“O Contrabaixo” de Patrick Süskind (Quidnovi; Biblioteca de Verão JN)
Tradução de Anabela Mendes
Dados Biográficos do Autor e
contextualização da obra
Patrick Süskind é natural de
Ambach, Sternberger See, perto de Munique. O Pai de Patrick, Wilhelm
Emmanuel Süskind, era também escritor além de jornalista no
Südeutsche Zeitung, tendo ficado conhecido pela obra Aus
der Wörtertbuch des Unmenshen (Do Dicionário dos desumanos, em
tradução livre), uma colecção de ensaios críticos sobre a
linguagem utilizada na era nazi. O irmão de Patrick é também
jornalista. A família Süskind está ligada a vários ramos da
aristocracia de Würtemberg , sendo um dos muitos descendentes de
Joham Albrecht Bengel e do reformador Johannes Brenz. Patrick
Süskind estudou na Universidade de Munique – História
Medieval e Moderna mas nunca chegou a concluir a licenciatura.
Mudou-se para Paris, onde viveu algum tempo, ajudado financeiramente
pela família, tendo lá escrito vários contos, muitos deles ainda
por publicar, assim como argumentos de cinema ou peças de teatro que
nunca foram levadas a palco ou adaptadas à sétima arte.
Mas o ano de 1981 é o ano em ocorre um
ponto de viragem na vida do escritor: Süskind publica O
Contrabaixo (Der Kontrabass), obra concebida
originalmente como peça radiofónica, mas que é posteriormente
adaptada para teatro, chegando a obter 500 récitas na temporada de
1984-85.
Apesar de a sua obra literária de
maior impacto ser, ainda hoje, o romance O Perfume – A História
de um assassino (Das Parfum: die Gechichte eines Mörderes)
adaptado ao cinema por Tom Tynker em 2006, e do sucesso das a novelas
A Pomba e A História de Mr. Sommer e do volume de
contos Drei Gechichte und eine Reflektion e ainda colecção
de Ensaios sobre o amor e a morte, O Contrabaixo
parece ser, para muitos, a sua obra mais bem conseguida pelo
virtuosismo artístico que consegue dar à palavra que se inscreve no
discurso. Trata-se neste caso de um monólogo de carácter
tragicómico encetado por um músico da Orquestra Nacional que se vê
a braços com um problema existencial, motivado pela obscuridade
inerente à posição ocupada pelo contrabaixo numa orquestra, a
qual, tradicionalmente, relega o protagonista, tanto no aspecto
profissional quanto pessoal, para uma posição periférica
“apagando-o” da cena – em palco e na vida amorosa. O
protagonista não vive, no entanto, sem ele pois garante-lhe o
sustento e permite-lhe fazer o que gosta.
A história trata-se, na verdade, de um
monólogo, embora apenas na aparência já que a narrativa é, toda
ela, dialógica. O locutor fala para uma audiência, um grupo de
ouvintes que poderiam, como vimos, ser o público-alvo de um programa
de rádio ou a plateia de uma récita teatral, ou ainda simplesmente
os leitores da obra de que aqui tratamos. Há dois narradores, ou
melhor, dois sujeitos enunciativos no texto: um deles funciona como a
didascália da peça teatral, descrevendo comportamentos não verbais
e pormenores do cenário, exprimindo-se na terceira pessoa como se
fosse uma voz em off:
«Alguém o acompanha...»
E há, também, o locutor principal,
que ocupa a maior parte do texto, falando na primeira pessoa. É
protagonista e também o narrador empírico ou citado da história o
qual contracena com outra personagem não animada, mas presente ao
longo de toda a narrativa e com a qual disputa o protagonismo: o
Contrabaixo. A dimensão dialógica do discurso casa-se assim com a
dimensão performativa do texto uma vez que, subjacente à voz do
contrabaixista está o som grave, escuro e pesado do ainda mais
pesado e volumoso instrumento musical, o contrabaixo, accionada pela
perícia da mão do contrabaixista.
A tomada de palavra deste
contrabaixista assenta, toda ela, num argumentário em defesa da sua
posição na orquestra e na importância daquele instrumento na
mesma, descrevendo as razões através das quais tenta persuadir o
auditório de que a sua importância é, de facto, negligenciada por
quase todos os grandes génios da música clássica que, de acordo
com a sua perspectiva, “atiram” o contrabaixo para uma posição
absolutamente obscura e periférica.
