“Caravaggio” de Cristopher Peachment (Temas & Debates)
Tradução de Maria de Fátima St.
Aubyn
A carreira de Christopher Peachment
divide-se por várias área distintas, que vão desde o Teatro, onde
trabalhou como contra-regras (London Royal Court), pelo Jornalismo,
tendo-se tornado crítico de arte, com incursões pelo cinema (como
crítico) e, claro está, pela Literatura (romancista). Foi editor no
Departamento de Artes no The Times. Vive, actualmente, em
Hoxton, Londres, tendo já escrito dois romances:Caravaggio – a
novel (em português, apenas Caravaggio) e The Green
and the Gold. Contribuiu, durante um largo período com a crónica
Diary of a Sex friend na Erotic Review, com uma
espécie de sátira sobre o comportamento sexual no século XXI, a
cuja pena viperina não escapam, sequer, figuras públicas ligadas ao
Poder como Tony Blair.
Mas quem foi Caravaggio?
O protagonista desta biografia
romanceada de Peachment chama-se Michelangelo Merisi da
Caravaggio e nasceu a 29 de Setembro de 1571. Foi um artista de
transição entre o Renascimento e o Barroco mas que exibia ainda
muitas das características convencionais do Maneirismo – movimento
que marcou uma épocas Artes Plásticas na Europa do final do
Renascimento entre 1515 e 1600, e que privilegiava temáticas da
épocas da Antiguidade Clássica, reintroduzidos pelo movimento
Humanista durante o já mencionado período da Renascença. O pintor
Caravaggio conseguiu a
proeza de chocar as elites do seu tempo, ao escolher para seus
modelos pessoas oriundas do povo, gente comum e mesmo dos grupos mais
marginais da sociedade, incluindo boémios e prostitutas. Destacou-se
pelo elevado pendor realista das obras a que dava vida nas suas
telas. Muitas destas foram rejeitadas pelas entidades que as
encomendavam e, depois, vendidas a preços baixos a coleccionadores
privados e abastados que se apaixonavam pelas suas obras. Foi o caso
da primeira versão da Conversão de S. Paulo e da Crucifixão
de S. Pedro. Outras obras suas se perderam devido à devastação
causada por guerras (que incluíam pilhagens, bombardeamento,
incêndios) ou foram simplesmente encerradas em salas de
coleccionadores privados, pelo que, algumas, poderão ainda surgir,
futuramente, da obscuridade. Caravaggio pintava com paixão, de
acordo com o seu temperamento violento e impulsivo. Era um homem que
facilmente se envolvia em rixas, das quais chegaram a resultar
mortes, pelo que acabou por ser condenado e perseguido por tal. Após
uma destas escaramuças, ficou com uma cicatriz a atravessar-lhe o
rosto. Veio mais tarde a sucumbir, vítima de uma vendetta.
Peachement vem, com a publicação
dest empolgante biografia romanceada, lançar um pouco de luz sobre
os aspectos mais sombrios deste pintor do Tenebrismo – tendência
pictórica, que constitui uma derivação do Barroco, na transição
do Renascimento para esta nova época no domínio das Artes, e que se
prolonga até ao Romantismo (é caracterizada pela ênfase extrema no
princípio do chiaroscuro nas Artes Plásticas cujo objectivo
é projectar a dramaticidade da vida quotidiana na tela através de
violentos contrastes entre luz e sombra).
As hipóteses explicativas da vida do
pintor avançadas por Peachment são, na sua quase totalidade,
pura especulação embora construídas a partir de indícios e
vestígios válidos. Ma o trabalho do autor desta biografia
romanceada é sobretudo fruto do estudo detalhado da mentalidade da
época, sobretudo doo pensamento filosófico, religioso valores
estéticos, bem como da conjuntura política europeia, em cujo
centro se encontravam as cidades italianas.
