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Wednesday, April 24, 2013

“Oresteia” - “Agamémnon”, “Coéforas,” “Euménides” de Ésquilo (Edições 70)





Tradução, notas e prefácio de Manuel Oliveira Pulquério (Faculdade de Letras de Coimbra)


Parte I – Agamémnon



Ao analisarmos os padrões de cultura greco-latina, um dos principais pilares que sustentam a mentalidade europeia e moldam a civilização ocidental, seja no que diz respeito às artes, ao pensamento filosófico ou até mesmo ao modelo de construção do Estado e funcionamento das respectivas instituições, verificamos que a actual cultura europeia continua a ser o prolongamento da cultura grega clássica e do antigo Império Romano. Deste ponto de vista, torna-se impossível conhecer em profundidade o mundo em que vivemos sem também olharmos criticamente e com detalhe a civilização que lhe deu origem, isto é, sem mergulharmos, como diz o Autor do prefácio, “nas suas raízes ancestrais”. É desta perspectiva que Ésquilo é visto com o criador da tragédia (G. Murray). Nasceu em Elêusis (525/524 A.C.), mas a sua vida como homem de letras desenvolve-se entrelaçada com a história da Grécia, especialmente no século V A.C., tendo assistido à passagem da tirania para a democracia e participado com consciência cívica nas jornadas da Maratona (490 A.C.) e Salamina (480). Na sua lápide, consta apenas a referência às campanhas militares, nada relacionado com a sua obra escrita. Houve, no entanto outros dramaturgos que, antes dele, se aventuram na composição de peças trágicas, como Téspis, Frínico, Cérilo ou Pratinas, mas cuja obra se perdeu no tempo pelas vicissitudes da História (invasões, destruição, pilhagem, incêndios...). Mesmo em relação a Ésquilo apenas uma pequena parte daquilo que escreveu sobrevive até aos dias de hoje. Isto apesar de o dramaturgo ter dedicado a maior parte da sua vida à escrita, com especial incidência no tocante à arte dramática. Participou e venceu várias competições literárias, nomeadamente, o concurso dramático Dionísias Urbanas dirigido àqueles que, em idades muito jovens, iniciavam a carreira dedicada à escrita literária.

Em 472, é representado um drama histórico da sua autoria – Persas – a mais antiga das tragédias de Ésquilo, que chegaram intactas aos dias de hoje. Outros trabalhos como Prometeu Agrilhoado ou As Suplicantes são de difícil datação. Os Sete contra Tebas são já de 467 e a Oresteia de 458, cerca de dois anos antes da sua morte. Manuel Oliveira Pulquério, da Universidade de Coimbra, sublinha que, das tragédias esquilianas que sobreviveram até à actualidade, é destacada a importância da Orésteia, pela mudança de paradigma social, ético e religioso, bem como de modelo de Estado que lhe está subjacente.

Os poetas trágicos – categoria em que Ésquilo se encontra incluído – concorriam na Antiguidade aos concursos dramáticos, organizados no âmbito das festividades dionisíacas, com conjuntos de quatro peças ou tetralogias, as quais correspondiam a uma trilogia trágica e a um drama satírico, sem que estas estivessem necessariamente ligadas entre si.

A Ésquilo deve-se a criação da figura da “grande trilogia temática de que a Oresteia é o maior e o mas perfeito exemplar que nos chega às mãos no século XXI” (Pulquério). Durante a acção dramática homens e deuses (Zeus, Apolo e Atena) são mobilizados para encontrar uma solução que quebre a cadeia de culpa e expiação que liga fatalmente as personagens. Uma culpa que é simultaneamente pessoal e hereditária:

«Mas Apolo e Orestes, o deus e o homem, hão-de superar este conflito de deveres, quando os deuses antigos (as Erínias, Fúrias ou Euménides) cederem à realidade dos novos tempos , representada pelos novos deuses olímpicos, que com a vitória sobre os outros deuses e sobre si próprios irão inaugurar uma nova era de paz, tanto para os mortais como para os imortais. Estes deixarão (…) por força de um direito de instituição divina (Atena é fundadora do Areópago) de ser árbitros da vida e da morte vinculados a um destino, a que não têm hipótese de libertação...» (MOP, 2010)

