“Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez” de Tabajara Ruas (Âmbar)
Foto: Daniel Mordzinsky
Dados Biográficos
Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez foi lançado no Brasil em 1990. A historia consiste na narrativa dos acontecimentos vividos por uma criança de treze anos, morador na cidade de Uruguaiana em plena década de 1950 que vê de um dia para o outro ser radicalmente alterada a sua forma de ver o mundo. Uma história sobre a dor do crescimento que implica a passagem à vida adulta e ao choque de se deparar de repente com a olhar o mundo com os olhos de um adulto. O jovem é seleccionado para a equipa de futebol da sua escola na final do campeonato, no mesmo dia, em que o seu tio Juvêncio, irmão da mãe, o contrabandista a sofrer um exílio forçado na Argentina, cruza a fronteira de regresso a casa. O jovem sem nome - nunca é mencionado ao longo do romance- é recordado nos seus treze anos resgatando do passado os acontecimentos rodearam o fim trágico de Juvêncio Gutierrez, num curto período de 24 horas, isto é, da noite de sexta-feira até a madrugada de domingo. A figura de inspiração heróica de Juvêncio Gutierrez representa os mais variados aspectos da condição humana de forma a que, o narrador, já adulto, tente reconstruir o passado da sua família, juntamente com o vórtice de sentimentos e sensações que o afectaram durante aquele que foi o fim-de-semana crucial da sua vida.
Um dos aspectos mais interessantes da obra consiste, precisamente, na dificuldade em destrinçar de se esta obra se trata realmente de um romance de ficção ou se é auto-biográfico dado que o Autor se projecta em muitos aspectos nas personagens, sobretudo nas questões relacionados com as suas afinidades, gostos pessoais, assim como as referências espaciais a lugares por onde passou ou onde viveu. Há, sobretudo, muitos aspectos em comum entre a biografia do Autor e as vivências do menino que presenciou os acontecimentos ocorridos na trama e, mesmo, do próprio Juvêncio, principalmente na questão do exílio. O objectivo do Autor ao optar por este género discursivo é levar o leitor a questionar-se se esta história é ou não ficcional.
O prefácio desta edição de Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez, romance que foi finalista do Prémio Correntes d'Escritas na Póvoa de Varzim em 2005, é da autoria da ensaísta e docente em língua portuguesa e crítica literária, Maria Lúcia Lepecki, falecida e 2011. Esta filóloga afirmava ter captado a “essência do texto”, de uma forma “quase totalmente intuitiva, ao invés de dissecá-lo, como se de uma autópsia se tratasse”. Lepecki salienta, assim, três pontos principais do romance: o primeiro, o léxico, que incide sobretudo, num vocabulário de extrema simplicidade, coloquial, por vezes que transcrevendo a oralidade. Isto é, uma escrita que aproxima o livro dos meios de comunicação áudio visual, como sendo o cinema ou a televisão, dotando os diálogos de um forte pendor realista. A simplicidade torna-se, pois, essencial, na produção do discurso, vendo-se o Autor compelido a adequar a construção das personagens (gente simples, de classe média). Maria Lúcia Lepecki refere, depois a sintaxe, a construção frásica do Autor, cuja estrutura simples e escorreita facilita o fluir da narrativa sobretudo quando lemos o texto em voz alta e reproduzimos o ritmo alucinante e sincopado do galope de um cavalo ou de um locutor de rádio quando relata um jogo de futebol. Por último, Maria Lúcia Lepecki chama a atenção para a “organização lassa da narrativa, onde nenhum dos elementos das micro-narrativas que se cruzam parece ocupar o primeiro plano, sobrepondo-se às restantes.” Deste ponto de vista, até mesmo a história de Juvêncio Gutierrez acaba por perder parte da sua força, diluindo-se, porque entrecortada por várias interrupções sucessivas. Há, na mente do narrador, vários assuntos que prendem a sua atenção em simultâneo: a fuga e eminente chegada de Juvêncio Gutierrez e o jogo de futebol, dividem, por exemplo, a sua atenção. Lepecki dá a entender de forma explícita que o romance de que aqui tratamos “é um caso de dissimulação”.
