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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!
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- Name: Claudia Sousa Dias
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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!
Sunday, June 01, 2025
Monday, May 26, 2025
‘Histórias Eróticas’ de Giovanni Bocaccio (Edições Quasi)
Monday, May 19, 2025
“Amália, Ditadura e Revolução: a história secreta” de Miguel Carvalho (Dom Quixote)
Porto, 2 de [M]arço de 2020
Tive a felicidade de receber um exemplar das mãos do autor, jornalista que vai assumindo cada vez mais a faceta de escritor de não-ficção, onde a investigação jornalística é desempenhada com zelo e paixão, tingida com as cores da componente historiográfica. Partindo deste ponto de vista, a escrita de Miguel Carvalho tem vindo, nas últimas décadas, a desempenhar um papel cada vez mais crucial na preservação da memória histórica de acontecimentos que culminaram em profundas alterações sociais ao longo do século XX e transbordaram para o nosso tempo presente. O título desta biografia chama logo a atenção não apenas pelo mediatismo da figura da eterna diva do fado em si mesma, mas pelo subtítulo ‘Ditadura e Revolução’ - ainda mais do que pelo apelo da ‘história secreta’ por incidir numa faceta menos conhecida da vedeta, o seu lado humano, solidário com as vítimas do regime e verdadeiro amor à poesia. No entanto, o que realmente espicaçou a minha curiosidade como leitora foi o facto de Amália ser uma figura que transitou de um regime político para outro, movendo-se como um cetáceo que cruzasse diferentes oceanos, iludindo fronteiras e acabando por ocupar, ela própria, um lugar de fronteira na música - antes e depois da revolução. Garantindo sempre a posição assegurada num nicho que se pode quase que classificar de ‘não lugar’. Amália foi, assim, a nómada de entre dois regimes, assim como a eterna viajante, em permanente transumância, vendo-se não raro mais apreciada fora do próprio país do que no lugar que a viu nascer como se vê logo no prefácio onde o autor traça um paralelo entre a vida da diva portuguesa e a homenagem a uma figura idêntica a surgir, aludida do princípio ao fim, num filme do realizador italiano Federico Fellini. Começarei então por apresentar o ponto de vista do Jornalista e Investigador Miguel Carvalho, citando na íntegra o texto introdutório [eu não escrevo segundo o AO90, como o autor, mas segundo o AO45, por isso poderão encontrar, aqui e ali, fonemas introduzidos entre parêntesis rectos]: «COMO AMÁLIA ME ACONTECEU E la nave va (1983), desconcertante filme de Fellini cuja a[c)ção decorre a bordo de um luxuoso navio, é o relato de uma viagem destinada a dispersar as cinzas da “maior cantora de todos os tempos” à volta da ilha onde nasceu. Durante a navegação, cada passageiro reclama a posse da “verdade definitiva” sobre a vida da extinta “voz dos deuses”. Juram conhecê-la melhor do que todos os outros, alardeiam intimidade, detalham e retalham-lhe a existência e a carreira. Uns desesperaram a tentar compreendê-la, outros presumiram tê-la desvendado. E, no entanto, “para além do mito da cantora”, havia nela, segundo uma personagem, uma menina muito sensível e sozinha: “Quantas definições, quantas palavras, quantas histórias escreveram sobre ti. Mas nunca disseram quem realmente eras.” Quem foi realmente Amália Rodrigues? A ideia de escrever sobre ela acompanhava-me desde a sua morte. Amadureceu nesses dias de elogios fúnebres e pelos anos fora, à boleia da polifonia de testemunhos e umas quantas recordações, a fazer lembrar o ambiente vivido no navio de Fellini. “Todos temos Amália na voz”, cantara António Variações, com propriedade. E todos pareciam reivindicá-la. Eu, que cheguei ao canto daquela mulher aí pelos meus 14 anos, através do saxofone do Rão Kyao (Fado Bailado), senti-me, com o tempo, fascinado pela “estranha forma de vida”, que se escondia atrás do palco, das luzes e dos holofotes, à margem dos enredos, do voyeurismo e dos sentimentos de posse em torno da figura pública. A Amália que me interessava era a da mulher e das circunstâncias políticas que viveu. A história de como atravessara dois regimes e preconceitos