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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, June 25, 2010

“As Novas bruxas do Ave” de Luísa Monteiro (Campo das Letras)




O primeiro livro de ficção de Luísa Monteiro é um autêntico cocktail molotov lançado no coração de uma das regiões do País onde a mentalidade parece ainda reger-se pelos cânones do Estado Novo no tocante aos tabus relacionados com a sexualidade. Um facto que parece andar, paradoxalmente, de mãos dadas com o comércio do sexo, discretamente camuflado em “casas de alterne”.

As novas bruxas do Ave é uma obra que denuncia as marcas da actividade jornalística da Autora no tocante ao jornalismo de investigação e que são projectadas na criação literária cujo estilo orienta a narrativa que se caracteriza pela beleza e acuidade visual invulgares nas descrições e pela meticulosidade com que se sucedem os passos da investigação levada a cabo pela protagonista, o que denuncia, por si só, um profundo conhecimento de causa, dotando a personagem Virgínia Luís de verosimilhança o que lhe confere credibilidade. Luísa Monteiro constrói uma personagem que tem quase tanto de escritora de narrativas como de detective. A acção passa-se numa imaginária – ou não – Cidade dos Pássaros, situada algures no Vale do Ave.

Os dois narradores principais, contam a estória, cada qual pelo seu ponto de vista, que podemos observar como simétrico, um em relação ao outro, se imaginássemos a história filmada a partir de dois ângulos opostos e dentro do mesmo espaço ou raio de acção. Ambos são participantes e acabam por assumir um papel central na história, a qual se conjuga, no final, como dois pedaços do mesmo mapa, dando ao leitor a visão global dos acontecimentos. Virgínia e Orlando são as duas faces da mesma moeda. Orlando, a visão do fenómeno pelo lado masculino e Virgínia a co-protagonista o lado feminino. Os olhos de Orlando começam por se sentir atraídos pela figura misteriosa de Virgínia como o seu alter-ego feminino. Ou a visão feminina de Orlando do outro lado do espelho: dois gémeos, gerados por Luísa Monteiro, inspirada na sua musa de eleição, Virginia Woolf. Orlando resulta directamente de uma intertextualidade com a obra de Woolf mas Virgínia Luís poderia mesmo ser o alter-ego de Luísa Monteiro: ambas partilham a actividade compulsiva de escrever, desdobrando-se tanto na escrita criativa como na investigação jornalística. A protagonista, no caso da morte de uma prostituta adolescente da encantada Cidade dos Pássaros, vai aos locais interditos entrevistar pessoas envolvidas, conhecidos, informadores qualificados para colher elementos para a sua história. Virgínia é observada e avaliada por Orlando, o seu duplo, que a identifica como uma mulher enigmática, mas revestida de uma aura de romantismo:

Era uma mulher bonita, cabelos curtos e negros, triste e madura. Mas começa a inquietar-se face à insistência do meu olhar (…). Era a mulher das ancas largas, vestida de negro.

Curiosamente, na altura em que Orlando assume o protagonismo, Virgínia adopta uma posição perfeitamente marginal na trama, embora seja perceptível que está constantemente a executar o papel de observadora.

Orlando dá corpo à história que envolve a vida quotidiana e a forma de se projectar para o exterior de Janinha Labareda.

Joana era jovial, uns olhos muito azuis, quase violáceos, uma boca carnuda, rosto redondo, pálido, cabelos acobreados, pelos ombros, uma franja rara…

Os olhos azul-cinza com aura violeta e cabelos fulvos, dão a Janinha algo de tentador, vagamente sinistro, logo a partir da primeira cena, quando entabula diálogo com Orlando na sala de espera do Centro de Saúde. Um comportamento envolvente e insinuante que, no entanto, perece sempre manter uma grande reserva em relação à vida pessoal, principalmente no tocante à actividade do marido, fazem pensar num ser mefistofélico, ou de dupla personalidade. O tom melífluo que usa para cativar um estranho bem-apessoado como Orlando contrasta violentamente com a linguagem utilizada em contexto familiar e, sobretudo com o descaso em relação ao filho, impedem-na de cativar a simpatia dos leitores. Algo de sombrio paira à volta desta Janinha de olho de chama azul e cabelos a lembrar labaredas. Algo nela parece queimar. Ou, pelo menos, causar desconforto.