A principal consequência desta mudança de paradigma é a impossibilidade de, daí em diante, ser definitivamente revogado o paradigma de uma sociedade matriarcal, onde vigorava o primado do paradigma feminino, maternal, onde a Mãe teria toda a responsabilidade na geração dos filhos. Nesta sociedade matriarcal, seria um crime absolutamente hediondo e sem expiação possível a perpetração de um matricídio, ou já agora o assassínio, mesmo que sob a capa de sacrifício aos deuses, da filha de uma rainha. Mas no novo modelo emergente de sociedade, a sociedade patriarcal, o papel da mulher é desvalorizado, passando esta a ser olhada como uma mera incubadora da semente masculina, responsável pela geração de novos seres. Neste contexto, muitos estudiosos da literatura clássica defendem que Orestes se sentiria obrigado a praticar o assassínio da própria mãe para vingar o pai. A Oresteia representaria, deste ponto de vista, um momento de viragem na formação da consciência da cultura grega e na relação do homem grego com a divindade a qual se repercutiria, mais tarde, por todo o mundo grego. Assim, em Agamémnon, a primeira parte desta trilogia dramática, o tema principal será a vingança. Os deuses que dominam as Fúrias, sedentas de sangue, pretendem encontrar uma forma de conter a emoção dominante que estas inspiram nas personagens que protagonizam o drama, nas quais o ódio, o furor, que leva sempre a uma espiral de violência e morte: Clitemnestra e Orestes.

O drama

No regresso de Tróia, o general Agamémnon obtém uma recepção de pompa e circunstância, preparada pela mulher, Clitemnestra, a qual tem vindo a urdir um plano secreto. A Rainha faz com que o marido peque por soberba e incorra na ira dos deuses, estendendo-lhe um tapete púrpura, a cor destinada apenas aos imortais. Mas esta honraria que enche o monarca de vaidade, é muito superior ao seu bom senso sentido de moderação. Perante o sucumbir do marido à soberba, incorrendo em hybris, Clitemnestra julga estar desculpada, perante os seres divinos pelo que vai fazer a seguir: matar o marido em privado, enquanto este está no banho, à machadada. Fá-lo, diz ela, não para punir o marido pelo seu acto de soberba para com os deuses, mas antes para vingar a morte de Ifigénia, sua filha e de Agamémnon, sacrificada no altar de Artemísia pelo pai, em Áulida, antes de a armada partir para Tróia, cerca de dez anos antes.
Clitemnestra ataca o corpo do marido usando um machado, no preciso momento em que este se encontra mais vulnerável: durante o banho.
Portanto, temos aqui o motivo para o crime: um castigo exemplar ditado pelas Fúrias e ao mesmo tempo a punição sem contemplações por parte dos deuses de uma ambição desmedida num homem que não olha a meios para atingi os seus fins, pois além de ser capaz de matar uma filha pelo poder e pela glória, ainda ousa pisar um tecido destinado somente aos deuses por vaidade.

A guerra de Tróia fez-se com os exércitos dos reis das várias cidades gregas, dizem estes, por vontade de Zeus, que estaria ofendido pelo rapto de Helena, se se acreditar realmente nos deuses. E Clitemnestra acredita que, por detrás desta “vontade dos deuses”, está o interesse do homem político isto é, a vingança de Menelau, o marido traído e, claro está, os interesses económicos das várias cidades-estado gregas: o controlo do Ponto Euxino, que une o Mediterrâneo ao Mar Negro e permite o controlo do comércio marítimo e do metal que compõe a liga de que é feito o bronze, material de qual eram feitas, na altura, as armas de guerra.

Artemísia, sobretudo, não queria a guerra de Tróia, nem o sacrifício de Ifigénia. Por isso, exigiu um sacrifício a que nenhum pai se submeteria, uma vez que, todo o progenitor tende normalmente a proteger as suas crias. Mas Agamémnon, cego pela ambição, ignora os verdadeiros motivos do pedido da deusa. Agamémnon, confunde, na verdade, os seus próprios desejos pessoais e egoístas com a vontade dos deuses.

O Coro, nesta primeira parte, representa “a voz colectiva que se pronuncia sem hesitações sobre o sentido dos acontecimentos” (Pulquério).

Mas outro aspecto importante, eu diria mesmo fundamental, na peça é o carácter ardiloso de Clitemnestra. Há todo um conjunto de elementos, desde o estender do tapete tingido de púrpura, até aos elogios com que vai cumulando o marido, passando pelas honrarias, são tudo indicadores de premeditação do crime que irá cometer.

Agamémnon, por seu, lado, torna-se odioso aos deuses. Ao pisar o tapete incorre em hybris. Clitemnestra, que o conhece demasiado bem, tenta-o com a vaidade e o orgulhoso monarca cai na armadilha.

