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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, May 22, 2013

“Um céu demasiado azul” de Francisco José Viegas (ASA)





Mais uma aventura da dupla Jaime Ramos e Filipe Castanheira, acerca da qual Francisco José Viegas fala assim:

Enquanto escrevi este livro, dei-me conta que estava a atribuir à imaginação o resultado de aparentes pesquisas: em arquivos de jornais e entrevistas com personagens que a ficção exige que sejam inventadas e a quem agradeço terem acedido à conversa.

(…) há aquela intenção de confundir personagens reais com personagens de papel, por quem necessariamente me apaixonei a longo da história.
FJV


Francisco José Viegas nasceu em 1962 na região do Douro, provavelmente a razão pela qual muitos dos seus romances remetem para esse cenário, marcado pelo céu de um azul cerúleo, indescritível dos dias de Verão (demasiado azul) lusitano. No caso do romance de que aqui tratamos, é este o cenário dominante, o Douro vinhateiro, onde se encontra a chave do mistério, que está por detrás do assassínio de um homem, encontrado morto na mala de um carro. O desenrolar da acção estender-se-á, depois, com ramificações para o Porto, Lisboa e até mesmo à América do Sul.
A missão de desvendar o crime é atribuída a Jaime Ramos, inspector portuense e bonacheirão cuja jurisdição da respectiva esquadra abrange aquela região rural, pacífica só na aparência.
Filipe Castanheira, que se encontra nos Açores, acaba também por ser recrutado para ajudar o seu colega a resolver o mistério.

Caracterização das Personagens

Jaime Ramos é um polícia veterano, de meia-idade, que mantém uma cómoda relação de vizinhança – e algo mais – com Rosa, professora de literatura. Não partilham a mesma casa, mas mantém-se próximos quer física sexual quer emocionalmente, como iremos verificar alguns volumes mais adiante. E isto só acontece porque se trata de personagens que só são planas se considerarmos os romances cada qual isoladamente, sem relação com os outros volumes. Mas para já, a ausência de compromisso deixa margem de manobra – a Jaime Ramos, pelo menos – para ocasionais aventuras eróticas e escaldantes em esporádicos flirts, que servem para lhe conferir uma certa aura de Dom Juan, imagem que o inspector portuense ainda gosta muito de cultivar. Neste livro, em termos afectivos, Jaime Ramos parece ser uma ostra, sentindo-se impelido para paixões efervescentes embora de curta duração, mas sem se envolver e compromissos de longo prazo nem de se deixar arrastar para ligações muito profundas. Os deveres profissionais e interesse pessoal também parecem conspirar para a concretização de um desejo irresistível de conhecer novas paragens, saindo da rotina diária e burocrática da esquadra portuense, num impulso de evasão que Jaime Ramos sempre quis realizar mas fora sempre impedido pela restrição salarial que lhe proporcionava uma vida confortável mas sem grande margem para extravagâncias. Uma viagem que jamais poderia fazer com Rosa sem se endividar. Com o crime ocorrido no concelho de Amarante, Jaime Ramos tem a oportunidade de unir o útil ao agradável, deslocando-se primeiro a Cuba e, depois, ao México (deixando Rosa tristemente em casa) onde tem a oportunidade de se envolver com uma jovem e calientissima guia turística, que trata carinhosamente por papayto (paizinho)!


