“As duas Águas do Mar” de Francisco José Viegas (ASA)
Escrito no início da década de 1990, As duas Águas do Mar é apresentado ao leitor como o retrato de um Portugal que chega a uma encruzilhada no tocante ao desenvolvimento económico, no período áureo do “cavaquismo”. O país estava, na altura, em vias de dar mais um passo decisivo relativamente à adesão à União Europeia - a assinatura do tratado de Maastricht, pelo que urgia cumprir determinados critérios de convergência e urgia também passar a usufruir de um padrão de vida semelhante ao dos países mais desenvolvidos da Europa.
O cenário da obra retrata o quotidiano da classe média alta, urbana, cujas esperanças assentam num crescimento e desenvolvimento económico a longo prazo e que, nas décadas que se lhe seguiram, não se verificou. No entanto, a atmosfera dominante nesta obra de FJV é, precisamente, a perspectiva do desenvolvimento económico eminente que se exprime nas ambições, sonhos e esperanças de várias personagens, sobretudo femininas, em conseguir atingir metas profissionais e um nível qualidade de vida compatível com as aspirações da época, que se espelham no orgulho em exibir sinais de independência económica.
Por outro lado, começam tornar-se notórias, em algumas personagens, quer femininas quer masculinas, algumas alterações subtis de comportamento no que concerne às relações entre os sexos.
Este será apenas um dos aspectos que fazem dos romances policiais de Francisco José Viegas obras que se afastam vários anos-luz da ortodoxia em que se enquadram velhos clássicos de autores do género como Agatha Christie.
Em primeiro lugar, porque o protagonista, um detective que tem como missão, a de descobrir o móbil do crime, tem duas faces, isto é, a mesma personalidade desdobra-se, na verdade, em duas pessoas distintas. Os protagonistas são, como já foi referido, detectives. Jaime Ramos e Filipe Castanheira têm, na verdade, a mesma “persona”, apesar de exteriorizarem os seus impulsos de forma diferente. Adoram cozinhar, degustar charutos originários da terra de Fidel e um bom vinho. Possuem os mesmos conflitos existenciais, sobretudo no que toca à relação com as mulheres. São celibatários convictos embora Jaime Ramos tenha uma namorada, Rosa, que quase não está presente no quotidiano nem parece partilhar dos mesmos prazeres e com a qual não parece ter um compromisso definido.
Jaime Ramos tem um temperamento bastante mais bilioso do que o companheiro, que deixa a sua marca impressa na forma agressiva como desliga o telefone. Trata-se, no entanto, de um homem mais pragmático e voltado para a acção.
Filipe Castanheira mostra-se, por seu lado, mais sensível. É dado a divagações poéticas, existenciais e muito intuitivo. Extremamente minucioso, gosta de prestar atenção a detalhes aparentemente insignificantes. É um homem de reflexão, o gémeo simétrico, o outro lado do espelho do colega, Jaime Ramos.
É a Filipe Castanheira a quem cabe a parte de leão na narrativa desta trama policial tão pouco sui generis, onde predominam os tempos de pausa em detrimento dos tempos de acção. Filipe Castanheira detém-se, frequentemente, no cenário de um determinado momento da acção, relacionando-o com o imaginário de todos aqueles que ali actuam: a casa, a praia e a povoação de uma aldeia perdida de Finisterra, na costa galega, ou o local próximo do farol, nos Açores, onde é encontrada Rita Calado Gomes ou, mesmo, o escritório da advogada Luísa Salles.
À longa lista de prazeres já mencionados, referentes aos dois detectives, no caso de Filipe Castanheira poder-se-á adicionar mais um: o prazer de ligar factos aparentemente desconexos. Também os espaços, que aparecem associados aos diferentes intervenientes na estória, acabam por se revelar extremamente importantes, uma vez que acabam por, inadvertidamente, deixar impressa a marca da sua própria personalidade, o que vem facilitar muito o trabalho de detective. É desta forma que Filipe Castanheira encontra o fio condutor que o leva ao assassino e ao desvendar do mistério de um duplo assassinato. Quando se trata de um espaço fechado, são as próprias personagens que neles habitam que os moldam de acordo com a própria personalidade, como é o caso da moradia de Rui Pedro Martim da Luz, em Finisterra, o quarto de Rita, primeiro no hotel e, depois, em casa dos pais, ou o escritório de Luísa.
Francisco José Viegas enquadra a acção numa época de transição onde, no discurso do narrador principal, se destaca uma certa ironia amarga eivada de nostalgia, à qual está subjacente a crítica ao apego excessivo aos valores materiais, em detrimento das relações humanas. Veja-se a relação de Filipe com Isabel onde, um jantar a dois é eternamente adiado, dando primazia à superficialidade de um pensamento pequeno-burguês, privilegiando a sobreposição de compromissos profissionais a todos os outros aspectos da vida e, também, a exibição de sinais exteriores de poderio económico, um processo que faz com que as pessoas comecem, já nesta altura a ser submetidas a um processo gradual de desumanização pressionadas por um conjunto de forças exteriores à própria vontade.