A orquestra é descrita como um
organismo vivo, reproduzindo um sistema perfeitamente equilibrado ou
uma sociedade funcionalmente organizada e estratificada, que assenta
na divisão social do trabalho, ocupando o contrabaixo a posição
mais básica da pirâmide, na qual todos os elementos funcionam em
sinergia sob orientação do maestro. No entanto, muito antes de
chegarmos ao final da trama, começamos a aperceber-nos das
verdadeiras razões que levam o tocador de contrabaixo a defender tão
veementemente a sua profissão, que é tudo menos o resultado de uma
inclinação natural ou vocação demiúrgica, mas meramente
acidental, são mais dramáticas do que se poderia pensar à primeira
vista.
«Durante uma ópera, perco em média
dois quilos de líquido:num concerto sinfónico, pouco mais de um.
Conheço colegas que vão correr par a floresta, praticam pesos e
halteres. Mas eu não! Qualquer dia, porém, sou de tal maneira
despedaçado pela orquestra que nunca mais tenho concerto. Porque
tocar contrabaixo é uma mera questão de energia, em princípio isso
nada tem a ver com a música! É por isso que uma criança nunca
há-de tocar contrabaixo na vida. Eu próprio comecei aos dezassete.
Agora tenho trinta e cinco. Foi por acaso, como a virgem que se
transforma em mãe. Mas foi de livre vontade que comecei! Comecei com
a flauta de bisel, violino, trombone e Diexenland. Só que isso foi
há muito tempo. E, entretanto, abandonei o jazz. Mas não conheço
nenhum colega que tenha chegado de livre vontade. E, de certa
maneira, isso até parece evidente, o instrumento não é facilmente
manejável. Um contrabaixo é, como é que eu hei-de explicar, uma
espécie de obstáculo como instrumento. Não se pode transportar,
tem de ser arrastado e quando cai isso dá cabo dele. Ele está para
ali...para ali, sabem, mas não como um piano! Um piano é um móvel
a sério. Um piano pode fechar-se e deixar estar onde está. Com ele,
não. Ele anda sempre para ali, como...Uma vez tive um tio que estava
sempre doente e passava a vida a lamentar-se porque ninguém se
preocupava com ele. O contrabaixo é assim. Quando temos visitas, ele
é a vedeta. Tudo o que se diz tem a ver com ele. Se se quer estar
sozinho com uma mulher, lá está ele a vigiar-nos. Se se chega a uma
situação de maior intimidade...ele assiste a tudo. Temos sempre a
sensação de que ele se está a divertir, que torna o acto ridículo.
É claro que esta sensação se transmite à visita e então... Sabem
como é, o amor físico e a sensação de ridículo têm tanto a ver
um com o outro, e como isso é difícil de suportar? É deplorável.
Não funciona de todo. Desculpem.
Ele desliga
a música
e bebe.»
Este protagonista
funde-se com a personagem não animada, durante o seu papel como
músico profissional, mas competindo paradoxalmente com ela
disputando o protagonismo na vida privada. O estado da alma do
contrabaixista é dado a entender pelo narrador não participante
através desta breve frase sincopada, no final deste excerto que
acabamos de citar e que é composta por duas orações, partida a
meio, por uma pausa significativa. Os dois actos não verbais
realizados pelo protagonista e descritos por esta voz off,
mostram uma cisão ente o momento em que é retirada a máscara de
figura pública que exibe para a sociedade o seu talento como
intérprete e em que o músico surge identificado com o instrumento,
e a vida privada em que este se refugia na bebida para encontrar
força para se separar dele e viver uma vida só sua. O acto revela
um esforço descomunal, quase físico, de tentativa desesperada de
separar a vida pública, como músico, da vida privada, como homem,
imerso numa incomensurável solidão.
