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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, October 28, 2013

“Persona” de Eduardo Pitta (Quidnovi)



Persona é uma obra da Autoria do poeta, ensaísta e crítico Eduardo Pitta, constituída por três novelas cujo tema principal e, apesar de não conseguirmos evitar pensar no filme homónimo de Ingmar Bergman, e de uma possível intertextualidade com a obra do cineasta a te temática central, comum às três narrativas, incide apenas na questão da identidade sexual, mais propriamente na edificação da Persona ou Máscara que faz parte do processo mais amplo de construção do Eu nas personagens de Eduardo Pitta. A acção situa-se em terras de Moçambique, no período anterior ao vinte e cinco de Abril. Apesar de Persona de Eduardo Pitta não ter como ponto de partida a criação de Bergman, podemos olhá-la como o lado simétrico da do realizador sueco: as personagens centrais são, ao contrário das do filme,  masculinas, todas elas e enfrentam um meio social e regime político hostis, formando um vasto conjunto de obstáculos à livre escolha da pessoa que se deseja ser. Daí as máscaras – personae – que visam adopção de uma conduta aparente, mais ou menos fictícia que implica sempre uma performance, uma actuação, como se se estivesse no palco a actuar perante um público e consoante as expectativas desse mesmo público, que espera daquele actor, que veste aquela máscara, um determinado comportamento, como é o caso do jovem adolescente da primeira história, Marilyn.

O Autor identifica esta publicação como “uma trilogia de contos morais”, cuja acção decorre em Moçambique, entre 1960 e 1973. As três estórias representam três momentos-chave na vida da personagem central que aparece em todas as narrativas, apesar de, na minha opinião, a primeira se enquadrar melhor no género conto.

Assim, Marilyn, a primeira história, será talvez a situação retratada que melhor ilustra o espírito da obra. A acção passa-se em 1962, o protagonista é um adolescente que, pelo aspecto algo efeminado e conduta que revela uma tendência a uma inclinação por pessoas do próprio sexo, é alvo de bullying na escola, sendo encaminhado para ajuda psicológica com o objectivo de corrigir aquele “desvio”, mas acaba por ser assediado pelo próprio médico, que tenta aproveitar-se da situação vulnerável da criança, ao abrigo da máscara social que lhe é proporcionada pela profissão.

A forma como é construída a narrativa é feita de forma a provocar no leitor uma crescente sensação de angústia e o intuito de incitar a revolta no leitor que se “cola” à figura da criança, como o elo mais frágil que é, dado que o agressor tenta chantagear a vítima, ao tentar fazê-la sentir-se culpada pela situação e, assim, justificar um assédio premeditado e cuidadosamente planeado.

A cena no consultório coloca o leitor numa situação de extrema tensão psicológica como a que assistimos ao longo do filme “Michael” do realizador austríaco Markus Schleinzer. Em ambos os casos, o leitor/espectador experimenta a sensação de empatia pela criança, ao tomar consciência do terror sentido por esta, face à eminência de sofrer um abuso sexual por parte de um adulto. O desfecho da história, ao contrário do filme de Schleizer, onde se nota a marca da influência de Michael Hannecke, traz ao leitor a sensação de alívio, mediante a dissipação do risco, mas também a tristeza pela morte de algo, uma fase da vida, um paradigma, um ícone representado por alguém que, também ela, é impedida de ser o que deseja, vivendo de uma máscara criada para ela, para o agrado das massas. A história termina de forma abrupta, com a desilusão de um jovem que vê desvanecer-se um primeiro amor e, simultaneamente, desaparecer um ícone de beleza absoluta, arquétipo da imagem da sensualidade inocente.


A segunda história intitula-se Kalahari e consiste numa trama que descreve uma aventurosa viagem através do deserto, uma odisseia empreendida por um grupo de jovens boémios – e com as hormonas em fogo – em pleno mês de Setembro de 1967. Eduardo Pitta descreve uma paisagem escaldante e exótica ao longo de uma travessia que pode tornar-se, por vários factores – geográficos, climáticos e sócio-políticos –, arriscada. Na escrita de Eduardo Pitta, em Kalahari, estão presentes inúmeras referências culturais que denunciam um forte contacto com a cultura anglo-saxónica, desde o requinte cinematográfico dos cenários por onde se movimentam as personagens, que denuncia a denuncia a origem social do protagonista, Afonso, e dos jovens que o acompanham como pertencentes, quase todos, à elite local, beneficiando de uma cultura muito acima da média, mas impregnada de rebeldia e inconformismo, que se reflectem, por vezes, na crueza da linguagem, presente também na expressão de um intenso erotismo com que é descrita a pujante sexualidade juvenil de que está revestida a estória.