Nesta versão de Christopher
Peachment sobre a vida de Michelangelo Merisi da Caravaggio,
vemos a Inquisição a seguir as actividades do pintor com suspeita,
apesar de a sua obra ser geralmente do agrado da nobreza, cobiçada
por mercadores ricos e aceite por algumas facções do clero. A obra
de Caravaggio não é consensual e a ligação do artista a
determinados movimentos de contestação religiosa que grassam um
pouco por toda a Europa, assim como algumas amizades duvidosas,
acabam por colocá-lo em situação difícil e o autor de Caravaggio
soube evidenciar de forma eficaz esta faceta da vida do pintor. Por
outro lado, Caravaggio espelha, talvez, com um pouco
mais de veracidade do que muitos gostariam e de forma algo crua a
raiar o cinismo, as desigualdades sociais, a insegurança nas ruas, a
luxúria da alma humana na transição do século XVI para o século
XVII. O livro em si lembra um fresco ou um mural onde se inscreve a
sociedade do Antigo Regime, na qual o pintor de mexia como um peixe
na água, ou melhor, uma lampreia em águas turvas: uma sociedade
extremamente violenta, onde grassa uma forte insegurança nas ruas e
predomina uma moralidade agressivamente homofóbica, amplamente
difundida pela Igreja e punida com tortura e condenação à
fogueira. No meio de tudo isto, emerge do romance deste autor
britânico, uma personalidade que é fruto da sua época – um vilão
com um talento excepcional.
Ao que tudo indica, Caravaggio nasceu
num meio social que lhe criou algumas dificuldades: apesar de ser
filho de um artífice, surge nesta obra como alguém incompreendido
pela própria família, sem origem aristocrática e com alguma
dificuldade de relacionamento com os seus pares, o que parece
coincidir com as fontes históricas. É também mostrado por
Peachment como um artista promissor, inicialmente explorado por
mestres de talento medíocre, na sua cidade Natal. Nesta conjuntura,
o protagonista desenvolve uma personalidade violenta, fruto de um
temperamento irascível e potenciado pelos obstáculos que se lhe
deparam e vão criando à sua progressão na carreira. No romance, o
discurso que corresponde à expressão do pensamento e sentimentos do
pintor é feito quase todo na primeira pessoa, ou seja, é o seu
ponto de vista que nos é apresentado, dado que a personagem
Caravaggio acumula aqui, as funções de protagonista e narrador,
sendo o discurso construído como se fosse um diário ou mais
propriamente, uma compilação de memórias. O discurso de Caravaggio
enquanto narrador e as atitudes demonstradas enquanto elemento a
interagir com as restantes personagens onde é facilmente
perceptível, ao leitor mais atento, uma boa dose de soberba contida
na concepção de si próprio, em grande parte fruto da consciência
do seu talento e do desprezo que os outros lhe votam pela falta de
“berço” ou da inexistência das ligações certas.
Outro aspecto hipotético acerca do
desenvolvimento da personalidade de Caravaggio apresentada por
Peachment tem a ver com a sexualidade do pintor, cuja exuberância e
heterodoxia face à moral católica então vigente e amplamente
difundida para as massas parece estar na base de grande parte dos
conflitos e perseguições sofridas pelo Pintor, conjugada, de acordo
com a visão de Peachment, com uma sua hipotética simpatia pela
causa francesa nas questões da Reforma, opondo-se ao Governo da
Corte Espanhola (acerrimamente católica) em Nápoles e na Sicília.
Precisamente as duas cidades onde teve os maiores dissabores.
