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Sunday, June 01, 2025

‘Esta casa é para Vender’ de Diogo Ferreira (Edição de Autor)

Estamos perante a estreia literária de um autor que, apenas começando a dar os primeiros passos na publicação literária, domina já e com grande à-vontade a técnica narrativa, ainda que se verifique alguma margem para aperfeiçoamento. Em entrevista a ‘O Ilhavense on-line’ (23.10.2023), Diogo Ferreira revela sempre ter apreciado o género terror, com especial preferência por autores de sagas como Halloween de Michael Myers e Hellraiser, uma série de filmes de horror, criada a partir do conto ‘The Hellbound Heart’ (1986) escrito por Clive Barker. Porém quando se trata de escrever, Diogo Ferreira opta antes pela ficção curta - conto - como género preferencial. Os seus autores de contos, dentro do gótico-fantástico vão, naturalmente para clássicos como Edgar Allan Poe e Franz Kafka, mas também para os contos vampíricos de Alexei Tólstoi. Na trama de cariz psicológico de Esta casa é para vender, Diogo Ferreira afirma ter querido retratar o sofrimento, afectado por um clima de elevada tensão psicológica e ansiedade.
> Análise do conto Esta Casa é para Vender Nesta publicação, de forte teor experimental, o autor aventura-se no género conto longo, com elementos estilísticos de terror gótico. O conto faz, no entanto lembrar, na estrutura, o romancista contemporâneo Stephen King e, na ressonância de elementos mais clássicos deste tipo de literatura - como as descrições do interior da casa, por exemplo - autores clássicos da literatura gótica como, nitidamente, Edgar Allan Poe. Sendo o primeiro livro de Diogo Ferreira, a escrita mostra ainda alguns traços de imaturidade, apresentando-se não muito trabalhada no aspecto estético e na construção frásica ou apresentando por vezes algumas redundâncias1. Em contrapartida, a trama está perfeitamente bem construída - sendo este um dos pontos fortes do livro -, com ênfase na criação de uma atmosfera de terror antecipado, que vemos também, com frequência, em romances de King. Mas, por outro lado, a narrativa vai adquirindo progressivamente as tonalidades “escuras” que nos habituámos a encontrar em autores clássicos de terror gótico para além do já mencionado Poe, como, por exemplo, Bram Stoker e, um pouco, Henry James. É, de qualquer forma, indubitável a influência da literatura anglo-saxónica dos séculos XIX e XX na prosa deste novo autor. A sinopse deste conto é-nos apresentada da seguinte forma: «Gabriel e os pais têm de ir ao norte do país para tratar da venda da casa do idoso e debilitado avô Luciano, de quem persiste um distanciamento há quase quatro décadas. Ao jovem, que só conhece a realidade familiar junto do pai e da mãe, que nunca saiu do sul, vão ser feitas revelações, deste e doutro mundo, com curtos mas intensos diálogos e muitas palpitações no peito (...)! Preparados ou não, que nos enchamos de coragem para, passo a passo, descobrimos os horrores que envolvem esta família tão simples como enigmática». Para mim, o aspecto mais interessante da narrativa tem a ver com a possibilidade de o leitor poder decifrá-la de acordo com duas perspectivas opostas: 1) uma interpretação simbólica e até psicanalítica, onde o narrador vai deixando escapar pistas ou indícios, que permitam o desvendar da história, facilitando, de forma gradual e progressiva, o levantar o véu que esconde a real personalidade de Luciano; 2) uma leitura realista-científica em que o jovem protagonista, dotado de uma fértil imaginação e afectado pelo ar decadente da mansão, sofre uma série de alucinações que o conduzem a um episódio de esquizofrenia. Ou então, poder-se-á construir uma terceira via interpretativa que funde as duas hipóteses anteriores. À medida que a trama se vai desenvolvendo, Gabriel descobre, pouco a pouco, os aspectos ocultos da sua história familiar e ancestralidade que, no passado, culminaram no afastamento e corte de relações dos pais com o avô e, consequentemente, no abandono da cidade onde se deram acontecimentos trágicos. A própria casa parece respirar, ela mesma, a um ritmo muito peculiar, como se fosse um ser vivo a comandar as atitudes estranhas das pessoas que em volta dela gravitam. Por outro lado, os membros da comunidade local, vizinhos e habitantes das ruas adjacentes vão revelando pistas de carácter ambíguo ao protagonista, despertando-lhe o desejo de saber mais, de desocultar acontecimentos que repousam debaixo de espessas camadas de poeira do passado: passo a passo e levando a cabo um trabalho de detective, Gabriel parte dos vestígios que a casa vai expondo, ao percorrer as diferentes divisões. Cada compartimento