«A história de Juvêncio (...) vem
dissimulada. Numa história mais alargada, que parece (…) não se
centrar em lado nenhum e que é por esta razão é que acompanhamos o
jogo de futebol. »
Isto porque o narrador tem de
interromper a observação do curso dos acontecimentos por ser
obrigado a participar no jogo de futebol. As personagens secundárias
gravitam à volta deste narrador, cuja atenção está dividida: o
narrador, enquanto menino, está simultaneamente no campo com os
colegas, a seguir os movimentos do jogo, a participar do mesmo; e
está, também, atento ao que acontece com o Tio Juvêncio, irmão da
mãe.
O narrador adulto tenta organizar o
quebra-cabeças que consiste em desvendar o papel desempenhado por
cada actor ou interveniente próximo na sua infância naquele
episódio já distante ( pois o tempo presente, em que narra a
história a história ao irmão, na tentativa de juntar as peças que
faltam, é já o tempo da idade adulta e a passagem dos anos que o
separam da infância já cobriu os acontecimentos passados com a
fina camada de areia que esbate as cores e contornos originais),
desde o comportamento disfuncional do pai em relação à família,
ao estranho relacionamento entre a mãe e o irmão – o tio
Juvêncio. Os dois parecem-se mais com amantes do que com irmãos.
Outro aspecto focado pelo narrador adulto passa pela relação deste,
enquanto criança, e o seu grupo de pares (o teor da relação com os
colegas da escola é estabelecido pela alcunha, atribuída a cada um
deles).
O final pode ser, para alguns,
desconcertante, apesar de o desenvolvimento da trama ter algumas
semelhanças com a forma como se desenvolve o curso dos
acontecimentos de Crónica de uma Morte anunciada de Gabriel
García Márquez, deixando-nos assim, através de um exercício
analógico, adivinhar a tragédia que se avizinha, pelas pistas que o
narrador vai deixando, à medida que reconstrói a história do
passado comum, para o seu interlocutor. Outro elemento que nos faz
pensar que nem tudo poderá correr bem no fina é o sentimento de
impotência, demonstrado pelo narrador adulto que se agrega a um
crescendum de ansiedade, que é demonstrado por este enquanto
criança, pela intuição de que algo estranho se passa enquanto
assiste e participa no desafio de futebol na escola.
Lepecki é da opinião que o texto
deste romance tem uma função iniciática, que transparece na voz do
narrador. Este dá a entender, em vários momentos da história,
estar no limiar de uma transformação radical (sempre que regressa a
assado e conta a história com o olhar da criança que fora), a qual
o levará a ver o mundo de uma perspectiva totalmente diferente. Esta
transformação vai implicar a perda da inocência e a
consciencialização de que o mundo não é um lugar belo e tranquilo
e que os adultos que ama não são seres perfeitos.
Personagens, trama e indícios
O narrador, ao contar a história de
Juvêncio Gutierrez, tenta reconstruir aquilo que não presenciou,
recorrendo à imaginação e ao testemunho de terceiros, isto é por
via indirecta. Encaixa o tempo decorrente na viagem de Juvêncio,
alternando-o com o tempo em que dura o desafio de futebol, o que
transmite ao leitor a noção de simultaneidade ao mesmo tempo que
torna possível uma visualização quase que cinematográfica dos
acontecimentos. Por outro lado, a chegada do comboio onde viaja
Juvêncio é acompanhada de um conjunto de elementos funestos que
ajudam o leitor a adivinhar a aproximação de um acontecimento
trágico, que parece cada vez mais iminente.
«O trem vinha vindo, naquela manhã,
como um pássaro arrancado de uma história desenhada por Will
Eisner: irrompeu por entre as das torres da ponte, imenso e negro,
resfolegante, expelindo faíscas,; a suntuosa fumaça, escura e
perfumada, que entranhou nas narinas do guri, despertou uma forma de
pavor obscuro, ambíguo, associado desde então ao perigo e à
masculinidade.»