Filipe Castanheira é um polícia bastante mais jovem, tem menos dez anos do que Jaime Ramos e vive uma relação apaixonada, cheia de altos e baixos, com a sua companheira nos Açores, numa ilha que, exceptuando no tempo de férias, parece quase abandonada, trabalhando numa esquadra onde se instala a rotina. Ali, os dias escorrem de forma ainda mais lenta do que no Douro, onde o mistério que envolve o homem encontrado na mala do carro se vai adensando, tornando-se cada vez mais intrincado. As paixões e ligações complexas cruzam-se envolvendo várias personagens femininas e ligações inesperadas que irradiam para outros pontos do país. O caso torna-se mais complexo devido aos trâmites burocráticos, a que a falta de vontade do guarda António Gomes em colaborar não contribui para a sua resolução. Depois, junta-se a questão política, a intrometer-se no funcionamento das instituições e obrigar Jaime Ramos a deslocar-se pessoalmente ao interior do país, para descobrir as pistas do crime cometido em Amarante e seguir o rasto do assassino. A partir daí, o inspector portuense andará num torvelinho de viagens e deslocações o que faz com que peça ajuda ao seu colega nos Açores, qual resolve aceitar o desafio e sair da rotina anestesiante de todos os dias.

Jaime Ramos não parece ser um detective especialmente brilhante, se entendermos brilhantismo como sendo aquela espécie de inspiração demiúrgica, auxiliada por um raciocínio lógico, esquemático e acutilante como acontece nos romances de Sir Arthur Conan Doyle, protagonizados pela figura mítica de Sherlock Holmes ou mesmo de Hercule Poirot criação da escritora britânica, Agatha Christie. Jaime Ramos é antes alguém que espera pacientemente que os dias passem ao ritmo das estações do ano e cuja alma epicurista se rende ao apelo contemplativo de um céu demasiado límpido, na esperança que dali lhe caiam as pistas e venham ter com ele para solucionar o caso. O Inspector é um sibarita, que adora viver a vida com o melhor que esta lhe pode dar, deslocando-se sensualmente pelos cenários que o conduzem ao autor do crime, enquanto vai tomando notas das pistas que surgem e compõem o puzzle: os seus gostos gourmet, o refinamento da arte gastronómica que gosta de aplicar na sua cozinha, o degustar da beleza extrema da paisagem duriense, a qual conjuga com os seus conhecimentos alargados sobre vinhos. Tudo isto ajuda a confirmar este temperamento, à medida que avançamos no romance: Jaime Ramos é um homem paciente, que gosta de viver devagar, apesar de também, tal com Filipe Castanheir,a gostar da evasão de sair da rotina uma vez por outra, mas à qual gosta sempre de regressar. É o que acontece neste romance.

Um dos aspectos menos positivos do romance será, talvez, a escassez de densidade psicológica das personagens femininas presentes em Um céu demasiado Azul. Para isso seria, talvez, necessário construir um monólogo interior para Rosa e Amélia tal com Gustave Flaubert fez para Madame Bovary. Esta falha é, no entanto, compensada pela habilidade com que o Autor mistura os restantes elementos com que constrói não só a a personalidade de Jaime Ramos mas também de Filipe Castanheira,, sobretudo nas divagações e monólogos interiores de ambos. Dace a ist está aqui criada uma evidente assimetria de géneros, característica que será atenuada apenas nos romances mais recentes, sobretudo com a figura que Rosa, cuja importância começará a ganhar consistência. Neste romance, há contudo uma passagem em que Filipe Castanheira compara a actual namorada com os seus amores do passado, e onde o temperamento das amantes é projectado na morfologia dos respectivos órgãos sexuais, que surgem personificados, impregnados das características físicas e /ou psicológicas das suas possuidoras, muitas delas redundantes, o que resulta na construção de um discurso simultaneamente evocativo e caótico, a roçar o onirismo.

O céu, “demasiado azul”, da paisagem duriense e de Portugal no Estio estão presentes não só em Um Céu demasiado Azul mas no conjunto da obra de Francisco José Viegas como a representar a força telúrica de uma existência que só é idílica à superfície, impedindo de vislumbrar as brumas cinzentas de um Outono que já está à porta. Um Céu demasiado Azul é aquilo que se pode chamar de o retrato de um Portugal “à beira do crepúsculo” de que falava LeFigaro a propósito deste livro.