Agamémnon – «Os deuses é que devem ser honrados dessa maneira: eu, mortal que sou, não posso caminhar sem medo, sobre estas belezas bordadas. Entendo que devo ser honrado como um homem e não como um deus

E, no entanto, fá-lo, cede à tentação. A vaidade prova a sua hipocrisia. Agamémnon, o rei de Argos, ofende os deuses e marca de forma indelével, o seu destino, ao entrar em casa sem remover as tapeçarias sumptuosas. Mas já anteriormente tinha recorrido a um estratagema semelhante: ao sacrificar a filha, fingiu obedecer à vontade da Deusa enquanto ocultava o verdadeiro motivo para o infanticídio: a ambição.

No momento em que Agamémnon chega a casa, o Povo está revoltado e os deuses também. Daí a atitude de Clitemnestra, que se sente apoiada pelo povo, pelos deuses e pelo amante, Egisto. Além disso, os deuses estão irritados pelo facto deste rei Átrida ter arrasado, em Tróia, os altares dos mesmos deuses. E sendo Agamémnon, o último rei da dinastia Átrida, este ainda carrega em si uma culpa hereditária, pelos crimes dos seus antepassados, já que o pai de Agamémnon, teria servido ao irmão, Tiestes, a carne dos próprios filhos num banquete de “reconciliação”. Agamémnon por sua vez demonstra a mesma impiedade em relação à própria filha, a qual se torna um génio vingador – daimon –, activando a Fúria, cúmplice e instigadora de Clitemnestra.

«Deste modo, as personagens centrais da tragédia, Agamémnon e Clitemnestra, aparecem iluminadas por uma luz de trágica responsabilidade que lhes agiganta a estatura e, ao mesmo tempo, projecta uma sombra em que se ocultam sombras divinas e humanos perfis, prenunciadores do futuro. Deste mundo de sombras, sairá Orestes para, a seu tempo, vir desempenhar o seu papel» (Pulquério).

Clitemnestra, por sua vez, é uma figura que irá atingir proporções demoníacas, ao contrário de Egisto, que se apresenta sempre como um ser fraco, sem carácter, cobarde.

Na primeira cena de Agamémnon, a rainha Clitemnestra aguarda ansiosamente notícias de Tróia, inquirindo o vigia, que procura indícios e presságios. A comunicação é feita através de sinais de luzes, sinais de fogo, de um posto de vigia para o outro, formando um corredor de fogo que percorre toda a distância que separa Tróia da Hélade. Ao mesmo tempo, a voz do povo, personificada pelo Coro alude ao facto de o lugar do rei estar já tomado no coração da Rainha. O observatório, situado no telhado do Palácio Real, funciona como lugar captador de notícias e, simultaneamente, de interpretação dos astros como se vê pelo comentário:

«Envia aos culpados
a Erínia.»

Para os punir.

O Coro comenta a partida do Átrida, ao som dos gritos da multidão que ecoam como os gritos dos abutres.

«Envia contra Alexandre
os filhos de Atreu.»

Alexandre é Páris e os filhos de Atreu são Menelau e Agamémnon. Referem-se ainda a Helena, com desprezo, pois tomam-na como responsável pela deflagração da guerra.

«tudo por causa de
uma mulher que foi
de muitos maridos.»

Este corredor de fogo de notícias é uma espécie de Código Morse que chega durante a noite percorrendo caminho desde o Ílio a Argos.

A invasão de Tróia foi justificada com presságios e oráculos, interpretados subjectivamente por servidores das respectivas casas reais e, neste caso, pelo vigia, o qual acredita que Artemísia não queria realmente a invasão de Tróia. Como tal, receia que as Fúrias se abatam sobre Agamémnon, para vingar Ifigénia, usando Clitemnestra como instrumento. Além do mais, a ira popular está ao rubro, devido à perda dos filhos da Tróade, durante aquela guerra interminável que destruiu uma geração inteira.

«Pois não há defesa para o homem que
na embriaguez da riqueza faz desaparecer
a pontapés o fundo altar da justiça

A longo de toda este drama trágico há sempre referência a episódios anteriores, pelo recurso à alusão, ao tempo da história, uma vez que os acontecimentos se sucedem rapidamente e em poucas horas tendo como cenário o Palácio Real, havendo durante toda a acção unidade de espaço (a acção passa-se sempre no palácio real, à entrada, com excepção do assassínio, nos aposentos do rei, mas a que o público não presencia, limitando-se a ouvir o que se passa) e de tempo (os acontecimentos sucedem-se no espaço de poucas horas). A obra é escrita para um público conhecedor, leitor e sobretudo espectador, que aprecia o espectáculo do drama.

O Coro não acredita nas notícias de Clitemnestra, não confia nos seus motivos. Já o Arauto está persuadido de que a falta cometida por Tróia foi muito inferior ao castigo sofrido, pois Agamémnon excedeu-se na crueldade, nos saques e nas pilhagens.