A ponte por onde passa o “trem”
surge como algo de imponente e, simultaneamente, como um portal, o
franquear um umbral, um lugar fronteiriço. Assistimos à entrada,
triunfal, de um elemento novo em cena como o franquear da ponte
levadiça de um castelo, num feudo de alguém que não tolera
invasores. Por outro lado, presenciamos uma espécie de júbilo, com
a eminência da chegada de alguém querido, mas por cuja segurança
se receia. A casa onde vive a família do narrador, é herança da
mãe e, também, a casa da infância de Juvêncio, ou seja, é a
matriz de ambos os sibblings. Por outro lado, a entrada em cena do
comboio que traz Juvêncio Gutierrez à casa familiar coincide com o
facto de a mesma estar rodeada de elementos sombrios , a deixarem
intuir, mais uma vez, uma visita rodeada de dificuldades.
Uruguaiana é uma cidade pequena, do
interior, semi-rural, onde toda a gente se conhece e na qual as
notícias correm à velocidade da locomotiva. Na comunidade, Juvêncio
Gutierrez é um conhecido aventureiro e contrabandista que havia
fugido para a Argentina e a sua presença iminente em casa despoleta
uma crise de mau-humor e irritação no pai, cunhado de Juvêncio. Já
na comunidade, todos estão curiosos e mostram alguma ansiedade, uma
vez que Juvêncio regressa agora após sete anos de exílio,
aguardando-se um confronto com alguns dos seus inimigos.
A sexta-feira, sendo véspera dos
acontecimentos, é o dia de preparação para o clímax da história.
Um dia a partir do qual sentimos um clima de tensão crescente à
medida que se aproxima a hora de chegada de Juvêncio. A sexta e o
sábado são normalmente dias de júbilo. Sobretudo o sábado, este
sábado em particular por causa do jogo de futebol e da visita de
Juvêncio, dois motivos de alegria para o jovem protagonista as
história. Trata-se do dia do desafio de futebol em que participa a
equipa formada pela turma do narrador enquanto menino, mas que é
marcado por um presságio funesto: chuva e trovoada. Além do mais,
seu Domício, o condutor da chalana, surge como o arauto das más
notícias, juntamente com a trovoada, para avisar a mãe da emboscada
que lhe prepara a polícia. Este é já o segundo indício funesto.
Sequências alternadas e visão
cinematográfica dos acontecimentos
A narrativa
prossegue com a alternância do desenrolar de ambos os acontecimentos
em simultâneo ao quais dividem a atenção do narrador enquanto
criança e proporcionam ao leitor a noção, não da simultaneidade
dos factos como lhe proporcionam também a sensação de estar a
visualizar os acontecimentos à mesma velocidade, os quais interferem
também na velocidade de leitura. A tensão sentida pela equipa no
campo de futebol, onde o desejo de vencer o desafio está subjacente
a “honra da casa” face às provocações dos jovens da outra
equipa preocupam o narrador, mas a esta tensão subjacente ao
desafio, junta-se a preocupação com o Tio Juvêncio que se sabe
estar a ser vítima de uma emboscada.
Mas o que motiva
realmente este ódio das autoridades a Juvêncio Gutierrez? Além de
aventureiro, Juvêncio é um grande sedutor. Este parece pecar,
talvez, por excesso de autoconfiança, como se desafiasse o destino.
A isto junta-se também a necessidade imperiosa de ver a irmã e as
saudades de casa como que incendiando um amor que desafia a Morte, as
convenções e a própria sociedade. Nesta altura, o narrador
aproveita para descrever o lar da sua infância,introduzindo um
momento de pausa para dar a conhecer a família e os que habitam a
casa: a mãe é professora, o pai um honesto livreiro, intelectual de
província, ambos contrastam vivamente com Juvêncio, a ovelha negra
da família, o fora-da-lei.