Na verdade, os motivos que poderão
estar relacionados com a condenação de Caravaggio à prisão, assim
como as causas directamente relacionadas à sua morte, parecem
ligar-se directamente a esta componente político-religiosa. Esta
convicção de Christopher Peachement está expressa no discurso do
narrador de Caravaggio a revelar um ethos ou
construção de imagem de si de alguém em permanente guerra com o
Mundo. O objectivo do Autor é tirar o máximo partido da mais do que
documentada agressividade do protagonista, segundo relatos da época,
de forma a criar uma personagem que se mostra como um homem enérgico,
de grande poder de observação e excelente memória “fotográfica”,
e é que se pode usar de tal anacronismo numa personagem de finais do
século XVI, para captar expressões faciais e movimentos corporais
até ao mais ínfimo detalhe, transpondo as cenas do quotidiano para
o plano bidimensional inspirando-o a recriar episódios bíblicos ou
mitológicos de forma tão vívida e carregada de realismo, movimento
e energia vital (líbido) quanto possível. Ou quase para além do
impossível.
Os quadros de Caravaggio mostram, pelas
cores utilizadas, expressões dos rostos e movimentos corporais que o
pintor era um homem que se deixava atrair por sensações visuais (e
não só) fortes para ilustrar uma insaciável fome de prazer, faceta
a que o discurso do narrador do romance, o Caravaggio construído
por Peachment dá expressão na sua forma verbal.
As primeiras frases do texto, logo no
primeiro capítulo, ilustram um profundo ódio ao mundo , expresso
pelo protagonista, face a uma sociedade regida por aparências e
muita hipocrisia, na qual praticamente não existe mobilidade social,
sendo quase impossível triunfar pelo mérito quando o nascimento ou
as origens familiares não são favoráveis. Assim Caravaggio
é um livro que anuncia o apodrecer das estruturas que levaram à
queda, quase dois séculos depois, da sociedade tripartida do Antigo
Regime, como se consegue entrever pelo discurso do protagonista, logo
no Prólogo:
«Eu Caravaggio fiz isto.
(…)
O frade, amável, de rosto imbecil,
vem três ou quatro vezes por dia para me lavar
(…)
Viajei durante quatro anos, fugido
das cortes papais em Roma, por Malta e Sicília e, depois,
finalmente, dei comigo em Nápoles, local que odeio e que acabou
comigo.»
O tom é confessional porque assinalado
pela marca linguística do discurso na primeira pessoa (pronome
pessoal “Eu” e o verbo que a ele se liga, na primeira
pessoa do singular). Além de que o vocabulário utilizado denuncia
uma situação de decadência ou remete para algo que se desmorona
sugerindo que, no momento em que o protagonista começa a narrar a
sua história, não lhe resta já muito tempo de vida:os verbos no
passado “viajei” e “dei” indicam um estilo de vida de
atribulado que no momento em que está a narrar já não existe.
Agora Caravaggio é um homem “acabado”, dependente, como mostra a
frase que se refere ao frade de rosto “amável” e “imbecil”
que o vem lavar e o próprio verbo “acabar”, usado no pretérito
perfeito anuncia um estado pessoal que terminou num dado momento no
tempo e num dado espaço (Nápoles).