Por outro lado, Clitemnestra não consegue cativar a simpatia dos leitores ou espectadores porque não se comporta com a abnegação de uma heroína. Pelo contrário, recorre à dissimulação e à mentira, pois ao saudar Agamémnon, diz-lhe exactamente o contrário daquilo que toda a gente sabe.

Na Antiguidade, os Gregos temiam a inveja dos menos favorecidos pela fortuna ou dos menos capazes, mas temiam mais ainda a ira dos deuses, face aos homens orgulhosos que pretendiam equiparar-se a eles ou ultrapassá-los.

«Pois não há muitos homens capazes
de respeitar sem inveja um amigo
afortunado.»

Clitemnestra saúda o marido com manifestações de fidelidade, amor, zelo, mascarando os verdadeiros sentimentos pois, na verdade, odeia-o. Prova disso é a armadilha que lhe tece com o tapete, de que já falámos. Mas, ao mesmo tempo, torna-e ela própria, pelos estratagemas que utiliza, odiosa tanto aos homens como aos próprios deuses.

Agamémnon repara no exagero das atitudes da esposa mas mesmo assim decide ignorar a própria intuição.

«não me estragues com luxos como
se eu fosse uma mulher, não me recebas,
como a um bárbaro, de boca aberta, aos
gritos, prostrada no solo a adorá-lo,
nem faças com que o meu caminho
desperte a inveja, pintando-o de púrpura.»

No entanto, Agamémnon aceita facilmente a lisonja, após a persuasão de Clitemnestra. Esta apercebe-se daquilo que se vai passar. Odeia a cegueira de espírito que domina os Átridas, cuja selvajaria se assemelha à de Chronos, que devorava o próprio sangue.

Mas quando o Leão de Argos regressa à casa real, é a figura de Egisto que se esconde por debaixo da máscara de esposa amorosa. Clitemnestra esconde dentro de si um monstro sedento de vingança. Disto se apercebe Cassandra, que acompanha Agamémnon como prisioneira. Por fim, a Rainha usa a princesa troiana como mais um pretexto para matar o marido. Cassandra prevê, ainda, que o filho de Agamémnon exerça o seu direito de vingança, perpetuando o ciclo de mortes sangrentas dentro da família. Egisto, por sua vez, é equiparado a um lobo, enquanto Clitemnestra é equiparada a uma Leoa que se deita com um Lobo na ausência do Leão. Acossada pela população, a rainha confessa o motivo do crime, tentando justificá-lo: vingar a morte de Ifigénia, chamando a atenção para a injustiça do facto de o povo atribuir um maior valor à perda de uma vida masculina do que a uma vida feminina, de um rei tirano em detrimento de uma criança inocente. Mas na verdade, o que descredibiliza a rainha perante o povo é a presença de Egisto na casa real, um homem que está longe de ser amado pelo mesmo povo. Sobretudo porque este tentara já submeter a ira popular pela repressão e pela fome, levantando o perigo de uma guerra civil. E este foi o verdadeiro crime de Clitemnestra.

Parte II - “Coéforas”


A segunda parte da Oresteia inicia-se logo após o clímax da tragédia que é a cena do crime, perpetrado por Clitemnestra. Por esta razão, a cena inicial de Coéforas decorre num ambiente tranquilo de forma a criar um forte contraste com a última cena da primeira parte. Neste momento do drama, estão a decorrer as exéquias de Agamémnon, acompanhadas pelo coro das carpideiras – as Coéforas, as portadoras de libações destinadas a aplacar o espírito do morto “que os intérpretes de sonhos dizem irritado contra os seus matadores”.

É durante o funeral que se dá o reconhecimento dos dois irmãos – Electra e Orestes, separados nos primeiros anos da infância. Orestes surge junto ao túmulo do pai, com Pílades, o sacerdote, cruzando-se com Electra. Em segundo plano, está o Coro, a acompanhar o cortejo fúnebre.

Segundo Manuel Oliveira Pulquério, em Coéforas existem duas forças em oposição muito fortes, duas ordens de poder que impulsionam a acção: Clitemnestra, por um lado, e o espírito de Agamémnon, projectado na voz do Coro, pelo outro.

Clitemnestra representa as forças ou divindades ctónicas, as quais também exercem forte influência na história familiar dos Átridas, sobretudo as Erínias, autênticos monstros que clamam pela vingança de sangue. Ao passo que Orestes, apesar de impelido por estas – para vingar a morte do pai – representa os deuses Olímpicos, menos primitivos e que, nesta peça, se fazem representar pelo deus Apolo, a partir de Delfos, onde se situa o Oráculo.