Janinha é oriunda de uma família humilde. A mãe é feirante, separada do marido alcoólico, vive para o trabalho arcando com a responsabilidade de criar cerca de uma dezena de filhos sozinha. Consegue juntar dinheiro para uma padaria e acaba por dar estabilidade aos seus como se pode observar na cena que descreve o almoço familiar em que Orlando figura como convidado. Janinha vive, por seu lado, para o lazer e a ostentação. Trata a mãe como empregada. Sob o olhar atento de Orlando, não consegue explicar a origem dum Audi 80 nem das roupas caras. Contudo nem a beleza nem a exibição de poder aquisitivo conseguem esconder uma educação rude. Os irmãos trabalham quase todos, embora a maior parte deles de forma precária.

Virgínia é, nesta fase, e sobretudo ao fora do ambiente desconcertante e, de certa forma opressivo da casa de Joana, alvo do interesse e curiosidade de Orlando, que se sente atraído pela sua discrição e melancolia. Mas a ela, por seu turno, interessam-lhe as estranhas movimentações das personagens femininas da aparentemente pacífica Cidade dos Pássaros: Virgínia Luís dedica-se a escrever as crónicas da cidade, cujos habitantes acabam por transformar-se nas suas personagens, colocadas no limbo entre a ficção e o “real”.

O tema explorado é o que terá o mais intenso sabor ao "proibido” numa sociedade sexualmente reprimida: a complexa vida sexual, oculta das mulheres da Cidade.

A prostituição que vai proliferando entre as adolescentes, ainda nos bancos da escola, para sustentar um estilo de vida muito acima das possibilidades financeiras reais é outro tema “quente”, explorado nas narrativas de Virgínia Luís.

As mulheres da Cidade dos Pássaros parecem camuflar a própria sexualidade manifesta de forma latente e oculta pela protecção social que dá o estatuto de “mulher casada”. Um secretismo que esconde apetites eróticos, considerados tabu pela cultura judaico-cristã. Mas o mesmo estado civil serve, por vezes, também, para esconder o fenómeno da prostituição no seio familiar, associada a fenómenos de proxenetismo/lenocínio.

Virgínia Luís vai puxando o fio que liga uma complicada teia, relacionada com o crime e o mundo paralelo do tráfico humano, após o aparecimento de uma adolescente, morta em circunstâncias suspeitas. O lado mais crítico da narrativa de Luísa Monteiro aparece durante o curto capítulo narrado por Borboleta, a cadela de uma das personagens mais superficiais do romance, mas que desempenha um papel fundamental na trama, aproxima-se muito do estilo narrativo desconcertante de Antonio Tabucchi.

A Estrutura da narrativa

A obra As novas bruxas do Ave possui uma estrutura trifásica, à qual é acrescentado um epílogo. Na introdução, ficamos a conhecer a maior parte da galeria de personagens. A narração cabe, nesta fase, a Orlando, o qual pretende contar uma história que “julga ser de amor” (mas tem dúvidas). É através de Orlando que somos introduzidos no quotidiano da família de Janinha.
O elemento crítico – uma vez que os outros narradores são neutros na emissão deopiniões ou juízos de valor – surge na segunda parte, pela voz humanizada da cadela Borboleta. Borboleta é como o narrador de Papalagui: é um ser exterior ao mundo humano, à cultura dos habitantes da Cidade dos Pássaros. É denunciadora das contradições do comportamento humano – e das pessoas com quem vive em particular. Borboleta possui o olhar mais observador e omnisciente da obra, precisamente por sair “fora dos estereótipos que os cegam parcialmente os homens e as mulheres.

O desenvolvimento da narrativa está a cargo de Virgínia, que vai compondo o volume de crónicas, à medida que decompõe, uma a uma, as personagens que habitam A Cidade e se vai deparando com os elos de ligação entre elas.

A capacidade de observação de Virgínia permite-lhe descrever cada movimento corporal, cada gesto, cada expressão facial, trejeitos musculares, olhares, com precisão clínica, denunciado quer a perspectiva da voz interior quer o significado ritual, enculturado, do mesmo comportamento, tal como fazem os antropólogos. O exemplo mais flagrante é a cena na casa de alterne descrita por Virgínia.

Na última Parte, que faz as vezes de epílogo, encaixam-se todas as peças do mesmo puzzlle, após o que tomamos consciência das ligações surpreendentes vindas do intrincado novelo que envolve as restantes personagens secundárias.

