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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, May 01, 2014

“O Contrabaixo” de Patrick Süskind (Quidnovi; Biblioteca de Verão JN)




Tradução de Anabela Mendes

Dados Biográficos do Autor e contextualização da obra


Patrick Süskind é natural de Ambach, Sternberger See, perto de Munique. O Pai de Patrick, Wilhelm Emmanuel Süskind, era também escritor além de jornalista no Südeutsche Zeitung, tendo ficado conhecido pela obra Aus der Wörtertbuch des Unmenshen (Do Dicionário dos desumanos, em tradução livre), uma colecção de ensaios críticos sobre a linguagem utilizada na era nazi. O irmão de Patrick é também jornalista. A família Süskind está ligada a vários ramos da aristocracia de Würtemberg , sendo um dos muitos descendentes de Joham Albrecht Bengel e do reformador Johannes Brenz. Patrick Süskind estudou na Universidade de Munique – História Medieval e Moderna mas nunca chegou a concluir a licenciatura. Mudou-se para Paris, onde viveu algum tempo, ajudado financeiramente pela família, tendo lá escrito vários contos, muitos deles ainda por publicar, assim como argumentos de cinema ou peças de teatro que nunca foram levadas a palco ou adaptadas à sétima arte.

Mas o ano de 1981 é o ano em ocorre um ponto de viragem na vida do escritor: Süskind publica O Contrabaixo (Der Kontrabass), obra concebida originalmente como peça radiofónica, mas que é posteriormente adaptada para teatro, chegando a obter 500 récitas na temporada de 1984-85.

Apesar de a sua obra literária de maior impacto ser, ainda hoje, o romance O Perfume – A História de um assassino (Das Parfum: die Gechichte eines Mörderes) adaptado ao cinema por Tom Tynker em 2006, e do sucesso das a novelas A Pomba e A História de Mr. Sommer e do volume de contos Drei Gechichte und eine Reflektion e ainda colecção de Ensaios sobre o amor e a morte, O Contrabaixo parece ser, para muitos, a sua obra mais bem conseguida pelo virtuosismo artístico que consegue dar à palavra que se inscreve no discurso. Trata-se neste caso de um monólogo de carácter tragicómico encetado por um músico da Orquestra Nacional que se vê a braços com um problema existencial, motivado pela obscuridade inerente à posição ocupada pelo contrabaixo numa orquestra, a qual, tradicionalmente, relega o protagonista, tanto no aspecto profissional quanto pessoal, para uma posição periférica “apagando-o” da cena – em palco e na vida amorosa. O protagonista não vive, no entanto, sem ele pois garante-lhe o sustento e permite-lhe fazer o que gosta.

A história trata-se, na verdade, de um monólogo, embora apenas na aparência já que a narrativa é, toda ela, dialógica. O locutor fala para uma audiência, um grupo de ouvintes que poderiam, como vimos, ser o público-alvo de um programa de rádio ou a plateia de uma récita teatral, ou ainda simplesmente os leitores da obra de que aqui tratamos. Há dois narradores, ou melhor, dois sujeitos enunciativos no texto: um deles funciona como a didascália da peça teatral, descrevendo comportamentos não verbais e pormenores do cenário, exprimindo-se na terceira pessoa como se fosse uma voz em off:

«Alguém o acompanha...»

E há, também, o locutor principal, que ocupa a maior parte do texto, falando na primeira pessoa. É protagonista e também o narrador empírico ou citado da história o qual contracena com outra personagem não animada, mas presente ao longo de toda a narrativa e com a qual disputa o protagonismo: o Contrabaixo. A dimensão dialógica do discurso casa-se assim com a dimensão performativa do texto uma vez que, subjacente à voz do contrabaixista está o som grave, escuro e pesado do ainda mais pesado e volumoso instrumento musical, o contrabaixo, accionada pela perícia da mão do contrabaixista.

A tomada de palavra deste contrabaixista assenta, toda ela, num argumentário em defesa da sua posição na orquestra e na importância daquele instrumento na mesma, descrevendo as razões através das quais tenta persuadir o auditório de que a sua importância é, de facto, negligenciada por quase todos os grandes génios da música clássica que, de acordo com a sua perspectiva, “atiram” o contrabaixo para uma posição absolutamente obscura e periférica.