ideológicos até ao final e para lá do século que foi o seu. A ditadura namorou-a, exportou-a e Amália, verdade seja dita, não se fez rogada. Mas ela guardava também os segredos das existências incertas e vacilantes. Por isso, soube iludir vigilâncias e amarras, acudindo a opositores políticos e cantando versos de autores proibidos, resgatando-os do silêncio e da perseguição. A democracia, sobretudo após a Revolução do 25 de Abril de 1974, não lhe foi meiga. “Eu simbolizava a noite e o Zeca Afonso, o dia”, disse ela, amargurada, recordando esses tempos de libertação cole[c]tiva para um povo, mas de “martírio” para os seus dias, acusada de colaboração com a polícia política e vassalagens ao regime deposto. Amália Rodrigues sobreviveu a silenciamentos, calúnias e ataques e até mesmo à sua morte antecipada - e do próprio fado - tantas vezes proclamada. Embora pouco estudada pela academia, muito se escreveu sobre o percurso artístico da voz inalcansável de Portugal no mundo, elogiada por nomes tão diversos como Jorge Luís Borges, Gonzalo Torrente Ballester, Nélida Piñon, Leonard Cohen, Edith Piaf e Caetano Veloso. Sozinha, encarnava as vozes de todos os povos. Era, na visão profética de José Carlos de Vasconcelos, “uma fantástica criatura de música e de palavras, que voava amarrada ao nosso chão e ao nosso destino”. No meu caso, sempre me seduziu a figura de Amália Rodrigues para além da carreira artística e das molduras onde tantas vezes a encaixaram. Mesmo não tendo ela uma biografia política - era, no princípio e no fim, uma artista superlativa - creio que Amália reclamava há muito um olhar, neste caso jornalístico, sobre o seu percurso à luz do Estado Novo, da Revolução e da construção democrática, até por todas as clandestinidades e histórias marginais esquecidas e ignoradas em função da construção do mito. Amália Rodrigues transcende-nos. Consciente das qualidades e atavismos do seu povo, ao qual pertencia “sem orgulho nem pena”, cantou-o nas suas introspe[c]ções melancólicas e pessimismos. Nele, apreciava a lucidez, mais dramática do que trágica, “entre a dúvida constante e um certo tipo de inquietação”. Selvagem como um cardo, paradoxal, misteriosa e contraditória, seguiu a intuição, “mãe de todas as inteligências” , sem se considerar indispensável. “Posso não prestar para nada, mas sou verdadeira”, dizia, certa do esquecimento que, afinal, nunca viria. “Cada um de nós viu e amou nela, necessariamente, coisas diferentes e, confundindo a imagem com a realidade, discutimo-la muitas vezes com base nesses estereótipos redutores que continham, cada um deles, pedaços de verdade mas nunca ‘toda’ a verdade”, escreveu o musicólogo Ruy Vieira Nery. Para Joaquim Sarmento, membro do PCP na clandestinidade e antigo deputado do PS, Amália não era de direita nem de esquerda, mas “simultaneamente suserana e Povo”. Por isso, na sua voz se encerra “o paraíso dos justos e inocentes e o cadafalso dos condenados, mescla de aristocratas, de rufiões, de burgueses, de operários que saltam os andaimes da sorte, o luar de todas as prostitutas e de todos os marginais”, mas também “o Poder e a corte deste, o contrapoder e a sua ambição enrolada”. Mais do que atribuir-lhe uma moral her[ó]ica, ética universal ou pertença a qualquer entidade cole[c]tiva - o que seria ridículo, tendo em conta a sua personalidade -, esta investigação jornalística pretendeu, tanto quanto possível, iluminar as brumas do percurso sussurrado do “heterónimo feminino de Portugal”. A definição cunhada pelo poeta David Mourão-Ferreira, assenta no que nela existiu “de raça e de graça plebeias, definitivamente imunes a todos os vírus da vulgaridade” ou “de genuína cepa aristocrática”, mas tão livre e tão forte que nem cabe na moldura das árvores. Amália Rodrigues é, ainda hoje, uma obra aberta, onde cabemos todos, sem divinizações. “Como todas as figuras tornadas mitológicas em vida” a fadista era, no feliz retrato de Clara Ferreira Alves, “um ser imperfeito”, humano, “ao contrário dos que nos querem fazer acreditar as sucessivas canonizações”. E várias vezes se cai ainda na tentação de colocá-la um patamar acima da espécie humana, incensando-a ou tornando-a intocável. Luxo de uma ditadura, idolatrada por um povo tolhido nos seus