HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, January 27, 2012

“Os Miseráveis” de Victor Hugo ( Planeta DeAgostini - Texto Integral)



Tradução de Silva Vieira




Dados Biográficos:

Victor Hugo nasceu em Besançon, no Doubs, em 1802. Foi o terceiro filho de Sophie Trébuchet e Joseph Hugo, oficial do exército de Napoleão. Este foi proclamado Imperador dois anos após o nascimento de Hugo, mas a monarquia dos Bourbon foi restaurada após o seu oitavo aniversário. Desta forma, a infância do escritor é marcada por acontecimentos de fulcral importância na História de França – e da Europa – os quais acabarão por se reflectir na sua escrita e, inevitavelmente, projectados em Os Miseráveis”. Hugo é produto, do ponto de vista ideológico, da mentalidade de ambos os progenitores que defendiam ideias opostas: a mãe, católica radical, defendia a Casa Real e a causa realista, estando associada ao boato de que teria, não obstante a sua religiosidade, sido amante de um general que teria conspirado contra Napoleão; o pai, Joseph, era pelo contrário, ateu republicano, vendo em Napoleão um herói nacional. O casal separou-se anos mais tarde por incompatibilidades diversas.
Os trabalhos do início da carreira de Victor Hugo como escritor mostram uma tendência simpatizante para com a Igreja e a Casa Real mas, após a Revolução de 1848, a Autor começa a demarcar-se da educação católica e monárquica inculcada pela mãe, assumindo a postura de um livre-pensador. Tendo iniciado a carreira de escritor em idade muito precoce, foi considerado um menino prodígio, tendo obtido, apenas com quinze anos, em 1917, o Prémio da Academia Francesa das Letras por um dos seus poemas. Publicou, em 1921, uma antologia poética intitulada Odes et Poésies Diverses que lhe valeu uma pensão do estado francês, concedida por Luís XVIII:
Um ano depois, publica o seu primeiro romance Han d’Islande. Casa-se com Adele, causando um sério desgosto ao irmão, o qual, anos mais tarde, enlouquece e é internado num hospital psiquiátrico. O casamento será tão conturbado quanto o dos pais, mas por razões diversas.
Em 1825, Victor Hugo recebe o título de Cavaleiro da Legião de Honra, com apenas vinte anos e, um ano mais tarde, passa a explicar, no prefácio do drama histórico Cromwell, os aspectos que o afastam do classicismo, dando a entender a necessidade de romper com as restrições do formalismo clássico e dedicar-se à plena exploração das múltiplas dimensões da natureza humana, defendendo a coexistência do sublime  e do grotesco no drama moderno. Hugo é, assim, caracterizado como a força motriz da segunda e terceira fases do romantismo na Literatura e herdeiro das concepções de Chateaubriand.

A peça de teatro Marion de Lorme, a qual tem como protagonista uma cortesã francesa do século XVII, é alvo de censura, por ser considerada “demasiado liberal”, em 1829, tendo os censores interpretado a obra como uma crítica a Carlos X.
Já o drama Hernâni de 1830 pode ser olhada como precursora de Os Miseráveis uma vez que o protagonista que, tal como Jean Valjean, é um herói romântico em luta contra a sociedade. Trata-se de uma obra que se empenha em colocar em evidência as injustiças sociais. A mesma obra divide opiniões, agrada aos jovens e causa algum incómodo nas gerações mais velhas àquela data. No entanto, contribui largamente para a consagração de Hugo como Líder do Movimento Romântico na Literatura Francesa.

Notre-Dame de Paris é publicado em 1931 e passa a ser considerado o maior romance histórico do Autor. Aparte da trama sentimental, que envolve o corcunda Quasímodo e a deslumbrante cigana Esmeralda, o estilo é essencialmente realista, particularmente no tocante à descrição da Paris medieval, a qual se entrelaça num enredo melodramático com muitas peripécias e reviravoltas, pejadas de ironia.

Em 1932, publica mais uma obra sujeita a censura, Le Roi s’amuse, baseada na vida amorosa do Rei Francisco I de França, pelo que o mesmo trabalho é acusado de expor a figura do Rei ao ridículo.
Victor Hugo passará algum tempo no exílio, em Jersey, entre 1853-1855, o qual condena veementemente, por razões morais, na obra Histoire d’un crime. O desprezo por Napoleão III leva-o a alcunhá-lo de Napoléon Le Petit, em oposição a Napoleão Bonaparte a quem considerava “o grande”.
A morte da filha, Leopoldina, deixa-o perturbado, tentando buscar refúgio no misticismo.
Victor Hugo influenciou ideologicamente alguns dos grandes nomes da literatura mundial do século XIX e XX como Albert Camus, Charles Dickens, Fiodor Dostoievski e José Saramago.

Os Miseráveis

Victor Hugo começou a arquitectar a grande obra literária da sua vida cuja temática incidia na miséria e a injustiça social, no início da década de 1830, um romance que só viria a ser publicado em 1862 e do qual Les derniers jours d’un condamné foi apenas um esboço ou ensaio. O Autor estava plenamente consciente da qualidade literária da obra, a qual foi objecto de uma cuidada e concertada estratégia publicitária invulgar para a época, sendo a primeira parte do romance – Fantine – lançada simultaneamente em várias capitais europeias. A obra esgotou em poucos dias e teve um impacto considerável na sociedade francesa daquela época. O conteúdo de Os Miseráveis não gerou, no entanto, consenso, munindo-se alguns críticos e escritores conceituados da época de algumas acutilantes farpas com que o apuparam: Flaubert afirmou que o livro não era “nem verdadeiro nem genial” e Baudelaire apelidou a obra de “sem graça e inepta”. Os Miseráveis ganhou popularidade  junto das massas fazendo com que os temas aí explorados, passassem a ser discutidos na Assembleia Geral de França, isto é no Parlamento.
A discussão de temas sociais e políticos aparece já diluída na obra seguinte. Les Travailleurs de la Mer foi bastante bem recebida pelo público, ainda cativado pela aura de Os Miseráveis. A mesma obra foi alvo de inúmeras adaptações para cinema, teatro e televisão.

Em L’Homme qui rit, Hugo faz um retrato crítico da aristocracia, mas o livro não é bem recebido. O Autor pretende, cada vez mais, distanciar a própria obra da dos seus contemporâneos como Flaubert e Zola, de tendência realista e naturalista que ganhavam terreno junto a público. Quatre-vingt treize (1893) foi publicada em 1874 e aborda um tema especialmente delicado que o autor até então se esforçara por evitar: o Reinado do Terror, dentro da Revolução Francesa. Trata-se de uma das grandes obras de Victor Hugo Autor ao nível das grandes publicações anteriores.

O Enredo de” Os Miseráveis”

Os Miseráveis foi publicado pela primeira vez a 3 de Abrilde 1862, em Leipzig, Bruxelas, Budapeste, Roterdão, Milão, Varsóvia, RIO de Janeiro e Paris em, simultâneo.
A obra estrutura-se em, cinco volumes. Cada qual tem uma personagem que se destaca e divide o protagonismo com Jean Valjean que está presente em todas as fases da trama, atravessando toda a saga do primeiro ao último volume.
A trama desenvolve-se no período de amplitude temporal compreendido entre duas grandes batalhas ou conflitos que marcaram a História de França no século XIX: a Batalha de Waterloo – na qual o exército de Napoleão saiu vergonhosamente derrotado, após enfrentar as tropas do general Nelson, à frente do Exército britânico, o qual apoiava a causa realista daquele país e via o Império, encabeçado por Bonaparte, uma séria ameaça à soberania dos restantes estados Europeus – e os motins de Junho de 1932, opondo a facção simpatizante das ideias bonapartistas ao governo de Luís XVIII.
A história gira à volta de um homem do campo, um trabalhador agrícola que dedica a vida a podar árvores e vinhas, trabalhando duramente para ajudar a irmã a sustentar uma família numerosa de seis filhos. Um dia, o desespero causado pela fome, impele-o a assaltar uma padaria e roubar um pão. A consequência de ser apanhado em flagrante vale-lhe uma condenação às galés por cinco anos, pena que é agravada e multiplicada pelas várias tentativas de fuga, fazendo-o passar quase uma vintena de anos no degredo.
Aquando do regresso, Jean Valjean traz consigo o estigma do condenado às galés, facto que o relega para a condição de excluído social: ninguém lhe dá trabalho ou guarida para passar a noite, mesmo pagando. Ao aspecto maltratado, junta-se o passaporte amarelo, a insígnia do criminoso que não merece sequer um voto de confiança para pernoitar num lugar abrigado.
No entanto, Jean Valjean parece ter o encontro marcado com o destino, incarnado na figura do Bispo Myriel: após ser-lhe indicada a morada do clérigo, como o lugar onde deverá tentar pedir dormida, o abade decide resgatar aquele homem de ar desesperado da condição de excluído. Primeiro, concede-lhe um voto de confiança – que ele trai – e depois, ao conceder-lhe uma segunda oportunidade, fornece-lhe os meios para iniciar uma nova etapa na vida.
A história de Os Miseráveis parece ser o inverso da de Fausto de Göethe na qual o protagonista, ao invés de vender a alma ao Diabo, vende a alma a Deus que fica com ela como garantia de que este irá mudar de vida: o Bispo Myriel, homem incorruptível, de hábitos frugais, pouco amante de luxos e dono de uma infinita bondade, exige a alma de Jean Valjean em troca dos meios para cumprir a missão de praticar o Bem durante o resto da vida: uns castiçais e um faqueiro de prata.
Myriel dá-lhe os meios materiais para o “salvar”, chegando até a mentir às autoridades para tal mas obriga-o a contrair uma dívida moral da qual Myriel será credor nesta vida e mesmo após a própria morte. Uma dívida que Valjean terá de amortizar durante o resto dos seus dias. Valjean terá, pois, de usar a prata para se tornar um homem íntegro. Myriel só lha concede por saber tratar-se de um homem que não é intrinsecamente mau, mas corrompido pela sociedade e falta de oportunidades. Este ainda tem o impulso de roubar para sobreviver – patente no incidente com a moeda do pequeno Gervais – afinal não é fácil mudar hábitos enraizados ao longo de anos de convivência com criminosos e transformar o ódio ou rancor à sociedade – mediante um castigo desproporcional à falta cometida – em compaixão.
Jean Valjean muda-se para outra cidade, adopta o nome de Pére Madeleine e torna-se num próspero empresário, fabricante de acessórios de azeviche. É, agora, um homem respeitado e admirado. Tornar-se-á, então, no Maire de Montreil-sur-mer. No entanto, a inveja espreita, insidiosa…
Madeleine era, no tempo das galés, conhecido pela sua força prodigiosa sendo apelidado de “o Guincho” ou guindaste. Num dia em que a mesma força se torna necessária para salvar um aldeão que fica entalado debaixo das rodas de um carro de bois, Javert, o chefe da polícia daquela localidade reconhece-o. A nova máscara social com que decide recomeçar a vida ameaça desfazer-se.

