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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Sunday, July 19, 2009

“As duas Águas do Mar” de Francisco José Viegas (ASA)


Escrito no início da década de 1990, As duas Águas do Mar é apresentado ao leitor como o retrato de um Portugal que chega a uma encruzilhada no tocante ao desenvolvimento económico, no período áureo do “cavaquismo”. O país estava, na altura, em vias de dar mais um passo decisivo relativamente à adesão à União Europeia - a assinatura do tratado de Maastricht, pelo que urgia cumprir determinados critérios de convergência e urgia também passar a usufruir de um padrão de vida semelhante ao dos países mais desenvolvidos da Europa.

O cenário da obra retrata o quotidiano da classe média alta, urbana, cujas esperanças assentam num crescimento e desenvolvimento económico a longo prazo e que, nas décadas que se lhe seguiram, não se verificou. No entanto, a atmosfera dominante nesta obra de FJV é, precisamente, a perspectiva do desenvolvimento económico eminente que se exprime nas ambições, sonhos e esperanças de várias personagens, sobretudo femininas, em conseguir atingir metas profissionais e um nível qualidade de vida compatível com as aspirações da época, que se espelham no orgulho em exibir sinais de independência económica.

Por outro lado, começam tornar-se notórias, em algumas personagens, quer femininas quer masculinas, algumas alterações subtis de comportamento no que concerne às relações entre os sexos.

Este será apenas um dos aspectos que fazem dos romances policiais de Francisco José Viegas obras que se afastam vários anos-luz da ortodoxia em que se enquadram velhos clássicos de autores do género como Agatha Christie.

Em primeiro lugar, porque o protagonista, um detective que tem como missão, a de descobrir o móbil do crime, tem duas faces, isto é, a mesma personalidade desdobra-se, na verdade, em duas pessoas distintas. Os protagonistas são, como já foi referido, detectives. Jaime Ramos e Filipe Castanheira têm, na verdade, a mesma “persona”, apesar de exteriorizarem os seus impulsos de forma diferente. Adoram cozinhar, degustar charutos originários da terra de Fidel e um bom vinho. Possuem os mesmos conflitos existenciais, sobretudo no que toca à relação com as mulheres. São celibatários convictos embora Jaime Ramos tenha uma namorada, Rosa, que quase não está presente no quotidiano nem parece partilhar dos mesmos prazeres e com a qual não parece ter um compromisso definido.

Jaime Ramos tem um temperamento bastante mais bilioso do que o companheiro, que deixa a sua marca impressa na forma agressiva como desliga o telefone. Trata-se, no entanto, de um homem mais pragmático e voltado para a acção.

Filipe Castanheira mostra-se, por seu lado, mais sensível. É dado a divagações poéticas, existenciais e muito intuitivo. Extremamente minucioso, gosta de prestar atenção a detalhes aparentemente insignificantes. É um homem de reflexão, o gémeo simétrico, o outro lado do espelho do colega, Jaime Ramos.

É a Filipe Castanheira a quem cabe a parte de leão na narrativa desta trama policial tão pouco sui generis, onde predominam os tempos de pausa em detrimento dos tempos de acção. Filipe Castanheira detém-se, frequentemente, no cenário de um determinado momento da acção, relacionando-o com o imaginário de todos aqueles que ali actuam: a casa, a praia e a povoação de uma aldeia perdida de Finisterra, na costa galega, ou o local próximo do farol, nos Açores, onde é encontrada Rita Calado Gomes ou, mesmo, o escritório da advogada Luísa Salles.

À longa lista de prazeres já mencionados, referentes aos dois detectives, no caso de Filipe Castanheira poder-se-á adicionar mais um: o prazer de ligar factos aparentemente desconexos. Também os espaços, que aparecem associados aos diferentes intervenientes na estória, acabam por se revelar extremamente importantes, uma vez que acabam por, inadvertidamente, deixar impressa a marca da sua própria personalidade, o que vem facilitar muito o trabalho de detective. É desta forma que Filipe Castanheira encontra o fio condutor que o leva ao assassino e ao desvendar do mistério de um duplo assassinato. Quando se trata de um espaço fechado, são as próprias personagens que neles habitam que os moldam de acordo com a própria personalidade, como é o caso da moradia de Rui Pedro Martim da Luz, em Finisterra, o quarto de Rita, primeiro no hotel e, depois, em casa dos pais, ou o escritório de Luísa.