sonhos, Amália foi, no pós-revolução, vítima de desinformação e de trincheiras assanhadas, típicas de tempos convulsos. Por preconceito, inveja e oportunismo tornou-se, durante os primeiros meses de liberdade, vítima de ataques, calúnias, mentiras e meias-verdades que hoje nos habituámos a ver defendidas em outras plataformas, de forma refinada. Ela poderia ter-se defendido com argumentos de peso. Podia ter trazido a terreiro diversos nomes, circunstâncias e episódios para escudar-se de monstruosidades. Mas a tudo resistiu, certa da sua arte, da sua condição e da passagem do tempo, que tudo repõe no seu lugar. Não o fez em silêncio, é certo, mas nele adormeceu e preservou verdades, figuras e ocorrências que só a dignificam e se tornam incómodas para outros. Amália foi acusada de ser “a Princesa da PIDE” e de se ajoelhar à ditadura como sabem aqueles que com ela lidaram de perto, nunca se libertou desse desgosto. O facto de, em 2019, ter sido vetada a atribuição do seu nome a uma rua no Luxemburgo, por causa das suas alegadas afinidades com a ditadura remete-nos para a importância de desvendar facetas segredadas, desconhecidas ou esquecidas sobre a cantora. O tema gerou controvérsia entre a comunidade portuguesa naquele país, e é revelador do muito que falta contrastar sobre a figura de Amália Rodrigues, para lá dos consensos sobre a sua dimensão artística. Humanizar Amália e dessacralizá-la usando as ferramentas do jornalismo, as únicas que conheço, é a minha forma de tentar trazê-la para um lugar onde todos possamos rever-nos nela. Santificada, mitificada ou execrada, a figura de Amália já foi adaptada a todas as narrativas e “religiões”, consoante os casos, os interesses e as épocas. Realidade, imagem e devoção confundem-se, mas Amália representa, acima de tudo, uma categoria e cultura à parte, não moldável. Um enorme caudal de entrevistas, fontes, documentos e geografias permitiu-me aproximar a lupa sobre esta mulher que foi “a voz do povo” e seguir o seu coração, independente e livre pensamento, sem receio de se negar ou contradizer. Em vez de a divinizarem as suas atitudes e gestos clandestinos talvez revelem, isso sim, as costuras e a profunda humanidade do seu ser. Muitos dos entrevistados e protagonistas deste livro nunca tinham falado sobre esta temática. A geração que, na sua maioria, não viu nem conheceu Amália Rodrigues para além da voz, merece que lhe seja contada, sem preconceitos nem liturgias, as histórias desta mulher transcendente, minada por controvérsias e estereótipos. “O canto de Amália”, lembrou-nos em tempos Caetano Veloso, “mantinha Portugal vivo e pairava acima de Salazar e da Revolução dos Cravos”. Recordemos, a propósito e de uma vez por todas, as palavras do poeta David Mourão-Ferreira: “Amália teria sido inevitavelmente quem é, fosse qual fosse a época em que vivesse, fosse qual fosse o regime ou a ideologia dominante, sob o qual tivesse nascido ou desabrochado”. Não teve bandeiras nem assumiu compromissos políticos e é completamente descabido atribuir-lhe afeição por uma ideologia. Não era esse o seu universo. Tal não significa, como se comprovará nestas páginas, que fosse indiferente à condição do seu semelhante, ou se distanciasse de certos e constantes apelos. Continuo a acreditar que o jornalismo pode e deve contribuir para uma aproximação à verdade. Uma verdade, ao mesmo tempo simples e complexa. E, se algo se pode concluir acerca de Amália Rodrigues, é que ela nunca correspondeu a outra entidade cole[c]tiva que não fosse o povo português. Não há uma Amália a preto e branco, uma Amália de trincheira. Amália não é pertença de nenhuma capelinha, de nenhum regime. Amália não obedece a qualquer moldura onde a queiram meter. Perceber isso, a sua relação íntima com o povo, é a maior homenagem que lhe podemos fazer. Amália, ser imperfeito e controverso como a vida, dispensa canonizações. Monumento artístico e humano, reivindicada contra ou à boleia da sua vontade, não é, ainda assim, intocável. Por isso, olhar Amália Rodrigues para além da carreira artística, da sua música, do “boneco” e dos caixilhos onde a quiseram meter foi um dos propósitos desta investigação. Tendo sempre presente o que ela disse de si própria numa entrevista de 1976 - “Sempre aguentei as consequências de ser livre!” - saibamos também assumir as consequências de ouvi-la, conhecê-la e revelá-la no que nos legou de talento, poesia, rasgo, humanidade e superação. Amália aconteceu-nos de forma diferenciada. Mas queiramos ou não, habitamos o seu coração indomável, aquele fado, aquele poema e aquele momento, entre a maldição, o desencanto, a ternura e a libertação. “Tenho qualquer coisa em mim de Portugal, que as pessoas sentem”, dizia. Nela estamos e estaremos todos. Mesmo aqueles que ainda não a descobriram, por infelicidade, distra[c]ção ou preconceito. Devemo-nos e ao futuro, uma Amália Rodrigues plural, onde todos possamos rever-nos, sem fanatismos, habitando o seu canto, versos e humanidade, do Abandono à Primavera, da Fria Claridade à Gaivota, com novas e velhas roupagens. Sem rasuras nem evangelizações, mas conscientes ainda e sempre do privilégio que foi tê-la e que é ouvi-la, ainda hoje, por dentro de nós.» Trata-se na verdade, de uma biografia muito completa - já não na primeira pessoa nem com a componente confessional e diarística presente na biografia elaborada por Vítor Pavão dos Santos, de que falaremos brevemente, aqui, neste blogue - que percorre toda a vida da autora com uma narrativa que vai correndo, fluida, em estilo documental. É assim que a Amália, ‘pintada’ por Miguel Carvalho nos surge no seu contexto social: origem humilde, de uma família beirã, deslocalizada para Lisboa, onde a sua voz se vai fazendo notar, a partir de Alcântara e crescendo pelas ruas adjacentes até chegar a Alfama, ser descoberta por um Pigmalião que se deslumbra com a sua beleza e voz [não vou dizer que foi, para tal terão de ler o livro], que lhe abre as portas para um meios social de elite - aristocracia e alta burguesia - que a ouvem fascinados. Mas não só. Amália trava também amizade com poetas, músicos e várias personagens do mundo das artes performativas destacando-se pela sua extraordinária sensibilidade artística. Olhada com desconfiança pelos diferentes regimes, consegue passar incólume, sobrevivendo às maiores convulsões políticas que sacudiram o País ao longo do século passado. Ao lermos este livro de Miguel Carvalho ficamos a perceber que, mais do que fiel a uma ideologia, Amália Rodrigues foi sobretudo fiel a si mesma: isto é, à arte, à beleza do canto, da música e da poesia, passando por entre as malhas da censura, sempre que necessário (o caso do fado de Peniche). Ou, noutras ocasiões, resistindo a invejas mesquinhas e difamações. Num e noutro caso, sempre vertical, sem jamais ceder a um princípio que sempre foi, para si, fundamental: o da solidariedade. Mesmo com os mal-amados (e até odiados) pelo Poder. Haverá ainda ‘Amálias’ hoje em dia...por esse mundo fora? Vila Nova de Famalicão 18 de Maio de 2025 Cláudia de Sousa DiasWednesday, March 12, 2025
Manual para Amantes Desesperados de [Ana] Paula Tavares (Caminho)
Monday, April 29, 2024
"Quando Portugal Ardeu - Histórias e segredos da violência Política no pós-25 de Abril" de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)
Friday, March 08, 2024
Portugal Amordaçado: depoimento sobre os anos do fascismo - Mário Soares (Arcádia)
Quando olhei pela primeira para este livro, o que me chamou a atenção, muito antes do título metaforicamente dramatizado, foi o subtítulo, por conter a palavra “depoimento”. Trata-se pois de um testemunho, de uma visão, de um olhar e um sentir do que foram os anos, metade de uma vida, quase, debaixo de um regime ditatorial. Mas antes de passar ao comentário do livro propriamente dito, penso que valerá a pena citar aqui, respectivamente, o prefácio, pelo punho do próprio Mário Soares, para esta primeira edição portuguesa de 10 de Junho de 1974 (a escolha da data também não foi por acaso) e, a seguir, o posfácio de Alfredo Barroso, na contracapa do livro: «O livro que agora se publica, pela primeira vez em edição integral Portuguesa, foi escrito durante o ano de 1971, quando me encontrava no exílio em Itália e em França, e editado em versão francesa encurtada pela Calmann-Levy, em Abril de 1972, sob o título de «Le Portugal Bailloné». Trata-se fundamentalmente de um depoimento despretensioso sobre os anos do fascismo e sobre a «luta indomada e