A orquestra é descrita como um organismo vivo, reproduzindo um sistema perfeitamente equilibrado ou uma sociedade funcionalmente organizada e estratificada, que assenta na divisão social do trabalho, ocupando o contrabaixo a posição mais básica da pirâmide, na qual todos os elementos funcionam em sinergia sob orientação do maestro. No entanto, muito antes de chegarmos ao final da trama, começamos a aperceber-nos das verdadeiras razões que levam o tocador de contrabaixo a defender tão veementemente a sua profissão, que é tudo menos o resultado de uma inclinação natural ou vocação demiúrgica, mas meramente acidental, são mais dramáticas do que se poderia pensar à primeira vista.


«Durante uma ópera, perco em média dois quilos de líquido:num concerto sinfónico, pouco mais de um. Conheço colegas que vão correr par a floresta, praticam pesos e halteres. Mas eu não! Qualquer dia, porém, sou de tal maneira despedaçado pela orquestra que nunca mais tenho concerto. Porque tocar contrabaixo é uma mera questão de energia, em princípio isso nada tem a ver com a música! É por isso que uma criança nunca há-de tocar contrabaixo na vida. Eu próprio comecei aos dezassete. Agora tenho trinta e cinco. Foi por acaso, como a virgem que se transforma em mãe. Mas foi de livre vontade que comecei! Comecei com a flauta de bisel, violino, trombone e Diexenland. Só que isso foi há muito tempo. E, entretanto, abandonei o jazz. Mas não conheço nenhum colega que tenha chegado de livre vontade. E, de certa maneira, isso até parece evidente, o instrumento não é facilmente manejável. Um contrabaixo é, como é que eu hei-de explicar, uma espécie de obstáculo como instrumento. Não se pode transportar, tem de ser arrastado e quando cai isso dá cabo dele. Ele está para ali...para ali, sabem, mas não como um piano! Um piano é um móvel a sério. Um piano pode fechar-se e deixar estar onde está. Com ele, não. Ele anda sempre para ali, como...Uma vez tive um tio que estava sempre doente e passava a vida a lamentar-se porque ninguém se preocupava com ele. O contrabaixo é assim. Quando temos visitas, ele é a vedeta. Tudo o que se diz tem a ver com ele. Se se quer estar sozinho com uma mulher, lá está ele a vigiar-nos. Se se chega a uma situação de maior intimidade...ele assiste a tudo. Temos sempre a sensação de que ele se está a divertir, que torna o acto ridículo. É claro que esta sensação se transmite à visita e então... Sabem como é, o amor físico e a sensação de ridículo têm tanto a ver um com o outro, e como isso é difícil de suportar? É deplorável. Não funciona de todo. Desculpem.


Ele desliga a música
e bebe.»


Este protagonista funde-se com a personagem não animada, durante o seu papel como músico profissional, mas competindo paradoxalmente com ela disputando o protagonismo na vida privada. O estado da alma do contrabaixista é dado a entender pelo narrador não participante através desta breve frase sincopada, no final deste excerto que acabamos de citar e que é composta por duas orações, partida a meio, por uma pausa significativa. Os dois actos não verbais realizados pelo protagonista e descritos por esta voz off, mostram uma cisão ente o momento em que é retirada a máscara de figura pública que exibe para a sociedade o seu talento como intérprete e em que o músico surge identificado com o instrumento, e a vida privada em que este se refugia na bebida para encontrar força para se separar dele e viver uma vida só sua. O acto revela um esforço descomunal, quase físico, de tentativa desesperada de separar a vida pública, como músico, da vida privada, como homem, imerso numa incomensurável solidão.