Este primeiro volume de Os Miseráveis intitula-se de Fantine, a primeira grande figura feminina com a qual interage o protagonista.
Fantine é uma figura trágica, directamente emanada do romantismo. Mulher socialmente vulnerável, pelas suas origens, filha bastarda, de beleza fulgurante e delicada, tem, no entanto, o poder de atrair o infortúnio e, ao mesmo tempo, de quebrar a aparente inflexibilidade do “Pére Madeleine”.
A estrutura deste primeiro volume da obra é desenvolvida de forma assaz simétrica e inversamente proporcional: à ascensão social de Jean Valjean opõe-se a queda irreversível de Fantine. O volume termina com o julgamento de Madeleine, após a denúncia de Javert e um final trágico para Fantine.
As temáticas para as quais o Autor chama a atenção eneste prieiro volume prendem-se sobretudo com a “ingenuidade” das leis e as lacunas no Direito que afastam a sua aplicação do ideal de justiça, com a desigualdade de oportunidades e, particularmente, com a vulnerabilidade social e sujeição a maus tratos a que são sujeitas as mulheres, sobretudo nas classes sociais mais desfavorecidas, incarnadas na bela e infeliz Fantine.

O segundo volume é dedicado a Cosette, filha de Fantine, cuja custódia é entregue por esta a Jean Valjean. Cosette representa para o ex-condenado o amor absoluto e desinteressado, o qual se alia a um forte desejo de protecção, despoletado quando a salvo dos maus tratos e sevícias dos Thénardier, um casal de patifes que se dedica à extorsão e em grande parte responsáveis pela morte de Fantine. Valjean salva-a não só dos maus tratos mas também da sorte que lhe estaria reservada quer pelas origens sociais quer pela beleza, herdada da mãe, beleza essa que se mantém durante muito tempo semi-oculta, devido à vida difícil a que é sujeita durante os primeiros anos de infância. A fragilidade social e o apreço normalmente concedido à beleza feminina fariam com que Cosette se transformasse numa criança de risco.

Os capítulos que, dentro deste volume são dedicados à batalha de Waterloo, servem não apenas para situar a acção num dado momento da História de França, mas também como documento, pela detalhada descrição das tácticas militares empregues na batalha e, ainda – e sobretudo – como fio condutor que não só explica em parte a personalidade de Thénardier, como a atitude de algumas personagens ligadas a Fantine e Cosette – o pai de Marius e o próprio Marius, protagonista do terceiro volume. A atitude de Mr. Thénardier durante a batalha serve para denunciar a farsa que representa para a comunidade ao fazer-se passar por homem recto, desmentindo a reputação de soldado diligente e cumpridor que Thénardier se encarrega de difundir. O mesmo Thénardier é o oposto de Jean Valjean, isto é,  um patife até à medula, sem remissão possível. A mulher, Mme. Thénardier, parecer ser mais uma mulher dominada pela inveja e pelo ressentimento.

Cosette é o volume de Os Miseráveis que chama a atenção para o problema das crianças maltratadas, ao descrever com detalhe o comportamento, as atitudes a as marcas físicas, das crianças submetidas a maus-tratos físicos e psicológicos de forma constante e prolongada. Com o crescimento, a filha de Fantine tornar-se-á numa criança resiliente, graças à intervenção de Jean Valjean.

Os Thénardier comportam-se, ao longo de todo o romance, como autênticas hienas, capazes até de maltratar os próprios filhos. Na verdade, quando as coisas ainda correm bem, as duas filhas mais velhas, Eponine e Azelma, conhecem uma vida familiar calma, são amadas, bem alimentadas e vestidas. Mas os filhos mais novos não têm a mesma sorte e são votados, desde cedo, ao abandono. Mais tarde, quando as dificuldades aumentam, estes pais acabam por se desleixar mesmo em relação à duas filhas mais velhas e a obrigá-las a colaborar nos seus crimes. As crianças Thénardier sofrem, todas elas com os abusos dos pais. O Autor dá a entender que o futuro destes sibblings poderia ser muito diferente, caso tivesse havido uma intervenção externa, como houve no caso de Cosette. Partilhando dos ideais de Jean-Jacques Rousseau, de que o homem nasce naturalmente bom e que é a sociedade que o corrompe, Victor Hugo mostra-se conforme ao pensamento do pai do Humanismo, ao sublinhar a mudança progressiva de atitude de Eponine e Gavroche, mediante e influência positiva de Marius, nos volumes seguintes.
Eponine surge, já no final do segundo volume e, depois no terceiro, precocemente envelhecida, apesar de ser ainda adolescente – a Eponine cabe-lhe um destino muito semelhante ao de Fantine: a queda é inexorável e irreversível. Aparece sub-nutrida, coberta de andrajos, a beleza evaporada e a instrução completamente negligenciada.

No terceiro volume, o principal interveniente é Marius, a personagem a quem, nesta terceira parte, é concedido o maior destaque, partilhando o protagonismo com Cosette e Jean Valjean.

A par das personagens heróicas, o Autor destaca neste capítulo a vida das crianças de rua e o incontáveis riscos que decorre o estilo de sobrevivência no fio da navalha, onde  a morte espreita em cada esquina. Gavroche e Eponine serão protagonistas de um drama pungente, enquanto os irmãos mais novos desaparecem de vista sem deixar rasto.

No início no volume, Marius ainda procura os Thénardier pois está convencido dever-lhes a vida do pai, a quem Thénardier supostamente teria tentado socorrer em Waterloo. Este equívoco será responsável pelo adiamento da história e pelo facto de o casal de vilões continuar, ainda, durante bastante tempo, a assombrar a vida de Cosette e a de Jean Valjean.

Um dia, ao cruzar-se com Cosette no jardim de Luxemburgo, Marius apaixona-se irremediavelmente – o arrebatamento do amor à primeira vista, tão valorizado o Romantismo, com símbolo de rebelião às convenções sociais e à ordem estabelecida – e inicia-se a fase seguinte do romance.

Gavroche, apresenta-se, ainda neste volume, como o gaiato típico, isto é, como o esquivo e travesso garoto de rua, com as manhas de uma pequena raposa usadas para sobreviver, mas com um código de honra muito próprio. É generoso e compassivo, como demonstra a cena onde acolhe os irmãos mais novos, desconhecendo-lhes no entanto a identidade – as crianças tinham sido entregues a uma ama que os abandona por falta de pagamento –, mas acaba por perdê-los de vista. A forma comovente como os protege na adversidade, transidos pelo frio do álgido inverno parisiense e pela fome, lembra o pungente filme iraniano do século XXI As Tartarugas também voam, no qual uma jovem rapariguinha prestes a atingir o limiar da adolescência alimenta o irmão, sem braços.
Após uma emocionante cena de polícias, ladrões e tiroteios, os Thénardier são, finalmente, presos juntamente com alguns membros da quadrilha Patron-Minette, a qual semeava o terror pela cidade. Eponine e Gavroche saem ilesos. Sobretudo este último, que não participava dos crimes dos pais.