Surrealismo e Melancolia em Tabajara
Ruas
Outros momentos de
descompressão são alguns episódios de teor surrealista e
simbólico, que também são indícios, mas bastante mais velados que
os que foram anteriormente referidos. Um deles é o assédio da
prisioneira louca, a primeira experiência proto-sexual do narrador,
prenúncio da perda da inocência. Este sonha com a louca na véspera
da chegada de Juvêncio Gutierrez – o terceiro indício funesto. A
partir daquele dia a sua inocência está irremediavelmente perdida.
A única presença reconfortante no infortúnio é a cozinheira,
Ifigénia, que partilha curiosamente o nome da filha de Édipo cujo
papel é aqui, simultaneamente o de guardiã do lar, pitonisa e
carpideira:
«Ifigénia
zelava pelos rituais da casa mesmo antes de eu ter nascido. Fora ela
quem criara nossa mãe e Tio Juvêncio quando ficaram órfãos».
Família e Sociedade
Vladimir, o irmão
mais novo, cujo nome de sonoridade soviética é proveniente da
simpatia ideológica do pai é o contrário do irmão mais velho, que
ostenta um carácter provocador e desafiante, em tudo similar ao do
tio querido. O pai, por seu lado, não é um homem admirado em casa.
A sua livraria está sempre à beira da falência. Simpatizante da
ideologia comunista, vive rodeado de cultura, perseguindo o objectivo
de divulgar essa mesma cultura numa cidade muito pouco culta e cujas
gentes são muito pouco dadas a comprar livros. É auxiliado pelo
empregado negro e cego, Gaspar. A mãe dá aulas de Francês. Em casa
não há lista de livros proibidos. A descrição do lar familiar
revela um quadro, com algo de bucólico, onde a mãe lê para os
filhos, mas a felicidade está longe de ser omnipresente.
Os sonhos dos
jovens, de conteúdo sexual e a forma como os relatam, são também
delineadores da personalidade de cada um. Assim, o líder da equipa,
o gordo Bolão, representa a boçalidade e a força bruta, é o
fanfarrão da equipa, que diz sonhar com as amazonas, descrevendo as
façanhas sexuais com todas elas. O narrador, sonha com a louca,
revela um certo receio de entrar no mundo da sexualidade e do
feminino, apesar de se sentir atraído por ele. Nesta fase da vida
dos jovens, o futebol está antes do sexo, mas este começa já a ter
as primeiras representações mentais nas suas vidas, de uma forma
subliminar, marcando o limiar da adolescência. A passagem das
meninas, de uniforme, interrompe as divagações. O narrador só tem
olhos para Beatriz, um primeiro amor ainda marcado pela inocência.
Há ainda um
Jovem, Daniel, alcunhado de “Feito-às-pressas”, que é tratado
como o vira-latas da equipa: pequeno, de óculos, com espinhas, nariz
torto, é o patinho feio que é gozado por todos.
Bolão desepenha
também o papel de mensageiro ou arauto da desgraça. É ele quem
traz o recado do Delegado Facundo, que deseja apanhar Juvêncio e
pendurá-lo pelos testículos, uma fanfarronice contada no cabaré do
Ivo. A sanha do Delegado tem origem numa rivalidade sexual, “a dor
de corno” provocada pela paixão da sua meretriz favorita por
Juvêncio.
A aura romântica
e aventureira de Juvêncio contrasta com a personalidade algo frágil
do narrador que o idolatra. O que não admira, pois trata-se de uma
criança de sensibilidade artística, que em adulto pende para a
escrita em cujas narrativas predominam as sensações visuais e uma
forte afinidade com as artes plásticas, o gosto pelas gravuras
bíblicas e os decalques romanos. Um temperamento que não parece
compatível com as personalidades mais agressivas dos elementos mais
provocadores da equipa de futebol da escola, por exemplo. Sobretudo,
o bullier da equipa adversária, Bento, que se diverte a
atacar o enfezado Feito-às-pressas.
A passagem à
adolescência é marcada pela descoberta da beleza feminina, com as
meninas do colégio que passam numa atitude de aparente indiferença,
trocando risinhos e cochichos entre si.
A feminilidade já
não cai tão bem ao Delegado Facundo, ridicularizado pela vaidade
extrema que é polida até o exagero na barbearia do turco Saladino.
