“O Formato Mulher – A Emergência da Autoria Feminina Portuguesa” de Anna M. Klobucka (Angelus Novus)
Esta é uma obra de carácter
científico, no campo da Literatura e Análise do Discurso aplicada
ao texto Literário da autoria de Anna Klobucka, professora no
Departamento de Português da Universidade de Massachussets,
Dartmouth, nos EUA, onde ensina Literatura Portuguesa e Lusófona.
Antes, publicou Mariana Alcoforado: Formação de um Mito Cultural
(Bucknell University Press, 2000) e co-organizou com Helena Kaufman
After the Revolution: Twenty Years of Portuguese Literature 1974-1994
(Bucknell, 1997) e, com Mark
Sabine, Embodying Pessoa: Corporeality, Gender, Sexuality
(University of Toronto Press, 2007).
A Autora elabora neste livro uma
análise, numa perspectiva evolutiva, do texto poético no que
concerne à emergência da Autoria Feminina Portuguesa no século XX
como um processo de ocupação, melhor dizendo conquista progressiva
do espaço de produção literária no domínio público que era, até
então, de pertença quase exclusiva do domínio masculino.
Para a Anna Klobucka, a
sobrevalorização concedida tradicionalmente a uma figura feminina
que viveu entre o século XVII e primeiras décadas do século XVIII
a considerada por
muitos um ícone dentro das escritoras portuguesas que ficaram
na obscuridade ou semi-obscuridade, Soror Mariana, a qual teria
escrito as famosas Cartas Portuguesas pode ser, em parte causa
da relativa obscuridade das Autoras portuguesas contemporâneas e que
viveram nos séculos seguintes. Isto porque, conforme a posição
defendida por Klobucka na sua obra a atribuição da Autoria
de Cartas Portuguesas a Mariana Alcoforado é,a o que tudo
indica fictícia, tendo o mesmo acontecido com Violante de Cisneyros
e outras ficções de autoria masculina atribuídas à pena
feminina, tradição que recua até à época medieval com as
cantigas de amigo. O que não significa que a obra não tenha
exercído influência nas obras que são de facto de autoria feminina
em Portugal, influência essa que se manifesta em várias autoras do
século XX, como acontece com a poesia de Florbela Espanca. Anna
Klobucka, ainda no capítulo introdutório, não deixa de chamar
a atenção para o ponto de viragem na história da literatura
feminina, em Portugal que foi a publicação de Novas Cartas
Portuguesas, uma obra escrita a seis mãos por Maria Teresa
Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, sendo estas as
três autoras do século XX que ficaram conhecidas internacionalmente
como “As Três Marias”. Neste livro, envolto numa intensa nuvem
de polémica na altura em que foi lançado, no início dos anos '70,
as autoras fazem uma reinterpretação histórica do texto que fez
História, construindo um hipertexto da obra atribuída a Mariana
Alcoforado, esforço a partir do qual resulta uma obra de conteúdo
marcadamente polifónico.
Em O Formato Mulher, Anna
Klobucka opta por proceder à interpretação, pela via
ginocêntrica, da História Cultural da Literatura Portuguesa na
escrita poética feminina investigando, por um lado, a diferenciação,
nas suas múltiplas facetas polifacetada e dimensão dialógica do
discurso literário individual de cada uma delas e integrando-as na
perspectiva da dimensão histórica do mesmo discurso, pelo outro.
Relativamente ao corpus das
autoras seleccionadas Anna Klobucka decidiu incluir: Florbela
Espanca, por ser pioneira, no sentido de ter surgido como uma das
primeiras figuras femininas em Portugal cuja poesia foi reconhecida
pelos seus pares (entendendo-se por tal os “poetas homens”);
Sophia de Mello Breyner Andresen, cuja poesia de teor arcádico e
inspiração helénica lhe deram estatuto de total paridade com os
poetas seus contemporâneos do Modernismo na fase Neo-realista; Maria
Teresa Horta, uma das “três Marias” supra-mencionadas,
responsável pela ruptura com a escrita poética feminina feita até
então, para abordar temáticas, até aí, consideradas tabu na
escrita feminina (o caso da glorificação do corpo, do prazer e do
sexo); parelalamente a Maria Teresa Horta a Autora deste livro
analisa a poesia de Luiza Neto Jorge, que desconstrói o papel e o
lugar da mulher dentro da sociedade, obrigando a uma nova forma de
olhar a Mulher e à valorização desta no seio de uma sociedade
patriarcal, tradicionalmente, a relega para segundo plano, não só
no tocante ao poder e visibilidade no espaço público como à
desvalorização do seu trabalho ainda dentro da esfera doméstica;
depois, já noutra secção, Adília Lopes, a qual, também através
da desconstrução do discurso feminino tradicional na poesia
feminina chama a atenção para o cotexto presente no discurso
poético feminino; e, por outro lado, Ana Luísa Amaral, a Poeta que
dá voz às musas dos Poetas homens, colocá-las como protagonistas,
dando voz ao canto das musas ao invés de estas se limitarem a servir
de inspiração.