No volume IV, intitulado de O Idílio da Rue de Plumet e a epopeia na Ruae Saint-Denis, a acção é totalmente baseada nos acontecimentos que desencadearam os motins de Junho de 1832  e as barricadas da Rue de Saint-Denis, factos históricos que servem de cenário ao romance, enquadrando-o no contexto da Revolta de Paris de 1832.

Ainda ano livro III, deste volume IV - Intitulado A Casa da Rue Plumet -  o Autor explica a forma como Valjean e Cosette deixaram o convento onde se refugiaram, fugidos de Javert e dos Thénardier, e se mudam para uma vivenda na Rue France, durante uma pequena analepse.

Voltando ao presente, Eponine encontra Marius, por quem está apaixonada e, para o cativar, faz-lhe saber onde vive Cosette.
Entretanto, os Thénardier ainda conseguem fugir da prisão e reconstituir a quadrilha. Planeiam invadir a casa de Jean Valjean, assaltá-la e extorquir o proprietário. Eponine, frustra-lhes os planos ao sabotar a missão, por amor de Marius, apesar de saber que este ama Cosette.

A paixão de Marius por Cosette vai desencadear, ainda, um drama familiar, devido às reticências de Mr. Gillenormand, avô de Marius, aristocrata conservador e anti-bonapartista. Marius é um romântico, logo é improvável que se comporte da mesma forma que o amante de Fantine – o típico marialva do Antigo Regime – sabendo, por outro lado, que a sua Cosette jamais se prestaria ao papel de concubina..

A morte do General Lamarque, que desempenhara um papel fulcral no Exército de Napoleão, é o rastilho de pólvora que despoleta a insurreição popular em Paris de 1932, dando origem a violentos conflitos, precisamente na altura em que o cortejo fúnebre pára na ponte de Austerlitz.
Gavroche junta-se a um grupo de revoltosos numa tipografia, encabeçado por Enjolras, Courfeyrac e Combefère. Javert, no entanto, infiltra-se no grupo, mas é denunciado por Gavroche. Ao mesmo grupo juntar-se-á também, mais tarde, Marius, na Taberna Grunthe, onde Javert é amarrado a um poste.

Eponine morre durante a barricada, ao tomar, um impulso, a resolução de salvar a vida de Marius. A verdadeira personalidade de Gavroche é revelada ao juntar-se ao grupo de Enjolras e a aprender o ofício de tipógrafo, recusando-se a enveredar pelo mundo do crime como os pais e tomando aqueles jovens como modelo de conduta...

A morte de Gavroche durante a barricada é um dos momentos mais angustiantes do romance, uma vez que, até ao último instante, o leitor é deixado em suspenso, na esperança que o “gaiato” consiga iludir a perseguição da Morte pelas ruas, do outro lado da barricada…

O volume V é dedicado ao desfecho da História de Jean Valjean e ao romance entre Cosette e Marius. Um acto heróico de Valjean faz lembrar vagamente uma cena de O conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas. Trata-se de uma cena infernal, subterrânea, uma viagem pelos esgotos de Paris, que constitui uma metáfora extremamente bem conseguida através da descrição vívida de uma realidade física, mas a simbolizar a obscenidade da miséria e, simultaneamente, da corrupção da sociedade. A descrição da imensa cloaca subterrânea parisiense é impressionante, ocupando quase um capítulo inteiro. O autor faz, aqui, uma analogia, cujo objectivo consiste numa chamada de atenção para o acelerado desenvolvimento económico, já no século XIX, parecia seguir uma linha que, além de por em causa a sobrevivência futura da humanidade pelo impressionante impacto ambiental que dele decorre, escondia, debaixo da capa da ostentação, a imensa miséria social germinadora de conflitos, tal como o lixo que desemboca no esgoto. Este “lixo” (que não é apenas desperdício) pode, no entender do Autor ser reutilizável, deixando assim de constituir uma ameaça. Tanto no que respeita ao lixo físico, quanto do capital humano subvalorizado, desaproveitado e excluído socialmente, que ameaça tornar-se uma bomba relógio para a paz social, quanto da mesma forma que a porcaria dos esgotos ameaça transbordar da superfície e invadir as ruas da cidade.
A faceta magnânima de Valjean está patente no último encontro com Javert, por ele salvo de morrer às mãos dos revoltosos, numa batalha que se revelou tão trágica quanto a das Termópilas. Neste último encontro entre os dois antqagonistas, dá-se um emocionante debate entre Ética e Justiça e o eterno conflito entre “a letra da lei” e o “espírito da lei”, pretendendo este último aproximar-se mais do ideal de Justiça, em oposição à mera aplicação formal dos resultados de actos legistativos.

O final do romance é emocionante e a tensão, esticada até ao limite. Esta é dissipada com a eliminação do foco de interesse dos vilões, os quais desaparecem para outras paragens, em busca de novas presas. Um final digno de uma obra que marca o período áureo do Romantismo na Literatura, onde a emoção ocupa o lugar privilegiado. As personagens são heróicas e exibem comportamentos sublimes, veiculados a essa mesma heroicidade, desde Javert a Valjean, passando por Marius e Cosette.

As personagens de Victor Hugo em “Os Miseráveis”

O romance é composto por um vasto leque de personagens. Muitas delas contempladas apenas com uma breve aparição num romance que é, na verdade, uma saga em cinco volumes, ao passo que outras são ubíquas, aparecendo se não em todos, pelo menos na maior parte, dos mesmos cinco volumes de peripécias.

No primeiro caso, temos uma boa parte das personagens que aparecem somente no primeiro volume – secundárias, por fazerem parte de uma narrativa que é, também ela, secundária: o passado de Valjean e as origens de Cosette. São elas, a irmã e os sobrinhos de Valjean, que desaparecem sem deixar rasto nos volumes seguintes, o abade Myriel, determinante na conduta futura de Valjean, o pequeno Gervais, que serve para demonstrar a fraqueza de espírito e as feridas no carácter do protagonista e, claro, Fantine, a qual, apesar de figurar apenas no primeiro volume, deixará marcas indeléveis que irão condicionar o percurso das restantes personagens como Valjean, Cosette e os Thénardier. Fantine aparece, primeiro, como uma figura idealizada, pela beleza e ingenuidade e, depois, santificada pelo sofrimento e capacidade de abnegação. Aliás, quase todas as personagens femininas em Victor Hugo são planas, resultando de idealizações de vários tipos sociais femininos, a que Cosette e Eponine ou Madame Thénardier não fogem à regra.

Temos, ainda, as personagens principais que estão presentes em todas as fases seguintes: os antagonistas Valjean e Javert (que também figuram no primeiro volume), os Thénardier, Cosette (surge a partir do segundo volume) e Marius (dá entrada no terceiro volume).

Valjean é, pelo contrário, uma personagem que vai ser objecto de modelagem, cuja personalidade vai sofrendo alterações, fruto das circunstâncias e da aprendizagem pelo sofrimento e, sobretudo, pelo compromisso a que foi votado pelo Bispo Myriel e pelo voto de confiança dado pelo mesmo, que o faz acreditar outra vez na Humanidade. Valjean sofrerá todo um processo de transformação que o leva a passar de criminoso a filantropo.

A transformação de Cosette não se dá tanto ao nível de personalidade, mas ao nível de autoconfiança e físico, devido aos condicionamentos a que foi sujeita nos primeiros anos de vida que se reflectem no aspecto exterior, decorrente ausência de afecto, carências alimentares e maus tratos. Trata-se mais uma vez, de uma personagem feminina que é idealizada pelo Autor, a incarnar a figura da heroína romântica, ou uma “princesa” de origem plebeia. Cosette é o patinho feio que se transforma em cisne, fruto das condições ambientais.

Javert começa por ser um polícia que peca por excesso de zelo, no tocante ao cumprimento da lei, uma atitude que mudará ligeiramente ao pôr em causa as próprias acções, no final do último volume.

Marius é o típico herói romântico, neste caso um jovem aristocrata simpatizante das ideias liberais que se desentende com o avô, empedernidamente monárquico e conservador. Estuda direito e, mercê das afinidades ideológicas com o pai, juntar-se-á à facção dos estudantes revolucionários liderada por Enjolras.

O casal Thénardier incarna a alma corrupta do romance, da venalidade. São peritos em extorsão, assaltos, pilhagem liderando uma perigosa quadrilha que aterroriza as ruas parisienses.

Eponine, filha mais velha dos Thénardier, é uma jovem que é, inicialmente, treinada para a vida no crime pelos próprios pais, mas as suas convicçõe assumem uma natureza deferente depois de conhecer e passar a admirar Marius, tomando-o como modelo de conduta.

