“O Ingénuo” de Voltaire (Ulmeiro)
Tratando-se a presente obra de uma criação literária de uma das figuras de proa do Iluminismo, esta alegoria pretende caracterizar as relações da corte de Versailles, a corrupção da máquina burocrática do Estado e o abuso de poder das classes privilegiadas em relação àqueles que estão socialmente vulneráveis.
A obra é um autêntico libelo contra a falsa moral baseada numa hipocrisia pia e num claro etnocentrismo cultural e religioso, sublinhando a necessidade da delimitação das esferas de influência do poder da Igreja e do Estado. O Autor defende, também, o primado da experiência como base para o progresso científico, tecnológico e, consequentemente, económico e social, de uma nação, colocando a ciência e a religião em campos opostos.
O Ingénuo, no francês original “L’Ingenu” pronuncia-se de forma muito semelhante a “L’Ange Nu” – O Anjo Nu -, isto é a inocência ou a ingenuidade exposta ao cinismo alheio e às máscaras que vestem os rostos no dia-a-dia, de forma a ocultar a ausência de escrúpulos. A personagem do Ingénuo é o contraponto do homem como produto acabado a civilização, lapidado, socializado. É o minério ou pedra preciosa em bruto, por trabalhar, uma figura arquetípica, a representar o homem como produto da natureza à semelhança do “bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau.
O Ingénuo de Voltaire diz sempre o que pensa e pensa sempre o que diz, sobre todo e qualquer assunto seja ele sobre a religião, o amor, o casamento, a política e (ou) a progressiva desumanização do aparelho do Estado e das regras que norteiam a conduta dentro da sociedade civil.
Este “Ingénuo”, apesar da sua extrema juventude, possui a força física e metal de um Super-homem: age de forma impulsiva sem pensar nas consequências das suas atitudes, sem o menor traço de calculismo ou sentido de conveniências no que toca à livre expressão das suas opiniões. Como é óbvio, esta forma de agir acaba por causar, não raro, alguns dissabores àqueles que lhe são próximos. Ou prejudicá-lo se ambicionar seguir uma carreira, nas armas, nas leis ou mesmo eclesiástica.
Personagens e Trama
As duas primeiras figuras a surgir em cena são o Vigário de Kerkabon e a irmã que se julgam parentes do Ingénuo e tentam convencê-lo a converter-se ao catolicismo efazer com que abandone a educação de orientação protestante, imbuída do liberalismo anglo-saxónico.
Discutiu-se a multiplicidade das línguas e chegou-se à conclusão que, sem a Torre de Babel, toda a gente falaria Francês.
Ambos são ingenuamente etnocêntricos ao mostrar-se convencidos da superioridade da cultura da religião e nacionalidade francesas. O Ingénuo, em contrapartida é, sem o saber, um livre-pensador, sentindo-se muito mais próximo dos huguenotes franceses, simpatizantes do liberalismo inglês.
O Ingénuo torna-se leitor de Rabelais e Shakespeare, começa a apurar o sentido crítico e apercebe-se que, nos países anglo-saxónicos, as pessoas ligam mais a uma boa peça de teatro do seu grande mestre dramaturgo e a um plum pugdding do que ao Pentateuco. Mas , segundo os Kerkabon, essa é, se calhar, a razão pela qual nunca foram capazes de converter ninguém na América…
Estão certamente amaldiçoados por Deus e nó havemos de lhes tirar a Jamaica e a Virgínia antes que seja tarde demais…
Por outro lado, o temperamento explosivo do Ingénuo acaba por fazê-lo cair em desgraça e levá-lo à Bastilha, onde vai partilhará uma cela com um monge Jansenista…é atirado para um calabouço onde é deixado indefinidamente, caído no esquecimento. Durante o período da clausura, aproveita para se instruir, usufruindo da erudição do companheiro de cela. Aqui ,a história adquire os contornos das peripécias dos romances de Alexandre Dumas assemelhando-se o protagonista a um Conde de Monte Cristo, embora um pouco menos afortunado do que o prisioneiro do Castelo de If. O prisioneiro com qual partilha as horas intermináveis na prisão é um intelectual, um livre-pensador, crítico do regime despótico de Versailles e opositor do tentacular poder do clero.