Estilo, Linguagem e Erotismo em Luísa Monteiro

A escrita de Luísa Monteiro estende-se por uma deslizante uma prosa poética, marcada pela linguagem onde impera o paradoxo, que se alia, por sua vez, a uma invulgar capacidade de causar consternação. O leitor sente-se surpreendido e provocado quase que de frase em frase. A mais evidente ousadia da Autora é a personificação atribuída à cadela Borboleta, a qual identifica e racionaliza comportamentos e elementos culturais, tece comparações envolvendo elementos do seu quotidiano com figuras do mundo literário, servindo-se delas para criticar os habitantes da sua casa. A introdução de uma cadela como narradora cria, mais uma vez, uma intertextualidade com a obra de, Virginia Woolf: Orlando como se vê na epígrafe explicativa do capítulo:

Se alguma dúvida houvesse
no entendimento humano,
a atitude dos veados e dos cães
bastaria para dissipá-la pois,
como se sabe, os animais
são muito melhores juízes que nós
em assuntos de carácter e identidade
.

Virgínia Woolf in Orlando

A linguagem e o discurso sofrem alterações consoante a origem social e o carácter das personagens: O Orlando e A Virgínia de Luísa Monteiro são educados, contidos, delicados com toda a gente. Raramente dizem algo de grosseiro. Mas a esmagadora maioria das personagens de As novas bruxas do Ave são identificadas pelo vocabulário e expressões rudes ou pelas atitudes agressivas como Nita ou Janinha. A esta última acresce também uma grande dose de imaturidade, ausência de independência económica. Quase todas as personagens femininas desta história têm muito poucas qualificações ou empregos qualificados (excento a cunhada de Janinha), o que acaba por colocá-las em situação vulnerável.

A cor é também simbólica em Luísa Monteiro. A presença de cores sombrias como o azul e o negro são muitas vezes indicadores de um carácter melancólico ou introspectivo como o de Virgínia. Ou então, associadas a uma personalidade destrutiva, como é o caso de Joana. O principal indício é o fogo azul-violáceo de uns olhos “cor de chama moribunda”. Joana ou Janinha, veste também, muitas vezes, de preto. O contraste em a cor de um céu sombrio do olhar, cabelos de fogo e o abismo do negro parecem insinuar uma personalidade com algo de misterioso, oculto, sinistro. Uns olhos de chama azul prontos a calcinar formas encantadoras, tecedoras de sortilégios das novas bruxas do Ave, que já não recorrem propriamente às mezinhas tradicionais.

A cena erótica protagonizada por Orlando e uma misteriosa rapariga nos primeiros capítulos adquire um teor fortemente realista sem, contudo, cair em eufemismos, lugares comuns ou, simplesmente, na vulgaridade. Tal como a tentativa de sedução de Virgínia levada a cabo por Clara, a dona de Borboleta. O discurso de Luísa Monteiro atinge o ponto de equilíbrio perfeito entre o despudor e o estilo literário. A obra é em si, toda ela, eivada de um forte teor realista guarnecido a prosa poética. No entanto, Luísa Monteiro nunca cai na tentação de usar as cenas de sexo como espectáculo. Por outro lado, a voz do narrador dá-nos sempre a perspectiva do cenário e das movimentações das personagens como se estivéssemos atrás de uma câmara de filmar de um dado ângulo para passar ao lado oposto do mesmo cenário quando muda o narrador.
As novas bruxas do Ave acaba por ser um original romance policial, como resultado da investigação de Virgínia Luís ao decidir desvendar os segredos da Cidade dos Pássaros e encontrar todo um submundo do crime, uma espécie de parasitismo, alimentado por sentimentos de vergonha e culpa, fruto de e uma cultura sexual baseada em padrões de comportamento obsoletos a servir de base a uma falsa moral e alimentar insuspeitados horrores.

A Cidade dos Pássaros é o lugar onde reina o materialismo em detrimento da lucidez e da valorização do saber. O valor do trabalho desaparece numa sociedade que vive de aparências. E o chauvinismo perece estar omnipresente em todas as gerações: na Cidade impera o domínio do género masculino, patente na linguagem rude, de teor sexual, a pressupor a submissão das mulheres e que está directamente ligado ao exercício do poder. O expoente máximo deste paradigma está contido na cena de violação de Virginia pela masculina Nita.