Gavroche, o terceiro filho dos Thénardier, é uma personagem coadjuvante do grupo de revoltosos. Consegue captar a empatia do leitor, pela forma empenhada como protege os irmãos.
Enjolras tem a personalidade de um líder, defensor dos ideais da revolução Francesa, será outra figura modelar para Gavroche.
As freiras que acolhem Cosette e Valjean, enquanto este foge da perseguição de Javert são também, fortes aliadas dos protagonistas. O Autor dedica, também, um capítulo inteiro a descrever os efeitos psicológicos e emocionais nas religiosas, decorrentes do extremo isolamento a que são votadas e cujos hábitos austeros levam muitas delas à loucura.

Ainda na primeira parte, a irmã Simplice, que cuida de Fantine, é uma das personagens mais comoventes pela atitude assumida ao passar por cima das próprias convicções (nunca mentir), em nome da Justiça e da Compaixão, para ela valores tidos como Absolutos. Trata-se de uma personagem que ao contrário de Javert, age de forma pós-convencional.

Mr. Maboeuf é outra personagem que, na recta final do romance, no auge dos acontecimentos explosivos, consegue despertar grande comoção nos leitores. Trata-se de um tesoureiro que empobrece até ao extremo e de forma inexorável, chegando ao cúmulo de vender os livros e todas as plantas que ama. Junta-se aos seus alunos e à insurreição, durante a qual acabará por falecer.

Marius é o único que contradiz um pouco o carácter heróico destas personagens. Sendo um tipo social construído a partir da ideia do romantismo, o jovem galã romântico revela, no entanto, uma fragilidade: um espírito condescendente que o torna particularmente vulnerável à acção dos Thénardier, colocando os outros protagonistas na mira da quadrilha de patifes.

O estilo literário de Victor Hugo

Algumas descrições, como a batalha de Waterloo ou a imensa rede de esgotos de Paris  ou, mesmo, os motins de 1832/1833, realizados com o objectivo de restaurar a República e derrubar a casa de Orleães, são todas elas, dotadas de grande realismo, devido à profusão dos detalhes, que sugerem terem sido as cenas senão vivenciadas, pelo menos descritas por testemunhas oculares.

A linguagem é cuidada e elaborada, o Autor jamais utiliza a palavra calão, substituindo a palavra “merda” por “porcaria” ou “excremento” e “prostituta” pela pudica expressão “mulher pública”, por exemplo. Victor Hugo, no tocante às preocupações ambientais demonstra claramente ser um homem à frente do seu tempo, ao denunciar a (ir)responsabilidade, tanto do Estado como dos particulares, na poluição dos rios, causada pelo despejo de dejectos humanos, os quais, no seu entender, deveriam ser canalizados para a produção de fertilizantes, poupando fortunas na compra de fertilizante de origem avícola e aumentando a produção no sector primário da Economia.

O Homem, o Humanista

Sendo um reformista, Hugo nunca adoptou, no entanto, o discurso marxista da luta de classes, por acreditar que o Homem deveria usufruir do produto do próprio trabalho. Não deixou contudo de reforçar a ideia da responsabilidade social que acompanha o enriquecimento. A ideia está patente na obra, sobretudo na primeira parte, numa altura em que Pére Madeleine se empenha em prestar auxílio às funcionárias em dificuldades, como mostra ser o caso de Fantine. Victor Hugo foi, também, um forte opositor do uso da violência, sempre que esta colocasse em risco um governo democrático. Contudo, justificava-a quando utilizada contra aquilo a que chamava de “um poder ilegítimo”. Victor Hugo manterá a mesma posição até à altura da guerra franco-prussiana, a qual via como uma guerra de capricho e não de liberdade”. Sem esquecer que foi uma das grandes figuras da Literatura Universal que felicitou Portugal por, em 1876, ter aprovado a lei da abolição da pena de morte, sendo Portugal o primeiro país Europeu a fazê-lo.

Por altura do seu falecimento, em 1870, estima-se que mais de um milhão de pessoas tenha comparecido ao enterro para lhe prestar homenagem. Dizem, ainda, as más-línguas que, à data, as prostitutas de Paris ficaram de luto. Um justo agradecimento a um homem que defendeu os direitos das mulheres e a igualdade de oportunidades de género no acesso à educação e ao trabalho.


Cláudia de Sousa Dias
25.04.2011 (reformulado a 25.01-2012)

Monday, January 16, 2012

“Poemas com Cinema” Antologia Organizada por Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martello – Projecto FCT (Assírio & Alvim)




No prefácio, intitulado Antes do Filme, os organizadores desta antologia explicam os critérios de selecção a agrupamento dos textos:
Os poemas agora reunidos ilustram diferentes formas de diálogo da poesia dos séculos XX e XXI com o cinema. A amplitude do corpus poético aqui apresentado e a diversidade das poéticas nele desenvolvidas comprovam que o cinema tem merecido uma acção continuada por parte dos poetas portugueses. Foi a esta cumplicidade que procurámos dar relevo.”
A amplitude temporal do conjunto de poemas de que aqui tratamos abarca as décadas de 1930 a 2010, mas o critério de agrupamento segue uma ordem temática e não cronológica o que justifica a afirmação de que o objectivo da antologia foi o de “confrontar  ou aproximar diferentes autores, (…) abrindo alguns caminhos que o leitor facilmente poderá expandir ou reorganizar de acordo com os seus interesses”.
Os mentores deste projecto explicam a ausência de poemas ligados ao primeiro momento modernista em Portugal com base no facto de que «a sétima arte teve um impacto residual na criação poética dos escritores de Orpheu, pautando-se por referências ocasionais ou, em alguns versos, pela inclusão de vocabulário cinematográfico em alguns trabalhos de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos e Bernardo Soares) e Almada Negreiros». Os autores da antologia vêm o caso da revista Presença como “um caso ainda mais complexo”, uma vez que colaboradores como José Régio e Adolfo Casais Monteiro colaboraram, também, em publicações relacionadas com o cinema. No entanto, afirmam que «descontados alguns poemas de Edmundo Bettencourt, José Gomes Ferreira e António Botto, o rasto que esse interesse deixou na lírica da Presença resume-se a pouco mais do que uma série de referências avulsas a um mero entretenimento das tardes de Domingo.» São, ainda, da opinião de que o diálogo entre a poesia e a arte cinematográfica é mais difícil de ser estudado porque a correspondência entre as duas formas de expressão artística é menos evidente do que a narrativa. No entanto, na poesia moderna contemporânea não está excluída a narratividade, para além de este género de poesia estar relacionada com uma temática de elevado teor imagético a qual associam um pouco à montagem cinematográfica:

«O fascínio pela imagem, a importância atribuída à relação entre as imagens e o seu poder evocativo justificam a cumplicidade tantas vezes evidenciada nos poemas agora reunidos

A Antologia está dividida em subtemas. O primeiro tem a ver directamente com o lugar onde começa a cinefilia e onde se forma o público cinéfilo: a sala de cinema. No cinema , é o lugar onde é tratado o ponto de vista do espectador e a forma como este é afectado palas imagens que perpassam na tela. O segundo grande momento da obra chama-se Depois do Filme. A intenção dos autores em incluir este conjunto de poemas nessa fase é a de ilustrar uma determinada temática ou género de filme específico. A terceira parte desta antologia é composta por uma colecção de retratos sob a forma de poemas, dedicados a cineastas, actores e personagens de filmes míticos a que se chamou de Homenagen”. E chegamos à secção Onde o cinema se insinua. Os textos incluídos neste segmento da obra implicam, já, uma relação ou forma de diálogo entre o cinema e a poesia que se exprime num caminho bastante mais indirecto para a compreensão «d’os diferentes níveis de apreensão do universo fílmico, as técnicas de produção de imagem cinematográfica, os movimentos de câmara em filme que se traduzem num “olhar inovador” (…) e num vocabulário específico que proporciona formas de renovação do discurso poético.» Para os investigadores responsáveis pela organização desta antologia, há como que uma influência mútua entre as duas artes que revoluciona  quer o discurso, numa delas, quer a forma de olhar, na outra.
Há, ainda, um conjunto extra, á laia de um posfácio, a que dão o título de “Filmagens” o qual inclui textos onde a presença do cinema surge nas entrelinhas por meio de um processo ecfrástico e de transposição de discurso onde o próprio poema é concebido como um filme.

Comentário:

Da primeira parte, No Cinema, destaca-se a beleza do discurso narrativo  de Cinemas abrindo com Herberto Helder, num arrebatamento deslumbrado do seu Cinema. Segue-se Edmundo Bettencourt, a acutilância de Ana Hatherly na sua Tisana 45, o drama implícito na morte inesperada de uma diva que em tudo se parece com Marilyn Monroe n' A Matiné das duas e Armando da Silva Carvalho. Sem falarmos das peripécias do hilariante e trapalhão espectador de A Invenção do Chimpanzé de Alberto Pimenta ou O Atalante de José Miguel Silva.