Cláudia de Sousa Dias
28.07.2012 – 28.03.2012

Wednesday, May 08, 2013

“Clarissa” de Erico Veríssimo (Âmbar)




Dados Biográficos:

Erico Veríssimo nasceu em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em 1905. Tinha de uma família outrora abastada, mas que foi empobrecendo. Sendo filho mais velho, tinha ainda o irmão, Ênio, e uma irmã adoptiva, Maria. Aos quatro anos de idade sofreu um ataque de meningite, juntamente com uma broncopeneumonia, da qual conseguiu curar-se. Destas reminiscências da infância poderá ter surgido a inspiração para construir a personagem de saúde débil do menino da cadeira de rodas em Clarissa. O impacto causado pela doença é notório nas suas obras, pela compaixão que despertam as personagens que sofrem de doenças graves ou crónicas, muitas vezes elas próprias emocionalmente devastadas.
Erico Veríssimo foi um aluno aplicado, mas discreto. Gostava de observar o pai a trabalhar na farmácia de que era proprietário e, na escola, no ano de 1914, já com cerca de dez anos de idade, cria uma pequena revista, Caricaturas na qual publica os seus desenhos e pequenas notas.

Aos treze anos, torna-se leitor assíduo dos grandes ícones da Literatura Brasileira e estrangeira e com, dezasseis, inscreve-se num internato de orientação protestante, em Porto Alegre. Em 1922, os seus pais separam-se, na altura em que termina o ensino secundário e Érico, Énio e Maria vivem, daí em diante, com a mãe e a avó. O pai, entretanto, perde a farmácia e Érico emprega-se no armazém de um tio, passando depois a trabalhar na banca. Paralelamente, o Autor de Clarissa, transcrevia obras de autores conhecidos como Machado de Assis e Euclides da Cunha, ao mesmo tempo que se deixava seduzir pela música lírica. Em 1926, torna-se sócio da Farmácia Central, juntamente com um amigo do pai. Este estabelecimento vem a falir quatro anos depois e Veríssimo só conseguirá saldar a dívida dezassete anos mais tarde.

Este escritor que pertence hoje em dia ao cânone da Literatura Brasileira chegou também a trabalhar também, como professor de Literatura e Literatura Inglesa. Em 1927, conheceu a jovem com quem viria a casar, Mafalda H. Volpe, então com quinze anos – a idade de Clarissa, no romance com o mesmo nome – da qual fica noivo dois anos depois. Começam a ser publicados, nesse ano, alguns dos seus contos.

Na década de '30, o jovem Autor muda-se para Porto Alegre, logo após a falência da farmácia, enquanto Mafalda permanece em Cruz Alta. Regressa a essa cidade um ano depois. É contratado como secretário da redacção da revista O Globo, passando a conviver com os intelectuais da época, de entre os quais se destaca Mário Quintana. Arranja, também, trabalho como tradutor como complemento ao trabalho na Redacção. Publica, em 1932, a colectânea Fantoches que consiste numa compilação de pequenos contos em formato de peças de teatro. Em 1933, publica o primeiro romance, Clarissa,

Entretanto, casa com Mafalda Volpe e regressa a Porto Alegre onde tinha conseguido relativa estabilidade financeira..Tiveram dois filhos: Clarissa, com o mesmo nome da protagonista do seu primeiro romance, e Luís Fernando Veríssimo, também ele escritor e reconhecido guionista.

Em 1935, Erico Veríssimo publica o seu segundo romance, Caminhos Cruzados, considerado subversivo pela Igreja Católica e pelo Departamento de Ordem Pública e Social, o que levou a que fosse interrogado pela polícia, a respeito da sua orientação política. Em 1936, publica mais dois romances que são a continuação de Clarissa: Música ao Longe (Prémio Machado de Assis) e Um Lugar ao Sol. Em 1938, publica Olhai os Lírios do Campo, traduzido para várias línguas. Torna-se, a partir de então Conselheiro Literário da Editora do Globo, seleccionando obras de Literatura Universal para serem traduzidas, e organizar colecções.