Um livro que incomoda e fascina. Tal como a proximidade do abismo. Petrificante, como o olhar da Medusa.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, June 18, 2010

"O Caderno" de José Saramago (Caminho, 2009)


Baseada no blogue homónimo do Autor, a obra nasce a partir do desafio lançado pelas pessoas afectivamente mais próximas de José Saramago, lançado durante o período de convalescença após o colapso sofrido em 2007.


Os textos deste diário on-line debruçam-se sobre acontecimentos da actualidade nacional e internacional, ocorridos entre Setembro de 2008 e Março de 2009.


A produção literária e o exercício da escrita desenrolam-se neste caso, numa vertente diferente da habitual constituindo uma estreia para o Autor que inicia com este “Caderno” os primeiros passos na blogosfera. A narrativa adquire assim a forma de um monólogo, ou melhor, um recurso de estilo que reflecte um diálogo imaginário com os leitores, adequando-se como uma luva à forma mais revolucionária de comunicação com público, ocorrida na última década.


Desta forma, as palavras chave presentes nos textos do blogue de José Saramago, transformadas em livro, cujos textos são, na quase totalidade constituídos por artigos de opinião, compreendem: uma visão crítica do capitalismo, quando assume a vertente predatória, assente na especulação financeira e no sangramento do s recursos económicos das famílias; na avidez que quando leva ao entesouramento sem ter em vista o investimento direccionado para o bem de todos ou, pelo menos, para a maioria dos cidadãos; Saramago ocupa-se ainda em conduzir a dissecação dos pontos débeis da economia do país e também a nível internacional ao expor contradições de teor geo-político, sobretudo no que toca à hipocrisia de alguns chefes de estado mais influentes, dirigindo as frases mais virulentas à questão do Próximo Oriente e ao teor da aliança político-económica entre os Estados Unidos e Israel. É também abordada a questão das fragilidades do sistema Democrático, sobretudo quando desvirtuada pela concentração excessiva de poder num único órgão governamental, salientando o caso de Itália e Berlusconi como um dos casos mais inquietantes da Europa.


José Saramago não deixa, também de frisar, num discurso muitas vezes imbuído de paixão indignada o problema da imigração clandestina na Europa e da forma como esta questão tem vindo a ser encarada por alguns chefes de estado europeus ao chamar a atenção para a crise de valores e para a crescente subvalorização do humanismo que grassa nas instituições nos dias de hoje, fruto da burocratização e da ênfase colocada no sistema judicial na letra da lei sem se reportar à sua essência – o espírito da lei –, que conduz a uma maior aproximação ao ideal de Justiça assente num sincretismo ideológico hegel-kantiano.


Aponta situações onde o primado do interesse e da practicidade permitem o triunfo do oportunismo traduzido em atitudes de “salve-se quem puder” cada vez mais presente no quotidiano e do individualismo excessivo daqueles de quem José Cardoso Pires dizia que “Só olham para o próprio umbigo” (in Lavagante). As preocupações de José Saramago centram-se assim na tendência crescente para a erradicação da palavra “ética” ou “moral” do léxico da maior parte dos cidadãos que leva a um dos muitos tipos de cegueira colectiva.


Os temas fortes, são o Direito à Liberdade de expressão, os direitos humanos, o prazer da escrita, as viagens e a divulgação dos livros, seus e não só, homenagem a escritores, poetas e cientistas que se destacam pelo contributo prestado à humanidade, sobretudo na questão da cidadania.


O teor da obra é, muitas vezes, virulento e impiedoso, no entanto está presente a lucidez decorrente da análise das situações caso a caso. Saramago não cai no erro de confundir George W. Bush com Barak Obama, tal como a posição que sustenta face à actuação do governo israelita na questão palestiniana, não toldar a visão acerca dos acontecimentos históricos ocorridos na Europa do século vinte, conseguindo distinguir na perfeição a geração do povo judeu contemporâneo de Irene Nemiróvsky face aos apoiantes da política levada a cabo na actualidade naquele país, de carácter expansionista, pela insanidade obsessiva em manter os territórios do estado judaico no tempo de Adriano.


