de Rui, fruto de um sentimento íntimo de espoliação, sem conseguir interiorizar os motivos que conduziram à situação que está a viver.

O romance peca apenas pela unilateralidade de ponto de vista, já que vemos a situação apenas pelos olhos de Rui. A trama sairia talvez enriquecida em termos de profundidade se houvesse outras personagens cujo ponto de vista pudesse ser cruzado com o de Rui, por exemplo, o olhar da mãe de Rui, antes, durante e depois dos anos vividos em Angola, ou mesmo o ponto de vista da irmã. Nota-se, talvez a falta de um olhar ou uma voz feminina no tocante à descolonização sobretudo por parte da irmã, a boa aluna que rapidamente se integra no ambiente urbano da capital portuguesa.

Assistimos no entanto a um desdobramento enunciativo no romance onde a voz do eu narrador que se propõe narrar a estória está a fazê-lo num tempo posterior aos acontecimentos, diferindo da mentalidade mais imatura do eu empírico, isto é do Rui adolescente. O enunciador que corresponde à voz do narrador é alguém que amadureceu e olha o passado com distância e despreendimento depois de assistir à reconstituição da família e de conseguir resgatar.

A exposição do ponto de vista e da génese do sentimentos algo anti-social do jovem adolescente é feita de forma a explicar alguns comportamentos hostis por parte de alguns emigrantes das antigas colónias, um tipo de comportamento cuidadosamente explorado no romance pela Autora. Eu diria mesmo que assunto é tratado com pinças. O Rui de quinze anos de idade opta por exibir uma atitude bastante hostil em relação ao meio social lisboeta. A mãe refugia-se num mundo só dela pelo que, a explicação dada por Rui acerca do estado interno da própria mãe é conseguida na quase totalidade por conjecturas.
A mãe de Rui só sai do estado letárgico a partir do momento em que a estabilidade regressa e o país assiste à lenta retoma económica nos anos que se seguem, já no dealbar dos anos oitenta...

No epílogo, a voz do narrador transmite uma certa nota de esperança embora sempre com a perspectiva de que nada é garantido.

Dulce Maria Cardoso traça neste romance o retrato de um tempo situado na história recente de Portugal, onde se encontra presenta a doxal, sobretudo no tocante às alcunhas de algumas figuras políticas da época, mas com o mérito de não ceder a tentações ideológicas de nenhum quadrante político.


11.09.2012-09-06-2013
Cláudia de Sousa Dias


Friday, July 12, 2013

“A Ninfa Inconstante” de Guillermo Cabrera Infante (Quetzal)


Tradução de Salvato Telles de Meneses


1.Dados Biográficos:

Guillermo Cabrera Infante nasceu em Cuba a 22 de Abril de 1929, tendo falecido em Londres, a 21 de Fevereiro de 2005, em consequência de um acidente doméstico que lhe fracturou a anca. Filho do jornalista Guillermo Cabrera e Zoila Infante, ambos militantes comunistas e fundadores do partido. Este facto levou a família à prisão, ainda durante a ditadura de Baptista, juntamente com o jovem Cabrera Infante que contava então com apenas sete anos. As origens de Infante remontam, no entanto, às Canárias, mais propriamente à ilha de La Palma, lugar de onde partiu a sua família para Cuba, em 1941.

Aos dezoito anos, o Autor publica o seu primeiro conto: El Señor Presidente. Chegou a estudar Medicina, mas desistiu do curso para estudar Jornalismo. Em 1950, acabou por especializar-se em Literatura e Cinema, paixão que é projectada em todas as suas obras publicadas. Em 1952, os censores do governo de Baptista acusam-no de obscenidade, baseando-se na análise de um conto que Autor havia escrito naquele ano. Foi proibido de publicar com o próprio nome, dificuldade que contornou, recorrendo ao uso de um pseudónimo. A partir de 1954, começa a trabalhar na revista Carteles, facto que é referido pelo narrador do romance A Ninfa Inconstante de que hoje aqui falamos. O romance é autodiegético, sendo o narrador e protagonista um alter-ego do próprio Autor, apesar de se tratar de uma obra de ficção. A protagonista feminina é, por sua vez, a projecção idealizada das divas do cinema europeu dos anos 60 da nouvelle vague. Na altura em que escreveu o romance, o Autor assinava ainda o pseudónimo de Guillermo Cain (Caín, em espanhol, o filho de Adão, preterido por Deus, tal como o Autor é preterido pelo regime de Baptista; é, também, a contracção dos dois apelidos do Autor Cabrera e Infante), até 1960.
Foi ao longo da década de 50 do século XX que o Autor escreveu a maior parte dos seus contos, os quais viriam a integrar o volume Así en la paz, como en la guerra. Casa-se em 1953 com Marta Calvo, de quem tem duas filhas. Em 1958, conhece a actriz cubana Miriam Gómez com a qual viria a casar três anos mais tarde, após conseguir obter o divórcio de Marta.