Depois do filme, temos a impressão da reescrita da narrativa após a montagem. A secção abre com um texto soberbo de António Botto seguido de Jorge de Senna com o fabuloso Couraçado Potemkin, inspirador da pequena grande homenagem que se lhe segue a cargo de Pedro Tamen. Nesta secção sobressai, também, o fortíssimo poder imagético de Ivan, o Terrível, no Alentejo de Alexandre Pinheiro Torres, a descrever todo o aparato de montagem de uma estrutura que irá permitir que o filme passe em plena praça pública. Curiosamente, a projecção desenrola-se ao mesmo tempo que a revolução popular naquela localidade, como se o cinema se projectasse na vida real e vice-versa. Outro poema de grande impacto é o Dies Irae de Maria Andresen.
À sublime ironia de Ruy Belo, em No way out junta-se um horripilante Psicho de Adília Lopes, com uma evidente piscadela de olho a Alfred Hitchcock, logo seguida de um sublime A queda do Império Romano por Fernando Guerreiro, em alusão ao épico de Hollywood. Segue-se um pungente Morte em Veneza de Jorge Sousa Braga e um espectacular poema narrativo de Jorge de Sena,  Filmes Pornográficos,  a que se segue o provocador Pornocine de Alexandre O'Neill.
A descrição telegramática de Fiama Hasse Pais Brandão em Do Titanic no écran e da precisão “crítica” de Miguel Gomes, tal como a Homenagem a Michael Hannecke por Daniel Jones a propósito de Funny Games compõem um vasto leque de intertextualidades e intersecções das diferentes linguagens que fazem a ponte entre a escrita poética – verbal – e a linguagem, poética também, que decorre da utilização dos meios audiovisuais. A secção finaliza com o tributo de Manuel de Freitas, acerca de uma cena do quotidiano Lisboeta, a Dona Benilde, enquanto espera pelo autocarro 100 a lenbrar um documentário de Sérgio Tréffaut.

Na secção Homenagens, são inúmeros os poemas referenciáveis. Alexandre O'Neill destaca-se, logo à partida, ao fazer a ponte entre o surrealismo na poesia e no cinema, num delirante tributo a Luís Buñuel com Bu! Bu! Quem tem medo de Buñuel? onde, ao utiliza a paráfrase evocativa do filme Quem tem medo de Virginia Woolf, protagonizada pela imortal Elizabeth Taylor. Um poema tão provocador quanto anti-clerical, bem ao estilo do realizador surrealista que foi Luis Buñuel:

Don Luís continuou a comer figos secos,
enquanto as catequistas engolem os seus credos...

Lucchino Visconti e o seu perfeccionismo estético e temático são cantados por Eugénio de Andrade em Outro Exemplo: Visconti”, tal como a tendência para causar incómodo nas consciências, característica típica de Pier Paolo Pasolini no poema Requiem para Pier Paolo Pasolini, poema onde se retrata um crime mediático, cujo contornos de violência chocam a opinião pública, aludindo a desejos proibidos.
Rui Lage evoca a memória imagética de um arrebatador Wong Kar Way num poema a preto e branco, iluminado por escassos detalhes coloridos. Um poema que fascina pela apresentação de contrastes, apostando na alternância de planos e da justaposição da cor com a não cor.
Inês Lourenço brinda-nos com a homenagem ao cinema português doa anos 1950 no seu Velho Celulóide e Mário Cesariny oferece-nos deliciosas caricaturas de actores e cineastas, pintados com o ácido, muitas vezes corrosivo, do humor que o caracteriza.
Charles Chaplin aparece nesta antologia num um conjunto de poemas especialmente dedicados à sua brilhante carreira de actor. É exaltado por Alexandre O'Neill em Charlotarde e numa apaixonada elegia por Ruy Belo. Marilyn Monroe tem, também, direito a uma pungente elegia pelo mesmo Autor em A Morte de Marilyn, assim como o tributo de Jorge Sousa Braga num poema lírico intitulado A Lua e MarillynRuy Belo volta mais uma vez no esplendor lírico que caracteriza a sua forma de tecer uma homenagem particularmente enfatizada em Esplendor na relvaJosé Miguel Silva transmite-nos a angústia de ser diferente ao lembra o filme O Rapaz de Cabelo Verde de Joseph Loosey. e José Tolentino Mendonça deslumbra-nos com um sublime Dos Olhos de Rubliev.

A terceira secção da Antologia, Onde o cinema se insinua, é explicada por Herberto Helder no texto poético Exemplos, onde o cinema se projecta no quotidiano e no imaginário de cada um; Luísa Neto Jorge alude aos filmes inspirados em histórias de vampiros e Alberto Pimenta à estética e imagética do cinema japonês, num poema sem título. Uma das mais belas composições incluídas nesta publicaçãoé o poema de Al Berto, Parece que Lucrécio dizia. De Rui Lage, os seleccionadores optaram por um poema representativo de uma imagem de choque: o alucinante Mad Max.
A evocação da tristeza e da morte, ou do simples processo de envelhecimento, no apagar de uma estrela em declínio é-nos dada por Vasco Graça Moura num “filme” que poderia decorrer do Estoril. De Ana Luísa Amaral colheram-se as Metamorfoses, que aproximaram uma cena do quotidiano de Leça da Palmeira com um plano do filme “Casablanca”. A secção termina com a alusão de José Miguel Silva  ao filme Ladrões de Bicicletas e ao cineasta italiano Vittorio de Sica, ao referir os incontáveis obstáculos com que se debate todo aquele que tenta triunfar na meca do cinema.

Na última parte desta antologia, à laia de posfácio, intitulada de Filmagens, Al Berto é escolhido, mais uma vez, na linha de frente, como figura de proa, pela fulgurante polissemia da linguagem, a contrastar com o minimalismo de Adília Lopes cuja poesia lembra mais uma fotografia  ou os longos planos ao ritmo de valsa lenta, típicos dos filmes do grande Manoel de Oliveira.
Manuel Gusmão fecha a obra com duas longas composições, sendo a última delas um arrebatador Triplo Sortilégio de onde se torna impossível não lembrar o “filme” presente na memória de um cataclismo tão completo, inexorável e irreversível como o sucedido no Japão, do qual resultou uma violenta catástrofe ambiental que tanto podemos identificar com o trágico final da segunda Grande Guerra para aquele país, tantas vezes explorado no cinema por inúmeros cineastas, como nos vem à memória, pelas palavras do poeta, a última catástrofe que alia as forças da natureza à irresponsabilidade humana.
A presente antologia resultou, assim, de um excelente trabalho de associação de formas de apreender e compreender o real, com a fusão perfeita de duas formas de Arte que perseguem a ideia do Belo e do Sublime como só o fazem a Poesia e o Cinema que é, também ele, uma forma de se fazer poesia. E onde, na Arte poética, condensamos o “filme” da imaginação e da memória concentrada em partículas atómicas de emoção que irradiam o Outro que é o espectador que se senta na sala de cinema.

04.04.2011
Cláudia de Sousa Dias

Monday, January 09, 2012

“Nocturno Indiano” de Antonio Tabucchi (Dom Quixote)





Tradução: Gaetan Martins de Oliveira




Antonio Tabucchi nasceu em Pisa, cidade onde realizou os seus estudos na Faculdade de Letras e na Scuola Normale Superiore. Ensinou na Universidade de Génova, Roma, Sienna e Bolonha. Publicou cerca de vinte e cinco livros, abarcando vários géneros literários, desde o romance à poesia, passando pelo ensaio e pelo teatro. A sua obra está traduzida em mais de trinta línguas. Antonio Tabucchi traduziu para italiano a obra de Fernando Pessoa e escreveu, inclusive, um romance em português, Requiem (1991). Além deste, outros romances como O Fio do Horizonte, Afirma Pereira e Nocturno Indiano foram adaptados ao cinema respectivamente, por Fernando Lopes, Roberto Faenza e Alain Corneau. Nocturno Indiano, é uma inquietantemente fascinante viagem à Índia, continente descrito no romance como uma terra de violentos contrastes entre a opulência e a miséria. O romance não é mais do que uma viagem a qual, de acordo com as palavras do editor, “poderia servir de guia a um amante de viagens absurdas.


Segundo Andrea Aparecida Machado na sua dissertação sobre "A Questão Policial em Nocturno Indiano de Antonio Tabucchi" (Brasil, 2006) :

« O romance apresenta-se sob a forma de uma viagem em busca de alguém que se perdeu na Índia, sugerindo uma questão policial. (...) Margeado pela reversão entre ficção e crítica, este romance breve afirma-se como referência ilusória que mascara, mas não esconde, as outras vozes que se insinuam na narrativa.»

O narrador e protagonista viaja ao abrigo da embaixada italiana na Índia, decidindo percorrer o continente à procura de um amigo que parece ter-se volatilizado ou desfeito em fumo. Ao lançar-se nesta demanda, o protagonista vai dando a conhecer aos seus leitores, como que de ouvintes se tratassem, o relato da viagem que decide empreender, justapondo cenários e ambientes contrastantes, onde se movimentam os actores, quer do topo quer da base, da imensa e complexa pirâmide social de que é composta a sociedade que integra a União Indiana: desde os ultra-ricos que se hospedam no Grande Hotel de Bombaim, aos intocáveis que tratam os doentes terminais no hospital mais infecto da cidade.