Saramago não vem trazer a paz (essa é a missão do outro Prémio Nobel) mas a divisão de opiniões, assente na discussão e debate necessários num estado democrático onde somente deve ser proibida a existência de temas-tabu, a expulsar o obscurantismo e a ausência de espírito crítico ao assumir uma postura, para alguns arrogante, para muitos outros anti-conformista. Uma obra que expressa o desejo de lucidez a expulsar a cegueira de espírito, numa perspectiva, iluminista muito ao gosto de Voltaire, vertendo para o Século das Luzes para os nossos dias.
De Cláudia de Sousa Dias para orgialiteraria.com em 9 de Novembro de 2009

Saturday, June 12, 2010

"Venenos de Deus, Remédios do Diabo" de Mia Couto (Caminho)






Mia Couto é originário da província da Beira, em Moçambique, tendo acumulado ao longo de um vasto percurso profissional, as funções de professor, biólogo, escritor e jornalista. Está traduzido em diversas línguas e obteve, já, a nomeação pelo júri da Feira Internacional do Livro de Zimbabwé com a obra Terra Sonâmbula, como um dos melhores livros africanos do século XX.

Foi galardoado com o Prémio Vergílio Ferreira, 1999 pelo conjunto da obra, até então publicada, e com o Prémio União Latina de Literatura Românica 2007. Arrebatou ainda o Prémio Passo Fundo Zaffari e Bourbon da Literatura pelo romance O Outro Pé da Sereia, também em 2007.

Venenos de Deus, Remédios do Diabo é uma divertida sátira, como se subentende já a partir do trocadilho, implícito no título. Possui, no entanto, uma faceta dramática trágica, associada à fragilidade da situação social de que gozam as personagens femininas do romance, como é frequente nas estórias de Mia Couto. Outro tema recorrente na obra deste Autor é, também, a pobreza endémica, reflectida na ausência estrutural de oportunidades com particular incidência nos meios rurais, assim como um conjunto de circunstâncias às quais não estão alheios alguns costumes e tradições associados à submissão de um dos géneros pelo outro. Ou, simplesmente, a que os mais fortes esmaguem os mais fracos, independentemente do género a que pertençam. Para fazer face a este domínio despótico, há quem recorra à construção de uma complexa teia de mentiras e enganos, com vista à sobrevivência, uma missão quase impossível em meio hostil.

O Local da Acção – A Vila Cacimba

A pacata Vila Cacimba é governada pelo autarca Suacelência, que deseja exibir autoridade e prestígio social, isto é, distinguir-se dos habitantes da aldeia. A exibição de símbolos de poder é a característica mais marcante desta personagem, que começa por estar patente na forma como trata a mulher, Dona Esposinha, que parece mais uma governanta ou uma simples criada, pela forma como acata as ordens do marido, movendo-se sempre de forma furtiva de forma a ser notada o menos possível. Dona Esposinha aparece, na estória, vestida de cinzento o que contribui, também, para a sua invisibilidade, confundindo-se com as tonalidades da cacimba que envolve a aldeia.

O marido, Suacelência, gosta de exibir produtos caros, de preferência importados, como é o caso das bebidas: segura um copo de whisky, como símbolo de poder ou estatuto social. Também está interessado em adquirir produtos, não de higiene, mas que impeçam a transpiração porque “o suor é coisa de pobre”.

A rotina dos habitantes é, no entanto, agitada pela chegada de um médico, proveniente de Lisboa, no momento exacto em que a comunidade é afectada por um surto de meningite. A doença lança o pânico na população, habituada a atribuir a origem destes fenómenos a causas sobrenaturais.

O jovem médico Sidónio Rosa, apelidado pelos locais de Sidonho, chega a Vila Cacimba em busca da jovem Deolinda, uma beldade oriunda daquelas paragens, que conheceu em Lisboa, e instala-se na aldeia onde vive a família da jovem, Dona Munda e Bartolomeu Sozinho.

O casal, de personalidade controversa, acabará por roubar o protagonismo ao par romântico da história. Na realidade, Bartolomeu Sozinho é um idoso diabético, hipocondríaco e agorafóbico, responsável por algumas das tiradas mais hilariantes do romance. Bartolomeu delicia-nos com a sua loucura mansa e a tendência compulsiva em falar através de provérbios, pautando o pensamento ora pelo senso comum ora pelo absurdo, desconcertando os leitores e arrancando sonoras gargalhadas.

E Dona Munda afigura-se como a personagem mais complexa e misteriosa da trama, da qual tomamos consciência, logo no início, de possuir muitos segredos para revelar. A chave que ajuda a decifrar os enigmas com que se depara Sidónio Rosa, está implícita nas entrelinhas, do primeiro diálogo que entabula com dona Munda, a qual começa por debitar o seu infindável rosário de queixas e lamentos acerca do marido:

Diz que se ele é diabético eu sou diabólica.