que terá de arrumar, vistoriar, limpar e esvaziar para que depois a casa possa ser vendida, ajudará Gabriel a recompor o puzzle que é a vida da mãe e perceber aquele que foi o seu papel dentro da família, antes de casar e sair da cidade, rumo a sul - “a sul”, com sonoridades e tonalidades de azul-liberdade. Por fim, o retrato familiar ilumina-se e Gabriel apercebe-se que a realidade toma uma forma muito mais grotesca do que a máscara com que se posa para uma fotografia. O acto de sair de casa, levado a cabo pela mãe serve, como veremos ao ler o conto até ao fim, de medida de protecção da nova família, o que explica a sensação de desconforto dos pais de Gabriel ao regressar àquele lugar. É, precisamente, esse acto de fuga e auto-exílio - que lhes torna possível a construção da própria felicidade, como se vê pelo contraste face à descrição do retrato do quotidiano dos pais de Gabriel, logo nas primeiras páginas deste conto, onde o passado lhe havia até destruído destruído parcialmente o corpo da mãe: «O pai, como se via pela barriga, era bom cozinheiro, de palavra conciliadora, por mais berros que existissem à sua volta e tinha sofrido um ataque cardíaco há um par de anos. A mãe, de corpo esguio e cabelo acinzentado pelos ombros, era a alegria, com gargalhada fácil, daquela família, mesmo que um infortúnio de infância lhe tivesse ceifado a mão direita quando um pesado portão de ferro lhe esmagou o membro» [pg.56]. Há também uma voz doxal, comunitária, a sugerir ser o avô Luciano - apesar de já bastante idoso, dependente e de aspecto fragilizado, prestes a ir para um lar -, na realidade e desde há décadas, alguém “mal visto na rua”. Ou seja, uma pessoa que, desde há muito, não seria estimada pela comunidade. Por outro lado, os pais de Gabriel demonstram sempre uma certa relutância em voltar àquele lugar: « Teriam de ser eles a tratar de tudo, por mais que o pai abanasse a cabeça em negação e a mãe quase chorasse quando se lembrava que tinha de voltar ali» [Pg.7]. Poderia ficar por aqui a minha análise, mas posso esmiuçar um pouco mais: são os sinais de decadência na própria casa, o principal elemento que indicia existir algo de maligno a ela associada - até mesmo pela adjectivação de teor negativo com que o autor pinta a atmosfera do local, que se tornou estéril e que vai fazendo morrer, dia após dia, tudo à sua volta: « Cada casa tinha um jardim e todos esses pequenos recantos tinham uma árvore, grande ou pequena. A do avô era a única no bairro em que o jardim estava mal-tratado, a única que estava sem vida, oca, nua de folhagem, sem ponta de raiz saudável para perfurar o solo em busca de água» [pg. 8]. Uma casa, quase em ruínas, a apodrecer como um cadáver, acompanhada por uma árvore morta. Na cabeça de Gabriel perpassam muitas interrogações, detalhes que nunca se atreve a tentar apurar com os pais, apesar da bonomia dos mesmos, dominado por um medo intuitivo de os fazer sofrer. A família alargada também nunca é referida, como se os pais nunca tivessem tido passado. Gabriel intui que algo de errado se passa na casa e que esse algo está relacionado com a personalidade do Avô. Todavia ao entrar na casa, a primeira impressão de Gabriel, sobretudo depois de estabelecer contacto ocular com Luciano, é a de uma pesada atmosfera de religiosidade profunda: como se, ao deparar-se com o avô, estivesse, na verdade, a encarar um sacerdote do Antigo Testamento - a própria divindade das escrituras antigas, uma espécie de deus todo-poderoso, austero e terrível. A reforçar a ideia, nota-se a presença de uma imagem religiosa numa mesinha, à entrada. A decadência física de Luciano é, no entanto, completa degradando-se ao mesmo ritmo da da casa. O seu aspecto exterior inspira pena em Gabriel, sobretudo quando Luciano invoca o nome da filha e do genro, como se fossem a sagrada família: “Maria! José!”. No entanto, engana-se no nome do neto, chamando-lhe ‘Gaspar’ [um dos Rei Magos e não Gabriel, o anjo da Anunciação, que liberta Maria de uma prisão no templo que era a sua casa]. Outro forte indício de que algo está errado é o ar de terror estampado na cara de Maria, que começa a fumar um cigarro, algo que só faz quando se encontra perturbada em extremo. O estado de espírito e, sobretudo, as atitudes externas, o comportamento observável da mãe modificam-se radicalmente naquele lugar, quase como se mudasse de personalidade. Ela torna-se “hirta e rígida” [pg.13]. Há atitudes e comportamentos desconcertantes como o receio e repúdio expressos pela mãe, na cozinha, quando se dá conta das histórias que o avô vai [re]contado do passado: raiva, frustração e, também, descontrole. Luciano, por seu turno, mesmo inspirando