“Markheim” de Robert Louis Stevenson - "Contos de Natal" Parte II (ASA)
Robert Louis Stevenson, Junho 1885
Para construir Markheim, Robert Louis Stevenson inspirou-se num artigo sobre o subconsciente que o Autor leu numa revista francesa. Um conto que faz parte de obra The Merry Men and other Tales and Fables, 1887.
O tema consiste em mostrar que alguém, face à oportunidade de praticar um crime, é obrigado pelas circunstâncias a planear detalhada e metodicamente todos os seus actos, no sentido de eliminar quaisquer indícios que o denunciem.
O Autor insiste, particularmente, nos momentos de angústia inerentes aos processos mentais deste tipo de pessoa e do incrível esforço mental, decorrente dos detalhadíssimos cálculos que este tem de efectuar para cada movimento, no sentido de evitar pistas que o apontem como autor do crime.
A história começa com a visita de Markheim, o jovem herdeiro de um tio rico, a um próspero dono de uma loja de antiguidades com o intuito de o assaltar. Markheim tem-no visitado frequentemente para empenhar objectos que fazem parte do espólio da sua herança, que tem vindo a delapidar progressivamente. Stevenson foca especialmente as atitudes esquivas de Markheim, sobretudo quando este é confrontado com as dúvidas do negociante relativamente à sua honestidade, o que acentua ainda mais o seu comportamento suspeito.
Um interrogatório mais apurado por parte do lojista obriga-o a mudar de atitude para melhor dissimular. Aqui, Markheim veste a máscara de herdeiro rico e dissipador que quer vender o património para poder casar.
Markheim é um homem ambicioso. Julga que tudo lhe é devido e culpa rancorosamente a sociedade por não lhe dar tudo aquilo que deseja. Além do mais, possui uma noção distorcida da fronteira que separa o bem do mal. O jovem tem a personalidade típica de uma psicopata: frio, dotado de grande capacidade de cálculo e planeamento, pensamento estratégico e capacidade de dissimulação. Possui, ainda, alguns traços de paranóia, sobretudo depois de cometer o crime – vê inimigos em todo o lado, até no próprio espelho. Aqui é nítida a simbologia atribuída pelo Autor do texto: ele é o seu único e pior inimigo.
Depois de cometer o acto, o medo e a angústia de ser descoberto tornam-se insuportáveis, obrigando-o a desconfiar de todo e qualquer ruído ou objecto e a planear evitar todas as formas de contacto social – e, ao mesmo tempo, a eliminar todo e qualquer traço que denuncie a sua presença naquela casa e naquele dia.
O receio de encontrar um delator em cada objecto ou por detrás de cada esquina transforma a personagem num doente de esquizofrenia paranóide – alucinações visuais e auditivas: “todos a espreitar e a escutar e a tecer a corda que iria enforcá-lo.” Quando calmo, age apenas inspirado pela astúcia e pelo ódio.
A recordação incomoda-o, pois tem perfeita consciência da gravidade do crime que sabe ser condenável aos olhos dos homens. No entanto há, curiosamente, uma ausência total de sentimento de culpa, que é substituída pelo medo de ser apanhado. Markheim julga-se acima da humanidade, achando o seu crime justificável aos olhos de Deus.
Surpreendentemente, há duas ocorrências que vêm alterar o rumo das coisas, obrigando a uma inflexão no desenrolar da história.
E primeiro lugar o encontro de Markheim cara a cara com o Diabo, que o tenta convencer a segui-lo, entregando-se-lhe de vez; em segundo lugar, o regresso da criada, uma testemunha casual.
O diabo é uma alucinação causada pelo seu próprio reflexo no vidro que ele confunde com o Diabo que vem para se apoderar da sua alma.
Estas duas circunstâncias obrigam-no a mudar de ideias e a entregar-se às autoridades. Não por ter alterado os seus valores, mas antes por ter a consciência de ser incapaz de controlar todas as variáveis e todas a s circunstâncias que o impeçam de ser apanhado e submetido à justiça dos homens.
Marheim sabe que se entregar a sua alma ao Diabo, prosseguindo na senda do Mal, a sua situação agravar-se-á de forma exponencial e que chegará a um ponto em que não poderá fugir à Justiça dos homens. Markheim sabe que tem vindo a decair progressivamente.
Markheim identifica-se com a concepção demonstrada pelo Diabo de que “o homem é o lobo do homem” (Rousseau) ou seja, de que é a sociedade quem corrompe o criminoso. Também não acredita no arrependimento no leito de morte que, para ele, é um pretexto para desculpar os vivos dos seus actos.
Este conto revela, nas entrelinhas, ser contra a moral calvinista ou a teoria da predestinação, pressupondo, pelo contrário, que o homem tem o poder de controlar o seu próprio destino. Que é o produto das suas escolhas. Que se não se pode escolher entre o bem e o mal pode-se sempre recusar este último.
Stevenson pretende, com este conto, criticar os teóricos da Revolução Francesa que foram, eles próprios, durante a época do Terror, o Lobo do Homem.
Sem conseguir, contudo, fugir a uma concepção romântica acerca da natureza humana e das emoções subjacentes ao comportamento.
A redenção como tema-chave para este Natal.
Cláudia de Sousa Dias