Francisco José Viegas enquadra a acção numa época de transição onde, no discurso do narrador principal, se destaca uma certa ironia amarga eivada de nostalgia, à qual está subjacente a crítica ao apego excessivo aos valores materiais, em detrimento das relações humanas. Veja-se a relação de Filipe com Isabel onde, um jantar a dois é eternamente adiado, dando primazia à superficialidade de um pensamento pequeno-burguês, privilegiando a sobreposição de compromissos profissionais a todos os outros aspectos da vida e, também, a exibição de sinais exteriores de poderio económico, um processo que faz com que as pessoas comecem, já nesta altura a ser submetidas a um processo gradual de desumanização pressionadas por um conjunto de forças exteriores à própria vontade.

Uma das cenas de maior destaque é a preparação do jantar por Filipe como oferta à namorada, Isabel, revestido de um preciosismo com reminiscências de um ritual religioso, prova suprema de dedicação à celebração de um momento em comum; ou o destaque dado à sofisticação dos escritório de Luísa Salles , a atestar o sucesso profissional de que goza a psicóloga a contrastar vivamente com o discurso cínico da sua ocupante, a qual valoriza, mais do que tudo a vitória a qualquer preço em detrimento de algo tão básico como, por exemplo, a amizade.

Há, também, um evidente paralelismo entre o ritual de preparação de uma refeição no início do romance e o ritual da corte amorosa já nos capítulos finais. Ambas as cenas são exploradas pelo narrador com a mesma volúpia, onde até o mais ínfimo detalhe e, mesmo o gesto aparentemente mais insignificante, se reveste de uma importância capital.

Na preparação da refeição a ligação dos ingredientes é fundamental. Da mesma forma, na cena de amor entre Filipe e Isabel a fusão dos amantes cujos corpos se misturam como As duas Águas do Mar, dois oceanos que confluem para o mesmo ponto de convergência…

O amor é, assim, o tema chave do romance e é, também, o elemento de ligação entre duas personagens que são assassinadas em datas muito próximas e a vários quilómetros de distância.
No que toca ao gosto pela investigação, tanto Filipe Castanheira como Jaime Ramos utilizam as técnicas de pesquisa utilizadas em jornalismo. Ambos poderiam, na realidade, ser repórteres e, simultaneamente, detectives, apesar de Jaime Ramos ser bastante mais burocrático nos seus métodos do que o companheiro.

Filipe Castanheira exprime frequentemente o apreço por arte, literatura, cinema e gastronomia e pela paisagem social que dá o colorido aos lugares por onde passa com o intuito de explorar e aprofundar o conhecimento acerca das diferentes dimensões do comportamento humano. O já mencionado e quase que obsessivo gosto pela minúcia e pelos detalhes acaba por provar ao leitor que a falha no carácter humano pode ser tão abissal que, muitas vezes, o motivo mais fútil, pode despoletar a decisão de por termo à vida humana, subestimando a capacidade de ser descoberto ao sobrevalorizar a suposta inteligência de precisão quase matemática, mas sem contar no entanto com…o imprevisto.

As Duas Águas do Mar é, por isso, um livro de que podemos desfrutar voluptuosamente numa viagem de férias ou num fim-de-semana longe do escritório.

Num hotel com vista para a Lagoa das Sete Cidades, por exemplo, ou na galega Finisterra, refúgio de escritores e poetas.

Aqui fica a sugestão.



Cláudia de Sousa dias

Saturday, July 04, 2009

“O Segredo da Trapezista” de Óscar Málaga Gallegos (Teorema)


Quem vive um dia de inocência e alegria é imortal

Uma estória que apela ao sonho, à fantasia e ao impudor, na exploração de tabus que não deixa de causar um pouco de incómodo.