Inicialmente, a fragilidade psíquica de Bartolomeu, que tal como o explorador anseia vaguear por terras distantes, retira-lhe a credibilidade, ao passo que a de dona Munda se vai aguentando, por algum tempo, camuflada no seu papel de esposa dedicada e sofrida de um velho marinheiro na reforma.

O mar é o habilidoso desenhador de ausências, diz.

De queixa em queixa, de contradição em contradição, Sidónio acaba por descobrir a verdade sobre as origens e o paradeiro da namorada.

Enclausurado no quarto, Bartolomeu sonha com a época distante em que era tripulante de um transatlântico, ainda durante a presença portuguesa em África. Anseia por partir novamente e ver o horizonte modificar-se. No fundo, Bartolomeu representa os desejos do povo da terra: a mudança para uma vida diferente e melhor. Onde o tédio seja a única ausência.

Para afugentar a sombra do vazio, imposta pela rotina dos dias sempre iguais, Bartolomeu sonha com um remédio, receitado pelos sussurros maliciosos do Eros: uma virgem que faça amor com ele e o cure de todos os males, do corpo e do espírito, segundo a crença popular. Bartolomeu possui um humor escatológico, picante. Mas do discurso que, à primeira vista, parece primar pelo absurdo, parecem emergir as verdades mais inquietantes do abismo das entrelinhas, nas frases crípticas que pronuncia.
No entanto, Bartolomeu mostra-se, também, um homem que não hesita em recorrer a pequenas chantagens ou extorsões com vista a obter pequenos benefícios. Nesta história não parece haver ninguém que não tenha cometido uma espécie de pecadilho, por pequeno que seja. Nem mesmo Sidónio. Nem sequer Deolinda se mostra a heroína perfeita dos romances.

Dona Munda parece demonstrar uma evidente dificuldade em aceitar o envelhecimento ou, pelo menos, a chegada dos primeiros sinais de perda da beleza e juventude com o fim da idade fértil, o que lhe provoca a sensação de que a vida lhe passa em vão.

Dona Munda não é uma mulher realizada. É por esse motivo que tenta obter, por todos os meios ao seu alcance, uma compensação. Não hesita em utilizar estratégias de sedução, chegando mesmo a competir com Deolinda, cuja beleza sempre lhe causou embaraço. Amante exímia e ardente, Dona Munda é, também, uma excelente actriz. No tempo em que ela e Bartolomeu eram ainda um casal, representava sem dificuldade, o papel das diversas amantes do marido, desdobrando a própria personalidade, num sem fim de heterónimos eróticos. A capacidade de efabular de Dona Munda não se restringe aos jogos sexuais com o marido; Dona Munda consegue iludir quase todas as personagens, excepto o próprio Bartolomeu.

Eu fui sempre as putas dele.

(…)

Me putifiquei tanto, Doutor.

Dona Munda está cansada de tratar de um marido doente, com problemas psíquicos. Além de alimentar rancores antigos, relacionados com infidelidades, sejam elas concretas ou imaginárias. Por isso, tentará convencer Sidónio a dar-lhe um “remédio venenoso”, uma espécie de veneno divino. Ou remédio diabólico.

Eu quero um remédio para ele ficar pior (…), pioríssimo.

Dona Munda quer mudar de vida, mas o marido vivo é um obstáculo. Urge, portanto, pôr cobro a uma situação na vida que não a satisfaz: o casamento. E sem o estigma social de mulher divorciada.

Não é que eu seja infeliz. Eu não sou é feliz.

Para Dona Munda “A ausência de felicidade e infelicidade é ainda mais penosa do que o sofrimento.”
A explicação para a sua atitude, baseia-se no facto de Que aquilo não era imoralidade nenhuma. No fundo, o marido já estava falecido, o remédio era só para ele, Bartolomeu, se lembrar que já estava morto.

No entanto, quando Bartolomeu casa com Munda, fá-lo fascinado pela sua beleza ignorando, durante muito tempo, os pequenos ódios que esta lhe dedica:

A beleza das mulheres (…) é como um desses dourados espinhos com que os bichos paralisam as suas vítimas.

É através de Bartolomeu e das suas palavras sibilinas que começamos a suspeitar que, em Vila Cacimba, as coisas não são exactamente aquilo que parecem:

Os segredos em Vila Cacimba não se enterram em cova. Ficam um buraco aberto como ferida que nunca fecha ou cicatriza.