A acção da última narrativa passa-se entre 1971 e 1973, tendo como pano de fundo a repressão à homossexualidade, presente no exército e a repressão feita pela PIDE à homossexualidade. É aqui, talvez que encontramos mais vincadas as contradições inerentes a uma sociedade que insiste em excluir determinados grupos sociais, baseados apenas na orientação sexual. Esta será, de entre as três narrativas que são aqui comentadas, aquela que explora, de fora mais completa e sob várias perspectivas, as personae de que se munem as pessoas que sofrem o aguilhão do desejo recalcado, numa perspectiva eminentemente freudiana.

A opinião da crítica

O escritor e filósofo Miguel Real comentou a propósito desta trilogia, num artigo do JL (2001), acerca do léxico utilizado pelo autor, classificando-o de “subversivo” relativamente à chamada “normalidade”, ao passo que Pedro Mexia no DN (2001), refere-se-lhe como “uma narrativa de aprendizagem sexual, de fruição homoerótica”. Já Maria Augusta da Silva no Diário de Notícias (2001) descreve a obra como “uma abordagem crua e desassombrada de um lado oculto da guerra colonial e do apartheid sul-africano, mas na qual se cumpre a função crítica perante cenários marcados pelo arbítrio e abuso do poder”. Jorge Listopad do JL (2001), por sua vez, fala do “enigma poético” a propósito da obra que “filtra a homossexualidade latente, factual, ressuscitando a memória dos pequenos infernos”. E Fernando Matos Oliveira na Colóquio-Letras (2002) destaca: “A impressão que se tem ao ler Persona é a de uma reactivação de experiências de leitura de algum património moral do século XVIII, até porque há entre eles marcas de género (…): ritmo acelerado, narrador autodiegético, e sobredeterminação da pulsão erótica.” E Helena Barbas no Expresso (2002), por sua vez, compara as idades de Afonso nas três estórias – doze, dezoito e vinte e dois anos – fazendo corresponder a cada uma delas “uma forma de iniciação”. Finalmente, Edgar Pereira da Revista de Estudos Portugueses da Universidade de Minas Gerais (2005) destaca o último conto “pela contiguidade da libertação política e da concepção libertária da sexualidade (…). O último conto atinge em cheio as supostamente sólidas fundações do Império Luso”. EP aponta ainda “o dinamismo e agilidade da linguagem, num português globalizado”, referindo-se à profusão de estrangeirismos, sobretudo de origem anglossaxónica, mas também galicismos e expressões de origem crioula, cujo resultado final é “uma prosa ficcional alegre e ousada, refinada e demolidora, irónica e encharcada de cepticismo”.

Por todas estas razões a leitura de um livro tão inquietante e fracturante quanto Persona torna pertinente a sua reedição, editada pela primeira vez em 2000 e em 2003, de forma a facilitar o seu acesso ao público para além dos raros exemplares existentes em pouquíssimas bibliotecas.


18.12.2012-16.09.2013

Cláudia de Sousa Dias

Sunday, October 20, 2013

“Myra” de Maria Velho da Costa (Assírio &Alvim)

“Myra” de Maria Velho da Costa (Assírio &Alvim

Antes da leitura deste livro, devo confessar que, de Maria Velho da Costa, conhecia apenas a sua participação em Novas Cartas Portuguesas, obra conjunta com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, sobretudo a controvérsia gerada pela ocasião da sua publicação, no início dos anos 1970, pelo forte abalo causado às actividades da censura portuguesa, durante o governo de Marcelo Caetano.