Com a Revolução e a ascensão de Fidel Castro ao poder , em 1959, o Autor, que havia apoiado a mesma, foi nomeado Director do Conselho Nacional de Cultura, tornando-se director executivo do Instituto de Cinema e subdirector do diário A Revolução tendo a seu cargo o Suplemento Literário, no qual podia dar largas às suas aspirações de liberdade , desenvolvimento e promoção da Cultura. Porém, as suas relações com o regime cedo se deterioraram devido, em grande parte, à curta metragem rodada por Orlando Jiménez Leal e pelo próprio irmão do Autor, Saba Cabrera, em finais de 1960. O filme da discórdia chamava-se P.M., a história não tinha propriamente uma estrutura definida e descrevia as mais ousadas formas de diversão de um grupo de habaneros (à semelhança do enredo de Três Tristes Tigres, de que já aqui falamos), ao longo de vinte e quatro horas, em finais de 1960. A película foi proibida por Fidel Castro que, no seu discurso de 30 de Junho de 1961, intitulado Palabras a los Intelectuales deixava bem claro que: “Dentro de la Revolución, todo. Fuera de la Revolución, nada.” Foi a primeira pedra lançada para a edificação do castelo de motivos que estiveram na base do exílio do Autor. Em 1962, Guillermo Cabrera Infante é enviado a Bruxelas como adido cultural da embaixada cubana. Durante a permanência naquele país, escreveu Um ofício do século XX (1963). Regressa a Cuba, após a morte da mãe, em 1965. Ali, é detido pelo serviço da Contrainteligência, durante quatro meses, período após o qual é exilado, juntamente com a família, em Espanha. Mas as dificuldades económicas e o antagonismo do regime franquista traduziram-se na recusa do governo espanhol em regularizar a situação naquele país, forçando-o a exilar-se em Londres, onde se instala definitivamente. Em 1968, já a viver na capital britânica, publica Trés Tristes Tigres, uma versão melhorada de um anterior romance, Vista del amanecer del tropico. Trés Tristes Tigres foi prémio Biblioteca Breve em 1964, um livro cuja principal característica inovadora consistia na introdução de expressões idiomáticas e coloquialismos tipicamente cubanos, contendo também inúmeras alusões e referências a outras obras literárias, ao mesmo tempo que retratava a vida nocturna de três jovens, naturais de Havana, em 1858. Em Cuba, a obra é rotulada de contra-revolucionária. GCI, sendo um crítico implacável ao regime castrista, recusa-se então, a lapidar as suas obras Trés Tristes Tigres e Havana para um Infante Defunto, dentro da linha editorial exigida pelo Ministério da Cultura de Cuba. No início de 1970, instala-se em Hollywood, para se dedicar à actividade de guionista para a indústria cinematográfica. Em 1979, obtém a cidadania britânica. Vence o Prémio Cervantes em 1997, e o Prémio Internacional da Fundación Cristobal Gabarrón, na categoria das Letras, em 2003. Devido ao estado frágil da sua saúde, é internado no Hospital de Londres, em consequência de uma fractura na anca, acabando por contrair septicemia da qual viria a falecer. A sua morte não foi notificada em Cuba.



O Estilo de Cabrera tem um conjunto de marcas características das quais se salientam os constantes avanços e recuos no tempo, como se dançássemos uma rumba com o tempo da diegese. Também a paranomásia, as hipérboles, os regionalismos e expressões típicas do linguajar cubano, de que já falamos a propósito de Três Tristes Tigres estão também presentes em A Ninfa Inconstante.
Na construção do “eu” narrativo é, também, perceptível a presença da melancolia, associada à influência dos blues norte-americanos e do jazz que impregna a noite tropical cubana, reflectida no discurso do narrador. Um subtil sentido de humor é recheado de fina ironia e acutilante sarcasmo que se mistura a esta disposição de espírito – a pedra de toque da escrita de Guillermo Cabrera Infante.

Os capítulos de A Ninfa Inconstante são narrados como se fossem crónicas, o que transmite a falsa ilusão de se tratar de um livro de memórias,apesar de ser evidente, o cunho autobiográfico e a projecção de muitos dos aspectos da vida e gostos pessoais do Autor no romance, o qual verte para a escrita as derivações emocionais de quem se encontra em processo de divórcio.

Entre as personagens principais do romance a distância cultural e a capacidade de entendimento entre o narrador e a protagonista feminina são abissais. Logo desde o primeiro capítulo, o leitor apercebe-se de que o artista e a sua musa nunca serão amantes cúmplices: ao paternalismo do narrador, opõe-se o discurso de Stella, algures entre a inveja e o desprezo desdenhoso patente no sarcasmo das frases com as quais reduz a pó a o pedantismo cultural do amante:

«Esmagas-me com o teu conhecimento».