Uma das cenas de maior destaque é a preparação do jantar por Filipe como oferta à namorada, Isabel, revestido de um preciosismo com reminiscências de um ritual religioso, prova suprema de dedicação à celebração de um momento em comum; ou o destaque dado à sofisticação dos escritório de Luísa Salles , a atestar o sucesso profissional de que goza a psicóloga a contrastar vivamente com o discurso cínico da sua ocupante, a qual valoriza, mais do que tudo a vitória a qualquer preço em detrimento de algo tão básico como, por exemplo, a amizade.
Há, também, um evidente paralelismo entre o ritual de preparação de uma refeição no início do romance e o ritual da corte amorosa já nos capítulos finais. Ambas as cenas são exploradas pelo narrador com a mesma volúpia, onde até o mais ínfimo detalhe e, mesmo o gesto aparentemente mais insignificante, se reveste de uma importância capital.
Na preparação da refeição a ligação dos ingredientes é fundamental. Da mesma forma, na cena de amor entre Filipe e Isabel a fusão dos amantes cujos corpos se misturam como As duas Águas do Mar, dois oceanos que confluem para o mesmo ponto de convergência…
O amor é, assim, o tema chave do romance e é, também, o elemento de ligação entre duas personagens que são assassinadas em datas muito próximas e a vários quilómetros de distância.
No que toca ao gosto pela investigação, tanto Filipe Castanheira como Jaime Ramos utilizam as técnicas de pesquisa utilizadas em jornalismo. Ambos poderiam, na realidade, ser repórteres e, simultaneamente, detectives, apesar de Jaime Ramos ser bastante mais burocrático nos seus métodos do que o companheiro.
Filipe Castanheira exprime frequentemente o apreço por arte, literatura, cinema e gastronomia e pela paisagem social que dá o colorido aos lugares por onde passa com o intuito de explorar e aprofundar o conhecimento acerca das diferentes dimensões do comportamento humano. O já mencionado e quase que obsessivo gosto pela minúcia e pelos detalhes acaba por provar ao leitor que a falha no carácter humano pode ser tão abissal que, muitas vezes, o motivo mais fútil, pode despoletar a decisão de por termo à vida humana, subestimando a capacidade de ser descoberto ao sobrevalorizar a suposta inteligência de precisão quase matemática, mas sem contar no entanto com…o imprevisto.
As Duas Águas do Mar é, por isso, um livro de que podemos desfrutar voluptuosamente numa viagem de férias ou num fim-de-semana longe do escritório.
Num hotel com vista para a Lagoa das Sete Cidades, por exemplo, ou na galega Finisterra, refúgio de escritores e poetas.
Aqui fica a sugestão.
Cláudia de Sousa dias
O cenário da obra retrata o quotidiano da classe média alta, urbana, cujas esperanças assentam num crescimento e desenvolvimento económico a longo prazo e que, nas décadas que se lhe seguiram, não se verificou. No entanto, a atmosfera dominante nesta obra de FJV é, precisamente, a perspectiva do desenvolvimento económico eminente que se exprime nas ambições, sonhos e esperanças de várias personagens, sobretudo femininas, em conseguir atingir metas profissionais e um nível qualidade de vida compatível com as aspirações da época, que se espelham no orgulho em exibir sinais de independência económica.
Por outro lado, começam tornar-se notórias, em algumas personagens, quer femininas quer masculinas, algumas alterações subtis de comportamento no que concerne às relações entre os sexos.
Este será apenas um dos aspectos que fazem dos romances policiais de Francisco José Viegas obras que se afastam vários anos-luz da ortodoxia em que se enquadram velhos clássicos de autores do género como Agatha Christie.
Em primeiro lugar, porque o protagonista, um detective que tem como missão, a de descobrir o móbil do crime, tem duas faces, isto é, a mesma personalidade desdobra-se, na verdade, em duas pessoas distintas. Os protagonistas são, como já foi referido, detectives. Jaime Ramos e Filipe Castanheira têm, na verdade, a mesma “persona”, apesar de exteriorizarem os seus impulsos de forma diferente. Adoram cozinhar, degustar charutos originários da terra de Fidel e um bom vinho. Possuem os mesmos conflitos existenciais, sobretudo no que toca à relação com as mulheres. São celibatários convictos embora Jaime Ramos tenha uma namorada, Rosa, que quase não está presente no quotidiano nem parece partilhar dos mesmos prazeres e com a qual não parece ter um compromisso definido.
Jaime Ramos tem um temperamento bastante mais bilioso do que o companheiro, que deixa a sua marca impressa na forma agressiva como desliga o telefone. Trata-se, no entanto, de um homem mais pragmático e voltado para a acção.
Filipe Castanheira mostra-se, por seu lado, mais sensível. É dado a divagações poéticas, existenciais e muito intuitivo. Extremamente minucioso, gosta de prestar atenção a detalhes aparentemente insignificantes. É um homem de reflexão, o gémeo simétrico, o outro lado do espelho do colega, Jaime Ramos.