A raiva das Erínias é despoletada pelo espírito do morto o qual segundo o vaticínio dos sacerdotes, não estaria em paz:

Consumada a vingança
os dois mundos assumirão as
suas características próprias e Apolo
defrontará um novo poder
as Erínias, num combate onde
o coro de Orestes sairá
vivo, sim, mas dilacerado.

Assim, o primeiro encontro dos dois irmãos junto ao túmulo é, na perspectiva de MOP é a cena do reconhecimento, onde ambos se identificam como irmãos, separados na infância por questões de segurança – ao que parece, Clitemnestra não confiava totalmente em Egisto – e que, já adultos, se identificam como irmãos, através da descodificação de elementos identificativos conhecidos por ambos.
Assim a anagnórise parece ser, de acordo com a opinião de vários estudiosos esquilianos, o principal elemento da Coéforas, através do dialogo entre os irmãos e o Coro. Este último tem como missão a de descrever a situação política da casa dos Átridas ,de tal forma que tornará menos surpreendente o matricídio, a que é impelido Orestes. Este identifica a voz do oráculo com o próprio impulso vingativo. No entanto, Orestes poderia sempre desobedecer ao Oráculo e arcar com as consequências da desobediência à voz do deus, uma vez que as Fúrias também não perdoam um crime de sangue. Daí o dilema entre a dor do remorso, instilada pela Erínias e a necessidade de justificar o seu acto como uma ordem directa do deus.

Para Manel Oliveira Pulquério será o conflito interior entre a tomada de decisão de Orestes e a própria personalidade que vai conferir à obra a dimensão de tragédia. A decisão que Orestes toma a respeito do matricídio só se torna dramática por estar ligada à dimensão da sua responsabilidade individual. Seja qual for a decisão que tome, Orestes sofrerá consequências. E é por esse motivo que o seu caminho é cheio de espinhos, hesitações e dúvidas. É encorajado por Pílades, o sacerdote. Aliás a classe sacerdotal na antiga Grécia e noutras civilizações está, normalmente, por detrás das decisões governamentais, instituindo-se como um autêntico governo sombra. Neste caso, a classe sacerdotal de Argos não quer nitidamente a chefia da cidade-estado por uma mulher que, além de tudo, é influenciada por um homem sem escrúpulos que usa a paixão feminina para se apoderar do trono.

Segundo o investigador Wilanowitz, citado por MOP, Ésquilo decidiu colocar o matricídio como fonte de conflito entre o sentimento filial de Orestes em relação à mãe e o sentido do dever para com a ordem dada pelo Deus Apolo. Mas claro, podemos sempre optar por uma interpretação psicanalítica, afim de completar a explicação antropológica: poderíamos dizer que Freud não hesitaria em afirmar tratar-se este conflito de uma oposição entre o ID, o inconsciente – o amor cego pela mãe – e o seu Superego, ou seja a sociedade, que exigiria a punição do crime. A voz dessa mesma sociedade exprimir-se-ia através do oráculo, proferido por um sacerdote ou sacerdotisa. Assim, o conflito interno de Orestes, que é precisamente aquilo que o torna humano, atribui ao mesmo tempo a culpa ao deus Apolo, desresponsabilizando a sua própria pessoa. Mesmo assim, Orestes passa a ser assolado pelas Erínias, logo após a morte de Clitemnestra. É atormentado pelo remorso, perseguido pelas Fúrias, por ter assassinado em consanguinidade. Orestes é julgado no tribunal da própria consciência, junto ao oráculo de Apolo, em Delfos.

Na segunda parte de a Oresteia, Ésquilo cria as condições para o conflito que opõe as duas principais forças sobrenaturais adversárias: de um lado Apolo, a defender que qualquer crime deve ser punido pela mão do parente mais próximo da vítima (Orestes, neste caso); e as Fúrias/Erínias, encarregues de punir os crimes contra o próprio sangue. A esta oposição, está subjacente duas concepções diferentes de Justiça: de um lado, um sentido de justiça mais lato, que transcende os limites estreitos do Direito; do outro, representado pelas Erínias, está a concepção do velho Direito, baseado nas relações consanguíneas. Começa, no entanto a prevalecer a primeira, representada pelos novos deuses como Apolo, Artemísia e Atena.

O povo respeita a rainha Clitemnestra, mas no entanto teme-a, não a ama. E teme, sobretudo, Egisto. E é sobretudo em Egisto que os filhos de Clitemnestra não confiam. Egisto é, realmente, o verdadeiro motivo de matricídio de Orestes, assim como foi o verdadeiro, ou pelo menos principal motivo do assassínio de Agamémnon, perpetrado por Clitemnestra.