O principais pontos de partida para a
investigação de Anna Klobucka consistiram em:
Saber se existe de facto uma escrita
dita “feminina”, no seguimento do estudo de Isabel Magalhães e
publicado com o título O Sexo dos Textos, quando se fala de
proliferação, em certos meios, da emergência feminina na época
medieval e posterior apagamento, desde o século XVI até ao século
XIX.
Perspectivas sobre as obras das
Autoras do corpus de investigação
Anna Klobucka dedica-se, em O
Formato Mulher, à abordagem da semiose e modalizações
figurativas acerca da identidade de género que surgem, ora em
confronto ora em diálogo, com a figuração tradicional feminina
feita por poetas homens.
Em segundo lugar, a Autora toma em
linha de conta a polarização da escrita, na escrita das
Poetas/Poetisas supra-mencionadas, dos géneros feminino e masculino,
bem como a relação que se estabelece na comunicação entre ambos,
identificando o posicionamento do sujeito poético, o locutor (L)
face às outras vozes, que aparecem citadas no poema e constituem o
eu empírico ou locutor lambda (λ),
bem como a análise da correspondência semântica do género
gramatical na escrita destas seis poetas/poetisas.
Anna Klobucka analisa,
também, a forma como se estrutura o EU feminino enquanto sujeito de
criação poética e referencial do correspondente imaginário de
cada uma das seis Autoras, levantando o véu para avaliar indícios
que assinalem a manifestação de uma escrita marcadamente feminina,
no tocante ao imaginário poético de cada uma delas. Neste caso,
Klobucka observa, por
exemplo, Florbela Espanca como fazendo parte ainda de uma fase de
“guetização” da poesia no feminino, à qual críticos como
Eugénio Melo e Castro opunha uma estética masculina, criando o
contraste com a figura de Irene Lisboa, a qual apesar de não fazer
parte do corpus deste estudo, é já considerada desencadeadora de um
ponto de viragem, neste processo de emancipação da poesia feminina.
Klobucka cria,
utilizando a técnica constrastiva, as condições para estabelecer a
transição, recorrendo às palavras dos críticos da época, para
falar da poesia de Sophia de Mello Breyner, acerca de quem salienta o
mérito de “marcar, de maneira particularmente enfática, essa
mesma 'desguetização”, na viragem para a segunda metade do século
XX.
Nas
décadas que se seguem aos anos '60, a cena literária portuguesa
passa a ser progressivamente ocupada por figuras femininas como Maria
Teresa Horta e Luíza Neto Jorge, duas autoras que integram um das
secções da obra e cuja estética Klobucka, põe em confronto numa
óptica comparativa, dado que ambas estas Autoras imprimem uma nova
forma de estar na poesia, introduzindo novas perspectivas e temáticas
ligadas à condição feminina, à liberdade de expressão e ao lugar
da mulher na sociedade, sob perspectivas assaz diversificadas.
E,
finalmente, visando as últimas décadas do século vinte, Anna
Klobucka dedica a última secção deste estudo a o surgimento de
novas formas de conceber poesia mediante a poesia de Adília Lopes e
Ana Luísa Amaral.
O
critério de selecção de Anna Klobucka para este trabalho de
investigação prendeu-se com a necessidade de salientar a
diversidade e complexidade da experiência poética no feminino,
inserida nos respectivos contextos culturais e sócio-históricos.
As
Poetas/Poetisas e a sua escrita
Em
Anna Klobucka os termos “poeta” e “poetisa” aparecem,
ora em franca oposição, ora em diálogo sendo a sua distinção
algo complexa, tendo de se recorrer ao contexto da história da
Literatura e crítica Literária relativamente à expressão do Eu
feminino na Poesia.
A
demarcação destas duas declinações daquele que seria, à partida,
o mesmo conceito- a mulher que escreve – deve-se ao facto de
existir uma diferença mais ou menos marcante na forma de expressão
poética de cada uma deles. Essa diferença encontra-se
particularmente patente em Florbela Espanca e Sophia de Mello Breyner
que a Autora desta obra de que aqui tratamos optou por tratá-las
separadamente em dois capítulos diversos.
