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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, February 12, 2013

“Kafka, à Beira-mar” de Haruki Murakami (Casa das Letras)



Tradução de Maria João Lourenço

Haruki Murakami nasceu em Quioto, em 1949 e cresceu em Kobe, uma cidade portuária, tendo vivido a sua juventude num ambiente multi-cultural, influenciado por autores de origem muito variada, que vão desde a literatura tradicional japonesa, incluindo as lendas e poesia antiga oriental, passando pelos clássicos gregos e latinos, até à literatura da Mitteleuropa, onde Franz Kafka ocupa lugar de destaque, conforme mostra o título da obra. Estudou Teatro Grego até 1979 e foi distinguido com o Prémio Noma pela obra Em Busca do Carneiro Selvagem; com o Prémio Yomiuri por Crónica do Pássaro de Corda e ainda com o Prémio Tanizaki por Hard-boiled Wonderland and tjhe End of the World.

Kafka, à Beira-mar é um autêntico patchwork de intertextualidades, a começar pelo próprio nome do protagonista, Kafka Tamura, admirador incondicional daquele escritor checo, autor de A Metamorfose e de O Processo.

A personagem principal do romance é um adolescente de quinze anos, Kafka Tamura, que se vê envolvido numa teia de acontecimentos surreais sem que o leitor saiba ao certo se parte dos estranhos acontecimentos da trama são ou não produto da imaginação exacerbada do jovem, cuja mente oscila entre o estado de vigília e o mundo onírico do sonho, seja este uma manifestação dentro do sono propriamente dito ou fora dele. Por exemplo, Kafka dialoga com alguém que aparenta ser uma espécie de desdobramento de si mesmo – o “Corvo”. E a palavra “corvo” é o verdadeiro significado correspondente à palavra “Kafka”, na língua checa , sendo que o animal que representa é, também o mensageiro do deus Odin, nas lendas antigas da mitologia nórdica.

Já a razão da fuga deste Kafka nipónico da casa paterna, parece residir nos meandros tortuosos da trama O Castelo ou de O Processo pelo que as intertextualidades e alusões àquele Autor se multiplicam à medida que avançamos na história. Ao mesmo tempo, este enredo de Murakami ensarilha-se também com a inquietante trama de Édipo Rei de Sófocles no tocante às motivações profundas que estão por detrás de algumas das mais desconcertantes atitudes do protagonista.

São, também, desenvolvidos uma série de percursos paralelos com várias narrativas secundárias, cujos protagonistas por vezes nem chegam a conhecer-se ou a coincidir no mesmo local mas encontram-se apenas numa espécie de quarta dimensão. É o caso de Kafka e Nakata, o ancião que fala com gatos por telepatia. Na verdade, Tamura e Nakata poderiam perfeitamente ser a mesma personagem, mas vivendo em tempos diferentes, já que na estória de Murakami as fronteiras de espaço e tempo aparecem como que diluídas.

Tamura é um jovem que decide sair de casa aos quinze anos, motivado por razões obscuras, perseguido por aquilo que se poderia chamar de “maldição ou síndrome de Édipo”. Refugia-se numa cidade, semelhante àquela em onde viveu o Autor desta história, conseguindo um emprego como assistente de bibliotecário numa Fundação privada, graças à simpatia da directora, Madame Saeki.

Pouco depois de chegar ao novo poiso, assistimos àquilo que pode ser o desdobramento da personalidade de Tamura, o qual começa a dialogar com uma entidade chamada “Corvo”, ao que tudo indica o seu alter-ego. É então que nos apercebemos da sua relação conturbada com o pai, um artista plástico, morto em circunstância misteriosas, do estanho desaparecimento da mãe e da irmã, as quais irá procurar em todas as mulheres que conhecer. A história de Kafka tem um único objectivo: provar, tal como na história de Édipo Rei que todos os segredos são malignos.

Por outro lado, há vários indícios de que a família de Kafka Tamura seja uma família disfuncional. O primeiro, é a ausência de objectos que apelem à memória da mãe e da irmã tais como: ausência de fotografias, que o pai fez questão de eliminar, de forma a apagá-las da memória, limpando, deste modo, os vestígios de ambas por toda a casa.

Paralelamente a esta trama principal, o discurso do Corvo é assinalado graficamente a negrito e é caracterizado pelo conteúdo onírico que expõe a linha caótica do pensamento, sem preocupação com constrições de coerência racional. Os diálogos/monólogos do Corvo parecem revelar impressões vindas das profundezas do inconsciente sobretudo quando se refere ao “lago de águas negras e turvas” ao qual o ego de Tamura tenta fugir, de forma a “subir à superfície” para respirar.

