“Kafka, à Beira-mar” de Haruki Murakami (Casa das Letras)
Tradução de Maria João Lourenço
Haruki Murakami nasceu em
Quioto, em 1949 e cresceu em Kobe, uma cidade portuária, tendo
vivido a sua juventude num ambiente multi-cultural, influenciado por
autores de origem muito variada, que vão desde a literatura
tradicional japonesa, incluindo as lendas e poesia antiga oriental,
passando pelos clássicos gregos e latinos, até à literatura da
Mitteleuropa, onde Franz Kafka ocupa lugar de destaque,
conforme mostra o título da obra. Estudou Teatro Grego até 1979 e
foi distinguido com o Prémio Noma pela obra Em Busca do
Carneiro Selvagem; com o Prémio Yomiuri por Crónica
do Pássaro de Corda e ainda com o Prémio Tanizaki por
Hard-boiled Wonderland and tjhe End of the World.
Já Kafka, à Beira-mar é
um autêntico patchwork de intertextualidades, a começar pelo
próprio nome do protagonista, Kafka Tamura, admirador incondicional
daquele escritor checo, autor de A Metamorfose e de O
Processo.
A personagem principal do romance é um
adolescente de quinze anos, Kafka Tamura, que se vê envolvido numa
teia de acontecimentos surreais sem que o leitor saiba ao certo se
parte dos estranhos acontecimentos da trama são ou não produto da
imaginação exacerbada do jovem, cuja mente oscila entre o estado de
vigília e o mundo onírico do sonho, seja este uma manifestação
dentro do sono propriamente dito ou fora dele. Por exemplo, Kafka
dialoga com alguém que aparenta ser uma espécie de desdobramento de
si mesmo – o “Corvo”. E a palavra “corvo” é o verdadeiro
significado correspondente à palavra “Kafka”, na língua checa ,
sendo que o animal que representa é, também o mensageiro do deus
Odin, nas lendas antigas da mitologia nórdica.
Já a razão da fuga deste Kafka
nipónico da casa paterna, parece residir nos meandros tortuosos da
trama O Castelo ou de O Processo pelo que as
intertextualidades e alusões àquele Autor se multiplicam à medida
que avançamos na história. Ao mesmo tempo, este enredo de Murakami
ensarilha-se também com a inquietante trama de Édipo Rei de
Sófocles no tocante às motivações profundas que estão por
detrás de algumas das mais desconcertantes atitudes do protagonista.
São, também, desenvolvidos uma série
de percursos paralelos com várias narrativas secundárias, cujos
protagonistas por vezes nem chegam a conhecer-se ou a coincidir no
mesmo local mas encontram-se apenas numa espécie de quarta dimensão.
É o caso de Kafka e Nakata, o ancião que fala com gatos por
telepatia. Na verdade, Tamura e Nakata poderiam perfeitamente ser a
mesma personagem, mas vivendo em tempos diferentes, já que na
estória de Murakami as fronteiras de espaço e tempo aparecem como
que diluídas.
Tamura é um jovem que decide sair de
casa aos quinze anos, motivado por razões obscuras, perseguido por
aquilo que se poderia chamar de “maldição ou síndrome de Édipo”.
Refugia-se numa cidade, semelhante àquela em onde viveu o Autor
desta história, conseguindo um emprego como assistente de
bibliotecário numa Fundação privada, graças à simpatia da
directora, Madame Saeki.
Pouco depois de chegar ao novo poiso,
assistimos àquilo que pode ser o desdobramento da personalidade de
Tamura, o qual começa a dialogar com uma entidade chamada “Corvo”,
ao que tudo indica o seu alter-ego. É então que nos apercebemos da
sua relação conturbada com o pai, um artista plástico, morto em
circunstância misteriosas, do estanho desaparecimento da mãe e da
irmã, as quais irá procurar em todas as mulheres que conhecer. A
história de Kafka tem um único objectivo: provar, tal como na
história de Édipo Rei que todos os segredos são malignos.
Por outro lado, há vários indícios
de que a família de Kafka Tamura seja uma família disfuncional. O
primeiro, é a ausência de objectos que apelem à memória da mãe e
da irmã tais como: ausência de fotografias, que o pai fez questão
de eliminar, de forma a apagá-las da memória, limpando, deste modo,
os vestígios de ambas por toda a casa.
Paralelamente a esta trama principal, o
discurso do Corvo é assinalado graficamente a negrito e é
caracterizado pelo conteúdo onírico que expõe a linha caótica do
pensamento, sem preocupação com constrições de coerência
racional. Os diálogos/monólogos do Corvo parecem revelar impressões
vindas das profundezas do inconsciente sobretudo quando se refere ao
“lago de águas negras e turvas” ao qual o ego de Tamura tenta
fugir, de forma a “subir à superfície” para respirar.