Ana
Luisa Amaral explica no texto de apresentação do livro em Portugal
que apesar de em Inglês a distinção entre “poet” e “poetess”
ter caído em desuso, em Português, sendo esta uma língua onde o
género aparece muito mais vezes declinado em termos gramaticais é
mais difícil fazer desaparecer esta distinção, por um lado e, por
outro não há tanto a tendência para identificar a palavra
“poetisa” como uma forma menor de expressão do génio poético
numa escritora que se dedique a este género literário.
Assim
para Anna Klobucka, conforme escreveu Raquel Ribeiro no Ípsilon de
27 de Janeiro de 2010:
«Florbela
é uma pioneira, a primeira mulher a escrever que se assumia
enquanto tal. Ela
era, disse João Gaspar Simões, "antes de mais nada mulher",
falando, como explica Klobucka, "a
partir da voz que se afirma
enquanto feminina". Sophia, pelo contrário, tem uma voz
universal, neutra". Florbela
seria, então, uma poetisa:
escreve como mulher antes de ser poeta, e Sophia é a "primeira
mulher que não
escreve como tal, mas como poeta".
»
Relativamente
a Florbela Espanca, Anna
Klobucka destaca o
facto de a principal preocupação desta Autora ter sido antes de
mais, a de conseguir ser aceite pelos poetas masculinos seus
contemporâneos, mas demarcando-se deles, como uma voz marginal. Na
voz poética que dá corpo à sua poesia, Florbela Espanca
autodefine-se como “irmã de Soror Saudade”, construindo um
ethos1
ou apresentação ou
self image,
seguidora do modelo de vida e forma de vivenciar a paixão de Mariana
Alcoforado. Sendo ambas estas figuras femininas originárias do
Alentejo, esta última torna-se uma das principais influências
literárias de Florbela Espanca, cuja luta pelo reconhecimento ao
direito em exprimir os próprios sentimentos através da poesia a
encaixa no Romantismo. Assim, nesta fase da História da Literatura
Portuguesa a figura desta poetisa é colocada num pólo oposto à do
poeta, facto observado por Klobucka, que chama na atenção para a
assimetria entre o poder do poeta masculino institucionalizado – a
voz de autoridade –, e a da poetisa como a voz do não-poder,
marginal.
Em
relação a Sophia de Mello Breyner Andresen – cuja obra começa a
causar impacto algumas décadas depois de Florbela Espanca, isto é,
na passagem para a segunda metade do século XX, na fase final do
Modernismo enquanto movimento literário em Portugal e dentro da
corrente Neo-realista –, esta adquire o estatuto de Poeta de
excepção, aceite como igual entre os seus pares masculinos. Mas,
segundo AK, há como já foi referido, contrapartidas para que isto
suceda: o apagamento da expressão de todo e qualquer traço de
sentimentalismo relativamente à expressão do eu poético. Ou pelo
menos, o seu reconhecimento enquanto tal. Sophia de Mello Breyner
constrói um ethos para o sujeito locutor (L) que incarna a
voz poética com base no que Anna Klobucka, ao citar a
ginocrítica dos anos '70 em Portugal apelida de “falso neutro”,
isto é a construção de uma imagem de si que consiste para os
críticos, numa voz andrógina, permitindo-lhe, assim, aceder ao
estatuto de “paridade”, com os poetas masculinos do seu tempo.
Apostando numa estética arcádica, de inspiração helenística, a
poesia de Sophia de Mello Breyner impregna-se da beleza depurada dos
clássicos gregos da qual Klobucka salienta a oposição
semântica entre “sexo” e “género” na poesia sophiniana, um
dos aspectos linguísticos mais fascinantes na obra desta Autora.
O
capítulo seguinte consiste no diálogo entre duas formas de exprimir
a voz poética no feminino por duas Autoras já do período
Pós-Modernista em Portugal Maria Teresa Horta e Luíza Neto Jorge.
Na
poesia de Maria Teresa Horta é destacada a vertente da “poesia do
corpo”, tema que é caro à Autora, mas que causou choque com as
mentalidades mais conservadoras em Portugal nos anos sessenta, por
considerarem as temáticas do prazer e do sexo como território
eminentemente masculino. Maria Teresa Horta tornou-se, em grande
parte por este motivo, no paradigma da ideia do Direito à Liberdade
de Expressão nas temáticas relacionadas com o sexo e a sexualidade
feminina e no tocante ao erotismo como fonte de inspiração na
poesia em Portugal. Para Anna Klobucka, a escrita poética de
Maria Teresa Horta marca de facto uma ruptura com o estilo de toda a
poesia feminina anteriormente produzida à década de 1960, abrindo
espaço ao experimentalismo, concretizando-se numa mudança
revolucionária na produção poética feminina, preconizando o que
Klobucka chama de “feminismo plural”, baseado na
coexistência de dois modelos diferentes: os das Poetas mulheres (ou
a androginia poética no feminino) e a das Poetisas (a expressão
livre do sentir feminino).