Em 1940, publica Saga romance que o Autor classificou logo como o seu pior trabalho de ficção..
Durante uma visita de três meses aos Estados Unidos, em pleno governo Roosevelt, Veríssimo testemunha o suicídio de uma mulher que se havia atirado do alto do edifício, facto que virá a inspirá-lo, já de regresso ao Brasil, a escrever mais um romance marcado pela polémica, O Resto é Silêncio, o qual recebeu também fortes críticas do clero.
Em 1943, o autor muda-se para os Estados Unidos com a família para uma estadia de dois anos afim de leccionar literatura, na Universidade de Berkeley, Califórnia. Sobre esta temporada na América do Norte, escreverá Gato Preto num Campo de Neve (1941) e A Volta do Gato Preto (1947). Decide permanecer mais algum tempo nos Estados Unidos por discordar do regime totalitário de Getúlio Vargas. A partir de 1947, começa a escrever a trilogia O Tempo e o Vento. O Primeiro volume O Continente (1949) seguido de O retrato, iniciado em 1950 e publicado no ano seguinte. Interrompe a escrita do último volume da trilogia, o qual sofreu vários adiamentos sucessivos, para publicar Noite. Nesse interregno, publica ainda México , um livro de viagens, em 1962. Entrega, finalmente a terceira parte de O Tempo e o Vento, O Arquipélago, para ser publicado em 1965. Nesse ano, sai também o romance O senhor embaixador, obra que arrebata o Prémio Jabuti e, em 1966 a sua autobiografia, O Escritor diante do Espelho. Em 1969, escreve mais um livro de viagens, Abril, e em 1971, dá à luz o romance Incidente em Antares, obra em que envereda pelo caminho do realismo mágico e surrealismo. Ira ainda completar a sua biografia, cujo segundo volume só vem a público a título póstumo, deixando, inacabado o romance A Hora do sétimo Anjo. Morre em 1975, com um enfarte fulminante.

Sobre Clarissa

O Autor escreveu este romance sob um impulso poético, lírico, com a naiveté de um apaixonado por uma mulher-menina, algo idealizada, a que imaginou poder chamar de Clarissa, ma que tudo parece indica tratar-se de uma projecção da jovem Mafalda Volpe.

Existem, no romance, paralelismo entre Clarissa e Amaro e Mafalda e o próprio Erico Veríssimo. Tal como o Autor do romance de que aqui tratamos, Amaro, o jovem pianista possui também um emprego monótono e rotineiro garantir a sobrevivência; enquanto que Clarissa é o próprio retrato de Mafalda na sua extrema juventude. A diferença de idades entre ambos, as origens sociais, as aspirações e o estilo de vida que levam (Clarissa provém de uma família remediada de agricultores que já tiveram bastante dinheiro) sugere em ambos a necessidade de adaptação uma vida com algumas dificuldades. O início de vida de Amaro, em Porto alegre é marcado por algumas evidentes restrições económicas, sinalizadas na preocupação de pagar o aluguer do quarto da pensão atempadamente e, em Clarissa, por nunca ter dinheiro para luxos.

A vida na pensão decorre segundo o ritmo lento dos dias, debaixo de uma tranquilidade aparente, mas as vidas dos habitantes da pensão familiar onde se desenrola a trama têm nuances que passam despercebidas aos observadores mais desatentos. São pessoas que partilham apenas parcialmente as suas vidas, mas na solidão dos quartos ou das suas mentes, escondem, cada qual, os seus segredos,só vislumbrados através de gestos muito subtis, ou captados pelo olhar de Amaro ou de Clarissa, sendo que esta última não tem, ainda, suficiente conhecimento da natureza humana os descodificar. A trama do romance consiste nisto mesmo, no lento processo de refinamento das capacidades perceptivas de Clarissa, face aos verdadeiros motivos que se escondem por debaixo das máscaras, com que, cada qual, reveste o seu comportamento. A aprendizagem custa-lhe a inocência e as dores do crescimento são inevitáveis quando percebe que as pessoas não são exactamente o que aparentam e que nem sempre é possível confiar em quem se diz amigo. Para Amaro, a vida na pensão poderá facilitar-lhe a integração no meio intelectual e pelo acesso às infraestruturas que lhe permitem desenvolver a sua arte..