Ao longo da acção dramática, as Parcas e as Moiras vão cooperar com Zeus e Dike (Justiça) e, também, com as próprias Erínias na aplicação da justiça, com vista à manutenção do equilíbrio entre culpa e expiação. A corroborar esta ideia encontramos, o primeiro estásimo da primeira antístrofe, onde se assiste a à crítica das paixões cegas e desenfreadas nas mulheres. A visada é a rainha, a qual descura a família, para se associar a Egisto, afastando os filhos do lar materno.

Um amor que não é amor apodera-se das
fêmeas, destruindo a união dos casais, tanto
nas feras como nos homens.

Na verdade aqui, também se alude a Helena, cuja louca paixão por Páris despoletou uma guerra que durou mais de dez anos. Mas está também, aqui, expresso o temor pela vida dos príncipes e, sobretudo, o receio pela qualidade de vida dos cidadãos. Só esta hipótese poderá explicar em pleno a contradição vivida por Orestes. O matricídio nunca poderia ter sido perpetrado exclusivamente por amor paternal, uma vez que a ligação dos filhos ao pai é ténue, não só em virtude dos longos anos de separação, mas principalmente porque o próprio Agamémnon é capaz de assassinar o próprio sangue, se for do seu interesse, como vimos na primeira parte, e sem dar quaisquer mostras de arrependimento. Logo, o verdadeiro motivo para o assassínio de Clitemnestra só pode ser pelo facto de os príncipes temerem pela própria vida. Por outro lado, Orestes ao cometer matricídio em Coéforas, não o faz friamente. Na verdade, custa-lhe fazê-lo, pois desvia os olhos do rosto da mãe ao desferir o golpe. Os remorsos já o assolam ainda antes de cometer o crime. Mas ao matar Egisto, olha-o de frente. O ódio que lhe nutre, mantém-no ciente de que, ao matá-lo, defende a própria vida.

O remorso, desferido pelo impiedoso ataque da Erínia, expulsa-o da terra, obrigando-o a expiar a culpa no exílio, durante o qual irá quase sucumbir à loucura, à cegueira moral e à ruína.

Parte III - Euménides

O final de Coéforas foi marcado por um intenso clima emocional. E, no início de Euménides, encontramos, mais uma vez, um forte contraste com o final da peça anterior. A a chamada “paz délfica” (Pulquério, 2010) cria o cenário onde se irá debater não só o futuro de Orestes nas também o rumo e o teor dos assuntos jurídicos do tocante ao Direito Penal na Hélade.
Em Coéforas, havíamos já falado de duas diferentes concepções de justiça, associadas a duas classes diferentes de forças sobrenaturais ou duas classes diferentes de divindades: os deuses Olímpicos, representados por Apolo e Atena – Apolo fala em nome de Zeus, pai dos restantes deuses Olímpicos, com excepção de Hera – e as divindades ctónicas ou infernais representadas pelas Erínias. Neste julgamento está em causa, como antes já foi também mencionado, a passagem de uma sociedade matriarcal para uma sociedade patriarcal onde domina o princípio masculino. Em Euménides o tribunal dos deuses decide discutir se é mais grave matar um marido ou uma mãe Trata-se, na verdade, de uma questão insolúvel, que se torna evidente perante a fraqueza dos argumentos de ambas as partes. Apolo, por seu lado, desvaloriza o papel da mãe, na defesa doa filhos – aqui temos o primado do masculino, na visão Olímpica da sociedade. Já as Erínias, irão defender o ponto de vista oposto.

Ésquilo demonstra, com desenlace das Euménides, a necessidade de justificar a personalidade de Orestes, sem deixar de enfatizar a relevância do direito de Clitemnestra como mãe, que tem um valor máximo aos olhos das Erínias, permitindo a estas tomar a defesa incondicional da rainha de Argos. O julgamento é presidido por Atena, que pertence ao grupo dos jovens deuses, a qual parece tomar o partido de Apolo. Atena assume o papel de árbitro do destino. O julgamento termina com a igualdade de votos, tornando o conflito irresolúvel, mas implicando a absolvição do réu, pela aplicação do princípio in dubio pro reo (em caso de dúvida, decide-se a favor do réu). Nesta última parte da trilogia, ao contrário do sucedido em Coéforas,a problemática incide no conhecimento e não nas emoções - “Do plano frio e exigente do conhecimento”.