indomável» dos democratas, tal como eu a senti e vivi a partir principalmente dos anos distantes de 1942 em que nela comecei a participar. Não se trata, pois, de um trabalho de história, nem de uma análise sociológica ou política aprofundada de uma situação que tão longamente persistiu em Portugal; trata-se antes, de um depoimento vivido, escrito a quente, no exílio, com a intenção de contribuir, embora modestamente, para a luta geral que então travavam contra a ditadura caetanista, todos os antifascistas anteriores ao 25 de Abril. O livro enferma assim de um certo condicionalismo temporal de que os eventuais leitores facilmente se darão conta. E, lido à luz da nossa visão de agora, poderá parecer, sob certos aspectos, insuficiente. Preferi, porém mantê-lo sem acrescentamentos nem actualizações, tal como o escrevi e vivi em 1971, quando a experiência do governo Caetano - recorde-se - ainda não era para alguns espíritos provadamente liberais uma experiência completamente falhada. Em certos pontos essenciais - como sobretudo nos capítulos «história de um crime» e «aventura colonial - surgiram, posteriormente, novos factos, importantes, que sem alterar a minha posição de base fundamental [,]a poderiam enriquecer e completar [,] se fossem desde já tomados em consideração. Trata-se, contudo, de um livro datado, que embora reduzido ao mais absoluto silêncio em Portugal teve aqui, como no estrangeiro, especialmente em França, uma relativa repercussão. Entendi, por isso, que o devia facultar ao conhecimento dos Portugueses - hoje que vivemos em liberdade - tal como o escrevi então e sem lhe introduzir correcções ou acrescentamento de última hora. O que se passou desde 1972 até à madrugada de Abril de 1974 em que as Forças Armadas restituíram Portugal aos portugueses - e que representa o lento apodrecimento de um regime condenado pela consciência nacional e internacional - a alvorada de esperança e de liberdade que estamos todos vivendo, desde então, constituem de certo novos e apaixonantes temas de reflexão política. Mas, por mais que pese ao meu editor, não representam novos capítulos possíveis do “Portugal Amordaçado”. Seriam antes objecto de um outro livro, bem diferente, que é cedo ainda para escrever, e a quem um dia (porque não?) meterei ombros, se as circunstâncias me proporcionarem o tempo para um tal trabalho. Mas não agora. Hoje, para todos nós, portugueses, o tempo não nos sobra para proceder a análises históricas, pois que todos temos que viver a história, alvoroçada e colectivamente. Lisboa, 10 de Junho de 1974» E, a seguir, o discurso apaixonado do posfácio de Alfredo Barroso a reforçar as palavras do autor: «Escrito durante a deportação a que o Governo de Salazar o condenara por tempo indeterminado, na Ilha de S. Tomé e durante os primeiros anos do exílio que lhe foi imposto pelo Governo de Marcello Caetano, este livro de Mário Soares, que só agora conhece a sua primeira edição em língua portuguesa, foi publicado pela primeira vez em França, em Abril de 1972. Testemunho lúcido e corajoso de uma experiência de luta constante e intransigente contra o regime fascista o livro de Mário Soares actuou como poderoso revelador junto de largos sectores da opinião pública estrangeira, profundamente alheada do drama português. Drama que bem pode consubstanciar-se nas admiráveis páginas do capítulo dedicado ao assassinato do General Humberto Delgado, cujas circunstâncias misteriosas Mário Soares conseguiu esclarecer quase por completo. Vigoroso libelo acusatório, antes do 25 de Abril, este livro de Mário Soares é agora, sobretudo, um documento histórico para compreender o passado e, por isso mesmo, um indispensável documento de reflexão contra os perigos que espreitam a liberdade e a democracia, que o mesmo é dizer contra todos aqueles que, encapotada ou abertamente, teimam ainda, desesperadamente, em impor o regresso a um passado que queremos definitivamente banido da terra portuguesa. Socialista de formação marxista, Mário Soares afirmou-se, ao longo de mais de trinta anos de luta anti-fascista, pela sua coragem e pela sua perseverança, como um dos principais porta-vozes das forças democráticas portuguesas. No Portugal livre em que vivemos desde o 25 de Abril, a sua biografia