A Pensão, como segundo lar da jovem Clarissa

O cenário do romance onde se passa a maior parte da acção é a pensão de D. Eufrásia, mulher de meia-idade a quem Clarissa chama carinhosamente de “tia”, assim como ao marido desta, o Sr. Couto. A jovem chega à cidade do interior do interior para estudar no liceu e tornar-se professora. É filha de agricultores da província, que tem dinheiro mas não de forma ilimitada, são pessoas de uma simplicidade tocante. Como Clarissa.
As personagens que habitam a pensão ou gravitam à volta dela, são todas elas representativas de determinados tipos sociais. Assim temos, Barata, o contador de anedotas de gosto duvidoso, boçal e glutão; Ondina, jovem e casada, mas com o marido sempre ausente ou desatencioso (adora cinema, mas o marido nunca a acompanha), gordo e sempre preocupado com os negócios; Amaro, um dos protagonistas, músico, discreto e introvertido, pouco sociável mas profundamente observador; Micefufe, um gato, silencioso e lânguido, esquivo, desliza suavemente pelos móveis e pelas pernas das pessoas (Micefufe é um flanneur, vive egoisticamente para si mesmo, sem encontrar empatia com ninguém; é um pouco o espelho da personalidade da maior parte dos hóspedes); Levinsky, o judeu que protagoniza acesas discussões religiosas, com o protestante Guimarães; o Major, reformado e bonacheirão; o Sr. Couto, marido de Dona Eufrásia, desempregado, diariamente humilhado por esta que o escraviza; Nestor, o bon vivant, de carácter duvidoso, acha-se irresistivelmente sedutor; Tonico, o filho da vizinha, deficiente físico, costuma vir para o jardim conversar com Clarissa; Pirulito, o peixinho dourado, observador permanente, na sua monótona vida de aquário a que o condenaram, só se altera quando invadido pelo pânico, motivado por uma súbita aparição de Micefufe, que se diverte a aterrorizá-lo; o indiscreto papagaio,eco das conversas dos hóspedes; e Dudu, a dissoluta, casada, mas mantém um romance secreto com Nestor.