O livro O Segredo da Trapezista é dedicado a duas mulheres que serviram de inspiração ao Autor como ele próprio afirma na sua dedicatória:

à minha avó cujo amor me alimenta a insensatez; a Xi Pei cujo amor me inventa

Trata-se de um romance de época, cuja acção decorre na Lima do sec. XIX, em 1931, que envolve a recordação de um dia mágico: o dia em que o circo chegou à cidade. A entrada triunfal de uma companhia de circo à beira da falência provoca o espanto e a curiosidade na população de uma cidade pacata, cuja rotina transforma os seus habitantes em seres apáticos e indolentes. Trata-se de um momento de cor e alegria na vida quem, até ali, sempre se movimentou num cenário com a mesma tonalidade monocromática.

O director, num acto desesperado para encontrar uma solução financeira para o seu empreendimento, de forma a evitar o fantasma da miséria, decide juntar o útil ao agradável ao deixar vir ao de cima o seu talento natural de proxeneta e, simultaneamente, aproveitar para satisfazer algumas pulsões sexuais proibidas, pelo que utiliza um pretexto ou motivo socialmente justificável a servir de atenuante como sendo o de “salvar o circo”.

Passa, então, a instruir sexualmente a trapezista, loira e adolescente, nas lides sexuais perante a impassibilidade dos restantes membros do circo, paralisados pelo medo da fome que os torna impotentes para reagir ao comportamento tirânico do patrão.

O livro é uma paródia à situação de crise mundial, estilizada através do recurso a uma alegoria de uma sociedade que tem no comando líderes ineptos a ocupare os postos de chefia de sectores fundamentais para a estruturação e articulação dos diversos agentes económicos, que dispõem dos seres anónimos como marionetas, eliminando os afectos espontâneos e o direito inato à procura do prazer e da felicidade.

Outro dos sectores visados pela crítica mordaz e pelo humor negro do Autor é a classe dos militares e, particularmente, a pusilanimidade dos generais que estão mais preocupados com a ostentação da farda e outros sinais de distinção social do que com o brio no trabalho e a finalidade do mesmo.

A prepotência dos mesmos militares face ao povo índio, na defesa dos interesses das classes privilegiadas e do colonialismo é outro tema explorado no romance, assim como o jornalismo ao serviço do Poder instituído. Esta última classe é particularmente visada pela língua viperina de Óscar Málaga Gallegos o qual classifica os jornalistas de propaganda do regime como “putas ao serviço do Governo”.

E para enfatizar ainda mais a puerilidade da figura do general emproado, o Autor cria a personagem Dom Juan de Alcazár y Benavente, um sujeito fraco, impotente e misógino que é sexualmente abusado pela mãe na tentativa desesperada para o transformar num homem. Com a introdução do elemento incesto, o Autor pretende dar um soco no estômago na sociedade pseudo-politicamente-correcta de Lima, sobretudo na hipocrisia instituída, composta por senhoras falsamente bem-comportadas e machos falsamente viris.

Por outro lado, é exaltada a dimensão do sonho e, também, da imaginação, da fantasia e inocência, envolvendo os diversos elementos do circo, que estão, no entanto, sob o jugo do director que os manipula como se de simples bestas se tratassem.

A atracção sexual espontânea que se estabelece entre a Trapezista Gémea Loira e o Comedor de Fogo sob o olhar benevolente do pachorrento paquiderme que os observa pelo canto do olho está à margem de tudo isso como sinal de independência e insubmissão.

Inocentes são também os habitantes de Lima os quais, como crianças que continuam a ser, muito depois de atingirem a idade adulta, continuam a deixar-se fascinar por seres estranhos, aberrações que só no circo conseguem encontrar um lugar e um sentido para a vida, tal como a mulher barbada, os anões ou o Homem mais Forte do Mundo.

O circo ficará para sempre gravado na memória das crianças da época, apesar dos estrangulamentos económicos e da escassez de dinheiro que atravessa. Os seus palhaços são evocados, muitas décadas mais tarde, pelos velhos que eram meninos na época quando compram caramelos com forma de palhaços em qualquer lojeca da esquina.

A repressão e o recalcamento da revolta

O staff do circo nutre, na realidade, um certo desprezo para com D. José, o Director do Circo.

E o Anão Grande urinou em cima da cadeira ainda quente que D. José ocupava sempre”.