O teu coração é como um grande rio depois de uma forte chuvada que transborda invadindo as margens. Todas as pistas de sinalização que em tempos existiram no local desapareceram, incendiadas e arrastadas pela corrente.
De todas as vezes que observamos notícias, uma paisagem devastada pela força da corrente como essa, repetes a ti próprio: é exactamente assim que o teu coração se sente.

(Corvo)

Há também um narrador heterodiegético que se propõe narrar directamente as acções de Kafka durante o estado de vigília:

Antes de fugir de casa, passou mãos e cara por água, aparou as unhas, lavou as orelhas e escovou os dentes.

e logo a seguir regressa a um monólogo interior do próprio Kafka de cariz reflexivo:

Há nisto um presságio, um menino interior que serve para me programar.

Tamura sente-se assim programado, manietado por uma vontade que lhe é alheia, consciente de lhe ser incutido um conjunto de regras e rituais que visam a sua socialização. Não nos esqueçamos que a adolescência é a fase onde todas estas assuntos são postos em causa. E um dos motivos principais que impelem à sua fuga é precisamente o desejo de escapar a esta tentativa de robotização e à preservação da sua verdadeira identidade que é, ao que tudo indica o Kafka-Corvo.

Assim, a sociedade é, também, segundo o Corvo um mecanismo interior que serve para te programar.

O Corvo é, por sua vez, a parte do ego de Kafka que não é programável.

Mas o que é mais estranho é que é o mesmo Corvo quem presencia os acontecimentos vividos por Nakata, meio século antes, em plena segunda Guerra Mundial e que lhe deixaram marcas traumáticas que se prolongaram pelas décadas seguintes. É como se Kafka através do Corvo ( que é o seu inconsciente), tivesse acesso a épocas passadas por uma espécie de portal que, através da alteração do estado de consciência, lhe permite transpor as fronteiras espácio-temporais e entre os mundos. O Corvo, que presencia o terrível episódio vivido por Nakata na floresta, vagueia como um fantasma ou um espírito que atravessa as fronteiras do espaço e do tempo, à semelhança do que acontecia das antigas lendas orientais. O Corvo é, deste modo, o elo de ligação, a ponte, entre a narrativa de Tamura e a de Nakata, unindo assim as duas as histórias, figurando na primeira como participante e, na segunda, como mero observador, sem que no entanto os protagonistas jamais se encontrem.

A história de Nakata é, ainda, a que contém mais episódios de teor surrealista, a começar pela cena do desmaio na floresta durante o bombardeio americano durante a II Guerra Mundial, a partir da qual uma subsequente amnésia abre a porta para os acontecimentos aparentemente inexplicáveis que se seguem: a chuva de peixes, o contacto com Johnny Walker, figura como que saída de um filme de terror e cujo passatempo preferido é torturar e assassinar gatos – um estripador que parece uma mistura do Jocker de Batman e de uma personagem de um filme de Tim Burton. Os diálogos e desempenho humanizado das personagens felinas que contracenam com Nakata – Otsko, Mimi e Goma – que aparecem estranhamente personificados como se falassem telepaticamente com Nakata facilitam a ligação entre o mundo humano e o mundo animal. Nakata é, precisamente, a personagem que está na fronteira entre os vários mundos, figurando na trama como o guardião dos portal que os divide.

Voltando a Kafka Tamura, após chegar à nova cidade, este trava conhecimento com várias outras personagens todas elas figuras femininas, dispostas a ajudá-lo. Uma delas é Oshima, jovem andrógina e de sexualidade ambígua, que trabalha na biblioteca. Sendo Oshima e Kafka amantes da literatura, ambos encontram naquele edifício, o seu pequeno paraíso. Dos seus diálogos surgem a maior parte das referência literárias do romance.

Na solidão da cabana, cedida a Kafka por Oshima para um fim-de-semana, no interior da mesma floresta onde tiveram lugar os estranhos acontecimentos com Nakata meio século antes, Tamura descobre um intrigante volume sobre as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial. As profundezas daquela floresta parecem estar habitadas pelos espíritos de outros tempos, onde a noite parece facilitar as suas andanças, de folha em folha, de ramo em ramo e influenciam largamente a imaginação do jovem. Por outro lado, o livro que fascina Kafka revela-lhe que naquele lugar ocorreram alguns estranhos e insólitos eventos que envolveram precisamente a figura de Nakata – o qual já conhecemos por intermédio do Corvo, que tem a capacidade de viajar no tempo – nos anos 1940, mas por outra perspectiva. A dada altura assistimos, com a leitura de Kafka, mais uma vez ao esbater das fronteiras do tempo, dado que se personagens de épocas diferentes se encontram num lugar fora do tempo, uma piscadela de olho por parte de autor ao pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger. Os episódios surrealistas sucedem-se também aqui, despertando em Kafka uma série de visões de outros tempos, contactos com figuras espectrais que habitam aquelas paragens algumas décadas antes, criando aqui uma forte intertextualidade com A História de Genji de Shikishu, escritora que viveu entre os séculos X-XI.