O fragmento mostra também um Eu
em permanente conflito com o mundo e que está patente no uso do
adjectivo “imbecil” (modificador da palavra “rosto”),
referindo-se ao frade “amável”que o lava e cuida dos seus
ferimentos. O adjectivo revela que o autor do discurso se coloca numa
posição “superior” em relação ao frade, de cuja ingenuidade
desdenha, embora a aprecie, porque lhe dá a sensação de deter
ainda algum poder sobre o Outro. Também a cidade de Nápoles é
objecto do seu rancor de que nos apercebemos pelo verbo de forte
conteúdo psicológico e emocional (odiar) do qual a cidade é seu
complemento - “Nápoles, lugar que odeio
e que acabou comigo”. Um lugar onde percebemos ter sido onde
aconteceu algo que o colocou na situação em que se encontra no
momento em que começa a narrar a sua história. Estas são as pistas
deixadas pelo Prólogo, das quais seguiremos a continuidade com a
leitura do romance. O início do primeiro capitulo, que relata a
infância do pintor, contada pelo homem de meia-idade cuja vida está
em vias de terminar dá-nos uma ideia ainda mais precisa da
personagem e da forma de esta de colocar em relação aos outros:
«De
meus pais, direi pouco. Deus sabe que há pouco a dizer. O meu pai
estava ao serviço de um duque da região, na verdade muito bem
nascido e, portanto, alguém para quem tive algum tempo. O meu pai
chamava-se a si próprio arquitecto e era verdade que sabia desenhar
planos e supervisionar a construção de edifícios ou acrescentos a
edifícios. Era um pedreiro consumado, mas o duque queria que ele
fosse escudeiro e, assim, foi esta a sua principal ocupação. A
minha mãe pouco fazia, para além de criar os meus irmãos. Era uma
mulher estranha, pois afirmava frequentemente, a nós e a outras
pessoas, que o seu casamento era infeliz e, contudo, continuava
casada, como em qualquer outro casamento, e não parecia assim tão
insatisfeita. Nunca consegui compreendê-los completamente. Penso que
a razão para tal é que eu percebi, ainda em tenra idade, que era
mais esperto do que eles os dois juntos. E isso deu-me uma
perspectiva enviesada do mundo.
Quando
tinha seis anos fiz um pequeno esboço do edifício contíguo ao
nosso. Tinha andado a desenhar às ocultas desde que me conseguia
lembrar. E a minha mãe encontrou o pedaço de papel e levou-o
depois ao meu pai. Da divisão contígua, conseguia ouvir-lhes
exprimir a sua perplexidade em voz alta. E o meu pai zangou-se,
pensando que eu vadiara e andara a ter lições de um arquitecto mais
estranho ou melhor do que ele. Foi então que eu fiquei a saber que
tinha algo que mais ninguém tinha, embora não soubesse que nome
dar-lhe, pois era demasiado jovem. E passei a ver os meus pais a uma
luz inteiramente
diferente a partir deste incidente. Eles eram estúpidos. E eu não.»
O tom discursivo
que encontramos neste excerto oscila entre o cinismo e a ironia, tal
como acontece nos restantes capítulos do romance.
A voz do narrador
exprime-se como vimos na referência que faz aos pais, em tonalidades
cruas, que se traduzem num humor cáustico, muitas vezes com laivos
de crueldade. O texto de Peachment, ao reconstruir a “voz”
de Caravaggio apresenta, por vezes alguns anacronismos. Por exemplo,
ao exibir uma personagem do século XVI em situações que seriam
pouco verosímeis para a época, como na cena em que o protagonista
se passeia pelas vielas sicilianas, deslocando-se a uma taberna para
tomar um café e fumar, sendo que estes dois hábitos não fariam
parte dos rituais do homem comum da época, sendo apenas difundidos
em grupos muito restritos, dada a raridade e o elevado preço destes
dois produtos – o café e o tabaco – ainda pouco disseminados na
Europa ou, pelo menos, não ao ponto de serem massivamente consumidos
pela população. No romance sentimos ainda, uma certa diluição das
fronteiras temporais, pecando a obra por ser talvez demasiado
sintética e não explorar determinados aspectos históricos que não
estejam directamente relacionados com a biografia do pintor. Mas o
facto de lá aparecerem mencionadas duas cenas aparentemente
anacrónicas mereceria, de facto uma contextualização.
Estrutura Narrativa
Os capítulos de
Caravaggio são curtos, recheados de acção que se
mescla com a descrição detalhada da sua obra pictórica,
desnudando ao mesmo tempo os seus vícios humanos, a par da imensa,
profunda, sensibilidade estética, contida no perturbador jogo de luz
e sombra das suas telas. As palavras de Peachment fazem emergir das
trevas os detalhes mais secretos da vida do pintor ao mesmo tempo que
nos permitem mergulhar nos mistérios do pensamento mais íntimo de
Michelangelo Merisi da Caravaggio.
16.06.2013-25.12.2013
Cláudia de Sousa
Dias