De
Luísa Neto Jorge é realçado em O
Formato Mulher
uma poética que relaciona o eu feminino com a topografia, isto é,
com os espaços físicos, doméstico e exterior, ocupados pela
presença feminina. A subversão do posicionamento feminino ou mesmo
da qualificação destes espaços é usada por esta Autora, que tende
a ser também vista como Poeta, como forma de contestação do papel
da mulher na sociedade patriarcal tendo em conta, por um lado, a
valorização do feminino – os corpos, vestidos ou desnudados – e
das topografias onde elas se movimentam, com base na dicotomia
existente entre as casas ou seja o espaço interior, fechado onde
elas se movimentam, e o espaço exterior .
O
último Capítulo incide sobre duas autoras do final do século XX
que começaram a fazer-se notar na década de '90: Adília Lopes e
Ana Luísa Amaral, conhecidas por dotarema sua poesia de um toque de
subversão apresentada como uma forma de “revisionismo
histórico-literário
” ( a expressão é de Raquel Ribeiro no
texto “o Sexo que elas têm” no suplemento
Ípsilon do
jornal
Público) quer
para estabelecer uma construção dialógica com autores e obras
canónicas como Camões ou Pessoa, quer para inverter, no tocante às
figuras da mitologia clássica à condição da mulher na literatura
universal.
Adília
Lopes assume, em diversos momentos da sua obra, a defesa de uma “tese
revisionista colocando em diálogo nos seus poemas o cânone e a
postura feminista no caso de, por exemplo, Fernando Pessoa e Sylvia
Plath, o isto é o "mestre” modernista e a "mestra
”
feminista. Para Adília Lopes,
Anna Klobucka
identifica o
paradigma da desconstrução radical do cânone da poética feminina,
com uma visão heterodoxa da feminilidade na poesia, através desta
combinação doo arquétipo Modernista do “Mestre” com o
arquétipo feminino e feminista da “Mestra” que se lhe opõe como
seu duplo, ou inverso, simétrico tal como o reflexo num espelho.
Por
último, a sexta Autora que fez parte do corpus deste estudo, Ana
Luísa Amaral, pode-se considerar como a rainha do hipertexto e da
inversão dos papéis, no tocante à centralidade e protagonismo das
figuras femininas e masculinas das personagens de obras clássicas,
dado que a figura feminina, até então colocada no pedestal para
servir de musa inspiradora mas sempre silenciosa, passa a incarnar a
voz poética do sujeito do discurso poético. O
pendor feminista de Ana Luísa Amaral, colocado em paralelo com o
Adília Lopes neste capítulo exprime-se através de por exemplo, uma
"poetização da domesticidade”, que reveste a sua escrita de
uma forma deliberada de prática “pós-feminista"
.
Sendo
este um trabalho inédito do campo dos Estudos de Género em
Literatura Portuguesa e tendo ainda sido feito muito pouco em
Portugal sobre esta matéria, este estudo de Anna Klobucka resulta
num livro denso, dirigido àqueles que desejam aprofundar o
conhecimento da poesia destas seis Autoras portuguesas e perceber os
mecanismos de figuração poética, riqueza semântica e potencial
imagético que estão subjacentes ao imaginário de cada uma delas.
22.08.2013-16.02-2014
Cláudia
de Sousa Dias
Bibliografia:
1. Klobucka Anna, O Formato Mulher: A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa, Coimbra, 2009, Angelus Novus.
2. Ammossy Ruth, La Présentation de Soi: Ethos et Identité Variable, Paris, 2010, PUF (Presses Universitaires de France).
Webgrafia:
1. http://angnovus.wordpress.com/2010/01/23/%C2%ABo-formato-mulher%C2%BB-por-ana-luisa-amaral/
2. http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=249580
3. http://angnovus.wordpress.com/2009/12/30/anna-klobucka-em-entrevista-sobre-%C2%ABo-formato-mulher%C2%BB/
1
Aqui uso o termo como sinónimo de construção de Eu, herdado
simultaneamente da tradição da retórica aristotélica, das
ciências sociais relacionada com a apresentação ou re-presentação
do self visando sempre um ouvinte seguindo a linha de Erwin Goffman,
com a dimensão polifónica que lhe é atribuída por Ducrot e
aplicada à análise do texto literário de acordo com a perspectiva
do linguista francês Dominic Maingueneau, conforme a publicação
da investigadora de Telavive Ruth Amossy La
Presentation de Soi.