Myra foi, assim, o romance de estreia na minha leitura de Maria Velho da Costa e que me deu acesso à sua “voz” interior. Ao aflorar as primeiras páginas, deparei-me logo com uma escrita de uma profundidade assustadora, onde o cenário como que nos esmaga e, ao mesmo tempo, nos contagia ao contaminar-nos com uma angústia que é fruto da constante incerteza, relativamente ao futuro dos dois protagonistas: Myra, a criança de beleza extrema, filha de emigrantes de leste e Rambo (que a menina pronuncia Rimbaud, como o poeta francês, andarilho, o qual trocou a escrita e a fama pela vida errante de marinheiro), o Pittbull Terrier, maltratado pelos seus proprietários, que se transforma no seu amigo inseparável. O nome, pronunciado por Myra com sotaque russo, torna-se premonitório, pois Rimbaud foi um poeta tão inconformista e sequioso de liberdade que nem o impulso da escrita conseguiu sedentarizá-lo, como acontecerá com estas duas personagens. O mesmo espírito do Poeta parece animar este Rambô tornado quase selvagem, uma fera, por aqueles que desejam transformá-lo em instrumento usado nas lutas de morte. Rambô só se deixa prender pelo amor que lhe dedica Myra. A sua alma gémea é a criança, colocada em perigo pela extrema pobreza, que a deixa vulnerável, e pela beleza que lembra um farol em noite de tempestade. É Myra quem liberta Rambo, sub-repticiamente, do jugo dos seus opressores e que, com ele, e partilha a escassa comida de que dispõe. Rambô é uma fera mas sabe o que é a gratidão. Os dois transformam-se em eternos foragidos, excluídos da sociedade, insubmissos e para sempre inadaptados. Só o amor lhes traz a redenção. E o retorno ao Éden.
O romance desenvolve-se assim como uma odisseia, onde o ambiente físico, o relevo da paisagem, a meteorologia hostil e ameaçadora da cena de abertura, todo o cenário estão construídos de forma a espelhar os sentimentos, os anseios, os medos sentidos por Myra e Rambo, seu implacável guardião.
A narrativa é também desenvolvida consoante os padrões da tragédia clássica,apesar de se tratar de um romance ao invés de um drama.

Nesta perspectiva, temos três grandes momentos que formam esta narrativa tripartida, como um concerto em três andamentos ou,que, em teatro, corresponderia a três actos. O primeiro, pode ser identificado com a fase em que se encontram os protagonistas, ambos fugidos dos respectivos tutores que os maltratam. O ritmo é acelerado como num movimento de abertura de uma sinfonia ou de um concerto de três andamentos. Os acontecimento decorrem, nesta fase, num cenário lúgubre, onde o sentimento dominante é o medo, sobretudo em relação aos perseguidores de Rambô, que se adivinham extremamente violentos, enquanto a beleza do rosto de Myra parece surtir o efeito de um constante chamariz à Fatalidade, ao colocar diante de si inúmeros obstáculos à sua demanda: encontrar o refúgio nos braços de uma célula familiar onde se sinta amada e protegida, pois é sempre confrontada com figuras oponentes no seu caminho. Ao longo da sua odisseia com vista a encontrar as sua terra prometida, Myra encontra neste primeiro momento da narrativa, o sucedâneo de um lar, uma espécie de protecção temporária em casa de uma artista excêntrica, que a trata como uma espécie de animal doméstico não muito diferente de Rambô ou, na melhor das hipóteses, como uma criada. A casa da pintora proporciona-lhe apenas uma segurança relativa, uma vez que se trata de caridade e não de verdadeira protecção. Naquele lar, a criança é vista como um objecto que desperta a curiosidade da sua “benfeitora”. O crescimento de Myra aumenta-lhe ainda mais a vulnerabilidade pois acende o desejo carnal no amante da pintora, expondo-a ao risco de abuso sexual. Mas é sobretudo a consciência de Myra de que não é amada que a impele a continuar o seu caminho em busca daquilo que verdadeiramente motiva a sua sede de viver: a Liberdade e o Amor. Deste modo, a fuga de uma casa onde aparentemente, tem o necessário para continuar viva, a que se junta uma pequena vingança nemésica, marcam a transição para o momento seguinte da narrativa, onde o ritmo se torna mais lento e o discurso adquire uma tonalidade muito mais descritiva.