O romance é uma fotografia longitudinal, ou melhor um conjunto de slides ou quadros descritivos, referentes a vários pontos de paragem, num itinerário tão heterogéneo que consegue obter o mérito de abarcar uma paragem num hotel de frequência duvidosa, de aspecto sujo e pouco convidativo, até ao hotel de luxo que é frequentado por gente das upper-classes – uma cidade dentro da própria cidade e que é, ele sozinho, alimentado pela central nuclear, construída propositadamente para fornecer energia eléctrica àquele local. A viagem inclui, também, a visita ao já mencionado hospital público, estações e apeadeiros ao longo do percurso de um trajecto de comboio, um encontro com um interessante e misteriosa personagem feminina a bordo de um avião e a visita a um mosteiro goês, onde nos apercebemos da extensão da História, da cultura e da influência da presença portuguesa naquela cidade.
A observação directa e a descrição dos cenários são enriquecidas com entrevistas do narrador a informadores-chave: um padre-jesuita português, uma prostituta de Bombaim, uma repórter inglesa que se dedica a fotografar a miséria em Calcutá, uma curiosa dupla de profetas nómadas, um médico do hospital e um farmacêutico local.
Mas este misterioso ballet de sombras é sobretudo um treino às faculdades criativas da linguagem, pois é graças a uma palavra evocada em várias línguas que o viajante se aproxima daquele que procura. E é graças à escrita que esta viagem (…) passa da insónia ao sonho e do sonho ao texto”.
 Luiz Carlos Merten, crítico de cinema escreve, a propósito do livro e do filme, que Nocturno Indianotrata de solidão e do desdobramento de identidades.”

Antonio Tabucchi dá-nos várias pistas para a interpretação da estória estabelecendo a ponte entre o Autor e o narrador, duas vozes que por vezes se interceptam:

“Este livro, mais do que uma insónia é, também, uma viagem. A insónia pertence a quem o escreveu, a viagem, a quem a fez. Contudo, visto que também me aconteceu percorrer os mesmos lugares que o protagonista desta história, achei por bem fornecer um pequeno índice desses lugares. Não sei ao certo se parece tanto contribuir a ilusão de que um registo topográfico, graças à força intrínseca do real, poderia iluminar este nocturno em que se busca uma sombra; ou a insensata conjectura de algum amante de percursos incongruentes poderia um dia utilizá-lo como um guia.”

O índice, de que fala o Autor, detém o formato de um itinerário, com moradas incluídas, como se, à medida que avançamos nos capítulos, nos vamos detendo nas diferentes estações ou apeadeiros de que é composta a viagem. A obra estrutura-se assim, em termos espaciais, abrangendo o Percurso de Bombaim a Goa, passando por Madrasta e Mangalore.

Para além de dispor diante dos nossos olhos o variadíssimo leque de diferenças sociais do vasto continente indiano, o Autor torna-se exímio em fornecer a descrição da atmosfera de cada local, representada na forma como se entabulam as relações entre as pessoas e a tão incomensurável diversidade étnica, linguística, religiosa e cultural que comporta aquela federação.

As personagens de Nocturno Indiano fascinam e suscitam a curiosidade no leitor por serem “estranhos de passagem”. Isto é, são enigmáticas, intrigantes por anteciparem no leitor indiscreto o prazer da descoberta , pela adrenalina que faz intuir o perigo, pelo contacto com o desconhecido, que implica sempre alguma dose de risco. Desde o momento em que entramos num táxi e mergulhamos no trânsito caótico de Bombaim, ao franquear a porta do antro da pensão-bordel na mesma cidade, passando pelo estranho encanto da dupla que envolve uma belíssima criança, de olhos delineados a Khôl, acompanhada por um sibilino anão, que dita uma estranha profecia ao protagonista, o leitor é constantemente confrontado com situações que o deixam e suspenso. O mesmo adivinho é quem fornece ao narrador e ao leitor, de forma críptica, a chave do enigma, que só se consegue desvendar já depois de concluído o percurso, no epílogo, e de forma totalmente surpreendente.

Nos jogos de linguagem, tão do agrado do Autor, juntam-se as múltiplas referências à literatura portuguesa e às marcas culturais deixadas pelos portugueses e, também, pelos britânicos, patentes na forma como afectam o quotidiano dos locais.

Nocturno Indiano é, assim, um livro que se torna imprescindível para os amantes daquilo que de melhor se produziu em termos de literatura de viagens nas últimas três décadas.

Cláudia de Sousa Dias
28.03.2011

Wednesday, January 04, 2012

"O Véu Pintado" de Somerset Maugham (ASA)


Tradução do Inglês por Ana Maria Chaves
"...esse véu pintado a que os que vivem chamam vida..."