O contrabaixo proporciona ao instrumentista um emprego estável na Orquestra Nacional, mas não o reconhecimento e admiração de que são alvo outros colegas de profissão, especialistas de outras modalidades que desempenham um papel mais central em qualquer orquestra, tais como o piano e o violino. O protagonista desta história mostra-se como um homem comum, perfeitamente banal, que se sente socialmente integrado mas tão reconhecido e valorizado como uma formiga num piquenique dominical. É por esse motivo que tenta a todo o custo exaltar a própria profissão perante os seus ouvintes de forma a elevar a sua auto-estima e persuadir os outros de que tem valor. Mas acaba por tecer uma hilariante caricatura de si próprio, revelando-se contraproducente o objectivo inicial, uma vez que o seu contrabaixo acaba mesmo por usurpar a sua própria individualidade. O contrabaixo, sendo a sua persona no domínio público, torna-se quase na metonímia do homem que o toca, duas entidades que acabam por coincidir, dado que o objecto inanimado se apropria da identidade do músico. Toda a trama adquire, por isso, a configuração de uma divertida, tragicómica metáfora ontológica: o contrabaixo adquire olhos (os do seu intérprete), observa a interacção do contrabaixista (ou melhor é ele que se auto-observa) com as visitas, para absorver a atenção dos convidados, desviando os olhares que deveriam convergir para o anfitrião.

Fora de casa, o contrabaixista desaparece por completo, anónimo por entre a multidão, assim como permanece anónimo ao longo da trama. Tal como o som do contrabaixo, abafado pelos sons mais altos dos restantes instrumentos da orquestra. Instrumento e instrumentista só se fazem efectivamente notar em espaços muito pequenos e fechados.

Por outro lado, o Autor consegue transformar o drama existencial do protagonista numa hilariante sátira edipiana., ao colocar o seu protagonista a analisar as neuroses dos músicos segundo a perspewctiva de Freud e à luz do modelo Psicanalítico, estabelecendo uma analogia entre o papel secundário desempenhado historicamente pela mulher na área da Música e a forma feminina do contrabaixo, identificando essa morfologia como factor responsável pela sua posição obscura na orquestra. Tentará, depois, encontrar uma explicação mítica para aquilo que considera se rum drama pessoal: a dificuldade que tem, como contrabaixista, em acompanhar a voz de uma soprano devido ao seu registo grave:

«Ele reina no domínio dos baixos, ela no dos agudos.E concertos para contrabaixo quase não existem, pelo menos dentro das obras mais conhecidas dos grandes músicos.»


Enquanto fala, o álcool vai-se acumulando no sangue a ponto de a peça se tornar burlesca, semelhante a uma ópera buffa. O complexo de inferioridade deste intérprete de contrabaixo torna-se pungente. Segue-se uma peroração sobre a suposta relação entre a liberdade criativa e a masculinidade, a segguir uma confissão sobre o conforto em usufruir um rendimento estável, como é o caso, mas que nunca passará disso.

«...dantes havia a possibilidade do príncipe morrer e depois podia dissolver-se a orquestra da corte, pelo menos teoricamente. Hoje em dia isso é impossível (…). Até na guerra – eu sei disso através dos colegas mais velhos – havia bombardeamento, estava tudo destruído, a cidade reduzida a escombros, a ópera a arder por todo o lado – mas na cave a Orquestra Nacional tinha ensaios de manhã, às nove. É inacreditável. É claro que me posso despedir. À vontade. É só chegar lá e dizer; despeço-me. Seria invulgar. Não haverá ainda muitos a fazê-lo? (…) Ficava então livre...claro, e depois?O que é que me resta? Depois fico para aí nas ruas...É de dar em doido. Fica-se reduzido à miséria. De uma forma...ou de outra...»

Disserta ainda sobre o que fazer para alcançar a realização pessoal, sair do marasmo que é a imutabilidade do Paraíso laboral onde se encontra, da segurança. Sobre como seria fazer o que nenhum ser racional no mundo faria.

O livro é uma belíssima metáfora sobre o que é a vida de um funcionário público anónimo, condenado a fazer sempre as mesmas tarefas, todos os dias, sem sair das normas, sem criatividade, sem autonomia. O contrabaixo somos todos nós, na base da pirâmide social. Funcionários públicos e privados, são todos eles graves e surdos, anónimos e completamente desapercebidos dentro do grupo de trabalho: os indispensáveis contrabaixos.



Cláudia de Sousa Dias

10.09.2013-0303.2014