Neste segundo momento da diegese notamos, como já foi referido, um abrandamento no ritmo narrativo, como um movimento “andante”, numa peça musical. A tranquilidade e abrandamento são condizentes com os sentimentos dominantes, nesta segunda parte. Este é tempo do encontro com o Amor, o Sublime e o Belo. A acção passa-se no Alentejo, numa bela casa-refúgio, parcialmente escondida numa quinta, especialmente cuidada para ser aprazível e garantir aos seus habitantes o abrigo das agressões climáticas e, simultaneamente, das ameaças da sociedade. Há também, naquele cenário idílico, uma atmosfera misteriosa como a dos palácios encantados dos contos de fadas, a incluir serviçais que aparecem e desaparecem misteriosamente, cuidando dos donos da casa sem propriamente participar da vida deles, animais que se comportam como humanos ou possuem alma, pensamento e vida interior como os seus donos, não somente Rambo mas também a gata Brunhilde. O desenvolvimento da narrativa nesta fase apresenta várias semelhanças com a história do mito grego de Eros e Psique, uma vez que é dado a entender que, para Myra, será talvez melhor saber o menos possível da vida do seu misterioso benfeitor, um jovem belo e misterioso, de cuja vida fora daquele lugar nada se sabe.

A casa e a propriedade que lhe está adjacente assemelha-se a uma espécie de Olimpo ou Wahlhala, lugar de repouso dos heróis, confirmado pelo nome da gata, Brunhilde (nome de uma das valquírias da ópera de Wagner, “A Valquíria”), criando assim uma ponte ou intertextualidade face ao cenário da ópera do compositor alemão, já que a quinta parece ser uma espécie de abrigo onde se recolhem os bem-aventurados. Todos os seres que habitam aquela mansão parecem empenhar-se em contribuir para o restabelecimento anímico de Myra e Rambo, ao contrário do que acontecia no espaço habitado do momento anterior da narrativa, onde os seus residentes se limitavam a assegurar-lhe a sobrevivência. Este lugar é um oásis que funciona na como contraponto, pela via contrastiva, face ao momento anterior, no qual dominava o deserto afectivo e como protecção relativa a uma sociedade onde domina a selvajaria, que encontra o seu paroxismo nos meios mais urbanizados,. E é precisamente nas duas principais cidades do país, ou na sua periferia, que se dão as cenas mais violentas do romance, já no último momento da história.

A terceira parte decorre de uma alteração brusca dos acontecimentos, obrigando os protagonistas a deixarem o “paraíso” onde vivem, e a enfrentar o mundo real, onde o acaso ou a predestinação faz com que se cruzem com a fatalidade. A tragédia ocorre mediante o choque inevitável com um mundo corrupto do crime organizado, infiltrado nas estruturas do poder pela colocação de testas-de-ferro, encarregues de sujarem as mãos, enquanto os autores morais dos crimes se escudam atrás dos seus cargos e imagem de aspecto impoluto. Myra e Rambo rumam então ao Porto – a cidade invencível, a invicta – onde, ao enfrentar os seus algozes, fazendo jus à fama histórica da cidade banhada pelo Douro, identificando-se com ela.

O estilo de Maria Velho da Costa é marcado pela beleza das palavras sombrias e pela dura exposição dos mais negros aspectos da natureza humana, que o homem comum prefere, normalmente, ignorar: a impunidade, o tratamento do outro como uma mercadoria, o desrespeito pelos seres vivos em geral, a insegurança e os desregramento social que nascem da indiferença social e se reflectem na falta de protecção aos mais débeis. No entanto, a Autora, apesar da beleza plástica da linguagem, não se coíbe de usar o vernáculo, ao dar a voz às suas personagens e sempre que o contexto assim o exige.

Mas se, por um lado, a riqueza e a força da escrita de Maria Velho da Costa reflectem um vasto leque de intertextualidades – desde a semelhança da sonoridade em o nome Rambo, pronunciado por Myra, que transforma um cão de luta de morte, inspirado na célebre personagem do cinema norte-americano, Rambo, em Rimbaud, no poeta de vida errante que perseguiu sempre a ideia da liberdade absoluta a escolher uma vida sem amarras nem residência ou pátria fixa, a Virginia Woolf, quando a Autora escreve a partir do ponto através do olhar do cão, como já havia feito a Autora britânica num dos seus contos, ou coloca a androginia do namorado de Myra em destaque, evidenciando a beleza daí resultante assim como as suas qualidades humanas, tal como acontece com a personagem Orlando de VW. Pier Paolo Pasolini também é aludido num dado momento da narrativa, na segunda parte, como prenúncio ao ordálio que virão os dois amantes sofrer no terceiro momento da história.