O contrabaixo
proporciona ao instrumentista um emprego estável na Orquestra
Nacional, mas não o reconhecimento e admiração de que são alvo
outros colegas de profissão, especialistas de outras modalidades que
desempenham um papel mais central em qualquer orquestra, tais como o
piano e o violino. O protagonista desta história mostra-se como um
homem comum, perfeitamente banal, que se sente socialmente integrado
mas tão reconhecido e valorizado como uma formiga num piquenique
dominical. É por esse motivo que tenta a todo o custo exaltar a
própria profissão perante os seus ouvintes de forma a elevar a sua
auto-estima e persuadir os outros de que tem valor. Mas acaba por
tecer uma hilariante caricatura de si próprio, revelando-se
contraproducente o objectivo inicial, uma vez que o seu contrabaixo
acaba mesmo por usurpar a sua própria individualidade. O
contrabaixo, sendo a sua persona no domínio público,
torna-se quase na metonímia do homem que o toca, duas entidades que
acabam por coincidir, dado que o objecto inanimado se apropria da
identidade do músico. Toda a trama adquire, por isso, a configuração
de uma divertida, tragicómica metáfora ontológica: o contrabaixo
adquire olhos (os do seu intérprete), observa a interacção do
contrabaixista (ou melhor é ele que se auto-observa) com as visitas,
para absorver a atenção dos convidados, desviando os olhares que
deveriam convergir para o anfitrião.
Fora de casa, o
contrabaixista desaparece por completo, anónimo por entre a
multidão, assim como permanece anónimo ao longo da trama. Tal como
o som do contrabaixo, abafado pelos sons mais altos dos restantes
instrumentos da orquestra. Instrumento e instrumentista só se fazem
efectivamente notar em espaços muito pequenos e fechados.
Por outro lado, o
Autor consegue transformar o drama existencial do protagonista numa
hilariante sátira edipiana., ao colocar o seu protagonista a
analisar as neuroses dos músicos segundo a perspewctiva de Freud e à
luz do modelo Psicanalítico, estabelecendo uma analogia entre o
papel secundário desempenhado historicamente pela mulher na área da
Música e a forma feminina do contrabaixo, identificando essa
morfologia como factor responsável pela sua posição obscura na
orquestra. Tentará, depois, encontrar uma explicação mítica para
aquilo que considera se rum drama pessoal: a dificuldade que tem,
como contrabaixista, em acompanhar a voz de uma soprano devido ao
seu registo grave:
«Ele reina no
domínio dos baixos, ela no dos agudos.E concertos para contrabaixo
quase não existem, pelo menos dentro das obras mais conhecidas dos
grandes músicos.»
Enquanto fala, o
álcool vai-se acumulando no sangue a ponto de a peça se tornar
burlesca, semelhante a uma ópera buffa. O complexo de
inferioridade deste intérprete de contrabaixo torna-se pungente.
Segue-se uma peroração sobre a suposta relação entre a liberdade
criativa e a masculinidade, a segguir uma confissão sobre o conforto
em usufruir um rendimento estável, como é o caso, mas que nunca
passará disso.
«...dantes
havia a possibilidade do príncipe morrer e depois podia dissolver-se
a orquestra da corte, pelo menos teoricamente. Hoje em dia isso é
impossível (…). Até na guerra – eu sei disso através dos
colegas mais velhos – havia bombardeamento, estava tudo destruído,
a cidade reduzida a escombros, a ópera a arder por todo o lado –
mas na cave a Orquestra Nacional tinha ensaios de manhã, às nove. É
inacreditável. É claro que me posso despedir. À vontade. É só
chegar lá e dizer; despeço-me. Seria invulgar. Não haverá ainda
muitos a fazê-lo? (…) Ficava então livre...claro, e depois?O que
é que me resta? Depois fico para aí nas ruas...É de dar em doido.
Fica-se reduzido à miséria. De uma forma...ou de outra...»
Disserta ainda
sobre o que fazer para alcançar a realização pessoal, sair do
marasmo que é a imutabilidade do Paraíso laboral onde se encontra,
da segurança. Sobre como seria fazer o que nenhum ser racional no
mundo faria.
O livro é uma
belíssima metáfora sobre o que é a vida de um funcionário público
anónimo, condenado a fazer sempre as mesmas tarefas, todos os dias,
sem sair das normas, sem criatividade, sem autonomia. O contrabaixo
somos todos nós, na base da pirâmide social. Funcionários públicos
e privados, são todos eles graves e surdos, anónimos e
completamente desapercebidos dentro do grupo de trabalho: os
indispensáveis contrabaixos.
Cláudia de Sousa
Dias
10.09.2013-0303.2014