Ésquilo apresenta a decisão dos deuses como incontestável, algo que está patente na postura digna e irrepreensível de Atena. Por outro lado, a metamorfose das Erínias em Euménides, implica a superação do impasse e a diluição do conflito. O que acontece, na verdade, nesta última parte da trilogia, é a requalificação das competências destas três deusas, até agora infernais. Outra curiosidade é a de que o julgamento é feito por homens, mas presidido por uma deusa.
O princípio dominante é o de que todo o culpado deve ser punido. E aqui temos dois culpados de crimes graves: Orestes e Clitemnestra, onde cada qual tenta justificar o seu crime à sua maneira. Mas a partir de agora, o crivo será mais fino. A Morte significa sempre o fim do disfarce com que todos mascaram as verdadeiras motivações.. A máscara caiu para Agamémnon e Clitemnestra. Mas o acto de Orestes é ordenado por um deus (Será? Ou pelos interesses dos sacerdote? Ou do povo? Ou do seu próprio instinto de sobrevivência? Ou da sua ambição, da qual provavelmente, se envergonha?). Mas seja qual for o motivo que tenha levado Orestes a matar a própria mãe, este não partiu da hybris, havendo, ao invés disso, uma evolução acerca da natureza do crime que se liga ao sofrimento que o perpetrador experimenta e obriga à purificação e não à destruição, em nome da fama e da glória como é o caso de Agamémnon, ou do apego ao poder como é o caso de Clitemnestra.

No final, Zeus, o pai dos novos deuses, juntamente com a Moira vão decidir e deliberar quanto à passagem de homens e deuses a um estágio mais elevado, relativamente ao próprio destino. A Erínia é vencida, no tribunal cuja autoridade reconhece. Mas ao mesmo tempo, a sua natureza é tocada por um anseio de harmonia e paz que aproxima homens e deuses. E o instrumento desta transformação é a Palavra. As Erínias habitavam antes o Tártaro, a parte mais profunda e terrível dos Infernos, mas agora o seu domínio será o solo da Ática. São convertidas de perseguidoras cegas e furiosas em defensoras da verdade e da justiça, como garante do bem-estar espiritual e material. Este é um importante ponto de inflexão não só na História, mas também na forma de conceber o Direito, a Religião e as relações humanas para os Gregos. A vitória dos deuses olímpicos face aos deuses ctónicos dá origem a uma nova era: a era da Razão, representada pelas instituições que definem um estado de Direito. O Direito que vem responsabilizar o indivíduo pelos seus actos, sob o olhar benigno dos deuses.

O Drama

Em Delfos, a Pitonisa encarrega-se de contextualizar as personagens, ao mesmo tempo que representa o papel de porta-voz de Lóxias ou Apolo, profeta e deus. Pela voz da Pitonisa, Apolo repreende as Erínias, acusando-as de serem perpetuadoras da Vingança. Por outro lado, o Corifeu, representante da voz colectiva, acusa Apolo de ser o Autor do crime.
A entrada de Atena e a sua postura digna frisa o valor supremo da equidade, enquanto mecanismo regulador da justiça.

Apolo defende, conforme se pensava na época, que o matricídio não é crime de sangue, (hoje o argumento nunca seria válido), devido à crença de que a mulher não teria parte na concepção, apenas uma incubadora de novos seres.

O Final:

Face ao resultado, Atena dirige a sua acção no sentido de acalmar a fúria das Erínias ao proceder à requalificação das suas funções. Trata-as com o máximo respeito, de forma a que não se sintam humilhadas assim como Némesis, a deusa que garante o equilíbrio de poderes na administração da justiça, ao eliminar a Phtonos ou a Inveja, tida entre os Gregos como a causadora das maiores desgraças e infortúnios entre os homens.


Conclusão: Apesar da perda do primado do masculino e da desvalorização do papel da mulher na sociedade, com as consequências negativas que se verificaram para a população feminina das civilizações ocidentais, nos quase dois milénios e meio que se seguiram, a administração do Direito sofre uma evolução lançando, a partir dos séculos imediatamente a seguir à publicação desta obra, uma nítida salto qualitativo para o lançamento das bases para a fundação do Direito Romano, durante o período da República, que são as bases do Direito na Europa mesmo nos dias de hoje.


Fev 2012 – 8-03-2013
Cláudia de Sousa Dias

Sunday, April 07, 2013

“Cidade Proibida” Eduardo Pitta (Quidnovi)




Eduardo Pitta é poeta, ficcionista, autor de relatos, contos e, também, ensaísta. Nasceu em Lourenço Marques e viveu em Moçambique até 1975. É colunista na revista Ler e crítico literário na Sábado. Publicou dez livros de poesia entre 1974 e 2011, o romance Cidade Proibida de que hoje falamos, em 2007, uma trilogia de contos, Persona, com uma piscadela de olho a Ingmar Bergman, e um diário, tendo como pano de fundo a cidade de Veneza – Os dias de Veneza - , pintando- como uma série de quadros formando um painel ou então, um fresco, a ilustrar várias cenas emblemáticas da cidade. Publicou ainda o ensaio intitulado Fractura, em 2003, sobre a homossexualidade na Literatura Portuguesa.
Há poucas semanas atrás lançou, através da editora Tinta-da-China, o livro de viagens intitulado Cadernos Italianos, um périplo pelas cidades de Roma e Veneza, incluído na colecção de viagens dirigida por Carlos Vaz Marques.