A floresta, sempre que Kafka nela mergulha, parece querer engoli-lo. Trata-se de um lugar de perigo, tal como nos contos de fadas europeus compilados pelos Irmãos Grimm(a História de Hansel e Gretel e o Pequeno Polegar).

Entretanto, o Autor recorre a uma segunda analepse, um recuo desta vez mais breve, até 1972, que vem contextualizar o trauma de Nakata, que é sonhado por Kafka-Corvo).

Nota-se um paralelismo entre o facto de Tamura se perder na floresta onde habitam as sombras do passado – e também o passado de Tamura é nebuloso – e o sucedido com Nakata que, no presente perde no meio da selva urbana. Ao perder-se no labirinto da cidade, Nakata é conduzido por um cão de aspecto sinistro até ao antro de Johnny Walker, o estripador de gatos. O coleccionador de almas felinas lembra o assassino de O Perfume de Patrick Süskind, um ser de alma demoníaca, dasapiedada e egoísta, gosta de matar para se apoderar da alma dos seres que destrói. O assassínio assume, desta perspectiva, a forma de um acto de posse.
Enquanto isso, Tamura, na cabana da floresta, prossegue a exploração da estante de livros daquele lugar e começa a ler o processo de extermínio dos judeus de Auschwitz da autoria de Eischmann. E, a partir daqui, não podemos deixar de comparar ambas as situações, encontrando nelas o mesmo desrespeito pela Vida. A dissertação de Eischmann fala de culpa e de responsabilidade individual, de memória e esquecimento; onde a falta de memória apaga a culpa, levando inevitavelmente à desresponsabilização. Na verdade, ambas as personagens de debatem com este binómio – esquecimento e memória – durante todo o romance. Entre a memória de Eischmann, a de Tamura e a de Nakata há algumas afinidades: enquanto Eischmann é apanhado no sonho monstruoso de Hitler, Nakata é apanhado no horrendo pesadelo de Tamura e como que comandado por ele, já que o adolescente sonha com o horror presenciado por Nakata, sendo obrigado, pela própria consciência, a tomar uma atitude.

Segundo o Corvo, Tamura é perseguido pelos monstros de Genji. É como se vivesse assolado pelas fúrias da mitologia clássica o que faz suspeitar também de um crime, mesmo que cometido só em pensamento, obrigando-o a debater-se com os demónios da culpa.

Quando estás acordado sempre podes suprimir a imaginação. Mas não podes eliminar os sonhos.
(Corvo)

É precisamente durante o sonho de Kafka, que surge o Corvo, a abrir a porta para o maravilhoso e o horrível nas profundezas da mente de Tamura.

No estado de vigília, há também a presença discreta e sedutora de Madame Saeki , uma mulher romântica de quase cinquenta anos. Kafka sente-se sexualmente atraído por ela, mas pensa que pode ser a sua mãe desaparecida. Então, acaba por transportá-la, também a ela, para o mundo dos sonhos, lugar onde se podem realizar todas as fantasias mesmo que proibidas.

Enquanto isso, Nakata está na cidade de Nakano a viver o sonho de Kafka como se fosse convocado por este. Depois, apanha boleia de um camionista para Shikoku, lugar onde Kafka se encontra a viver.

Camionista e passageiro formam um estranho e dissemelhante par fazendo lembrar os dois protagonistas de Dom Quixote de Miguel Cervantes, pelo contraste entre o idealismo de Nakata (Dom Quixote) e do materialismo do camionista (Sancho Pança).

Os dois, entretanto separam-se seguindo caminhos diferentes e ficamos a saber que o pai de Tamura foi assassinado exactamente da mesma forma que Johnny Walker. E o mais curioso de tudo é que ficamos a sabê-lo precisamente na altura em que Tamura lê Eichmann e recorda o pesadelo de Johnny Walker, dos gatos e Nakata.