A vulnerabilidade social de Myra lembra também situações semelhantes utilizadas por cineastas como Theo Angelopoulos em Passagem na Neblina e Bahman Gobahdi com As tartarugas também voam, embora estes não estejam referidos no texto, pode-se contudo encontrar várias analogias com situações presentes nas obras destes dois cineastas, nomeadamente a situação de extrema pobreza vivida por Myra e as heroínas de palmo e meio do grande écran, assim como a respectiva vulnerabilidade face à acção de eventuais predadores sexuais.

Myra obteve, com total merecimento, o Prémio Correntes d'Escritas 2009, num dia em que Maria Velho da Costa se viu impedida de recebê-lo pessoalmente, devido ao ciclone que nesse dia fustigou a Póvoa de Varzim sob o aviso meteorológico de alerta vermelho, interrompendo durante horas o funcionamento da linha férrea, os elementos em fúria e tão hostis como no capítulo introdutório do romance:

«Myra atravessou os carris desconjuntados em direcção ao mar.

Cresciam ervas e tojo e havia chorões apodrecidos nas juntas e as traves e ferros estavam negros das marés vivas sujas de crude. Corria contra o vento, procurando saltar as arestas de cascalho e os cacos de vidro, pulando alto e entreter frio e o seu desgosto.

O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e verdes na distância mais clareada do horizonte e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para cobrir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali dentro, ninguém daria com ela nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro.

Assoou-se à bainha da saia e limpou o resto da cara ao casaco esburacado que a mãe lhe fazia usar em casa e que dizia que viera de lá. Myra lembrou-se da neve em cima dos telhados de ouro e loiça. E os blinis que não tinham nome nesta terra. Ao princípio nada tinha nome. E a avó, com ela pela mão,a esconder-lhe a mão. Tanto medo.»

O livro lê-se à velocidade de um relâmpago, com a mesma emotividade e angústia com que se viaja numa montanha russa e a sensação permanente de se caminhar no fio da navalha, onde o abismo ameaça engolir-nos ao mínimo passo em falso.


11.12.2012-11.09.2013
Cláudia de Sousa Dias




Wednesday, October 09, 2013

“O livro do fim – Relatos, impressões de viagens, de lugares e das gentes que as habitam” de Jorge Fallorca (ed. de Autor)


Jorge Fallorca é, além de tradutor reconhecido, como tivemos oportunidade de verificar no post anterior, um escritor que gosta de criar ao seu próprio ritmo, sem pressões editoriais, liberto da vampirizante máquina do marketing. É natural do Concelho de Mortágua coladinho ao concelho rival de de Santa Comba Dão, como já foi referido neste blogue, a propósito de dois outros livros seus : A Cicatriz do ar e A Mulher Descalça. Além destes dois livros, o primeiro de poesia e o segundo um intrincado puzzle policial a que eu chamaria de protoromance negro, publicou também Água tatuada (&etc, 1976), A Luva in Love (Assírio & Alvim, 1977). Foram também reeditados ao seguintes títulos, esgotados: Fruta da Época (Frenesi, 2009), o já referido A Cicatriz do Ar (Blackburn , 2001 e Ed. De autor, 2009), Entre Chipiona e Tarifa Teorema, 2002). Segue-se inéditos como Al-Khaim (Teorema, 2004), Blues para uma puta velha, (& etc, 2010), Nem sempre a lápis (Tea for one, 2011) e “A Mulher Descalça” (ed. De Autor, 2011). Jorge Fallorca é, também, autor do blogue nemsemprealapis.blogspot.com


O Livro do Fim, que dá título ao post de hoje, fala de caminhos percorridos por um escritor andarilho, uma figura que já foi projectada e obras anteriores. Desta vez o protagonista sem nome, não estando integrado em nenhuma trama policial, como em A Mulher descalça, é apenas a alma errante cujo discurso na primeira pessoa, dentro de uma escrita diarista, denuncia na voz do locutor uma insaciável sede de viver e fome de vida que vai devorando ou bebendo nas suas diversas formas, das fontes que jorram dos lugares por onde passa e das searas de onde germina o pão, fabricado pelas mãos locais.