Os habitantes de Vila Cacimba e a relação com o sobrenatural

A relação de Bartolomeu com a divindade não é pautada pela culpa e pelo medo, como na cultura judaico-cristã. É, antes, estabelecida quase num plano de igualdade, onde se presta o culto aos antepassados.

Com os deuses falamos. Rezar é sempre uma declaração de culpa. Começamos, submissos, por nos declararmos filhos dele. Mas na verdade o que queremos é ser Deus. É por isso que a reza é sempre um pedido de desculpas.

O Riso

O riso, em Mia Couto, parece agir como barreira contra a desigualdade e actuar como dissipador da desconfiança,uma vez que esses mesmos momentos de riso entre Sidónio e as restantes personagens são sempre de comunhão, aproximação entre elas.

Mas apesar desses momentos de riso partilhado, o português Sidónio Rosa, na sua eterna busca por Deolinda, sente-se um estrangeiro, um peixe fora de água. Contudo, não deixa de sentir o afecto que lhe dedicam as pessoas. Mesmo que esse afecto não seja totalmente desinteressado. É, também, frequente confundirem a sua actividade profissional com a do feiticeiro, como acontece com Suacelência ou Bartolomeu.

Medicamente-lhe lá um xarope que faça a minha Mundinha me aceitar

A vinda de Sidónio para a Vila Cacimba está directamente relacionada com a busca do amor, mas as circunstâncias ampliam a intimidade crescente com os habitantes locais, sobretudo com os parentes da jovem cuja ausência, associada a uma série de contradições e pormenores mal explicados, começam a intrigar bastante jovem médico. Mas para ele, Amar é estar sempre chegando, o que o impele a uma procura contínua. Acaba, no entanto, por descobrir a verdadeira natureza das relações dos Sozinhos e, também, de outras personagens com Deolinda.

Em casa dos Sozinho, o ambiente físico acompanha o ambiente psíquico, que é caracterizado pela dissimulação:

O escuro (cortinas corridas, luz apagada) era uma espécie de vestimenta para a casa e de mortalha para os espelhos.

A escuridão, está sempre associada à ideia de secretismo, ao desconhecido e impede que lembranças e a sombra dos mortos se arraste pela casa. A mesma escuridão envolve as relações de parentesco dos Sozinhos com Deolinda e o motivo do seu desaparecimento.

Subjacente à acção de Venenos de Deus, Remédios do Diabo, está a ideia de fatalismo, ligada à crença na impossibilidade de mudar as coisas pela via normal ou legal, o que leva à inércia generalizada e à busca de paliativos para fazer esquecer a situação.

A ideia é a de que Se Deus não ajuda, como recusar o auxílio do Diabo?

Uma crença baseada na impossibilidade de inverter uma situação que é fruto do ciclo vicioso da pobreza nas gentes da Vila Cacimba e encontra o expoente máximo nas atitudes de Bartolomeu, face às notícias relativas à dívida externa perante as quais decide destruir a televisão, julgando assim acabar com a dita dívida. Ignorar a situação, fingir que os problemas não existem é o que fazem todos, preocupando-se apenas com o quotidiano e o imediato. A solução, para esta maioria, consiste em falsear os dados, em efabular e delinear complicados esquemas de burla para conseguir vantagens, recorrendo mesmo à chantagem e à extorsão.

O Autarca local, Suacelência, é um verdadeiro senhor feudal: é o único que acumula riqueza, usufrui das mulheres da aldeia, trafica-as, usando o hotel local como camuflagem. É um homem que mascara a corrupção que pratica, da mesma forma que pretende disfarçar o suor sobre a pele. Também em relação à epidemia de meningite, Suacelência tenta fazer as coisas à sua maneira: chama Sidónio a sua casa para tratar com ele dos detalhes para debelar a doença. No entanto, está - ou pretende estar – convencido de que se trata de uma maldição ou, simplesmente, de um acto de bruxaria.

Sendo um homem místico, acredita no sobrenatural. Na ânsia de conhecer um pouco do “outro mundo” pede a Sidónio, a quem se dirige um pouco como a um feiticeiro tribal, um remédio para desmaiar, ao tentar encomendar-lhe ”um falecimento de duração temporária”. A mulher, Dona Esposinha comporta-se, como já foi referido, de forma oposta: é uma figura apagada vestida de forma anódina, de cinzento, de voz sumida, precocemente envelhecida, alguém em quem normalmente não se repara. Desempenha, no entanto, um papel fundamental no desenlace e na tomada de decisão final de Sidónio Rosa. Já muito próximo do desfecho da acção, Sidónio exclama, ao ver-se enredado em múltiplas e ambíguas verdades :

Tenho inveja da coruja que é capaz de ver de noite

Sidónio sente desejo de enxergar através das trevas e descortinar o que há de realidade dentre o caldo de mentiras que lhe cozinharam...

