“As Novas bruxas do Ave” de Luísa Monteiro (Campo das Letras)
O primeiro livro de ficção de Luísa Monteiro é um autêntico cocktail molotov lançado no coração de uma das regiões do País onde a mentalidade parece ainda reger-se pelos cânones do Estado Novo no tocante aos tabus relacionados com a sexualidade. Um facto que parece andar, paradoxalmente, de mãos dadas com o comércio do sexo, discretamente camuflado em “casas de alterne”.
As novas bruxas do Ave é uma obra que denuncia as marcas da actividade jornalística da Autora no tocante ao jornalismo de investigação e que são projectadas na criação literária cujo estilo orienta a narrativa que se caracteriza pela beleza e acuidade visual invulgares nas descrições e pela meticulosidade com que se sucedem os passos da investigação levada a cabo pela protagonista, o que denuncia, por si só, um profundo conhecimento de causa, dotando a personagem Virgínia Luís de verosimilhança o que lhe confere credibilidade. Luísa Monteiro constrói uma personagem que tem quase tanto de escritora de narrativas como de detective. A acção passa-se numa imaginária – ou não – Cidade dos Pássaros, situada algures no Vale do Ave.
Os dois narradores principais, contam a estória, cada qual pelo seu ponto de vista, que podemos observar como simétrico, um em relação ao outro, se imaginássemos a história filmada a partir de dois ângulos opostos e dentro do mesmo espaço ou raio de acção. Ambos são participantes e acabam por assumir um papel central na história, a qual se conjuga, no final, como dois pedaços do mesmo mapa, dando ao leitor a visão global dos acontecimentos. Virgínia e Orlando são as duas faces da mesma moeda. Orlando, a visão do fenómeno pelo lado masculino e Virgínia a co-protagonista o lado feminino. Os olhos de Orlando começam por se sentir atraídos pela figura misteriosa de Virgínia como o seu alter-ego feminino. Ou a visão feminina de Orlando do outro lado do espelho: dois gémeos, gerados por Luísa Monteiro, inspirada na sua musa de eleição, Virginia Woolf. Orlando resulta directamente de uma intertextualidade com a obra de Woolf mas Virgínia Luís poderia mesmo ser o alter-ego de Luísa Monteiro: ambas partilham a actividade compulsiva de escrever, desdobrando-se tanto na escrita criativa como na investigação jornalística. A protagonista, no caso da morte de uma prostituta adolescente da encantada Cidade dos Pássaros, vai aos locais interditos entrevistar pessoas envolvidas, conhecidos, informadores qualificados para colher elementos para a sua história. Virgínia é observada e avaliada por Orlando, o seu duplo, que a identifica como uma mulher enigmática, mas revestida de uma aura de romantismo:
Era uma mulher bonita, cabelos curtos e negros, triste e madura. Mas começa a inquietar-se face à insistência do meu olhar (…). Era a mulher das ancas largas, vestida de negro.
Curiosamente, na altura em que Orlando assume o protagonismo, Virgínia adopta uma posição perfeitamente marginal na trama, embora seja perceptível que está constantemente a executar o papel de observadora.
Orlando dá corpo à história que envolve a vida quotidiana e a forma de se projectar para o exterior de Janinha Labareda.
Joana era jovial, uns olhos muito azuis, quase violáceos, uma boca carnuda, rosto redondo, pálido, cabelos acobreados, pelos ombros, uma franja rara…
Os olhos azul-cinza com aura violeta e cabelos fulvos, dão a Janinha algo de tentador, vagamente sinistro, logo a partir da primeira cena, quando entabula diálogo com Orlando na sala de espera do Centro de Saúde. Um comportamento envolvente e insinuante que, no entanto, perece sempre manter uma grande reserva em relação à vida pessoal, principalmente no tocante à actividade do marido, fazem pensar num ser mefistofélico, ou de dupla personalidade. O tom melífluo que usa para cativar um estranho bem-apessoado como Orlando contrasta violentamente com a linguagem utilizada em contexto familiar e, sobretudo com o descaso em relação ao filho, impedem-na de cativar a simpatia dos leitores. Algo de sombrio paira à volta desta Janinha de olho de chama azul e cabelos a lembrar labaredas. Algo nela parece queimar. Ou, pelo menos, causar desconforto.