Este é o mote no qual o Autor britânico Somerset  Maugham se baseia para desenvolver um romance sobre a construção de uma personalidade que vai sendo esculpida, moldada pelas situações que se apresentam ao longo de uma vida atribulada.
Afinal a Vida é pintada ou construída com as cores do ambiente social circundante e, também, de acordo com as expectativas daqueles com os quais tem de se interagir.
Esta é, sobretudo, uma trama que exibe o talento do Autor, patente na complexidade do carácter de personagens, cheias de contradições e capazes de atitudes extremas. Somerset Maugham revela um profundo conhecimento da alma humana, aliado a uma excepcional capacidade de observação.
No prólogo, o narrador, que nesta fase podemos identificar com o Autor, confessa ter-se inspirado numa passagem do Purgatório de Dante, cuja heroína, Pia, é levada pelo marido, o qual suspeita que esta lhe é infiel, para um local remoto numa cidade da província de Hong Kong, na altura ainda uma colónia britânica. Um local impregnado miasmas, já não sulfurosos como na história da heroína de Dante, mas contaminado com perigosíssimos agentes infecto-contagiosos, na esperança que estes condicionalismos lhe proporcionem uma morte lenta e discreta, pois teme o poder da família da esposa mas anseia pela vingança. Vingança essa, que é completa e fatal, e apenas se pode adivinhar como perfeita devido à aparente falta de ligação entre a motivação do perpetrador e as circunstâncias externas, onde as culpas podem facilmente ser atiradas para a fatalidade ou o destino.
Mas as coisas não correm exactamente conforme o previsto...
Protagonistas
Katherine ou Kitty, a heroína do romance de Maugham, é uma beldade, oriunda da classe alta sociedade britânica - um meio social onde parece imperar a frivolidade. No início do romance, apresenta-se como uma jovem extremamente fútil, instigada pela mãe e restantes figuras femininas do seu círculo (restrito) de amizades, procura um casamento através do qual possa ascender socialmente. Trata-se de uma personagem que vai sendo modelada à medida que se desenvolve a trama. Esta é, sobretudo, a história da humanização de Kitty e da sua caminhada em direcção à autonomia, em todas as suas dimensões: sentimental, económica e social.
Walter e Charlie são personagens que fascinam pela sua complexidade ou, se quisermos, pela sua dualidade. Walter, o marido de Kitty, de aparência agradável mas discreta, é um homem inteligente e detentor de uma enorme capacidade de amar. Mas, tal como o marido de Pia é, também, capaz de odiar muito para além dos limites da sanidade mental.
Charlie, o amante, é um homem belo e fascinante, possuidor do charme mundano de quem se move dentro dos círculos diplomáticos como um peixe no oceano e, mais do que tudo, detentor de um enorme poder de sedução e magnetismo sexual. O lado negativo de Charlie manifesta-se na frivolidade (uma característica que inicialmente o aproxima de Kitty, imersa no casamento parental, onde proliferam a falta de afinidades e as dificuldades de comunicação), no excessivo apego às convenções, bem como alguma cobardia e dissimulação q.b.
Waddington, amigo de Walter e Kitty, será como que a consciência da nossa heroína, no inferno de uma cidade cuja população está a ser dizimada pela cólera. Estamos perante uma personagem importantíssima que nos fala da presença britânica na China e da necessidade de ultrapassar preconceitos de ordem social e cultural, apesar da aparente condescendência em relação à sua amada, descendente da nobreza manchu.
Em Kitty, a mesma condescendência surge impregnada de uma forte dose de etnocentrismo que será, também, ultrapassada pelo convívio com as crianças do orfanato.
O desenvolvimento da trama e a construção das personagens
Logo na primeira cena do romance, somos confrontados com o terror de alguém que sente estar na eminência de ser descoberta em flagrante adultério: Kitty. Os sentimentos que transparecem na jovem são evidentes, como se receasse o mesmo destino da heroína de Dante: medo, terror, pânico. A cena, apesar de inicial é, já, o corolário de uma série de encontros clandestinos entre Kitty e o funcionário da embaixada britânica em Hong Kong, Charlie Towsend. Os acontecimentos que estão na origem deste primeiro quadro cénico irão ser relatados através do recurso a uma analepse, uma regressão temporal. Charlie é casado com uma mulher carismática de família abastada e elevada posição social que será o trampolim para a sua carreira diplomática. Não é, contudo, uma mulher muito atraente. Charlie apaixona-se por Kitty pela sua frescura e vivacidade, logo à primeira vista. Irá, depois, empreender as mais elaboradas estratégias para a seduzir, apesar de a saber casada com um célebre bacteriologista. Towsend chega, inclusive, a desvalorizar e caricaturar a esposa (de quem não pretende de forma alguma separar-se) para convencer Kitty de que não tem rival. A esta, Kitty olha-la-á de forma distorcida durante bastante tempo, fruto das observações deturpadas do amante.
Kitty começa por ser uma jovem extremamente influenciável, porque imatura, devido à educação de que foi alvo, orientada no sentido de arranjar um marido de levada posição social de forma a conservar o padrão de vida a que estava habituada. Somerset Maugham é mestre em retratar ambientes emocionais e respectiva mentalidade dominante, da qual esta obra não foge à regra. Assim, a mãe de Kitty surge-nos como uma senhora de alta sociedade com personalidade de “aranha”, fria e calculista, que tenta empurrar a filha para um casamento de modo a que esta deixe de estar a seu cargo. Os expedientes a que recorre chegam a ser hilariantes, embora esta figura esteja bastante longe da divertida caricatura que Jane Austen faz da mãe de Elizabeth Bennett em Orgulho e Preconceito. Isto apesar de ambas representarem o mesmo tipo social , embora com cerca de um século de distância. A divergência com a figura maternal deve-se ao facto de Kitty amar, sobretudo, a própria liberdade. Mas a partir do momento em que a irmã mais nova contrai matrimónio com um aristocrata, a pressão exercida pela mãe torna-se insuportável.
O pai de Kitty é visto pelas filhas como uma fonte de rendimentos mostrando-se uma pessoa retraída, fria e sempre controlada. A mãe de Kitty é, na verdade, quem gere a casa. É dada a mexericos, acabando quase sempre por afastar os pretendentes das filhas ao mostrar-se francamente inconveniente. Kitty acaba por conseguir o “prémio de consolação” casar com Walter, um médico bacteriologista cuja profissão é prestigiada mas não lhe permitirá um nível de vida marcado pelo fausto.
A alteração do teor emocional da relação do casal protagonista dá-se a partir do dia em que Kitty julga ter sido surpreendida com o amante no quarto – a primeira cena do romance – embora não tenha a certeza de nada. A dúvida parece destruí-la por colocá-la em permanente estado de ansiedade – Kitty passa a viver o inferno da heroína de Dante: passa a reparar na mais subtil alteração de comportamento em Walter, a mais leve tremura muscular ou inflexão no tom de voz, qualquer modulação fora do normal.
O Autor consegue, pela descrição dos silêncios e da subtil ironia, implícita nas entrelinhas, descrever a tensão insuportável entre ambos. Sobretudo, na noite após o jantar onde as expressões, carregadas de significado, trocadas entre os dois cônjuges, transmitem um clima “de cortar à faca”.
Mesmo antes do incidente, Walter sempre olhou Towsend como um sujeito superficial, oriundo de uma família privilegiada, que busca sempre o caminho mais fácil para conseguir os seus objectivos:  Towsend aposta todasas suas esperanças nas ligações sociais e no charme pessoal; e Kitty, deixa-se enfeitiçar por esse mesmo encanto, meticulosamente treinado e aperfeiçoado, de um homem que sabe ser agradável.
A atitude de Towsend para com Kitty, sofre, também, alterações a partir daquele dia. Este torna-se algo desagradável, pouco lisonjeiro, sobretudo em relação aos sentimentos de Walter para com ela.
Mas é Walter torna-se na maior fonte de preocupações da jovem protagonista de O Véu Pintado: através de todo um conjunto de sinais não verbais, ela percebe que o marido está furioso consigo. Suspeita de represálias embora não lhe passe pela cabeça o requinte da vingança que está a ser desenhada no espírito profundamente cerebral, metódico e científico do marido.  A Vingança é um tema caro a Somersert Mmaugham e já tratado em outros romances como em As paixões de Julia também editado pela ASA, mas muito longe da dimensão atingida nesta obra. Maugham é um Autor cujo talento reside na exploração dos meandros das emoções mais retorcidas nas suas personagens e a que O Véu Pintado não foge certamente à regra. Kitty, por exemplo é uma mulher pouco agarrada a convenções e muito mais propensa a perseguir a própria felicidade de acordo com o Desejo, mesmo que em choque com a Sociedade. Esta heroína de SM é, também, susceptível de tomar atitudes que despoletem admiração porque possuidora de um temperamento forte, determinado e detentora de coragem para resistir à adversidade. Também possui um espírito u tudo-nada independente e, por isso, susceptível de fazer algo que contrarie as regras sociais ou empreender comportamentos socialmente afectos a censura ou reprovação pelos seus pares.
A atitude dos seus “dois homens” é diametralmente oposta no tocante aos sentimentos que lhe votam: em Walter, Kitty exerce um tal fascínio que este, no momento em que toma a decisão de casar com ela, não espera ser correspondido no amor, contentando-se apenas com a aceitação. Walter aposta numa atitude submissa por parte da futura companheira, contentando-se apenas com pequenas demonstrações de afecto. Charlie Towsend, por sua vez, preocupa-se somente com as aparências, a carreira e o prestígio que lhe dá um casamento por interesse, desejando, através das ligações com a família da mulher, chegar ao posto de governador da província. No entanto, deseja Kitty. Não reage como esta esperava, quando o romance ameaça deixar de ser secreto, aconselhando-a vivamente a manter o casamento, mas é totalmente coerente consigo mesmo. Por outro lado, Kitty apercebe-se de que o amante é experiente desembaraçar-se de situações como aquela, não estando minimamente preocupado com a sua pessoa. Charlie age como se fosse um gato a caminhar sobre um parapeito coberto de cacos de vidro, pois está convencido que “a vaidade ferida pode tornar uma mulher mais vingativa do que uma leoa a quem, roubaram as crias”. AO mérito do Autor neste romance consiste em desmistificar um pouco esta atitude de paternalismo chauvinista, e mostrar que, do lado masculino, esta característica poderá mostrar-se muito mais vincada do que normalmente é demonstrada no género feminino. Walter é a personagem que empunha a bandeira da vendetta que se come fria. A traição de Kitty acaba por transtorná-lo a tal ponto que o torna numa espécie de canídeo afectado pela raiva gelada como se alude no poema de Oliver Godsmith.
Ao levar a esposa para uma remota aldeia da província de Hong Kong , infestada de cólera, Waltersonha com uma vingança completa e fatal. Imagina que Kitty poderá contrair a doença. Durante a viagem, esta passa a sentir-se submersa pelo terror de se ver completamente à mercê do marido, não esquecendo que, à época em que decorre a acção, um pouco antes da segunda guerra mundial, era praticamente impossível uma mulher requerer o divórcio, a menos que se expusesse ao ostracismo total da sociedade.
A linguagem utilizada por Somerset Maugham
O estilo de S. Maugham caracteriza-se por frases simples, pouco elaboradas mas elegantes, num estilo ágil e minimalista. Poder-se-á dizer no entanto que escreve com um relativo pudor quando comparamos a sua escrita com as detalhadas descrições eróticas de D.H. Lawrence. Maugham prefere recorrer a eufemismos ou omissões cheias de subentendidos. Socorre-se, também, da linguagem onírica ao caracterizar, por exemplo, os medos de Kitty, expostos nos pesadelos que sofre.
A partir do momento que a o local da acção transita do meio urbano para a aldeia, onde se fixa Walter para tratar da população doente, o ritmo da acção sofre um abrandamento. O Tempo passa a escorrer lentamente, o texto torna-se mais descritivo, sendo enfatizada a solidão de Kitty, num lugar onde tudo parece simultaneamente belo e hostil.
Waddington – um aliado
A amizade desinteressada também faz parte do leque de afectos de Kitty, a comprovar, mais uma vez, o desapego às convenções. O chefe da polícia local tornar-se-á uma peça fundamental no romance pois, através dele, Kitty conseguirá enxergar a verdadeira personalidade de Towsend, por detrás do véu pintado por detrás através do qual sempre o olhara. Waddignton, ainda sem suspeitar do sucedido, vai traçar o retrato de uma pessoa assaz manipuladora, só faz o que lhe interessa e por interesse, seja para subir na carreira, seja para alimentar a própria vaidade. Waddinton é um sujeito perspicaz, apesar de parecer viver nas nuvens e não levar nada a sério, leva a vida a alimentar os seus pequenos vícios mas tem a capacidade de se aperceber facilmente o que vai na alma das pessoas com quem convive. Mesmo em relação ao casamento de Kitty e Walter, torna-se para ele evidente, mediante as reacções do casal, que apesar da implacável discrição, existe algo de anormal que lhe espicaça a curiosidade. Para Kitty, o convívio com a jovialidade de Waddington é uma lufada de ar fresco que serve de terapia a limpar o clima de tensão, desenvolvido pelo humor cáustico de Walter. Waddignton desempenha o papel de elemento facilitador da integração de Kitty na comunidade. É ele quem a põe em contacto com as freiras missionárias, instaladas no convento das redondezas e lhe ensina os rudimentos da língua chinesa, o que lhe permite olhar para a população local de uma forma menos eurocêntrica. Waddington, apesar de ostentar uma certa dependência em relação ao álcool, é o oposto da personagem anti-social, aproveitando, com uma generosa dose de humor, o pretexto da cólera e das supostas propriedades do álcool como desinfectante, para dar livre curso ao desejo de beber, ocultando assim as verdadeiras mazelas emocionais que lhe vão na alma.
Walter é, nesta fase da acção, é um homem profundamente transtornado que se recusa a exteriorizar as emoções por medo de exibir o seu lado mais vulnerável: refugia-se no trabalho e coloca em risco a própria saúde, sem falar na de Kitty. E Waddington rapidamente se apercebe do teor do relacionamento entre os dois cônjuges e intui a presença da jovem naquelas paragens como uma espécie de “punição”.
Os segredos de Waddington
Kitty, no meio de uma cidade em ruínas que deixa os seus deuses morrerem nos templos para mergulhar nas trevas, acaba por descobrir o verdadeiro drama de Waddignton: a paixão por uma jovem oriental, proveniente da antiga nobreza manchu, a qual tem de ocultar, por receio de não ser aceite pela sociedade britânica, o que pode ser-lhe extremamente prejudicial à carreira, em virtude do extremo conservadorismo do alto funcionalismo público Britânico. Kitty fica deslumbrada com a beleza da jovem e, particularmente, com a delicadeza das mãos e movimentos. A voz é, no entanto, estridente “como o chilrear dos pássaros”. É dependente do ópio com a condescendência de Waddigton. Há neste fiscal da alfândega uma certa afinidade com a filosofia taoista na busca do equilíbrio, da paz da felicidade, apesar dos seus deslizes, que o ajudam a manter este equilíbrio precário. No entanto, o caminho de Waddington passa essencialmente pela companhia desta jovem manchu.
Já Kitty terá de encontrar a própria estrada para a felicidade que passa pelo esquecimento do antigo amante, algo que está implícito na frase: “só alcançarás o que queres quando deixares de desejar”. Para Waddington, a vida, mesmo votada ao sacrifício e à renúncia como a das religiosas no convento, é bela em si mesma, sempre capaz de gerar beleza pela capacidade criadora. Para ele, a vida como véu pintado é, ou pode sempre tornar-se “ a obra de arte suprema”. Waddignton é assim, uma peça fundamental no romance, que condiciona o seu desfecho, pela capacidade de acrescentar algo à vida de Kitty.
O Convento e a descoberta do trabalho como forma de integração social
A visita ao convento marca um segundo ponto de viragem no desenvolvimento da acção: a caminho do convento, Kitty passa pela zona crítica da povoação infectada. No convento, sente ter encontrado uma espécie de refúgio. E a incomensurável necessidade de afecto das crianças órfãs e a dedicação das freiras acaba por preencher as suas necessidades afectivas. Kitty sente-se impressionada pela serenidade da madre Superiora, a quem o Autor dedica uma extensa descrição, física e psicológica: “um rosto onde sobressai a inteligência e a perspicácia, a majestade (a Madre é oriunda da aristocracia rural francesa), o refinamento e o carácter impoluto. Mas, face ao ambiente conventual, onde parece reinar a paz, Kitty sente-se, de certa forma excluída e mesmo algo incomodada por estas interromperem os seus afazeres para a receberem e servir-lhe de anfitriãs. O impulso em ser útil e ultrapassar o pesadelo das intermináveis horas de ócio consegue despertar-lhe o desejo de trabalhar naquele lugar, junto das meninas órfãs e obedecer ao impulso de um instinto maternal latente.
A alusão à inquietante orfandade do sexo feminino
Uma das questões mais intrigantes de O Véu Pintado é a presença exclusiva da orfandade feminina havendo, provavelmente, uma ligação com o infanticídio feminino, praticado na China no século XX, como consequência de medidas restritivas à natalidade expressa pela inquietante frase que menciona o facto de as freiras arrancarem as meninas órfãs àqueles que as não desejavam e que, logo que chegaram, começaram a salvar as pobres meninas da torre dos bebés e das mãos cruéis da parteira, para serem acarinhadas pelo carácter doce da rubicunda irmã S. José. As crianças presentes no convento são emocionalmente frágeis, com uma percepção particularmente aguda de quando não são amadas. É o caso da criança Down, que provoca uma forte impressão em Kitty.
A inesperada gravidez de Kitty acaba surge para introduzir uma mudança radical na vida do casal – Walter deixa de desejar a morte da esposa, apesar de não estar seguro quanto à paternidade. No convento, as religiosas ficam entusiasmadas com a notícia.
Símbolos
Um dos principais ícones utilizados por Somerset  Mauhgham nesta obra tem a ver com um mausoléu, descrito como o memorial erguido por um governante local em homenagem à virtude da esposa morta (uma vaga reminiscência do Taj Mahal). Trata-se de uma espécie de aviso, ou signo que adverte para uma necessidade de expiação, gerada pelo sentimento de humilhação em Kitty, pelo facto de esta se ter enganado ao sobreavaliar Charlie Towsend. Um símbolo imbuído de uma espécie de “sardónica ironia” mas, ao mesmo tempo, transmissor de uma réstia de esperança.
O cão presente no poema “An elegy...” de Oliver Goldsmith, atacado pela raiva, é outra das grandes metáforas do livro e que se relaciona directamente com o destino do protagonista já intuído no prólogo.