Segundo Rodrigo Petrónio, autor do prefácio desta edição, Clarissa é detentor de uma série de elementos que fazem com a obra se possa enquadrar no género Bildungsroman, um romance composto por imagens ou quadros domésticos, embora sem o ser na sua forma mais pura. O romance trata,como já foi referido, do amadurecimento gradual da jovem Clarissa.. Todas as restantes personagens com quem convive diariamente na pensão e fora dela (Tonico, a mãe, a colega do colégio que frequenta) contribuem para o seu desenvolvimento, para a tomada de consciência de todas as dimensões de que é composta a vida humana:desde a sexualidade à influência e as repercussões da politica no quotidiano do cidadão comum. Para Rodrigo Petrónio, Clarissa só não é um Bildunsroman na sua forma mais pura porque o retrato de Clarissa, como personagem central, se encontra é rodeado por uma galeria de retratos secundários, vista na maior parte das vezes pelo olhar da jovem, embora com o distanciamento crítico dado por um narrador heterodiegético omnisciente. Este descreve o que ela vê como um observador externo que estivesse no local a ver exactamente o mesmo que a protagonista. É nisto que consiste o hibridismo do romance: um Bildungsroman, é-o mas não caracteriza unicamente Clarissa, é um o romance que ilustra a sociedade de finais dos anos vinte e início dos anos trinta, da classe média-baixa de Porto Alegre. Clarissa é assim, um continuum de descobertas da sua homónima protagonista já que o seu amadurecimento só vai sendo processado em confronto com o conhecimento do Outro e é com base nesta dicotomia de relexo (a de que ao conhecer o outro se conhece a si mesma ao perceber-se nos olhar desse mesmo Outro) a jovem vai construindo e moldando a sua própria personalidade. Amaro e Clarissa são, neste aspecto de descoberta contínua, o desdobramento da mesma personalidade, diferindo apenas no modo como o fazem: Amaro fá-lo do ponto de vista de observador participante na história, mas é uma personagem excêntrica, que se coloca um pouco à margem dos demais, na medida e que a sua existência é quase que alheada da dos restantes hóspedes. Amaro torna-se um observador que quase não intervém no rumo dos acontecimentos. Nisto é ajudado pela própria personalidade, tendente para a nostalgia, para a desilusão e para o desalento, motivado pela rotina de um emprego monótono e pouco estimulante para quem ambiciona enveredar por uma carreira artística. Já Clarissa, sendo a principal interveniente na história, vai interagir com, praticamente, todas as personagens que vivem na pensão ou que estão em contacto directo com ela, como é o caso da vizinha, a ex-governanta de um médico, com um filho deficiente. É através desta interacção social que a adolescente toma consciência da realidade, pela via empírica. A juventude e a inocência são os principais traços de personalidade que compõem o seu retrato físico e psicológico. As outras personagens são vistas pelos olhar de Clarissa, apesar de esta não falar na primeira pessoa. O narrador hterodiegético descreve o que vê Clarissa, a qual apenas regista na sua mente as impressões mas não profere juízos de valor, a não ser a um nível das atracções e repulsões mas sem qualquer tipo de pretensão moralizante. É como se fosse um antropólogo a registar o que observa no seu diário, enquanto faz uma monografia. Quando Clarissa começa a ser capaz de interpretar o que vê, termina o romance. As cenas de vistas pelo olhar de Amaro são sempre protagonizadas por Clarissa. São autênticos quadros impregnados da aura romântica, patente na idealização da inocência e juventude. Clarissa é o protótipo da mulher-anjo, sendo que o temperamento das restantes personagens, é projectado pela visão desta::

O Nestor. Sempre cantando. Sempre alegre. Clarissa gosta de pessoas alegres. Nem todas, na pensão, têm cara alegre. O mais triste é Amaro: tem ar de sofredor, olhos que estão sempre olhando para parte nenhuma. E, depois, aquela mania de viver em cima do piano, batendo à toa nas teclas, inventando músicas que ninguém compreende. Enfim com toda a gente diz que ele é um homem muito inteligente, é melhor não discutir...sorrindo, Clarissa entra no quarto.

Clarissa é, na verdade, como se fosse uma esponja: Ainda não tem a personalidade consolidada, mas absorve todos os gestos todos os olhares, embora ainda sem a capacidade de decifrar as atitudes que se escondem por detrás de cada gesto...O não conhecimento é, neste caso, a raiz da inocência. Só no final do romance a adolescente começa a ser capaz de pensar por si mesma, perceber que quase toda a gente, oculta segredos que mascara a todo o custo para garantir a aceitação social

Já Amaro, é diferente. Com todo o conhecimento do mundo que possui, está só. Existe um muro quase intransponível entre ele e os demais. Possui o mesmo sentido de observação de Clarissa, a mesma capacidade de registo dos detalhes, mas já com a capacidade de discernimento que falta à adolescente.

Clarissa cresce e, quando o romance termina, está quase a perder aquela a beleza intacta de adolescente com a graça infantil desprovida de malícia, a verdadeira causa da idealização da inocência: a aceitação do outro sem o julgar. Clarissa é o oposto da amiga, Elisa, a colega da escola, materialista e desejosa de experimentar sensações novas, sobretudo relacionadas com a sexualidade.