O vasto conhecimento cultural de GCI é aqui projectado na figura do narrador, um homem de meia idade que se apaixona perdidamente por uma adolescente para compor uma personagem que tem mais de patético do que de admirável ou, se quisermos, para traçar uma caricatura, uma paródia de si mesmo, como atesta o parágrafo que se segue:

«A pele dela era a sua fronteira. Por detrás havia um mundo obscuro, cruel, uma selva selvagem e misteriosa. Ela, como todos os territórios inexplorados, atraía e assustava ao mesmo tempo. Fui eu que a descobri, mas a sua exploração (nunca fui capaz de falar de conquista,) foi custosa. Só me salvou o meu instinto de conservação.»



Neste romance, o protagonista é um homem que cede completamente à beleza desta jovem mulher, apesar de fazê-lo apenas como esteta, já que não lhe encontra nenhum atributo de personalidade. Passa a viver em função do seu objecto sexual, à semelhança de Humbert Humbert, o protagonista de Lolita, de Vladimir Nabokov. O paralelismo entre a imaturidade de Stella e Lolita é evidente, apesar desta última ser muito mais jovem do que os quinze anos de Stella, quando é seduzida por Humbert. Contudo, a diferença entre ambos os protagonistas masculinos é mais do que evidente: Humbert Humbert planeia meticulosamente a aproximação a Lolita, ao passo que o protagonista de Cabrera Infante é um homem que se deixa levar pelos acontecimentos. E Stella, ao contrário de Lolita, sabe exactamente o que deseja: sair da área de influência da madrasta e viver a vida como muito bem deseja usando o(s) amante(s) como plataforma de lançamento. A relação entre ambos vai-se diluindo, esboroando. Algo que se adivinha desde o início do romance, previsível pela construção dialógica do par amoroso.

As intertextualidades, presentes no romance estão patentes em alusões e referências culturais que lembram as figuras míticas ligadas ao cinema da nouvelle vague, tais como a identificação trejeitos, posses e expressões verbais de Stella com cenas da sétima arte, provenientes sobretudo de filmes europeus: por exemplo, a comparação sistemática da forma de vestir de Stella e a forma de pentear o cabelo louro platinado com o estilo de Brigitte Bardot, assim como a menção feita a vários filmes de Jean-Luc Goddard.
Segundo o escritor e crítico Fernando Savater, «Guillermo Cabrera Infante ha cultivado en el más alto grado el sentimiento cómico de la vida: pero no como el apuesto al sentimiento tragico , sino como una variante que lograva al purificarle del superfluo al patetismo de la seriedad.»

Este é precisamente o caso de A Ninfa Inconstante, romance no qual o autor cultiva um humor mesclado com o drama profundo em que vive o narrador e o precipita na teia intrincada da personalidade inquietante de Stella, a qual decide recorrer à sua beleza de mulher fatal para manipular o amante e libertar-se do jugo familiar.

Mas quem é Stella Morris, a heroína do romance? A jovem é dona de uma beleza perturbadora, rebelde, com a sensualidade à flor da pele e plena consciência do efeito que o seu físico desperta no sexo oposto (e não só), tirando o máximo partido do seu corpo para conseguir os seus objectivos. Stella é menor, órfã, e nutre um incomensurável ódio pela madrasta, como resultado de um enraizadíssimo complexo de Elektra. O ódio é tão intenso que a jovem deseja intensamente a sua morte, chegando a tentar aliciar as pessoas a assassiná-la.

Uma desconcertante mistura de perversidade e inocência faz da jovem Stella Morris uma figura inquietante, solar, pela forte energia que dela emana, e ao mesmo tempo lunar, pelas oscilações de humor e instabilidade ou inconstância que demonstra ao longo do romance. O primeiro momento em que aflora o lado sinistro da sua personalidade, dá-se quando tenta convencer o amante a matar a madrasta; depois, há uma outra variante desta faceta que vem à luz do dia sempre que Stella se sente de certa forma diminuída face ao namorado. Por outro lado, seu lado frágil manifesta-se na incapacidade ou inabilidade, devido à falta de ausência de desenvolvimento de competências para sobreviver sozinha, ou seja, sem recorrer ao uso do corpo para fins sexuais.

O Autor tem, no entanto, o cuidado de enquadrar o comportamento idiossincrático de Stella, a qual não consegue, devido a sua imaturidade, evitar tornar-se uma mulher-objecto, apesar dos esforços olímpicos em mostrar-se com uma mulher emancipada. Stella veste de maneira extremamente ousada, mesmo para os padrões da época e do local – estamos a falar de Varadero, localidade voltada essencialmente para o turismo balnear – deixando a maior parte do corpo a descoberto e, por vezes, sem usar roupa interior.