O teu coração é como um grande
rio depois de uma forte chuvada que transborda invadindo as margens.
Todas as pistas de sinalização que em tempos existiram no local
desapareceram, incendiadas e arrastadas pela corrente.
De todas as vezes que observamos
notícias, uma paisagem devastada pela força da corrente como essa,
repetes a ti próprio: é exactamente assim que o teu coração se
sente.
(Corvo)
Há também um narrador heterodiegético
que se propõe narrar directamente as acções de Kafka durante o
estado de vigília:
Antes de fugir de casa, passou mãos
e cara por água, aparou as unhas, lavou as orelhas e escovou os
dentes.
e logo a seguir regressa a um monólogo
interior do próprio Kafka de cariz reflexivo:
Há nisto um presságio, um menino
interior que serve para me programar.
Tamura sente-se assim programado,
manietado por uma vontade que lhe é alheia, consciente de lhe ser
incutido um conjunto de regras e rituais que visam a sua
socialização. Não nos esqueçamos que a adolescência é a fase
onde todas estas assuntos são postos em causa. E um dos motivos
principais que impelem à sua fuga é precisamente o desejo de
escapar a esta tentativa de robotização e à preservação da sua
verdadeira identidade que é, ao que tudo indica o Kafka-Corvo.
Assim, a sociedade é, também, segundo
o Corvo um mecanismo interior que serve para te programar.
O Corvo é, por sua vez, a parte do ego
de Kafka que não é programável.
Mas o que é mais estranho é que é o
mesmo Corvo quem presencia os acontecimentos vividos por Nakata, meio
século antes, em plena segunda Guerra Mundial e que lhe deixaram
marcas traumáticas que se prolongaram pelas décadas seguintes. É
como se Kafka através do Corvo ( que é o seu inconsciente), tivesse
acesso a épocas passadas por uma espécie de portal que, através da
alteração do estado de consciência, lhe permite transpor as
fronteiras espácio-temporais e entre os mundos. O Corvo, que
presencia o terrível episódio vivido por Nakata na floresta,
vagueia como um fantasma ou um espírito que atravessa as fronteiras
do espaço e do tempo, à semelhança do que acontecia das antigas
lendas orientais. O Corvo é, deste modo, o elo de ligação, a
ponte, entre a narrativa de Tamura e a de Nakata, unindo assim as
duas as histórias, figurando na primeira como participante e, na
segunda, como mero observador, sem que no entanto os protagonistas
jamais se encontrem.
A história de Nakata é, ainda, a que
contém mais episódios de teor surrealista, a começar pela cena do
desmaio na floresta durante o bombardeio americano durante a II
Guerra Mundial, a partir da qual uma subsequente amnésia abre a
porta para os acontecimentos aparentemente inexplicáveis que se
seguem: a chuva de peixes, o contacto com Johnny Walker, figura como
que saída de um filme de terror e cujo passatempo preferido é
torturar e assassinar gatos – um estripador que parece uma mistura
do Jocker de Batman e de uma personagem de um filme de Tim Burton. Os
diálogos e desempenho humanizado das personagens felinas que
contracenam com Nakata – Otsko, Mimi e Goma – que aparecem
estranhamente personificados como se falassem telepaticamente com
Nakata facilitam a ligação entre o mundo humano e o mundo animal.
Nakata é, precisamente, a personagem que está na fronteira entre os
vários mundos, figurando na trama como o guardião dos portal que os
divide.
Voltando a Kafka Tamura, após chegar à
nova cidade, este trava conhecimento com várias outras personagens
todas elas figuras femininas, dispostas a ajudá-lo. Uma delas é
Oshima, jovem andrógina e de sexualidade ambígua, que trabalha na
biblioteca. Sendo Oshima e Kafka amantes da literatura, ambos
encontram naquele edifício, o seu pequeno paraíso. Dos seus
diálogos surgem a maior parte das referência literárias do
romance.
Na solidão da cabana, cedida a Kafka
por Oshima para um fim-de-semana, no interior da mesma floresta onde
tiveram lugar os estranhos acontecimentos com Nakata meio século
antes, Tamura descobre um intrigante volume sobre as atrocidades
cometidas na Segunda Guerra Mundial. As profundezas daquela floresta
parecem estar habitadas pelos espíritos de outros tempos, onde a
noite parece facilitar as suas andanças, de folha em folha, de ramo
em ramo e influenciam largamente a imaginação do jovem. Por outro
lado, o livro que fascina Kafka revela-lhe que naquele lugar
ocorreram alguns estranhos e insólitos eventos que envolveram
precisamente a figura de Nakata – o qual já conhecemos por
intermédio do Corvo, que tem a capacidade de viajar no tempo – nos
anos 1940, mas por outra perspectiva. A dada altura assistimos, com a
leitura de Kafka, mais uma vez ao esbater das fronteiras do tempo,
dado que se personagens de épocas diferentes se encontram num lugar
fora do tempo, uma piscadela de olho por parte de autor ao pensamento
do filósofo alemão Martin Heidegger. Os episódios surrealistas
sucedem-se também aqui, despertando em Kafka uma série de visões
de outros tempos, contactos com figuras espectrais que habitam
aquelas paragens algumas décadas antes, criando aqui uma forte
intertextualidade com A História de Genji de Shikishu,
escritora que viveu entre os séculos X-XI.