«O Delegado
tinha uma vaidade repugnante para um homem. Aquelas unhas, lixadas e
esmaltadas, nas mãos toscas e brutais, cintilavam, obscenas.»
A paixão da Literatura e do Cinema
na escrita de Tabajara Ruas
Nas entrelinhas d
romance pode-se encontrar os dois principais interesses do autor que
são projectadas na fala do narrador e protagonista. Um exemplo são
as reuniões mensais no clube de Amigos de Beethoven, na livraria do
pai do mesmo protagonista, que é um lugar de tertúlias literárias
e políticas,onde se contava com a presença e a voz de “seu
Antonelli” que cantava ópera e de Dona Ester, a esposa, professora
de ballet. Ambos são assíduos naquelas reuniões da elite
intelectual local. Já os jovens sentem-se fascinados pela beleza
mística das divas. Um fascínio que se manifesta em descrições
sensoriais e cinestésicas salientando-se as sensações visuais e de
movimento. Por ouro lado o olhar indiscreto de quem narra actua como
uma câmara de filmar, como acontece no instante decisivo em que o
jovem intercepta um momento de intimidade entre a mãe e o tio.
«Tio Juvêncio
e mamãe estiveram sentados frente-a-frente (…). Parei porque havia
algo nos olhos do meu tio que me pareceram lágrimas, e aquilo me
assustou. Os dois estavam imóveis e calados.
(…)
A mão de meu
tio começou a deslizar sobre a mesa até apanhar a mão de mamãe.
(…)
Talvez pelo
silêncio absoluto, talvez pela sensação nítida do Verão,
esmagando o mundo lá fora, fiquei olhando a áspera mão do Tio
Juvêncio sobre a delicada mão pálida de mamãe, ambas
resplandecentes à leveza da luz que filtrava através das cortinas
de renda branca...»
Do pai, chegam-lhe
as primeiras referências a Ernest Hemingway, de cujas obras conhece
apenas algumas adaptações cinematográficas, mas a quem o pai
chama, algo arrogantemente de “americano farsante”. De certa
forma, o seu temperamento observador e simultaneamente introvertido
proporcionam-lhe a exclusão do mundo do irmão, prosaico e
cartesiano, da mãe sonhadora e romântica (a representar o ícone do
eterno feminino), do pai, fechado e distante, imerso nos seus ideais.
Os dois adultos da casa vivem no seu próprio mundo e ao mesmo tempo
criam um chocante contraste com a encandeante lucidez de Ifigénia,
a cozinheira, cujo amor se encarrega de espalhar por todos os cantos
da casa. É ela a figura maternal por excelência, tendo desempenhado
o papel de mãe dos dois órfãos, Juvêncio e a mãe do narrador; e
de avó dos filhos da herdeira da casa. Ifigénia, apesar da sua
função matriarcal na história não deixa de revelar alguma
afinidade com a outra Ifigénia, a de Sófocles, pela lealdade
absoluta e a forma como reage diante da tragédia É ela que explica
a jovem protagonista as principal mudança que decorre da passagem da
infância à idade adulta ao lançando uma frase premonitória, à
qual está subjacente a perda da inocência, impossível de
reconstituir:
«É quando o
coração da gente se despedaça em um montão de pedacinhos.» .
Enquanto isso,
Bibelô, o gato, assiste a todos os dramas da família, alheio e
indiferente, como se fosse um objecto de decoração, passeando-se
pela casa um pouco como Micefufe da Clarissa de Érico
Veríssimo.
Juvêncio, por seu
lado, é uma lufada de ar fresco na família, assumindo a postura de
herói clássico. Foi ele, para o imaginário das crianças, o
cavaleiro andante de um infância partilhada e cuja memória evocam
na idade adulta, numa das raras ocasiões em que têm a oportunidade
de se encontrar. Numa atitude perfeitamente edipiana, o narrador,
enquanto jovem, junta à mãe o desprezo pelo pai, pensando fazer
nascer assim uma maior cumplicidade entre si e ela. Durante a
adolescência do narrador, o papel de Ifigénia sofre ligeiros
cambiantes, assumindo a postura de adversária, uma vez que é ela a
sua principal educadora mas que se recusa a deixar de vê-lo como
criança.