Haruki Murakami joga aqui com uma série de coincidências que podem na verdade não o ser, abrindo um buraco sem fundo na memória e na mente dos dois principais intervenientes na história, com o objectivo de deixar o leitor na incerteza quanto ao que aconteceu, permitindo-lhe considerar várias hipóteses. Mas a ordem dos acontecimentos e a destrinça entre a imaginação e a realidade serão sempre um quebra-cabeças insolúvel para o leitor. Há, assim, uma série de enigmas na história que nos deixam uma incerteza permanente. Entre os quais: quem é Johnny Walker, que parece saído da mais terrível ficção americana, mas que se parece também a uma imagem modificada do pai de Tamura?; Nakata é uma personagem real e contemporânea de Kafka embora largas décadas mais velho, ou simplesmente produto da imaginação de Tamura?; Quem matou Johnny Walker? Nakata ou Tamura no seu sonho de horror, e neste caso seria Nakata apenas uma testemunha do sucedido?. O que é indubitável aqui é, sem dúvida, a beleza da prosa, sem deixar de salientar que estamos a ler apenas aquilo que ficou da tradução sem o ritmo e a musicalidade ou, mesmo, os jogos semânticos ou fonéticos da língua original. Mas ficam as imagens, a reflexão sobre os valores, a necessidade de evasão e ajustamento a um mundo ou de um mundo opressivo com vista a pensar um universo melhor, alternativo, onde as relações entre humanos e entre humanos e não humanos façam sentido.

A influência do surrealismo na obra de Murakami em particular em Kafka à beira-mar manifesta-se em episódios como a chuva de sardinhas e cavalas e no bailado de sombras e espíritos na floresta, ou o mergulho de Kafka no poço, que pode estar relacionado com o modelo teórico psicanalista de Freud e Jung relativamente à Teoria do Inconsciente. Esta corrente de pensamento pode ter sido decisiva para a construção da personagem Nakata cuja afasia pós-traumática lhe causa algumas limitações em termos cognitivos, mas que é compensada com outros talentos e habilidades. A sua simplicidade não o deixa, no entanto, rentabilizar algumas capacidades extraordinárias como o domínio de algumas técnicas de medicina oriental, tornando-o um ser frágil de de certa forma dependente. O desfecho desta personagem parece estranho ou insólito à primeira vista, mas acaba por fazer sentido, na medida em que o seu papel é trazer de volta o equilíbrio à vida Kafka Tamura.

Saeki, a bibliotecária é também uma personagem misteriosa que encontra em Tamura reminiscências de uma antigo amante na juventude para quem escrevera a canção “Kafka à beira-mar”. Trata-se de uma personagem que passa por vários estágios ao longo do romance, dos quais temos conhecimento pelos frequentes recursos à analepse pelo autor. Saeki vive uma história de amor clássica na juventude, dramática, com o toque da tragicidade dos clássicos gregos. À primeira vista, parece que a sua história e a de Tamura se encaixam, mas há falhas, apesar de o Autor nos apontar algumas falsas pistas no sentido de levar o leitor a pensar que o passado de Saeki e Tamura estão ligados.

O curso do romance sofre várias inflexões sendo que de romance literário acaba por transformar-se em policial. A chave para a sua decifração poderá estar na mente de Tamura o leitor poderá lá chegar quando se fala na incursão deste no labirinto da floresta que em tudo se assemelha à incursão de Ulisses no Hades, na Odisseia. A floresta também se assemelha a uma viagem pelo inconsciente do próprio Tamura, que encerra em si uma espécie de armadilha. Kafka corre o risco de aí ficar aprisionado sem conseguir regressar ao mundo do consciente, à realidade. O mundo do sonho, do inconsciente e das ilusões é tortuoso e contraditório, contendo em si mesmo o germe da paranóia.

Quanto mais se pensa nas ilusões, mais elas crescem dentro de nós e ganha forma. E deixam de pertencer ao reino das ilusões.

O desfecho da personagem Nakata é uma forma de alegoria ou de uma metáfora, incarnada na Serpente, guardiã da vida e da morte. A libertação de Kafka e o regresso da floresta coincidem com o fim de Nakata. A personalidade de Kafka desfragmenta-se e assume o seu verdadeiro eu como resume as seguintes palavras:


O rapaz chamado Corvo voou lentamente em grandes círculos por sobre a floresta.


Depois de Nakata é ao amigo Hoshino Takagochi a, o camionista quem cabe a missão de falar, entender e comunicar com os gatos...
Kafka regressa a casa – à biblioteca – após experimentar o sentimento de perda. Mas entretanto, tornou-se um homem.


Cláudia de Sousa Dias
Fevereiro de 2012 – 02.02.2013