compaixão no neto, faz com que este se retraia uma vez que “é tudo demasiado pesaroso” [pg. 14], demasiado dramático. Lá dentro, tudo é lúgubre, sombrio e opressivo. Numa segunda fase, após o contacto inicial, o velho tenta inspirar pena no neto e, ao mesmo tempo, voltá-lo contra os pais e o resto da família: a mãe “pôs-se a andar”, quando casou, a avó “fugiu com um homem”, Isaque (o outro filho, tio de Gabriel) “foi-lhe roubado”. Depois há frases de teor emotivo a apelar à piedade do neto de forma teatral: “Aqui sozinho! Abandonado! Vou morrer e ninguém se vai lembrar de mim!” [pg.15]. Luciano prossegue ainda, assumindo o papel de grande vítima, nos dias que se seguem, mas Gabriel “não deixava de pensar na frieza que tomara conta da mãe, desde que tinham chegado” [pg.17]. Há, no entanto, uma personagem que desempenha o papel de informador privilegiado: uma velha, que primeiro encara o pai de Gabriel com ar hostil, cuspindo no chão à chegada. Ela surge, num primeiro momento, como uma Fúria e, depois, como uma Sibila, emitindo um aviso a Gabriel, à laia de oráculo: «Nunca roubes a mão que te deu de comer» [pg.18]. Há aqui um alerta ambíguo nas entrelinhas do discurso da velha, que assume o papel de pitonisa, que pode ser interpretado como um aviso para Gabriel para não cair no discurso vitimizador de Luciano; ou como uma censura dirigida aos pais deste por terem fugido, sem resolverem as questões domésticas. Por sua vez, a mãe não se coíbe em alertar abertamente Gabriel sobre o carácter traiçoeiro do pai, assegurando que este recorre com frequência a ardis e mentiras, mas sem entrar em detalhes. O avô é o único a descrever com minúcia as circunstâncias em como a família se dispersara. E entretanto, a afeição do neto pelo avô cresce, vai ganhando espessura [pg.19]. Ao entrar casa adentro e explorar as diferentes divisões, Gabriel apercebe-se que o quarto onde ficará a dormir e será, doravante, o ‘seu quarto’, cheira a mofo. Este fora também o quarto do tio, Isaque, desaparecido misteriosamente. À medida que o tempo passa ali dentro, Gabriel vai-se isolando, envolvendo-se cada vez mais na ambiência o lugar, impregnando-se dos seus odores a decadência: «Este cheiro a mofo está-me a mocar todo, só pode...» [pg.20]. Começa a ouvir ruídos sem explicação, vozes. O pai também aparece, por vezes, alterado, lançando olhares “com laivos venenosos que nunca lhe tinha visto” [pg.23], numa atitude protectora em relação à mãe. E mais não vou revelar, caso contrário não haverá interesse em ler o livro. Aspectos formais Neste conto longo - trata-se de uma narrativa demasiado curta para ser um romance e as personagens têm demasiado relevo para ser uma novela - está quase omnipresente o elemento do sobrenatural que envolve toda a casa [que é, também ela própria, uma personagem animizada] e se mistura com os elementos do ‘real’. Os sonhos de Gabriel no quarto do falecido tio, são indícios, janelas para o passado, a fim de preencher lacunas face às varias histórias familiares que surgem incompletas, fragmentadas, e envolvem vários membros da família e vizinhos. Pode-se dizer que este sonhos Gabriel são a forma de processamento cerebral que traduz uma tentativa de composição de um puzzle a fim de integrar todas estas estranhas atitudes e alinhar os novos elementos que vão sendo recolhidos, a fim de se construir uma narrativa inteligível. A compreensão das histórias do avô e o seu reverso, são desvendados durante o sono de Gabriel ou através de ‘visões’ e insights, sempre que perde a consciência ou sai do estado de vigília: Gabriel chega a dormir vários dias seguidos, enquanto vai integrando a informação obtida por meio de objectos pessoais dos habitantes da casa, fotografias, etc. Gabriel assume, pois, o papel de ‘vidente’, sucedendo à velha, que tinha o hábito de cuspir no chão. Revelações surgem na narrativa sob a forma de discurso indirecto livre, onde há como que uma sobreposição entre o discurso do narrador e o discurso da personagem. As cenas finais contém um desfecho inesperado em que Gabriel passa a assumir, ele próprio, a persona de um ser sobrenatural. O que traz valor literário a este conto é o final, deixado em aberto, ao mesmo tempo que há uma elipse: não se sabe se Gabriel chegou ou não a confirmar as suas descobertas através dos insights que lhe chegavam durante o sono. Ou se tudo não seria fruto de uma mente hiperactiva, estimulada pela atmosfera de uma casa-mausoléu, que ‘vive’ ela própria, por si e para si mesma, e que, por tudo isto, só lhe resta um único destino: ser posta à venda. Altura, Vila Nova de Cacela, 22.09.2024 - Antas, Vila Nova de Famalicão, 29.05.2025 Cláudia de Sousa Dias