é já sobejamente conhecida, e nas páginas deste livro se traça, justamente, o itinerário político, do homem que, finalmente, pode hoje ser recebido, em manifestações de indescritível entusiasmo popular, pelas centenas de milhares de portugueses que acorrem aos comícios em que a palavra serena, rigorosa e lúcida do Secretário Geral do Partido-Socialista é o eco da liberdade e a esperança da democracia. Ministro dos Negócios Estrangeiros desde a constituição do Primeiro Governo Provisório da II República, Mário Soares tem sido também o melhor embaixador de Portugal no Mundo, outro hostil, que gora nos abriu as portas de par em par. Hoje, apenas cinco meses que são passados desde a libertação, o nome de Mário Soares está já, também - e para sempre o estará - indissoluvelmente ligado à história da descolonização portuguesa, que o mesmo é dizer à história da libertação de outros povos outrora oprimidos pelo mesmo regime que nos amordaçava.» Ao fazer esta recensão, não tenho em mente objectivos insanos como o de convencer quem tem convicções profundas de direita, mas sim de mostrar, a perspectiva do outro lado, para quem ainda estiver indeciso ou não souber o que é viver sob ditadura e sem possibilidade de exprimir um pensamento divergente, ou de fazer ouvir uma voz que não pertence ao poder ou, simplesmente, fazer passar livremente o pensamento crítico e até científico, apenas por discordar da voz dominante. Outra razão para o fazer é porque me parece que esta perspectiva não é tão massivamente difundida nas TV’s como é a oposta nos dias de hoje. A terceira razão é porque se trata de uma autobiografia que, não sendo história, como já foi dito, constitui fonte para fazer história, depois de confrontada com factos devidamente documentados por historiadores creditados. Além disso, o autor do livro é alguém que esteve na linha de frente, a combater na sombra, para a mudança do regime. Mário Soares não será o detentor da verdade, até porque nem ele próprio conseguiu iluminar todas os recantos obscuros das tiranias do regime anterior, como se viu no caso de Humberto Delgado, por exemplo, mas muito do que ele diz é corroborado por investigadores e historiadores creditados. Por isso acho relevante trazer hoje aqui, Mário Soares, à baila. Outros seguir-se-ão. No Domingo e nos dias que se seguem, se ainda me for permitido escrever. Assim, após a leitura das mais de 700 páginas do livro, acabado de escrever em Paris no mês de Fevereiro de 1972, mais do que um “depoimento inacabado”, como o classifica o autor (pg.728) é o dar conta da espuma dos dias o ‘zeitgeist’ da passagem de momentos-chave na história, começando há quase 140 anos atrás, desde 1891, altura do levantamento Republicano no Porto, a 31 de Janeiro, com a primeira tentativa de implantação da República em Portugal, ao mesmo tempo que estala uma grande crise financeira e colonial. Mário Soares, talvez pelo facto de o pai, João Soares, e vários membros da sua família terem estado na linha da frente dos acontecimentos do lado Republicano, movimentando-se no palco das acções políticas que estiveram na base da transição de um regime para o outro, dá-nos um retrato bastante detalhado e completo dos anos mais recuados da República e do declínio da Monarquia, nos primeiros capítulos do livro. De facto, até 1926, mesmo ainda dentro do período Republicano, houve períodos, ainda que breves, de ditadura (João Franco, Pimenta de Castro, Sidónio Pais) durante as quais se verificaram repressões violentas contra os Republicanos e Democratas, dos quais Mário Soares dá contas com especial acuidade. Percebe-se ainda que houve uma espécie de guerra civil, que prosseguiu, endémica, mesmo após a Implantação da República, e se desenvolvia até, de forma concomitante, com a Primeira Guerra Mundial, que gerou um clima de grande instabilidade económica e social no País. Uma guerra mundial (1914-1918) que foi sobretudo uma guerra de Impérios, ainda mais do que de ideologias e na qual Portugal não estava numa posição tão periférica quanto se possa pensar, já que os seus interesses coloniais em África interferiam tanto com os da Alemanha quanto com os da Inglaterra, aliando-se com esta mais por razões históricas e por tradição do que propriamente por