A chave do Romance

À medida que se avançamos no romance, apercebemo-nos de que, para algumas personagens, a verdade é apenas um veneno de Deus. A verdade coloca as coisas no seu devido lugar mas ilumina a realidade com cores que nem sempre são belas. E não resolve, no seu entender, problemas sociais ou apresenta soluções no sentido de melhorar a qualidade de vida dos que vivem na miséria. As oportunidades, simplesmente parecem não existir, nem há o mínimo esforço para serem criadas por parte das inúmeras Suacelências que possuem os meios para tal, mas que os utilizam, apenas e só, em proveito próprio. É por esta razão que algumas recorrem a expedientes pouco lícitos. Tecem, como aranhas humanas que acabam por ser, toda uma complexa teia de enganos para conseguir os seus intentos. Porque a verdade mostra-lhes apenas as cores tristes de uma realidade que é composta pela infelicidade.

É desta forma que Mia Couto descreve o ciclo vicioso de uma espécie de pobreza de espírito, que se manifesta através de uma total ausência de esperança ou fé na humanidade que parece afectar todos os níveis sócio-económicos. Sidónio Rosa apercebe-se do facto, o que acaba por levá-lo a partir, abandonando definitivamente a Vila Cacimba. Mas só após provar as flores do esquecimento, oferecidas pela (quase) invisível de tão discreta Dona Esposinha. O paliativo que faltava a Sidónio tem o apelativo nome de beijo da mulata: as flores brancas do esquecimento que crescem no cemitério dos soldados europeus sendo que um deles éo antepassado de Deolinda responsável pelo tom mulato-claro da sua pele, quando comparada com os restantes membros da família. As flores, oferecidas a Sidónio por dona Esposinha, contêm um opiáceo alucinogéneo que permite a Sidónio reencontrar aquilo que procura. No entanto, a volta à realidade o ponto de viragem para uma nova vida, deixando para trás o passado e a Vila Cacimba arquivado na gaveta da memória. Esquecimento e partida. E a melancolia que se segue, normalmente, ao fim de um grande amor.


Cláudia de Sousa Dias

Monday, June 07, 2010

"Uma Deusa na Bruma" de João Aguiar (ASA)

em jeito de homenagem...



Um romance histórico, passado em terras do Litoral Norte português, e uma escrita acessível, cativante. Para todas as idades.





Este é um livro que nos transporta para terras da Póvoa de Varzim, mais concretamente, na Cividade de Terroso, fazendo-nos recuar na Máquina do Tempo até ao séc.II A. C. A acção abrange a zona sul da antiga Calécia (entre Douro-e-Minho), ao longo da qual encontramos referência a personagens históricas como Viriato e Décimo Júnio Bruto.





João Aguiar mostra-nos a possibilidade de observarmos o quotidiano dos habitantes de Tarróbriga (Terroso), as suas relações comerciais e o respectivo sistema de estratificação social, assim como o papel das mulheres na sociedade da época, os conflitos e as rivalidades com as povoações vizinhas e, sobretudo, a religião e respectivos rituais, num estilo fluido e absorvente.





Uma Deusa na Bruma é uma obra que, para além de possuir o encantamento e a magia dos romances celtas de Marion Zimmer Bradley, nos permite visualizar a forma como a cultura dos povos pré-romanos da Península Ibérica colide com a chegada das Legiões de Bruto.





João Aguiar mostra aos leitores o legado ancestral que nos foi deixado por duas civilizações rivais, que coexistiram na mesma época e no mesmo território.





Um contributo que segundo o Autor, é igualmente válido e determinante, tanto do lado roamno como do lado lusitano:





...pela parte que me toca, o meu interesse afectivo reparte-se, igualmente, pelos dois mundos que, há mais de dois mil anos, se defrontaram em toda a Península Ibérica. Precisámos de ambos e de muitos outros, para sermos o que somos.





A não perder. Para ir de férias numa viagem no tempo.








Cláudia de Sousa Dias

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