An Elegy on the Death of a Mad Dog
  Good people all, of every sort,
  Give ear unto my song;
  And if you find it wondrous short,
  It cannot hold you long.

  In Islington there was a man,
  Of whom the world might say
  That still a godly race he ran,
  Whene'er he went to pray.

  A kind and gentle heart he had,
  To comfort friends and foes;
  The naked every day he clad,
  When he put on his clothes.

  And in that town a dog was found,
  As many dogs there be,
  Both mongrel, puppy, whelp and hound,
  And curs of low degree.

  This dog and man at first were friends;
  But when a pique began,
  The dog, to gain some private ends,
  Went mad and bit the man.

  Around from all the neighbouring streets
  The wondering neighbours ran,
  And swore the dog had lost his wits,
  To bite so good a man.

  The wound it seemed both sore and sad
  To every Christian eye;
  And while they swore the dog was mad,
  They swore the man would die.

  But soon a wonder came to light,
  That showed the rogues they lied:
  The man recovered of the bite,
  The dog it was that died.

                                                By Oliver Goldsmith
 O desfecho que Maugham reserva para a personagem Walter é, para Kitty, uma espécie de libertação, uma vez que nunca seria completamente feliz com o marido, tão pouco espontâneo em termos de afectividade. Um final que, apesar de pré-anunciado nas entrelinhas no início do romance e na alusão feita ao poema de …é algo de que o leitor não está à espera. À medida que a trama se vai desenvolvendo, este é, de certa forma, induzido a pensar que poderá surgir um renascer da paixão no casal. Mas tal não acontece. O destino de Walter é somente a maior reviravolta do romance. A partida de Kitty torna-se obrigatória, a permanência no local deixa de fazer sentido. A amizade entre Kitty e Waddignton, mantém-se, apesar da distância.
No final, Kitty consegue tornar-se amiga da mulher de Towsend ao constatar o real valor desta e a diferença abissal em face à imagem que este deixava transparecer da esposa. A relação de Kitty com Towsend modifica-se também de forma radical e é precisamente neste ponto que o leitor se apercebe do alcance da transformação do carácter nalguém que foi sendo desenhado ou pintado ao longo do tempo sobre o véu pela vida e pelos reveses da Fortuna. A intenção de Somerset Maugham , ao construir esta personagem feminina é a de demonstrar que a personalidade não é estática, que a Vida não passa em vão pelos seres humanos, como já afirmava Heráclito e como demonstra a frase do narrador que ilustra o pensamento de Kitty em relação a Towsend:
Era um homem bonito. Era uma sorte para ela saber que ele não valia nada.”
Outra mensagem importante na obra é o valor da conquista da autonomia e da importância do reconhecimento social: um prémio conquistado por Kitty, como resultado do mérito conseguido pelo trabalho junto de Walter, com os doentes e no orfanato e que lhe proporciona a força necessária para pintar o véu da vida com as cores que desejar…
Uma obra ímpar, um clássico da Literatura Britânica do século XX, um Autor consagradíssimo, falecido em Nice em 1965. Um livro povoado de personagens de grande densidade psicológica, e pleno de conflitos emocionais, que envolvem, amor, ódio, traição e morte. Uma história de crescimento interior e lucidez.

Cláudia de Sousa Dias
20.03.2011
(Artigo reformulado a partir da publicação original de 25.02.2005 neste blogue)