«Ifigénia
lutava contra o meu crescimento, perseverava para que eu continuasse
aquele guri de calça e cabelo espetado, fácil de proteger e de
amar.»
A
influência de Érico Veríssimo na obra traduz-se na temática da
exploração de segredos, cuidadosamente escondidos das outras
personagens que, no entanto, acabam por intuir o que se passa. A
ousadia temática como a sugestão de incesto num caso e o adultério
no outro, faz de cada qual, na sua época, um romance de exploração
de tabus sociais; assim como a abordagem da sexualidade juvenil, que
o escritor de Porto alegre projecta numa personagem secundária (a
amiga de Clarissa)...
Segunda parte do
Romance – o relato do jogo
Nesta fase do romance, a escrita do Autor torna-se exclusivamente
cinestésica. Trata-se de um episódio de muita acção, onde vários
acontecimentos se sucedem vertiginosamente e em simultâneo. A
simultaneidade de ocorrências implica a alternância de dois
cenários nos quais a acção se desenrola à mesma velocidade: o
jogo propriamente dito, em campo e na bancada e, no comboio, a
viagem de chegada de Juvêncio. O narrador, enquanto personagem, é
obrigado a alienar o pensamento daquilo que verdadeiramente o
preocupa e aflige em primeiro lugar que é a chegada do Tio e a
emboscada que lhe preparam. É impelido a concentrar-se
exclusivamente no jogo. Ali, Bento, o adversário, é o terror da
equipa e a repugnância que inspira no próprio narrador e nos
colegas só é comparável à do Delegado Facundo. O ritmo da
narrativa está agora em sincronia com o ritmo de um relato de
futebol. Mas a criança que dá origem ao adulto que conta a história
não consegue evitar que o pensamento lhe fuja para o comboio onde
viaja Juvêncio Gutierrez. O capítulo é seccionado pelo intervalo
do jogo. Na segunda parte, as coisas começam a correr mal. Bolão é
expulso( presságio, como início da desvantagem, o primeiro sinal de
desequilíbrio em campo, a tranquilidade ao protagonista começa a
desfazer-se). No fim do jogo, ocorre uma pequena rixa, à saída do
balneário. O ambiente é de cortar à faca. Depois, de resolvida a
questão, o jovem protagonista, sai a correr a saber do tio.
III parte
Interregno antes do desfecho
O cerco feito a Juvêncio Gutierrez está montado como uma
sofisticada ratoeira a um homem que não precisa de se esforçar
muito para eclipsar os seus rivais. É admirado pela família de
sangue, profundamente amado pela irmã e por Ifigénia, assim como
por alguns grupos marginais e contestatários daquela pequena
localidade. Tem também a simpatia de Marta Rocha, o travesti, que
avisa Mirta, amante do Delegado Facundo e apaixonada por Juvêncio.
Uma espectacular finta do herói, marca um momento mágico na
narrativa: a evasão de uma deslumbrante manada de cavalos brancos,
que irrompem da carruagem e cuja beleza espectral deixa os
espectadores, elementos da emboscada incluídos, perfeitamente
atarantados.
Entretanto Mirta trata o delegado com desprezo sádico, acirrando o
ódio deste por Juvêncio.