O elefante, sendo a grande atracção do circo, conseguindo sempre mobilizar a atenção do público, devido à força, ao carácter selvagem e, simultaneamente dócil, que desperta sempre a simpatia alheia. Também o carácter independente de quem não se deixa levar por elogios fúteis de bajuladores que se acotovelam diante do aspecto pesado e algo grotesco da estranheza que causa “um animal que tem orelhas de planta silvestre, nariz de serpente, pernas de árvore e olhos de coelho”, ocupa um lugar simbólico muito especial na trama:

O circo era como o elefante: desconhecido, rugoso, selvagem, terno (…) a continuara a levar pelo mundo a sua irremediável solidão de ser diferente, descomunal e único (…) as pessoas vêm ao circo para se encherem de nostalgia perante a ideia de que um dia foram mais fortes que a natureza (…); o circo é a única igreja, a única religião que os homens têm na alma”.

Em relação à história e cultura Russa, introduzida pela farsa que a trapezista loira terá de interpretar a pedido do dono do circo, poderão ser encontradas algumas incongruências, propositadamente introduzidas de forma a haver coerência entre a ausência de quase total conhecimento da história e cultura europeia pelas gentes simples do Peru no sec XIX que nunca puseram os pés no velho Continente, como quando se referem a Hércules como o “Rei dos Romanos”.
Curiosamente a presença de alguns anacronismos nos nomes citados faz pensar que a obra pretende traçar um paralelismo entre as épocas que marcaram a evolução económica e política dos últimos séculos e que se reflecte directa e indirectamente no quotidiano do cidadão comum.
O Homem mais Forte do Mundo é outra das grandes atracções do Circo, está dividido entre o amor que sempre desde sempre pela mulher barbada e por uma sereia, mulher feminina, de aspecto delicado mas que exala um atroz odor a peixe. Trata-se de uma parábola, de contornos surrealistas a representar a utopia do amor ideal e a presença de um amor concreto a corresponder às pulsões terrenas dos sujeitos.

D. José, o dono do circo é, apesar dos seus defeitos, inquestionavelmente um líder que molda a personalidade do seu staff à sua própria imagem e semelhança tal como se vê pelo comentário do Comedor de Fogo para a Trapezista Loira: “No circo, todos somos parecidos com D. José”.

Mas em contrapartida “as ilusões nunca se apagam, transformam-se em recordações, papéis nos bolsos, e então já não vives a perseguir ilusões mas como um velho a proteger recordações, a encher os bolsos de coisas que não disseste”.
A nostalgia da juventude perdida de D. José e o amor são os elementos chave do romance, um dos principais vectores da estória a envolver os personagens, mobilizando-os.

Outro dos símbolos utilizados por OMG é o legado das floreiras deixado pelo pai de D. Juan de Benavente, o militar pusilânime violado pela mãe – mais uma parábola, desta vês referente à fragilidades de quem cede a todas as pressões vindas da sociedade, neste caso representadas pela família cujo expoente máximo de repressão está condensado na figura da mãe manipuladora através de uma relação edipiana.

Por outro lado, as floreiras como herança do pai, representam não o mecanismo de manutenção do património familiar mas, também, a necessidade de conservação da cultura e do património natural do Peru, ao invés de delapidá-lo tendo em vista apenas o lucro a curto prazo. Trata-se, também, da aspiração à imortalidade por parte de um indivíduo que dedicou a vida a construir algo e que, enquanto estiver intacta a sua obra, é como se se mantivesse viva uma parte de si próprio. As plantas das floreiras são como que o prolongamento da vida do pai de D. Juan Benavente. É por essa razão que, ainda vivo, cuida das floreiras “com o mesmo amor que os monges taoistas destilavam o suco luminoso do cinábrio”. Aqui o Autor não consegue deixar de demonstrar o imenso amor pela cultura oriental que se manifesta numa erudição refinada onde deixa transparecer a voz velada do narrador não participante.

A Trapezista Loira é seleccionada por D. José de forma a fazer-se passar por princesa russa com o objectivo de seduzir Dom Juan o qual, acabará por financiar o circo salvando-o da falência. Um dos aspectos mais cómicos da obra é a ignorância manifesta pela mesma Trapezista Loira e restantes personagens acerca do idioma russo. Ignorância que tenta a todo o custo disfarçar com um patético e minimalista arsenal de palavras que se reduzem a meia dúzia de figuras de proa do regime soviético num escandaloso anacronismo!

