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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, October 29, 2014

“A Insuperável Mudez da Borboleta de Luísa Monteiro” (R-E-D-I-L)





Este livro, com a belíssima capa que contém a réplica da pintura “Sappho” do pintor francês Charles Mengin (o original, de 1877, encontra-se patente na Art Gallery em Manchester, para quem quiser visitar) inclui três novelas de temática sáfica, embora duas delas possam facilmente ser convertidas em romance: uma delas de carácter épico-lírico e histórico e outra de componente surrealista e modernista, inspirada na vida de uma escritora-poeta portuguesa da primeira metade do século XX, caída na obscuridade.

A Autora, Luísa Monteiro, escritora, investigadora e docente, é um ser multifacetado o que obriga a que, apesar de várias das suas obras terem já aqui sido comentadas, se torne necessário que o seu perfil seja alvo de constantes actualizações. Para além de LM ter já um currículo significativo como jornalista de investigação, profissão a que se dedicou com afinco até finais do século anterior, é alguém que publica ficção desde idade muito precoce (seis anos de idade, tendo optado pelo uso de pseudónimos desde os nove e voltado a ligar o próprio ortónimo à ficção desde os trinta). Até à data de lançamento deste título tinha já vinte e três títulos publicados, tendo este surgido após um interregno de cinco anos, período durante o qual se dedicou sobretudo à área da investigação no campo das Humanidades. Hoje em dia, divide o tempo entre a investigação (UNL) a docência (Universidade de Évora) e a escrita ficcional (drama, poesia, prosa). Assina, ainda, uma coluna no jornal on-line “Económico” a partir da qual difunde a sua visão do mundo em formato de crónica sobre temas da actualidade.

No que respeita à obra de que hoje falamos, A Insuperável Mudez na Borboleta é uma experiência estética que consiste em três histórias de amor trágico, contadas por um ponto de vista exclusivamente feminino, e revestidas do páthos das antigas peças clássicas.


1. A primeira narrativa, aquela que dá o título ao livro, consiste na evocação lírica de um amor no passado criando, através do nome inventado pela narradora e por ela atribuído à figura amada – Líbia. Trata-se de uma intertextualidade com a poesia de Catulo, em cujos poemas eróticos o poeta romano se dirigia à sua musa, Lésbia, de onde a narradora apenas faz cair um fonema e modifica uma vogal, tornando-a mais alta. À narradora e protagonista já não resta muito tempo de vida, pois está no último estágio de uma doença terminal. Recorda, então, um episódio especialmente belo dos últimos anos em que deu aulas no liceu a uma turma de adultos.

A prosa é entremeada com poesia, onde o elemento do Belo tem primazia sobre os demais, sobrepondo-se e triunfando invariavelmente sobre o Absurdo, o Ridículo ou o Grotesco, como é característico na ficção de Luísa Monteiro.

O discurso da narradora torna-se pungente na evocação da figura de “Líbia”, cuja descrição física e postura faz lembrar as mulheres da Bíblia – Rebecca, talvez, a carregar a ânfora ou cântaro com que dá de beber a Isaque, junto ao poço no deserto –  no gesto de equilibrar os livros na anca como as mulheres outrora as ânforas nas suas idas e vindas aos poços para se abastecerem de água. A imagem traz consigo uma bela metáfora que associa a ânsia, a busca do Conhecimento à sede da água que mantém a vida. A fronteira entre prosa e poesia em Luísa Monteiro torna-se cada vez mais ténue, facto que é particularmente evidente neste livro como podemos ver pelo excerto que se segue:

«Porque choras, Líbia? Foge desse canto
e aninha-te no meu peito
assim...as paredes são frias, amor.»

Um dos aspectos mais extraordinários da primeira história deste livro é o progressivo depurar da Palavra (e do discurso), num minimalismo crescente, à medida que a história se aproxima do seu desfecho. As palavras supérfluas como que “caem” e são escolhidas aquelas que dizem mais, mas  ocupam o menor espaço possível, na folha de papel, ou que impliquem o menor esforço vocal. Aqui a fusão entre o discurso narrativo e discurso poético é total.