Sabendo de tudo o que se está a passar, quer pela via intuitiva,
observando os que o rodeiam, o protagonista adivinha o que
acontecera: a mãe mantém o perfeito auto domínio, sem no entanto
conseguir disfarçar os ciúmes de Mirta e de dona Ester, que também
teve um pequeno affaire com Juvêncio. A mãe lê Flaubert enquanto
aguarda por notícias. A acção respeitante a Juvêncio é deixada
em suspenso, enquanto este se esconde. Os acontecimentos dão-se,
aparentemente por descuido de Gutierrez , o qual manifesta um
aparente desapego à vida. Enquanto isso, do lado dos conspiradores,
pretende-se dar a aparência de um acto de justiça àquilo que é na
verdade um crime passional. Enquanto isso, a mãe espera paciente e
passivamente, como uma Penélope dos tempos modernos. O pai, curioso
e expectante, acompanha as notícias na rádio. Acaba por
enlouquecer, no Verão em que Juvêncio é ferido. A manifestação
de loucura parece surgir, aqui, com o objectivo de punir, como uma
das Fúrias. Aqui trata-se, na verdade de uma espécie de
auto-punição, pelo desejo da morte do rival, um homem com o qual
partilha o amor da mulher e que sabe que não lhe cabe a si a maior
parte. Parte da alma deste pai idealista e pouco amado, ficará
sempre como que subtraída à realidade, refugiada num canto secreto,
para deixar visível no seu lugar um estranho alheamento. A descrição
do comportamento dos irmãos por Ifigénia não deixa margem para
dúvidas:
«como um par de namorados, um casal belo, que dança
interminável...»
Juvêncio parece procurar na vida um extremar de sensações que com
o objectivo de suprir um irremediável sentimento de perda:
«Sempre trabalhou honestamente, mas poucas semanas depois do
casamento de mamãe largou tudo e foi viver com os contrabandistas.»
Juvêncio é, também um homem que não se intromete em questões
políticas, não é militante de nenhum partido nem defende nenhuma
ideologia excepto a Liberdade.
«J'éspere, aprés avoir exprimé sur cette tour tout ce qui
attendait en moi, satiafait, mourir complétement desesperé.»
André Gides, Les Nouritures Terrestres
O final
O confronto final entre Juvêncio e os seus inimigos parece afinal
ter hora marcada, como o jogo de futebol:
«A Lua cheia iluminava a cidade em guerra.»
A Lua está aqui presente como o elemento mágico, símbolo do
feminino, em sintonia com a alma da mãe, a qual tenta acompanhar os
acontecimentos ao mesmo tempo que contempla a claridade fantasmal.
Regressando ao narrador, verificamos mais uma vez a alternância de
planos entre o pensamento do narrador no tempo presente, na fase
adulta, onde divaga sobre as fanfarronices sexuais de Bolão, da
pressa em perder a virgindade de Feito-às-pressas, e dos seus
próprios sentimentos enquanto criança; e ainda do relato da rixa
como um combate de boxe.
Bolão não age normalmente com lealdade: é essa a razão que o que
o faz perder o jogo e fá-lo também perder a briga à saída do
balneário com os elementos mais agressivos da equipa rival. No fim,
os jovens perdedores, humilhados, decidem fazer uma visita a um
bordel, na tentativa de se compensarem pelo duplo insucesso. O
objectivo é conseguir a iniciação sexual, mas mais uma vez Bolão
comporta-se de forma torpe, prejudicando os colegas e colocando-os,
sobretudo no caso de Feito-às-pressas, em risco. Naquele lugar, a
luz lilás do cenário actua como um luar artificial sobre os jovens,
com um efeito algo anestesiante, como se fosse um narcótico. A
importância deste episódio, tem como objectivo principal mostrar a
hipocrisia de uma sociedade de machos de fachada que vão afogar os
desejos proibidos, inconfessáveis, de forma velada e sob uma
claridade artificial ao bordel do travesti Marta Rocha. Ivo
Rodriguez, proprietário do bordel onde trabalha Marta é um
gangster que vive da extorsão com o pretexto de manter a segurança
e a ordem pública, numa estranha parceria com as autoridades. Mas é
neste lugar que o narrador fica a saber do que se passa na cidade
envolvendo a figura do seu tio. Desta vez, são as travestis as
mensageiras, que relatam a viagem relâmpago da mãe do narrador a
Paso del Toro, de como Juvêncio foi ferido. A seguir os jovens
deixam o Bordel e vão ter com Bento.