Janinha é oriunda de uma família humilde. A mãe é feirante, separada do marido alcoólico, vive para o trabalho arcando com a responsabilidade de criar cerca de uma dezena de filhos sozinha. Consegue juntar dinheiro para uma padaria e acaba por dar estabilidade aos seus como se pode observar na cena que descreve o almoço familiar em que Orlando figura como convidado. Janinha vive, por seu lado, para o lazer e a ostentação. Trata a mãe como empregada. Sob o olhar atento de Orlando, não consegue explicar a origem dum Audi 80 nem das roupas caras. Contudo nem a beleza nem a exibição de poder aquisitivo conseguem esconder uma educação rude. Os irmãos trabalham quase todos, embora a maior parte deles de forma precária.
Virgínia é, nesta fase, e sobretudo ao fora do ambiente desconcertante e, de certa forma opressivo da casa de Joana, alvo do interesse e curiosidade de Orlando, que se sente atraído pela sua discrição e melancolia. Mas a ela, por seu turno, interessam-lhe as estranhas movimentações das personagens femininas da aparentemente pacífica Cidade dos Pássaros: Virgínia Luís dedica-se a escrever as crónicas da cidade, cujos habitantes acabam por transformar-se nas suas personagens, colocadas no limbo entre a ficção e o “real”.
O tema explorado é o que terá o mais intenso sabor ao "proibido” numa sociedade sexualmente reprimida: a complexa vida sexual, oculta das mulheres da Cidade.
A prostituição que vai proliferando entre as adolescentes, ainda nos bancos da escola, para sustentar um estilo de vida muito acima das possibilidades financeiras reais é outro tema “quente”, explorado nas narrativas de Virgínia Luís.
As mulheres da Cidade dos Pássaros parecem camuflar a própria sexualidade manifesta de forma latente e oculta pela protecção social que dá o estatuto de “mulher casada”. Um secretismo que esconde apetites eróticos, considerados tabu pela cultura judaico-cristã. Mas o mesmo estado civil serve, por vezes, também, para esconder o fenómeno da prostituição no seio familiar, associada a fenómenos de proxenetismo/lenocínio.
Virgínia Luís vai puxando o fio que liga uma complicada teia, relacionada com o crime e o mundo paralelo do tráfico humano, após o aparecimento de uma adolescente, morta em circunstâncias suspeitas. O lado mais crítico da narrativa de Luísa Monteiro aparece durante o curto capítulo narrado por Borboleta, a cadela de uma das personagens mais superficiais do romance, mas que desempenha um papel fundamental na trama, aproxima-se muito do estilo narrativo desconcertante de Antonio Tabucchi.
A Estrutura da narrativa
A obra As novas bruxas do Ave possui uma estrutura trifásica, à qual é acrescentado um epílogo. Na introdução, ficamos a conhecer a maior parte da galeria de personagens. A narração cabe, nesta fase, a Orlando, o qual pretende contar uma história que “julga ser de amor” (mas tem dúvidas). É através de Orlando que somos introduzidos no quotidiano da família de Janinha.
O elemento crítico – uma vez que os outros narradores são neutros na emissão deopiniões ou juízos de valor – surge na segunda parte, pela voz humanizada da cadela Borboleta. Borboleta é como o narrador de Papalagui: é um ser exterior ao mundo humano, à cultura dos habitantes da Cidade dos Pássaros. É denunciadora das contradições do comportamento humano – e das pessoas com quem vive em particular. Borboleta possui o olhar mais observador e omnisciente da obra, precisamente por sair “fora dos estereótipos que os cegam parcialmente os homens e as mulheres.
O desenvolvimento da narrativa está a cargo de Virgínia, que vai compondo o volume de crónicas, à medida que decompõe, uma a uma, as personagens que habitam A Cidade e se vai deparando com os elos de ligação entre elas.
A capacidade de observação de Virgínia permite-lhe descrever cada movimento corporal, cada gesto, cada expressão facial, trejeitos musculares, olhares, com precisão clínica, denunciado quer a perspectiva da voz interior quer o significado ritual, enculturado, do mesmo comportamento, tal como fazem os antropólogos. O exemplo mais flagrante é a cena na casa de alterne descrita por Virgínia.