É a Filipe Castanheira a quem cabe a parte de leão na narrativa desta trama policial tão pouco sui generis, onde predominam os tempos de pausa em detrimento dos tempos de acção. Filipe Castanheira detém-se, frequentemente, no cenário de um determinado momento da acção, relacionando-o com o imaginário de todos aqueles que ali actuam: a casa, a praia e a povoação de uma aldeia perdida de Finisterra, na costa galega, ou o local próximo do farol, nos Açores, onde é encontrada Rita Calado Gomes ou, mesmo, o escritório da advogada Luísa Salles.
À longa lista de prazeres já mencionados, referentes aos dois detectives, no caso de Filipe Castanheira poder-se-á adicionar mais um: o prazer de ligar factos aparentemente desconexos. Também os espaços, que aparecem associados aos diferentes intervenientes na estória, acabam por se revelar extremamente importantes, uma vez que acabam por, inadvertidamente, deixar impressa a marca da sua própria personalidade, o que vem facilitar muito o trabalho de detective. É desta forma que Filipe Castanheira encontra o fio condutor que o leva ao assassino e ao desvendar do mistério de um duplo assassinato. Quando se trata de um espaço fechado, são as próprias personagens que neles habitam que os moldam de acordo com a própria personalidade, como é o caso da moradia de Rui Pedro Martim da Luz, em Finisterra, o quarto de Rita, primeiro no hotel e, depois, em casa dos pais, ou o escritório de Luísa.
Francisco José Viegas enquadra a acção numa época de transição onde, no discurso do narrador principal, se destaca uma certa ironia amarga eivada de nostalgia, à qual está subjacente a crítica ao apego excessivo aos valores materiais, em detrimento das relações humanas. Veja-se a relação de Filipe com Isabel onde, um jantar a dois é eternamente adiado, dando primazia à superficialidade de um pensamento pequeno-burguês, privilegiando a sobreposição de compromissos profissionais a todos os outros aspectos da vida e, também, a exibição de sinais exteriores de poderio económico, um processo que faz com que as pessoas comecem, já nesta altura a ser submetidas a um processo gradual de desumanização pressionadas por um conjunto de forças exteriores à própria vontade.
Uma das cenas de maior destaque é a preparação do jantar por Filipe como oferta à namorada, Isabel, revestido de um preciosismo com reminiscências de um ritual religioso, prova suprema de dedicação à celebração de um momento em comum; ou o destaque dado à sofisticação dos escritório de Luísa Salles , a atestar o sucesso profissional de que goza a psicóloga a contrastar vivamente com o discurso cínico da sua ocupante, a qual valoriza, mais do que tudo a vitória a qualquer preço em detrimento de algo tão básico como, por exemplo, a amizade.
Há, também, um evidente paralelismo entre o ritual de preparação de uma refeição no início do romance e o ritual da corte amorosa já nos capítulos finais. Ambas as cenas são exploradas pelo narrador com a mesma volúpia, onde até o mais ínfimo detalhe e, mesmo o gesto aparentemente mais insignificante, se reveste de uma importância capital.
Na preparação da refeição a ligação dos ingredientes é fundamental. Da mesma forma, na cena de amor entre Filipe e Isabel a fusão dos amantes cujos corpos se misturam como As duas Águas do Mar, dois oceanos que confluem para o mesmo ponto de convergência…
O amor é, assim, o tema chave do romance e é, também, o elemento de ligação entre duas personagens que são assassinadas em datas muito próximas e a vários quilómetros de distância.
No que toca ao gosto pela investigação, tanto Filipe Castanheira como Jaime Ramos utilizam as técnicas de pesquisa utilizadas em jornalismo. Ambos poderiam, na realidade, ser repórteres e, simultaneamente, detectives, apesar de Jaime Ramos ser bastante mais burocrático nos seus métodos do que o companheiro.
Filipe Castanheira exprime frequentemente o apreço por arte, literatura, cinema e gastronomia e pela paisagem social que dá o colorido aos lugares por onde passa com o intuito de explorar e aprofundar o conhecimento acerca das diferentes dimensões do comportamento humano. O já mencionado e quase que obsessivo gosto pela minúcia e pelos detalhes acaba por provar ao leitor que a falha no carácter humano pode ser tão abissal que, muitas vezes, o motivo mais fútil, pode despoletar a decisão de por termo à vida humana, subestimando a capacidade de ser descoberto ao sobrevalorizar a suposta inteligência de precisão quase matemática, mas sem contar no entanto com…o imprevisto.
As Duas Águas do Mar é, por isso, um livro de que podemos desfrutar voluptuosamente numa viagem de férias ou num fim-de-semana longe do escritório.
Num hotel com vista para a Lagoa das Sete Cidades, por exemplo, ou na galega Finisterra, refúgio de escritores e poetas.
Aqui fica a sugestão.
Cláudia de Sousa dias