Entretanto apercebemo-nos dos verdadeiros sentimentos de Mirta por
Juvêncio, onde o despeito é muito maior do que amor, no momento em
que esta tenta difamá-lo. O despeito fá-la desejar-lhe uma uma
morte lenta, já que não o pode possuir. Assim ficamos a saber que é
ânsia de liberdade de Juvêncio, o impulso de não se deixar
aprisionar por ninguém, a sua verdadeira capacidade de sedução,
que provoca o ciúme nos rivais e desejo de posse em algumas almas
que o desejam mas não amam. E este desejo é o veneno que poderá
estar na génese da sua morte. Mas não apenas isso, como iremos ver
mais adiante.
O desfecho da história chega aos ouvidos da família sempre através
de rumores, que depois tem de confirmar in loco. E é essa
confirmação é que dá origem à perda da inocência, da infância
e da ilusão de viver num mundo perfeito, a partir do momento em que
a criança decide acompanhar o pai para buscar corpo do tio, após a
saída do bordel. É no momento em que chega a casa e se separa de
Bolão que o jovem se apercebe de que algo anormal se passa. O
ambiente é tenso. As luzes da casa estão todas acesas, mas ali
reinam o silêncio e a solidão. A explicação é simples. As luzes
se encontram desnecessariamente acesas para afastar a presença da
Morte, desmentida pelo impressionante choro de Ifigénia, a que
desempenha verdadeiramente o papel de matriarca na casa.
«O choro de Ifigénia infiltra-se por todos os cantos da casa,
galopa como um cavalo, primitivo e escuro. As paredes, o teto, os
quadros, os móveis, gemiam de tristeza. Ninguém me disse, mas a
morte tinha tocado a casa.»
A morte de Juvêncio é uma das cenas mais pungentes do romance, o
que não admira pois é construída nos mesmos moldes que a morte de
Gavroche em Os Miseráveis de Victor Hugo.
Em contraste, temos a estranha atitude do pai que acaba por sucumbir
a uma crise de “delírios indecifráveis.” Esta doença “secreta”
do pai acaba por ser a codificação de um ódio dissimulado que, do
ponto de vista da criança que protagoniza a historia, espalha
sorrateiramente o seu veneno. A perfídia nela contida reside na
capacidade e despoletar a culpa dos que amam Juvêncio, atitude de
perfeita auto-compaixão, mas que se revela contra producente. O pai
acaba por despertar a compaixão sim, mas do leitor, por se ver
incompreendido e muito pouco amado. A mãe conserva o auto-domínio
de uma estátua de pedra, enquanto que por exemplo Ester, a
professora de Ballet, se mostra chorosa. Relativamente ao pai, a
atitude que realmente conquista o leitor, que se apercebe da sua
superioridade e nobreza fora do comum, manifesta-se quando, num acto
de coragem e desafio à prepotência das autoridades vai, acompanhado
do filho, reclamar o corpo do cunhado sem temer as armas que lhe são
apontadas. Um acto cuja temeridade não é reconhecida.
No final do romance, o leitor interroga-se se Juvêncio não terá
buscado intencionalmente a morte. Porque se antes se falou de um
crime passional, do ponto de vista da vítima parece tratar-se
claramente de um suicídio, embora com os mesmos contornos dramáticos
subjacentes à morte de um Che Guevara: uma emboscada, servindo
interesses ocultos e privados.
Mirta não resiste à tentação de aparecer no velório. E o jovem
sobrinho, na qualidade de filho mais velho, herda o relógio do tio.
Com isso é-lhe lançado um repto: o de perseguir um sonho de
liberdade ligada à insubmissão. Enquanto isso, o fatídico comboio
afasta-se da cidade de regresso à Argentina (a pátria de Che).
Fechando-se o círculo da narrativa, marcada pelo mesmo lirismo
romântico que Luis Sepulveda confere ao seus relatos e ao qual
Tabajara Ruas foi provavelmente beber a mesma beleza
esmagadora e trágica da paisagem das terras dos confins da América.
Um mundo no qual personagens, como Juvêncio e o seu herdeiro, sejam
elas reais ou de ficção, se recusam a ser escravos da Mentira.
Cláudia de Sousa Dias
Fevereiro de 2011-24.02.2013