Na última Parte, que faz as vezes de epílogo, encaixam-se todas as peças do mesmo puzzlle, após o que tomamos consciência das ligações surpreendentes vindas do intrincado novelo que envolve as restantes personagens secundárias.
Estilo, Linguagem e Erotismo em Luísa Monteiro
A escrita de Luísa Monteiro estende-se por uma deslizante uma prosa poética, marcada pela linguagem onde impera o paradoxo, que se alia, por sua vez, a uma invulgar capacidade de causar consternação. O leitor sente-se surpreendido e provocado quase que de frase em frase. A mais evidente ousadia da Autora é a personificação atribuída à cadela Borboleta, a qual identifica e racionaliza comportamentos e elementos culturais, tece comparações envolvendo elementos do seu quotidiano com figuras do mundo literário, servindo-se delas para criticar os habitantes da sua casa. A introdução de uma cadela como narradora cria, mais uma vez, uma intertextualidade com a obra de, Virginia Woolf: Orlando como se vê na epígrafe explicativa do capítulo:
Se alguma dúvida houvesse
no entendimento humano,
a atitude dos veados e dos cães
bastaria para dissipá-la pois,
como se sabe, os animais
são muito melhores juízes que nós
em assuntos de carácter e identidade.
Virgínia Woolf in Orlando
A linguagem e o discurso sofrem alterações consoante a origem social e o carácter das personagens: O Orlando e A Virgínia de Luísa Monteiro são educados, contidos, delicados com toda a gente. Raramente dizem algo de grosseiro. Mas a esmagadora maioria das personagens de As novas bruxas do Ave são identificadas pelo vocabulário e expressões rudes ou pelas atitudes agressivas como Nita ou Janinha. A esta última acresce também uma grande dose de imaturidade, ausência de independência económica. Quase todas as personagens femininas desta história têm muito poucas qualificações ou empregos qualificados (excento a cunhada de Janinha), o que acaba por colocá-las em situação vulnerável.
A cor é também simbólica em Luísa Monteiro. A presença de cores sombrias como o azul e o negro são muitas vezes indicadores de um carácter melancólico ou introspectivo como o de Virgínia. Ou então, associadas a uma personalidade destrutiva, como é o caso de Joana. O principal indício é o fogo azul-violáceo de uns olhos “cor de chama moribunda”. Joana ou Janinha, veste também, muitas vezes, de preto. O contraste em a cor de um céu sombrio do olhar, cabelos de fogo e o abismo do negro parecem insinuar uma personalidade com algo de misterioso, oculto, sinistro. Uns olhos de chama azul prontos a calcinar formas encantadoras, tecedoras de sortilégios das novas bruxas do Ave, que já não recorrem propriamente às mezinhas tradicionais.
A cena erótica protagonizada por Orlando e uma misteriosa rapariga nos primeiros capítulos adquire um teor fortemente realista sem, contudo, cair em eufemismos, lugares comuns ou, simplesmente, na vulgaridade. Tal como a tentativa de sedução de Virgínia levada a cabo por Clara, a dona de Borboleta. O discurso de Luísa Monteiro atinge o ponto de equilíbrio perfeito entre o despudor e o estilo literário. A obra é em si, toda ela, eivada de um forte teor realista guarnecido a prosa poética. No entanto, Luísa Monteiro nunca cai na tentação de usar as cenas de sexo como espectáculo. Por outro lado, a voz do narrador dá-nos sempre a perspectiva do cenário e das movimentações das personagens como se estivéssemos atrás de uma câmara de filmar de um dado ângulo para passar ao lado oposto do mesmo cenário quando muda o narrador.
A Cidade dos Pássaros é o lugar onde reina o materialismo em detrimento da lucidez e da valorização do saber. O valor do trabalho desaparece numa sociedade que vive de aparências. E o chauvinismo perece estar omnipresente em todas as gerações: na Cidade impera o domínio do género masculino, patente na linguagem rude, de teor sexual, a pressupor a submissão das mulheres e que está directamente ligado ao exercício do poder. O expoente máximo deste paradigma está contido na cena de violação de Virginia pela masculina Nita.
Um livro que incomoda e fascina. Tal como a proximidade do abismo. Petrificante, como o olhar da Medusa.
Cláudia de Sousa Dias