Stella é a Brigitte Bardot do Malecón (a marginal de Varadero), sofisticada mas primitiva e com um forte instinto sexual, tal com a personagem de Roger Vadim de E Deus criou a Mulher, embora lhe seja acrescentado um toque da fleuma anglo-saxónica.

A figura de Stella é, assim, construída e modelada partindo de um conjunto de referências literárias e cinematográficas que servem de base ao desenvolvimento da trama. A primeira pista é-nos fornecida logo na nota prévia do Autor, aludindo a  Guy de Maupassant (que se lê mot passant), ou seja, a ninfa inconstante que é Stella é a figura central de um romance onde se cruza o legado do vários mestres que trabalham a palavra. E é talvez por essa razão que os críticos descrevam este romance como “uma obra de elegância formal inusitada”.

O romance: Um amor efémero

O amor vivido com Stella, a ninfa inconstante de que fala o narrador, é catalogado, logo no primeiro capítulo, como sendo um amor de curta duração ao introduzir o comentário do narrador: «a cigarra só vive um Verão». No romance, Stella representa o protótipo do eterno feminino. A sua figura está associada à Lua caribenha, símbolo máximo da beleza e feminilidade para a cultura ocidental. Stella é quase sempre representada como uma espécie de ídolo, acompanhada por vezes de uma aura espectral e irreal que confere ao romance uma dimensão, de certa forma, próxima ao surrealismo. Algumas das cenas co-protagonizadas pelo narrador e por Stella dificilmente se consegue destrinçar se pertencem ao plano do sonho ou da vigília, como é o caso em que o narrador entra em casa da madrasta. O leitor nunca chega a ter a certeza se aquilo que sucedeu naquela vivenda ocorreu de facto. É precisamente nesta cena que Stella surge com uma certa aura fantasmal ou uma deusa infernal, Hécate, com os seus sinistros rituais sanguinários. Ela surge precisamente como “a deusa à luz da Lua”, que é , ao mesmo tempo, “fulgurante como um dom do sol”, surgindo ao amante, irresistível e fatal, despertando um amor que inflama mas que rapidamente se consome.

O romance adquire uma dimensão erótica, sobretudo na descrição da primeira noite de amor com Stella, virgem e impúdica.

«A insolência dela não era uma máscara.»

Porque Stella não tem a menor noção de pecado, o seu comportamento está muito para além do erotismo, é mais uma forma, um protótipo de ideal feminino numa dada época, meados do século XX, mostrando-se ora ingénua, ora sedutora e, por fim, manipuladora. Não é, no entanto, capaz sequer de traçar uma fronteira entre o bem e o mal sendo os contornos destas duas ideias perfeitamente móveis e elásticos na mente da jovem. Trata-se de uma figura feminina que parece mais atrair como uma planta bela mas venenosa. Logo nas primeiras frases é perceptível que o narrador não ama a criatura, fisicamente perfeita, que deseja de forma assaz obsessiva:

«Eu era apenas um esteta. Tinha-me refugiado na literatura como se me acolhesse o chão sagrado, na sua igreja laica, o jornalismo. O esteticismo é o último refúgio do fracasso da vida.»

Esta é a chave do sentimento por Stella, que o narrador irá descrever ao longo do romance e o trilho pelo qual o Autor marcou o rumo da própria vida.

De um outro ponto de vista, A Ninfa Inconstante é, também um romance que fala de um ser que está a viver um período de transição e não apenas no aspecto pessoal como já foi dito: o protagonista masculino está inserido numa sociedade em que se assiste a uma série de mudanças, sociais, culturais e políticas, embora esses aspectos não apareçam declaradamente mencionados no livro.

A Ninfa Inconstante é, assim, a recriação de todo um estilo de vida numa época já distante do tempo presente em que é escrita, recriando uma paisagem que já não existe tal, quando se refere ao aspecto da cidade tal como nos é apresentada no livro: do Malécon e das principais ruas de Havana e o estilo de vida então praticado pelos seus habitantes. E é, sobretudo, a narrativa da evocação de um lugar e das sensações a ele associadas pela memória de quem vive no exílio.

«Esta narração está sempre no presente, apesar do tempo dos verbos, que não deixam de ajudar para criar, para fazer crer (jogo semântico-fonético com os verbos crear e creer, no original, que se lêem de forma muito similar em castelhano) no passado. Uma página, uma página cheia de palavras e de signos tem de ser percorrida e esse trajecto faz-se sempre agora, no exacto momento em que escrevo a palavra “agora” que depois vai ser vida. Mas a escrita tenta forçar a leitura a criar um passado, a crer nesse passado – enquanto esse passado narrado vai em direcção ao futuro.