2. A segunda história tem, mais uma vez um título modalizado por um advérbio, “A Invencível Confissão de Úrsula”. Poderia ser um romance histórico de grande valor literário. Mas para já, é apenas um conto que traduz a reconstituição breve de um episódio histórico, cuja narrativa se situa no tempo da invasão da Europa pelo Hunos, em plena fase de desagregação do Império Romano. A história fundamenta-se num facto ocorrido em Colónia, no ano de 383 d.c., conhecido como “o massacre das onze mil virgens”. A trama ficcional nasce de um facto inusitado, a casualidade de alguém que habita a época contemporânea encontrar um manuscrito antigo no meio do espólio de um Museu, dentro de uma cripta, à semelhança do que acontece nos romances de Umberto Eco, que faz sempre deste género de descoberta algo de romanesco. Esta é uma característica comum a todos os apaixonados pelo Conhecimento e pelo desejo de trazer à luz um passado esquecido a que Monteiro não é excepção. As circunstâncias desta descoberta chegam ao leitor num prólogo com o sugestivo título de “Advertência”:

«Adverte-se que a narrativa que se segue não é ficção. Apenas o título é da minha Autoria. Trata-se de uma fixação de textos antigos em latim descobertos por Gumercindo Nunes, o avô de Teresa, a minha companheira de gabinete. Quando descobriu que eu tinha tido latim, logo após o ensino primário e até ao final do curso na Universidade Católica, disse-me que tinha em casa uns papéis velhos que lhe pareciam ser em latim muito recuado, deixados pelo falecido avô.

Gumercindo fora funcionário do Museu de Arte Antiga de Lisboa e na altura (que Teresa não soube precisar quando) em que trasladaram os restos mortais de Santa Auta para aquele lugar, descobriu entre as ossadas um amontoado de folhas escritas. Guardou-as e ocultou-as de todos os olhares (uma vingança por ter sido obrigado a aposentar-se). Teresa herdou-os e nunca teve curiosidade em saber o que continham. Foi a minha paixão por espólios antigos e documentos esquecidos que a fez procurar esse tesouro inútil da família.

De Santa Auta, sabia apenas que fora a rainha D. Leonor, viúva de D João II, quem pediu o corpo ao Imperador Maximiliano e que trouxe em cortejo Auta para Portugal, em 1751.

Deste espólio, algumas folhas são autorizações de Roma, outras contém advertências com selo papal e real e outras (que tive de ordenar) dizem respeito a uma narrativa, ao que tudo indica de Santa Úrsula. Desta santa, existe uma relíquia na Sé de Évora, que visitei no passado mês de Junho de 2012. E, confesso, sem conseguir evitar as lágrimas.

Tornar públicos estes textos tem um desejo subjacente: juntar os restos mortais de ambas. Mas se isso não for possível, a quem de direito, ao menos que conste este testemunho para a História.

O texto tem algumas partes completamente ilegíveis. A linguagem foi adaptada para a escrita corrente. Os originais regressaram à família Nunes.»

A voz da narradora da época histórica traz a lume um amor sublime num momento crucial em que a Europa se desintegra mediante as invasões bárbaras levadas a cabo por povos especialmente violentos e sanguinários, marcando o fim de uma era e o desaparecimento de uma civilização. O final trágico lembra a luta heróica das Amazonas na Ilíada de Homero, dizimadas durante o impiedoso cerco de Tróia. A intemporalidade da história, se a deslocarmos para o Oriente dos nossos dias, também se espelha num exército de mulheres que luta ainda hoje, corajosamente, contra os Hunos do século XXI e ameaçam uma Europa fragilizada.

3. A terceira história, “A poeta que amou ciganas e fadas marrecas” é inspirada na vida da poetisa Judith Teixeira, contemporânea de Florbela Espanca, silenciada pelo conteúdo sáfico dos seus versos, rejeitados por uma sociedade intolerante e incapaz de apreciar a beleza luxuriante dos seus versos. A história está comprimida para caber no formato de uma novela, mas foi originalmente pensada para ser uma biografia romanceada da poetisa, onde as personagens dos seus poemas saltam de dentro da prosa de Luísa Monteiro. Inúmeras intertextualidades irrompem do texto, sobretudo Carroll (e o mundo das maravilhas que se abre com o chá de palavras da cigana Urdella) e Woolf (na secção Lappin et Lappinova). Surrealismo num texto de grande teor dialógico, expresso em vozes que se interrompem, fundem se atravessam, desvanecem e voltam a materializar-se como fantasmas, espíritos que se movimentam no vácuo.

É assim a escrita de Luísa Monteiro. De uma estranha beleza. Desconcertante até à última frase. A insuperável mudez de borboletas silenciadas por uma sociedade patriarcal, só se supera pela audácia de um ser discreto, que voa com as asas transparentes da formiga-de-asas, como o génio, da arte do domínio da palavra por Luísa Monteiro.


Cláudia de Sousa Dias
28.10.2014