A floresta, sempre que Kafka nela
mergulha, parece querer engoli-lo. Trata-se de um lugar de perigo,
tal como nos contos de fadas europeus compilados pelos Irmãos
Grimm(a História de Hansel e Gretel e o Pequeno
Polegar).
Entretanto, o Autor recorre a uma
segunda analepse, um recuo desta vez mais breve, até 1972, que vem
contextualizar o trauma de Nakata, que é sonhado por Kafka-Corvo).
Nota-se um paralelismo entre o facto de
Tamura se perder na floresta onde habitam as sombras do passado – e
também o passado de Tamura é nebuloso – e o sucedido com Nakata
que, no presente perde no meio da selva urbana. Ao perder-se no
labirinto da cidade, Nakata é conduzido por um cão de aspecto
sinistro até ao antro de Johnny Walker, o estripador de gatos. O
coleccionador de almas felinas lembra o assassino de O Perfume
de Patrick Süskind, um ser de alma demoníaca, dasapiedada e
egoísta, gosta de matar para se apoderar da alma dos seres que
destrói. O assassínio assume, desta perspectiva, a forma de um
acto de posse.
Enquanto isso, Tamura, na cabana da
floresta, prossegue a exploração da estante de livros daquele lugar
e começa a ler o processo de extermínio dos judeus de Auschwitz da
autoria de Eischmann. E, a partir daqui, não podemos deixar de
comparar ambas as situações, encontrando nelas o mesmo desrespeito
pela Vida. A dissertação de Eischmann fala de culpa e de
responsabilidade individual, de memória e esquecimento; onde a falta
de memória apaga a culpa, levando inevitavelmente à
desresponsabilização. Na verdade, ambas as personagens de debatem
com este binómio – esquecimento e memória – durante todo o
romance. Entre a memória de Eischmann, a de Tamura e a de Nakata há
algumas afinidades: enquanto Eischmann é apanhado no sonho
monstruoso de Hitler, Nakata é apanhado no horrendo pesadelo de
Tamura e como que comandado por ele, já que o adolescente sonha com
o horror presenciado por Nakata, sendo obrigado, pela própria
consciência, a tomar uma atitude.
Segundo o Corvo, Tamura é perseguido
pelos monstros de Genji. É como se vivesse assolado pelas fúrias da
mitologia clássica o que faz suspeitar também de um crime, mesmo
que cometido só em pensamento, obrigando-o a debater-se com os
demónios da culpa.
Quando estás acordado sempre
podes suprimir a imaginação. Mas não podes eliminar os sonhos.
(Corvo)
É precisamente durante o sonho de
Kafka, que surge o Corvo, a abrir a porta para o maravilhoso e o
horrível nas profundezas da mente de Tamura.
No estado de vigília, há também a
presença discreta e sedutora de Madame Saeki , uma mulher romântica
de quase cinquenta anos. Kafka sente-se sexualmente atraído por ela,
mas pensa que pode ser a sua mãe desaparecida. Então, acaba por
transportá-la, também a ela, para o mundo dos sonhos, lugar onde se
podem realizar todas as fantasias mesmo que proibidas.
Enquanto isso, Nakata está na cidade
de Nakano a viver o sonho de Kafka como se fosse convocado por este.
Depois, apanha boleia de um camionista para Shikoku, lugar onde Kafka
se encontra a viver.
Camionista e passageiro formam um
estranho e dissemelhante par fazendo lembrar os dois protagonistas de
Dom Quixote de Miguel Cervantes, pelo contraste entre o idealismo de
Nakata (Dom Quixote) e do materialismo do camionista (Sancho Pança).
Os dois, entretanto separam-se seguindo
caminhos diferentes e ficamos a saber que o pai de Tamura foi
assassinado exactamente da mesma forma que Johnny Walker. E o mais
curioso de tudo é que ficamos a sabê-lo precisamente na altura em
que Tamura lê Eichmann e recorda o pesadelo de Johnny Walker, dos
gatos e Nakata.