(…)

Haverá momentos em que o olho que lê não acreditará no que vê. A isso chama-se ficção. Mas é sempre necessário que o leitor confunda o presente da leitura com o passado do que narra e que os dois tempos progridam em busca de um futuro que é a culminação da narração (gosto de rimas impensadas). Mas é preciso notar que toda a narração é flash-back.

(…)


GCI, A Ninfa Inconstante, Prólogo.

Escrever é assim, na perspectiva do Autor, o contrário de esquecer. Escrever é, portanto, memória como atesta o parágrafo inicial do primeiro capítulo:

«O passado é um fantasma que não é preciso convocar com médiuns ou invocar com abra-essa-obra. É na realidade da recordação um ravenant total. Não é preciso pôr as mãos em cima da mesa, de palmas para baixo, ou responder aos três toques rituais ou perguntar «Quem vem lá?». O espírito do passado está sempre a vir. Um copo de água e uma flor amarela chegam. Não é necessário repetir frases encantatórias ou cast a spell: todos os mortos estão aqui, vivos, exibidos por trás de uma janela de vidro preto, de uma câmara escura, de uma obra de artifício. Os entes passados estão vivos porque para nós não morreram. Estamos vivos porque eles não morrem. Nós somos os mortos vivos».

É assim que Guillermo Cabrera Infante escreve com a voz do exílio. Convocando o seu paraíso perdido.


07.09.2012-26.05.2013

Cláudia de Sousa Dias



Wednesday, July 03, 2013

“a máquina de fazer espanhóis” (ou “o fascismo dos bons homens”) de valter hugo mãe (Alfaguara)




Vencedor do Prémio PT 2012, este quarto romance de valter hugo mãe pode-se dizer que é um romance bipolar. Não, como é óbvio, no sentido clínico ou da patologia da mente, a acepção mais comum da palavra, trata-se antes de uma polarização que se adapta como uma luva à exploração do sentido da dor pessoal do protagonista – o senhor silva, um idoso, internado num lar de terceira idade, após sofrer um avc – por um lado, e a dimensão da pusilanimidade colectiva do homem comum português que vive a maior parte da sua existência em regime ditatorial e a outra metade em democracia, pelo outro.

O senhor silva é um octogenário, fiel a um amor que durou mais de meio século e só terminou com a morte ou, se calhar, nem assim. Na verdade, ao longo do romance, esta personagem central sob cujo olhar nos é dada a conhecer a narrativa, não deixa nunca de sofrer as consequências do violento choque emocional de ter perdido a mulher. Logo a seguir à morte da esposa, o senhor silva vê-se confrontado com um drama existencial aparentemente inultrapassável: o desafio de sobreviver ao amor de toda uma vida em primeira instância e, numa segunda fase, deter o processo de entropia da máquina biológica que o mantém vivo.

A partir daqui, entramos já na dimensão social do envelhecimento quando, juntamente com o senhor silva, cruzamos o limiar do lar de terceira idade “feliz idade”. E é então que percebemos com a leitura de a máquina de fazer espanhóis até que ponto se torna trágico processo de envelhecimento, sempre de mãos dadas com a exclusão da sociedade produtiva, com base da premissa de com a chegada do fim da idade para trabalhar e a entrada na idade da reforma, a vida começa a degradar-se e a deixar de fazer sentido. Além das doenças degenerativas e incapacitantes que se aliam à indesculpável e insultuosa falta de respeito dos outros na forma como usam as palavra “velho”, como na ausência total de uma política de inclusão. Os filhos do senhor silva e da dona laura, com as suas casas adaptadas à família nuclear e as exigências das respectivas profissões, não conseguem albergar mais uma geração dentro de casa. Para além disto, o avc parece ter despoletado um mecanismo que vai progressivamente alterando a personalidade do senhor silva, facto de que só nos apercebemos, à medida que vamos avançando no romance. O momento exacto em que isto acontece dá-se quando nos damos conta de que o nosso protagonista, alguém aparentemente lúcido, começa a demonstrar alguma dificuldade em distinguir o sonho da realidade e a caminhar perigosamente no limiar entre o bem e o mal. Neste contexto, há uma cena em que agride uma idosa durante o sono, a fazer lembrar um filme de Michael Hannecke, pela surpresa, pelo choque e pelas consequências que daí advém.