Clarissa sorve o último gole de café, lambe a ponta dos dedos lambuzados de mel e olha o relógio: sete e vinte. É preciso estar às oito no colégio. Raio de obrigação.

A última exclamação e os gestos exprimem a sua extrema juventude e imaturidade. Clarissa tem atitudes muito próximas da infância, exprime-se ainda de acordo com o princípio do prazer e reage com alguma impaciência, sempre que submetida a regras de conduta e convívio social pela tia, encarregue de zelar pela sua educação enquanto se encontra hospedada naquele local, ou pelo código de decoro da comunidade ou mesmo do sentido de responsabilidade que lhe é incutido pelos pais, à distância, e controlado pela Tia Eufrásia, no local ode reside em tempo de aulas:

Juizinho, minha filha, que estás ficando uma moça...

As idiossincrasias dos hóspedes – a boçalidade do gordo caixeiro viajante, a tentativa de requinte glamouroso de Belinha, sempre a compor o rosto com pó-de-arroz, desmentida pela vulgaridade do seu dente de ouro a manchar-lhe o sorriso, o mau humor da cozinheira Belmira, as eternas discussões políticas sobre o fascismo de Levinsky – todas elas são encaradas pelo olhar compassivo e benevolente de Clarissa, a qual só não consegue compreender Amaro e a sua melancolia. Mas ao mesmo tempo ela adivinha qualquer coisa de sinistro na personalidade da criança deficiente e na mãe desta, sobretudo na relação que estabelecem com os outros – um certo rancor pela normalidade.

O romance vai progredindo, como já foi dito, à medida que Clarissa descobre que o mundo não é a preto e branco mas que a realidade que lhe está subjacente declina numa infinita paleta de nuances: por exemplo, que o homem triste, a quem menospreza por não dar nas vistas, é alguém de valor e inteligente; que um temperamento alegre como o de Nestor pode esconder um carácter irresponsável ou, pelo menos, incapaz de medir as consequências das suas atitudes. Mesmo a vizinha, a mãe do menino “doente” esconde um temperamento sombrio, habituado a agredir e a culpar os demais sorte de pertencerem à normalidade, por terem uma vida melhor do que a sua, por serem felizes.


Clarissa está encantada (…). Estranha as fisionomias. Expressão de felicidade, de ódio, de aborrecimento, de serenidade, de indiferença, de ternura, de inveja. Caras que parecem máscaras que as pessoas mudam a cada instante.

(…)

Mas que mistério haverá na vida de Amaro? Sempre calado, ausente, abstracto, tristonho...Qual será o segredo de Belinha? Quem será o seu amor? Quem terá sido o marido de D. Glória?

O conhecimento da natureza humana opera em Clarissa, já no final do romance, uma alteração da perspectiva com que olha a realidade, o que é sempre um choque para quem está habituado a ver o mundo de uma forma linear, tal como ele se apresenta. Aqui há como que uma intertextualidade com a alegoria da caverna de Platão de forma a distinguir o mundo das aparências, a escuridão da caverna, e o mundo fora da caverna onde o ser humano passa a enxergar as cores da realidade. É precisamente aqui que se situa a fase final do romance onde começa a despontar a Clarissa adulta, na fronteira entre a adolescência à juventude.

Por causa da aura romântica da personagem, para Rodrigo Petrónio, “O estilo de Veríssimo às vezes redunda num abuso de cores e tons pastosos, e em adjectivos e romantismos excessivos, aspectos que ele irá resolver em seus livros posteriores.”

Mas é, muito provavelmente por causa desta naïfté que Clarissa pode ser considerado, um livro aconselhável a todas as idades, que se lê de um só fôlego, numa soalheira tarde de férias.

Março 2012 – 23 de Abril de 2013
Cláudia de Sousa Dias