Durante os intermináveis debates entre o Ingénuo e o seu parceiro, este envolve-se nos meandros da Filosofia, do Direito, do Estudo da Religião Comparada, tentando entender a explicação dada pelas diversas civilizações para a origem do universo.
Por toda a parte há aparições, oráculos, metamorfoses, sonhos, explicações sobre que assentam o destino dos maiores impérios e dos mais pequenos estados.
(…)
Gosto das fábulas dos filósofos, rio-me das das crianças e odeio as dos impostores.
O espírito pragmático e realista de Voltaire não se coíbe de mostrar que a inteligência não é suficiente para fazer sair um homem honesto – e contudo ingénuo – da prisão, nem de fazer face ao boicote social que lhe fazem. O Ingénuo só sai do cárcere mediante a intervenção da Menina de Saint Yves a qual não mede esforços para conseguir o homem que ama.
Voltaire serve-se desta personagem feminina para mostrar que para se conseguir algo é necessário que a pessoa esteja disposta a deixar-se corromper ou, na melhor das hipóteses a deixar vender um pouco da sua alma. Ou o corpo...
O Autor pretendia, com esta parábola/alegoria apontar o dedo à falsa virtude de uma classe de jovens ambiciosos que, para ascender socialmente, não olhavam a meios para atingir os seus fins, obtendo favores do alto funcionalismo da corte ou do próprio rei. Tratava-se de jovens normalmente medíocres ou de condição social pouco favorecida, por vezes mesmo duvidosa, que conseguiam, de forma inexplicável, uma ascensão vertiginosa, a qual muitas vezes se devi à influência – ou à beleza – das esposas, mães ou irmãs.
O livro é, todo ele, uma denúncia da falsa moral de uma classe dominante, com muito poucos escrúpulos, que se empenha em vestir a máscara de uma personalidade impoluta mas comportando-se de forma oposta em privado.
As mulheres são, em Voltaire, mostradas como fazendo parte de uma população particularmente vulnerável em, praticamente, todos os estratos sociais. Mas na construção do carácter das personagens femininas, o Autor fica-se pelos estereótipos: ou são figuras angélicas – como a Menina de Saint-Yves ou a Menina de Kerkabon – ou demoníacas como a cínica amiga da Menina de Saint-Yves, uma viúva nobre e falsamente amável, mas que se revela uma oportunista, para além de cortesã e alcoviteira.
Nas personagens masculinas voltairianas já é possível encontrar algumas nuances de carácter, ou tonalidades intermédias, como Mr. de Douange, um homem venal, mas ainda capaz de sentir remorsos, após verificar a extensão das consequências da sua falta de escrúpulos.
O estilo da escrita de Voltaire é elaborado, recorrendo a várias figuras de estilo como a já mencionada alegoria e, também, à hipérbole, embora tropecemos com bastante frequência nos eufemismos, como é típico na escrita do século XVIII, cheia de preciosismos, a entrar no estilo barroco, à semelhança do que acontece noutros domínios da Arte.
As personagens são, todas elas, estilizadas, algumas a incarnar tipos sociais específicos com os seus vícios e preconceitos, tais como o bailio e o filho, dos quais se evidencia a estupidez e a boçalidade; os Kerkabon são, também, produto da sociedade em que vivem, das suas crenças, apesar do fundo genuíno e da sua simplicidade, duas características herdadas, também, pelo Ingénuo. A menina de Saint-Yves representa a bondade e o altruísmo, enquanto o pai, no extremo oposto, é o vivo retrato da tirania. O prisioneiro jansenista representa a racionalidade e a inteligência enquanto a venalidade e a luxúria estão concentrados em Mr. de Douange, a contrastar com a integridade do Ingénuo.
Um verdadeiro desfile de arquétipos, burilados por um dos pilares do pensamento Europeu da Idade Moderna.
Cláudia de Sousa Dias