A relação do senhor silva com os outros utentes do feliz idade (cuja fonética tem um aspecto ironicamente semelhante à palavra felicidade) é bastante controversa: por um lado, assistimos a uma certa cumplicidade e solidariedade com os restantes utentes masculinos – como o seu homónimo a quem chama jocosamente de o silva da europa (o senhor silva é eurocéptico, em contraste com o seu colega, entusiástico apoiante da adesão de Portugal à UE), o anísio, o medeiros, esteves sem metafísica (que lhe lembra o protagonista do poema A Tabacaria de Fernando Pessoa), sobetudo no tocante ao pessoal da ala feminina a relação não é tão pacífica, apesar da máscara de cavalheirismo e falsa cortesia. Na verdade o senhor silva não as suporta, nem a elas nem à sua religiosidade beata, aversão que se torna particularmente notória no tratamento com que brinda a imagem da Virgem, à qual lhe descola e destrói as pombinhas de cartão ao mesmo tempo que a trata familiarmente por “mariazinha”, tornando-a igual às outras mulheres, mortal portanto, uma mulher que morre como as outras e cujo corpo se decompõe. Não suporta também a mesquinhez, as picuinhas e a maledicência das habitantes femininas do lar, sempre reunidas à mesa do jardim, com os seus pueris trabalhos artesanais, excluindo os homens da conversa, falando mal deles ou de outras mulheres que não estão presentes. No entanto, anísio, antigo curador do museu de arte antiga em lisboa é o único homem admitido na tertúlia feminina e é também o único a arranjar namorada, dentro do lar. Esta é também a única personagem de entre os internos no lar que o próprio Autor afirma ser “genuinamente boa” pelo seu temperamento naturalmente conciliador e que por essa mesma razão, é o único a vivenciar o amor naquele lugar.

Na dimensão sociológica de a máquina de fazer espanhóis está também contido o lado da sociologia que faz fronteira com a política e a história, ao pretender retratar no romance, de forma satírica e acutilante humor negro, a evolução e amadurecimento das pessoas que viveram a infância e juventude durante o Estado Novo e depois, já na idade adulta, a transição e desenvolvimento da democracia, sobretudo nas classes sociais mais humildes e que, por medo de represálias, vindas do aparelho central e da mudança nos governos, sempre manifestaram medo em exteriorizar as convicções politicas. Este receio traduziu-se em esquivar-se invariavelmente a qualquer tipo de participação no tocante à intervenção política, dando-se especial ênfase ao incentivo à despolitização, operado durante largas décadas ao povos dos “silvas”, mesmo durante o regime democrático, e cuja consequência se reflecte numa exasperante pusilanimidade, à semelhança de Pilatos da atitude de Pilatos diante de um inocente politicamente incómodo. O povo que valter hugo mãe descreve neste romance é isso mesmo: um exército de clones de alguém que não hesita em “lavar as mãos” ao denunciar ou prejudicar o vizinho para ficar bem na fotografia, no mais perfeito exercício de pusilanimidade. É por esta razão que o título inicial para esta obra seria o de “o fascismo dos bons homens”, o qual decide depois mudar para o periférico título “a máquina de fazer espanhóis”, pelo receio do impacto negativo que o título original pudesse causar e ao preconceito que poderia gerar à leitura, ainda antes de sair da estante das livrarias.
Na verdade, fala-se muito deste livro, dos prémios adquiridos mas o que é curioso é a comunicação social omitir na quase totalidade a referência a este aspecto do romance, o que não deixa de ser curioso.

O Desenvolvimento da trama

Em a máquina de fazer espanhóis, a crítica social é apresentada em alternância com o drama da alteração progressiva da personalidade e degradação das faculdades mentais do senhor silva. Com a entrada naquela instituição, o senhor silva é colocado diante do facto consumado do envelhecimento e da entrada no corredor da morte . A evolução deste processo é narrada totalmente pelo ponto de vista do idoso, um homem inteligente, arguto, de sentido crítico vincado, acintosamente céptico. O primeiro detalhe em que repara, logo ao entrar no feliz idade, é no facto de os utentes recém-chegados serem alvo de tratamento VIP, instalados nos quartos mais aprazíveis, com vista para o parque onde brincam crianças - uma vista para o passado das próprias vidas, pelo menos enquanto ainda têm memória – mas à medida que as faculdades mentais, a mobilidade e o controle das funções vitais vai diminuindo, a máquina biológica entra em entropia ao mesmo tempo que a máquina social se revela totalmente incapaz de encontrar uma solução para travar o avanço da morte. Assim, os doentes vão sendo transferidos para os quartos do outro lado do edifício, alegadamente melhor equipados, com vista para o cemitério – a paisagem do futuro. Para se irem habituando à ideia, segundo o senhor silva.

valter hugo mãe afirmou, em entrevista ao jornal Público que esta movimentação nos quartos dos utentes «tem o mesmo efeito psicológico que uma roleta russa onde os quartos são os espaços do canhão onde a bala eventualmente entra. É um lugar de debitar corpos.»