motivos geopolíticos. Muitos destes episódios poderão ainda ser corroborados ou completados com a leitura de obras de historiadores como Rui Bebiano, Irene Pimentel, João Bernardo ou Fernando Rosas. Há depois o período passado na Faculdade de Letras (Filologia Românica) e a seguir a Faculdade de Direito onde se licenciou naquela que viria a ser a sua profissão nas décadas seguintes. Segue-se a história da formação das principais forças políticas, que constituem hoje os principais partidos políticos na AR, e que se começaram a consolidar a partir de meados do século XX (e algumas mesmo algumas décadas antes), sendo que destas houve também as que tiveram de optar por actuar na obscuridade, uma vez que toda e qualquer oposição política ao governo tinha limitações tão rígidas que toda e qualquer acção se revelava infrutífera e ineficaz, não havendo sequer forma de fazer chegar a mensagem à população, tão eficientes eram os mecanismos de censura. Isto é detalhadamente explicado já no capítulo IV, intitulado «Liberdade... “Suficiente”» (pp. 89-110). Depois, o posicionamento de Portugal relativo à segunda Guerra Mundial, que não foi tão neutro como se quer dar a entender, já que Salazar alinhou ideologicamente ao lado de Franco (apesar de algumas divergências e escaramuças que culminaram com a anexação do concelho de Olivença pelo Governo totalitário do Generalíssimo) Hitler e Mussollini, apesar da neutralidade aparente para evitar um eventual ataque Aliado. Os episódios que envolvem todos os acontecimentos protagonizados por Humberto Delgado são talvez aqueles que mais apaixonam Mário Soares enquanto narrador e autor do livro. Talvez pela proximidade temporal em relação ao tempo de escrita do depoimento, ou pela proximidade que o une à família de Delgado - Mário Soares foi advogado da família, levando a cabo as investigações das circunstâncias da morte do General, fazendo todos os esforços possíveis para recuperar o corpo (o que conseguiu) em Espanha e entregá-lo à família. O livro de Soares consegue ter o mérito de nos revelar (não tanto pela descrição directa e ‘contaminada’ pelas próprias preferências políticas e ideológicas e juízos de valor) características-chave destas duas personagens mutuamente antagónicas - Salazar e Delgado - mas, e aí reside o valor do livro, pela demonstração de atitudes indirectas, descrições de comportamentos e citações de discursos. Destes elementos que Soares deixa passar, quer no seu próprio discurso, quer nos discursos citados, ou mesmo atitudes demonstradas (externas ou observáveis) de Salazar e Delgado, percebemos ser este último um homem com muito boas intenções, mas impulsivo a ponto de, por vezes, as suas acções se tornarem imprevisíveis. Isto poderia causar desconforto, quer para o seu oponente no governo, Salazar, claro, quer para alguns dos seus aliados, ligados à URSS. Salazar aproveitou muito bem esta vulnerabilidade de Delgado, como Mário Soares demonstra, ao citar na íntegra a carta que o ditador fez difundir, tentando deitar as culpas para a morte do seu rival, nos próprios opositores. O Ditador é absolutamente convincente. A única coisa que o trai, ou melhor, que trai as suas palavras, são as suas acções, ao tentar bloquear, por todos os meios, toda e qualquer tentativa que leve ao prosseguimento de investigações que tornem possível a identificação, sem margem para dúvidas, do assassino ou dos assassinos de Delgados. Assim são as ditaduras. Neste tipo de regime, os opositores políticos não são descredibilizados. São mortos. De preferência, de forma a parecer um acidente, um suicídio, ou qualquer outra forma de desviar a culpa para a vítima ou os seus aliados. Os últimos capítulos são já o regime em acentuado declínio, após a morte de Salazar e a decepcionante transição para a democracia que, supostamente, seria operada pelo seu sucessor. O livro termina coma exortação à revolução e o apelo à mudança, à saída de um regime, ao qual muitos hoje, desejam que se reinstaure. O futuro ninguém sabe como será. O passado, fica registado em livros como este, que vale sempre a pena revisitar, como num filme. Ou num telescópio que nos mostra como eram as estrelas há biliões de anos atrás. Londres, 8 de Março de 2024 Cláudia de Sousa Dias