Haruki Murakami joga aqui com
uma série de coincidências que podem na verdade não o ser, abrindo
um buraco sem fundo na memória e na mente dos dois principais
intervenientes na história, com o objectivo de deixar o leitor na
incerteza quanto ao que aconteceu, permitindo-lhe considerar várias
hipóteses. Mas a ordem dos acontecimentos e a destrinça entre a
imaginação e a realidade serão sempre um quebra-cabeças insolúvel
para o leitor. Há, assim, uma série de enigmas na história que nos
deixam uma incerteza permanente. Entre os quais: quem é Johnny
Walker, que parece saído da mais terrível ficção americana, mas
que se parece também a uma imagem modificada do pai de Tamura?;
Nakata é uma personagem real e contemporânea de Kafka embora largas
décadas mais velho, ou simplesmente produto da imaginação de
Tamura?; Quem matou Johnny Walker? Nakata ou Tamura no seu sonho de
horror, e neste caso seria Nakata apenas uma testemunha do sucedido?.
O que é indubitável aqui é, sem dúvida, a beleza da prosa, sem
deixar de salientar que estamos a ler apenas aquilo que ficou da
tradução sem o ritmo e a musicalidade ou, mesmo, os jogos
semânticos ou fonéticos da língua original. Mas ficam as imagens,
a reflexão sobre os valores, a necessidade de evasão e ajustamento
a um mundo ou de um mundo opressivo com vista a pensar um universo
melhor, alternativo, onde as relações entre humanos e entre humanos
e não humanos façam sentido.
A influência do surrealismo na obra de
Murakami em particular em Kafka à beira-mar
manifesta-se em episódios como a chuva de sardinhas e cavalas e no
bailado de sombras e espíritos na floresta, ou o mergulho de Kafka
no poço, que pode estar relacionado com o modelo teórico
psicanalista de Freud e Jung relativamente à Teoria do Inconsciente.
Esta corrente de pensamento pode ter sido decisiva para a construção
da personagem Nakata cuja afasia pós-traumática lhe causa algumas
limitações em termos cognitivos, mas que é compensada com outros
talentos e habilidades. A sua simplicidade não o deixa, no entanto,
rentabilizar algumas capacidades extraordinárias como o domínio de
algumas técnicas de medicina oriental, tornando-o um ser frágil de
de certa forma dependente. O desfecho desta personagem parece
estranho ou insólito à primeira vista, mas acaba por fazer sentido,
na medida em que o seu papel é trazer de volta o equilíbrio à vida
Kafka Tamura.
Saeki, a
bibliotecária é também uma personagem misteriosa que encontra em
Tamura reminiscências de uma antigo amante na juventude para quem
escrevera a canção “Kafka à beira-mar”. Trata-se de uma
personagem que passa por vários estágios ao longo do romance, dos
quais temos conhecimento pelos frequentes recursos à analepse pelo
autor. Saeki vive uma história de amor clássica na juventude,
dramática, com o toque da tragicidade dos clássicos gregos. À
primeira vista, parece que a sua história e a de Tamura se encaixam,
mas há falhas, apesar de o Autor nos apontar algumas falsas pistas
no sentido de levar o leitor a pensar que o passado de Saeki e Tamura
estão ligados.
O curso do romance
sofre várias inflexões sendo que de romance literário acaba por
transformar-se em policial. A chave para a sua decifração poderá
estar na mente de Tamura o leitor poderá lá chegar quando se fala
na incursão deste no labirinto da floresta que em tudo se assemelha
à incursão de Ulisses no Hades, na Odisseia. A floresta também se
assemelha a uma viagem pelo inconsciente do próprio Tamura, que
encerra em si uma espécie de armadilha. Kafka corre o risco de aí
ficar aprisionado sem conseguir regressar ao mundo do consciente, à
realidade. O mundo do sonho, do inconsciente e das ilusões é
tortuoso e contraditório, contendo em si mesmo o germe da paranóia.
Quanto mais
se pensa nas ilusões, mais elas crescem dentro de nós e ganha
forma. E deixam de pertencer ao reino das ilusões.
O desfecho da
personagem Nakata é uma forma de alegoria ou de uma metáfora,
incarnada na Serpente, guardiã da vida e da morte. A libertação de
Kafka e o regresso da floresta coincidem com o fim de Nakata. A
personalidade de Kafka desfragmenta-se e assume o seu verdadeiro eu
como resume as seguintes palavras:
O rapaz chamado Corvo voou
lentamente em grandes círculos por sobre a floresta.
Depois de Nakata é
ao amigo Hoshino Takagochi a, o camionista quem cabe a missão de
falar, entender e comunicar com os gatos...
Kafka regressa a
casa – à biblioteca – após experimentar o sentimento de perda.
Mas entretanto, tornou-se um homem.
Cláudia de Sousa
Dias
Fevereiro de 2012 –
02.02.2013