Dos momentos mais emblemáticos da diegese de a máquina de fazer espanhóis destacamos capítulo cujo título esteve para ser o título do romance, o fascismo dos bons homens, no qual os “silvas” são conotados com o protótipo do português típico comum, de classe média-baixa que viveu grande parte da vida durante a ditadura do Estado Novo. A descrição desta figura-tipo resume-se, em traços largos, a poucas linhas: pessoas que gostam de ser vistas como homens honrados e trabalhadores, de cumprir compromissos, mas sem a robustez psíquica par fazer face a uma ameaça externa, de uma “máquina maior”, de uma super-engrenagem. Na verdade, este romance de vhm dá a entender, logo no primeiro capítulo, pela voz do senhor silva que, quarenta anos após a Revolução, já não é preciso pensar na Liberdade nem defendê-la, porque se trata de um dado adquirido e “há quem pense nela por nós”. a máquina de fazer espanhóis é, assim, uma 'máquina' asséptica que nos leva a não pensar e a nos fundirmos com um todo maior, isto é, a diluir a nossa identidade, diluição à qual está implícita uma crise de valores. Nesta linha de pensamento, o Autor mostra-nos as sementes que levam ao germinar de uma generalizada crise deontológica e de princípios axiológicos que se reflecte na apatia social e no desinteresse pelas grandes questões, na miragem da perseguição do bem-estar a curto prazo, um objectivo que nunca é atingido.

«um dia estamos distanciados de tudo, e no outro somos os pacíficos pais de família, tão felizes e iludidos (…) iludidos como se nada fosse, porque nada é. as ideias, meu amigo, são menores nos nossos dias. não importam. e podemos pensar qualquer atrocidade saindo à rua.

(…)

as liberdades também fazem isso, uma não importância do que se pensa, porque para quem já não é preciso pensar.

(…)

se não dermos nas vistas podemos passar a vida inteira com os piores instintos e ninguém saberá. Com a liberdade, só os cretinos mais incautos passaram a ser má gente.»

Para antónio silva, o nosso “bom homem” em quem reside o fascismo mais latente, inculcado durante quarenta e oito anos de ditadura, a colocação do eu em relação ao outro apresenta-se da seguinte forma:

«num tempo em que somos todos bons homens, a culpa tem de atingir os inocentes (…) não sou um homem piedoso. não há inocentes.»


Sobre a rudeza silvestre das gentes portuguesas, o Autor dá a entender, pela voz dos dois silvas, ser esta uma característica de uma educação repressiva, tanto das atitudes como do pensamento o que, paradoxalmente, reproduz atitudes hostis.

«somos todos silvas neste país, quase todos crescemos por aí como o mato, é o que é. como as silvas. somos silvestres (…)exactamente (…) assim, do mato, passando pelo terreno de fora com cara de gente mas muito agrestes, sem solução nenhuma.

(…)

«olhe que somos gente educada! (antónio silva)

(…)

«mas a educação tem sido apresentada, neste país, à paulada, ou não lhe parece? (o silva da europa)

(…)

«achei que aquele silva era um imbecil dos grandes e que me estava a empatar a energia com retóricas (antónio silva sobre o silva da europa)

«mas somos bons homens!» (o silva da europa)

Como se vê no discurso “o silva da europa” é um homem ingénuo, dotado de alguma bonomia, crê numa utopia onde o mundo seja um governo único, onde os homens vivem como numa irmandade, como na letra do coral da nona sinfonia de Beethoven, o Hino da Europa:

«um dia seremos cidadãos de um mesmo mundo. iguais, todos iguais. e felizes, nem que seja por obrigação.»

Outro dos capítulos a destacar é a brancura é um estágio para a desintegração final, onde se trata da brancura asséptica dos hospitais enquanto antecâmaras da morte, omnipresente nos quartos dos utentes em estado terminal no lar “feliz idade”. Este é o primeiro capítulo em que antónio silva se apercebe da dinâmica sinistra das relações e do percurso dos utentes naquela instituição a qual, mais do que um lugar de apoio à velhice e, sobretudo, mais do que um lugar de preparação para a morte, esconde um propósito bastante mais cínico:

«o lar não suporta mais do que setenta e três pessoas e, para que uma entre, outras têm de sair. a saída é dolorosa mas rápida. Rodam-se alguns velhos pelos quartos fora. Eventualmente, um que já esteja acamado vai para a ala esquerda, já muito vizinho dos mortos, e outro entrará de novo no quarto vago com vista para o jardim.»

Depois, o capítulo o amor é uma estupidez intermitente mas universal que nos mostra, com o humor corrosivo que caracteriza o discurso do senhor antónio silva, o cínico sobrevivente do amor, os devaneios amorosos dos utentes do lar feliz idade principalmente do ponto de vista das mulheres. Como já antes foi referido, há muito do cineasta Michael Hannecke na forma como é construída a crueldade secreta do senhor silva por valter hugo mãe que faz por vezes recordar, quando acedemos aos pensamentos mais secretos, o terrível patriarca de “O Laço Branco” ou o protagonista da longa-metragem mais recente, “Amour” na construção do ethos social deste idoso antónio silva, um homem aparentemente pacífico, mas cujo lado sombrio acaba por dominá-lo.