Mas falemos de Cidade Proibida:trata-se de um romance de interditos. Para muitos, poderá parecer fracturante porque aborda temas incómodos para a franja mais conservadora da sociedade portuguesa, tais como o amor e a sensualidade erótica entre homens, o flagelo da Sida e consequentes alterações no quotidiano e nos comportamentos sexuais de todos os sujeitos, independentemente da orientação sexual, ao explorar as facetas do comportamento humanos que a moral católica insiste em ignorar.

Por outro lado, Cidade Proibida pretende traçar o retrato de uma franja muito específica da sociedade portuguesa: a elite económica lisboeta e respectivas ligações à esfera política e ao mundo da alta finança, ou seja, a elite económica da lisboeta e respectiva ligação ao gigantesco polvo financeiro que estende os seus tentáculos a nível mundial.

Outra dimensão explorada por Eduardo Pitta neste romance é a forma como esta mesma elite se relaciona com os outros elementos da mesma sociedade que pertencem a outros grupos socioeconómicos. Ou da quase ausência dessa mesma relação, nomeadamente, com a classe média e com a classe trabalhadora, salientando o esforço titânico da elite em preservar todo um modus vivendi no sentido de evitar a “contaminação” pela infiltração de elementos estranhos àquele grupo privilegiado. Esta homogamia das elites visa, como diria o sociólogo italiano Vilfredo Paretto, exercer pressão por parte das mesmas enquanto instaladas no Poder, no sentido de evitar a ascensão de novos elementos. Um exemplo deste tipo de atitude é a reacção da secretária de Martim, face aos namorados deste, não tanto pela relação homossexual em si, mas sobretudo pelas suas origens sociais, revelando uma fortíssima xenofobia social.

Eduardo Pitta empenha-se também, nesta obra, em equiparar os cenários de duas capitais europeias, as quais encerram em si dois pólos opostos no tratamento das questões das liberdades individuais: Lisboa e Londres. Esta última, a cidade onde Martim conhece Ruppert. Lisboa encontra-se no pólo oposto de Londres, sendo esta o lugar onde impera o sensualismo, sobretudo à noite onde não há lugar a inibições e todas as formas de desejo têm o seu lugar e forma de expressão, sem haver lugar à estigmatização moralista. Este é um facto facilmente constatado por Martim, na sua ronda pelos bares da capital britânica. Neste cenário, Londres surge valorizada em relação a Lisboa unicamente porque esta última privilegia a dissimulação do desejo, sempre que este se manifesta sem se enquadrar no perfil definido ela moral judaico-cristã.

A obra de Eduardo Pitta está normalmente conotada com a corrente de pensamento denominada de neo-expressionismo, a qual se associa a um “páthos autobiográfico” onde a voz do narrador se debate com as questões ligadas à identidade sexual. Esta corrente de pensamento e expressão artística marcou sobretudo as décadas de '70 e '80, cuja eclosão se deu em consequência da insatisfação do minimalismo. Como tal, os adeptos do neo-expressionismo procuraram sobretudo resgatar a figuração, a emoção declarada, a autobiografia, a memória, a psicologia, o simbolismo e a sexualidade. A pintura é salientada nesta corrente literária como meio de expressão transversal a todas as artes, sobretudo na Literatura e no Cinema. Sofrerá, também, a influência do pós-impressionismo e do surrealismo ao debruçar-se sobre as questões traumáticas e a relação com o passado, sendo que este último elemento é fundamental no desenvolvimento da relação de Ruppert e Martim no romance de que aqui tratamos.

Cidade Proibida é, pois, um romance que tem como tema central a identidade sexual e a forma como esta questão é encarada por três gerações diferentes ao longo da trama. O objectivo é dar ao leitor uma visão panorâmica da sociedade e da forma como a mesma vê as questões da sexualidade e da mobilidade social como se de um fresco se tratasse. Nesta visão panorâmica, é ainda evidente restos do pensamento do período do Estado Novo em algumas das personagens, sobretudo em relação à temática da descolonização.

Por tudo isto, Cidade Proibida torna-se um romance fascinante mostrando o mundo em que os Portugueses vivem de uma perspectiva não convencional. Enriquecedor é sair do “quadrado”.


Cláudia de Sousa Dias

07.03.2012 – 28.03.2013