As cores da paisagem, casas moldadas, às vezes envelhecidas pelas intempéries ou cuidadas pela amorosa mão humana, cães, semi-vagabundos, a verem passar as horas deitados à soleira das portas, ouvindo o indolente zumbido dos insectos, nas tardes de canícula. Todas estas impressões são transpostas para as folhas de papel de um caderno, escrito quase sempre a lápis, formando um pequeno livro de viagens, contendo uma vívida galeria de detalhes, as quais vão formando quadros animados, embora de movimentação lenta, como num andante num concerto de Vivaldi, . Mas, ao mesmo tempo o discurso narrativo é, simultaneamente, dotado de um inequívoco realismo, que se evidencia na qualidade documental dos textos, a descreverem o Portugal rural do Sul, até ao Mediterrâneo, no início do século XXI, chegando a passar a fronteira e, depois para lá do Estreito de Gibraltar. A cor e o movimento vão dotando a escrita de Jorge Fallorca da dimensão de um realismo impressionista, lembrando cenas animadas mas plenas de tranquilidade captadas por Degas ou Matisse:

« As mulheres bebiam chá pelas cabaças, e os homens conciliados em redor da fogueira, contavam histórias».

Mas, nalguns trechos, o surrealismo de Dali está também presente:

«As aves de rapina sobrevoavam a planície, soltavam gritos que fugiam pela aridez do vale, imenso. Alguns ficavam presos nas árvores raquíticas, as crianças reflectiam-nos como um 'cântico hipnótico'».

A correspondência entre o grito das aves de presa (águia, falcão, bútio, milhafre), a percorrer a planície, transmite simultaneamente a aridez e a desolação locais mas também a vida das regiões do Mediterrâneo em pleno processo de desertificação, salientado-se a solidão imensa que emana da voz do narrador.

O animismo que projecta atitudes humanas nas árvores, e outros elementos vegetais ou, nalguns casos minerais, está aqui muito visível no no acto de aprisionar o grito – de agonia ou de alegria? – das aves , atenuando-o. Por outro lado este som é, repercutido e reproduzidos pelos guinchos que acompanham as brincadeiras das crianças das povoações circunvizinhas, ecoando nas pedras, no território que o homem, lentamente, vai ocupando, invadindo o habitat até aí, ocupado por outros seres.

Enquanto isso, a paisagem natural apresenta-se, por seu lado, viva, animada por características de sensibilidade próprias do homem, mesmo quando este se encontra ausente, como se a própria Mãe Terra fosse um corpo humano gigante. Uma Terra com voz própria. E Alma. Gea, a titã, como que respira nos textos de Fallorca, exalando o seu esplendor numa paleta de verdes e ocres:

“Nas fissuras do prado, latejam flores de enxofre.”

Nesta dicotomia entre a paisagem natural e aquela que foi modificada pela mão do Homem, a presença humana encaixa-se num quadro mais amplo, que engloba todo o ecossistema do qual ele faz parte, dando vida aos rituais do quotidiano e moldando o ritmo das horas, nas tarefas de todos os dias:

“...os homens cortam o ferro, com gestos cadenciados, o gume da gadanha a embalar o prado”.

Os dias parecem declinar, à medida que as impressões são recolhidas e registadas no papel, traçando-se a rota da viagem, percorridas pelo narrador e protagonista que goza da clássica liberdade do povo romani. O despojamento e a imensa solidão, demonstradas no afastamento da sociedade para melhor a observar, denunciam também a recusa da sociedade de consumo, a qual transparece das entrelinhas de cada micro-texto deste “livro do fim”. Um “fim” que nunca chega, pois trata-se realmente de uma história interminável: a de salientar a beleza extrema e inóspita, de uma natureza ainda pouco tocada pela civilização industrial, pela selva de betão-armado, pelo progresso. Onde são retratadas a vida dos “homens simples”, um pouco como o “bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau, o oposto do homem moderno, fruto de uma sociedade que perverte a sobrevivência.

O Livro do Fim será assim, antes de mais, o ponto de fuga, no quadro da vida terrestre, da qual faz parte um homo sapiens sapiens (ao qual eu acrescentaria em alguns casos, uma sub-sub variedade denominada sans sapientia), visando sempre o horizonte, para lá do sistema doentio, que priva o homem da Liberdade, o Bem Supremo.



07.05.2013-05.09.2013
Cláudia de Sousa Dias