Uma pessoas observadas por antónio silva e com quem este se diverte cruelmente, estimulando a sua esperança cega, é a dona marta, na sua eterna espera de notícias por parte do companheiro que ali a depositou para depois se esquecer definitivamente dela:

«ela ficava ali, perante o américo ( rapaz que traz o correio) como uma noiva. a cometer o erro de acreditar no marido uma e outra vez. porque acreditava, mesmo a fim de dois anos sem uma linha, que ele voltaria com uma desculpa de mérito, ainda precisando do carinho dela e feliz pelo reencontro assim é o amor, uma estupidez completa, mas universal.»

Em um ataque de qualquer coisa o autor já coloca em destaque os estranhos surtos psicóticos de antónio, acerca dos quais nunca temos a certeza se ocorrem durante o sono ou a vigília.

Os restantes capítulos desenvolvem a ideia explicitada no início da obra, sempre de acordo com o vector da desintegração progressiva da personalidade e do eu, da cristalização da memória no passado, não apenas de antónio silva, mas dos outros utentes em geral, incluindo o “esteves sem metafísica”, o sr. medeiros, etc.

Um dos aspectos mais comoventes no romance consiste na reacção não apenas de antónio silva mas de todos os utentes com o jovem enfermeiro américo, a principal fonte de afecto para os habitantes daquele lugar. Américo é um jovem que desempenha a profissão com o amor e a compaixão que são requeridos a alguém que dedique a própria vida a cuidar de seres debilitados, sem ver neles apenas um número ou uma fonte de rendimento.

Uma outra curiosidade neste romance algo incómodo para algumas pessoas pouco habituadas ao estilo de vhm é o episódio do incêndio e a morte de um utente em condições mais do que suspeitas no feliz idade – um facto que aconteceu realmente no lar visitado pelo Autor e que serviu de inspiração para a escrita deste romance – dá lugar a um inquérito de investigação operado pelos protagonistas dos romance policiais de Francisco José Viegas: o inspector Jaime Ramos e o seu assistente na PSP do Porto, Isaltino de Jesus. Os dois, hilariantes na sua placidez e estoicismo quanto à pressa em arranjar indícios e provas para resolver o caso, à boa maneira portuguesa. A intrusão desta dupla nos assuntos do lar, a bisbilhotar tudo e todos sem resolver nada e sem tirar conclusões de maior, vem causar uma ruptura no ambiente dramático e depressivo que se começa a avolumar a partir do meio da trama. São as únicas personagens, que por serem criações de outro Autor, são brindadas com maiúsculas. A descompressão face ao ambiente insuportavelmente tenso que se cria neste ponto estágio de desenvolvimento da narrativa, está patente na exasperante lentidão processual e formalismo burocrático com que ambos os funcionários se empenham em fazer cumprir a lei, assim como no carácter inconclusivo de todas as suas acções. A sua inclusão no romance tem a ver com o desejo de representar todo o conjunto de disfunções de um estado burocrático que tenta parecer organizado e voltado para o crescimento, mas a viver dominado por sentimentos contraditórios, a oscilar entre a admiração e a inveja pelos seus vizinhos (espanhóis, sobretudo). Os dois polícias representam, neste contexto e em forma de metonímia, a alegoria da lenta transformação de Portugal, por culpa de uma máquina burocrática que obriga a cumprir ordens ao invés de raciocinar, numa distopia, isto é, numa máquina de fazer espanhóis (que até há bem pouco tempo tanto queríamos imitar), isto é, numa indústria de produção em série de emigrantes como seres uniformizados e sem identidade cultural.

«de espanha, nem bom vento nem bom casamento. no entanto, há o desejo de para lá emigrar.»

Entretanto, a paranóia de antónio silva intensifica-se à medida que a história vai avançando, até ao vazio total, à dissolução, ao último estágio de entropia física e mental.

a máquina de fazer espanhóis trata de uma realidade dura, difícil de aceitar pela sociedade ocidental em geral: o envelhecimento e a morte, a doença prolongada; mas também de uma determinada concepção específica de ethos social, muito típico na sociedade portuguesa, que está impresso nos diálogos entre as personagens, nas palavras ácidas, revestidas de uma crueldade e egoísmo latentes, em pessoas afundadas no seu drama pessoal, nas areias movediças da própria solidão, seres incapazes de olhar o Outro por outro ponto de vista que não o do eu ou de um acto de altruísmo, mas que chegam ao cúmulo de nos arrancar uma gargalhada à situação patética do “a minha dor é maior do que a tua” mas que colide ao mesmo tempo com a profunda comiseração face à incomensurável tragédia da finitude inerente à condição de mortais.


24.08.2012-15.05.2013
Cláudia de Sousa Dias