A classe política acaba, também, por ser visada pelo Autor ao referir-se à grave crise ministerial, ocorrida em 1831, mas que voltaria a repetir-se no último quartel do século XX e cujos efeitos se fazem sentir, ainda no século XXI, adquirindo esta um carácter crónico e assumindo, ao mesmo tempo, uma faceta endémica que se traduz no marasmo a que é sujeita a vida dos cidadãos…

Dizem que acontece muito neste país, é uma epidemia…”

Dom Juan apaixona-se pela pseudo-virgem loira que é também uma falsa princesa russa. Esta vê-se a braços com a dificuldade crescente em manter a máscara. A desculpa é a do desconhecimento da língua para não falar com o noivo. A ausência de quase total de diálogo entre o casal também proporciona momento de alguma hilaridade, servindo para camuflar a quase total ausência de refinamento na jovem. Uma característica que é notada por quase todos os que habitam a casa de D. Juan de Benavente excepto pelo próprio. A Trapezista Loira revela, no entanto, uma garça e agilidade inerente à profissão desempenhada no circo evidenciando-se em cada gesto ou movimento de graça felina.

Por outro lado a paixão da “Princesa” pelo Comedor de Fogo torna-se cada vez mais difícil de ocultar…

Já para a mulher barbada só o amor paternal é verdadeiramente desinteressado. É por essa razão que está convencida de que é filha do elefante, por este afagá-la com a tromba “com a mesma ternura de um pai”: “ Aos pais, por maior que seja o seu amor, imensa que seja a sua ternura, só lhes é permitido tocar delicadamente nas filhas…”

O ponto de vista do amor absoluto para esta estranha mulher não deixa de ser sublime apesar de desconcertante:

Porque nós, as mulheres, prendemos a viver com os homens, a amá-los por serem tontos, por terem sonhos ridículos, aspirações medíocres, aprendemos a dividir o nosso amor em mil quartos e abrigamos os homens num deles, o mais pequeno, o mais húmido, o único que procuram e também aprendemos a viver com os outros quartos vazios e, de vez em quando, a receber surpreendidos visitantes que têm a chave, sem que nós algumas vez lha tenhamos entregue, mas o nosso maior sonho é um dia conhecer um ser tão pouco homem, mas tão parecido com Deus, que possa ocupar os nossos dez mil quartos de amor…”
Nenhum dos personagens masculinos da estória se aproxima dessa categoria, nem o Comedor de Fogo ou mesmo O Homem mais Forte do Mundo. São simplesmente seres humanos, inocentes, bravios e rudes que tentam ocupar o lugar que todos ocupam.

Como já foi referido, D. José é o modelo de conduta dos personagens masculinos do circo desta estória, como afirmou o Comedor de Fogo Romântico. E D. José é um homem incapaz de ensinar o amor a alguém, fixando-se apenas pelo ensinamento da “arte de salvar” o circo. Usando de competências sexuais, obviamente. No entanto há uma altura em que a trapezista loira deixa de ser capaz de exercer “a arte de salvar o circo” por estar apaixonada pelo Comedor de Fogo Romântico.

E, segundo o narrador, “As pessoas apaixonadas apagam todas as luzes do planeta para acender aquela que ilumina o rosto da pessoa amada. E atravessam o espelho para se juntarem a uma multidão de seres cegos que devoram com prazer as suas ilusões”. Que se apagam à medida que amadurecem e se transformam em recordações.

Com uma certa dose de cinismo de uma alma materialista D. José afirma: “Recorda toda a tua vidinha. A Verdade é apenas um problema técnico”, sendo que a memória comporta sempre uma certa dose de ficção.

O desgosto de amor do Comedor de Fogo Romântico, já no final da estória, num acesso de loucura, leva-o a tomar a resolução de por fim aos planos de D. José para as gentes do circo e, particularmente para a trapezista loira, fazendo lembrar um pouco o episódio de Samsão no templo de Dagon…

Um belo, chocante, provocador e sublime romance de um autor nos chegou trazido pelas “Correntes” do Atlântico que vêm desaguar à Póvoa.

Esperemos que mais vezes.


Cláudia de Sousa Dias