“O Reino Proibido” de J.J. Slauerhoff (Teorema)
Slauerhoff é um escritor holandês, nascido no final do século XIX. Torna-se um autor icónico da
literatura holandesa nas primeiras décadas do século XX, tendo vindo
a falecer no início da década de 1930, precisamente durante a Grande
Depressão económica que antecedeu a Segunda Grande Guerra.
Slauerhoff era médico, mas a carreira literária nunca deixou de o
seduzir. O Reino Proibido foi visto como a sua obra-prima e é
já considerado um clássico da literatura holandesa. O
experimentalismo contido na narrativa deste romance poderá incluí-la
dentro da corrente modernista tal como acontece com Elliot, Joyce ou
Woolf.
A narrativa principal situa-se na
década de vinte do século que precede o actual e é protagonizada
por um radio-telegrafista irlandês, cuja vida se encontra sem rumo,
mas que ainda assim – ou se calhar por isso mesmo – consegue ser
o ponto de intersecção de histórias de vida entre Ocidente e
Extremo Oriente com ligações ao passado comum de ambas as culturas.
A vivência errante do protagonista faz dele o elemento receptor de
traços culturais que são transversais à passagem dos séculos,
reportando-se à presença portuguesa e holandesa em Macau e outras
cidades do Oriente, quatrocentos anos antes.
À medida que a viagem prossegue e o
protagonista se aproxima de Macau, este começa a sentir-se
transportado para épocas remotas, ao mesmo tempo que vai incorporando a
personalidade de Luís Vaz de Camões, personagem que acaba por tomar
conta da sua mente durante grande parte da narrativa: chegado a Macau, a vida do
marinheiro altera-se e começa a fundir-se com a do Poeta
quatrocentista.
Ao chegar ao Oriente, o protagonista assiste ao
ataque da frota holandesa a Macau e toma parte na defesa da povoação.
Neste momento da história, as personae de ambos convergem numa
mesma figura que participa no conflito, conduzindo uma sortida
vitoriosa dos locais contra o assédio holandês. O herói
luso-irlandês fica ferido. Então, ambos os “eu” se separam para
seguir caminhos diferentes. Camões isola-se para começar a escrever
um poema épico. O radio-telegrafista regressa à realidade do tempo
presente numa espelunca de um hotel duvidoso em Macau do século XX, para aí combater os fantasmas do passado.
O romance é, antes de mais uma
construção dialógica entre duas épocas representadas por duas "eus" distintos, mas com afinidades tais como o gosto por viajar, conhecer novas paisagens e gentes diferentes. São,também, dois
seres de certa forma desenraizados sem amarras fortes que os prendam
à terra de origem a não ser a própria cultura. Solitários, portanto.
A trama desenvolve-se por meio da
viagem onírica do marinheiro radio-telegrafista e pela constatação do
choque cultural entre a forma europeia e sobretudo católica (não à
toa que a persona do século XX é um individuo irlandês, que
examina o que tem aquele povo em comum com os povos meridionais do
sul da Europa e os portugueses em particular) com a forma de pensar
oriental, o que transforma a narrativa num intrincado enredo
transcontinental.
A trama
No capítulo I temos uma espécie de
introdução ou prólogo cuja cenografia é uma pequena província
administrada por um governador português. O confronto entre
culturas dá-se, como não podia deixar de ser, entre a administração
local, operada segundo as regras dos portugueses que, na maior parte
das vezes, se manifestam em autênticas atitudes de (des)cortesia, as
quais acabam por despoletar um grave incidente diplomático a culminar em conflito armado. Está em jogo a província de Malaca, o "reino proibido", à qual os portugueses pretendem deitar a mão. A
vantagem numérica dos locais debate-se com a superioridade
tecnológica dos navios portugueses e as tácticas militares
europeias. Mas são derrotados. Ao governador português
só resta a vergonha e a ruína ao chegar a Portugal ou então o
exílio.
É neste cenário que cai o marinheiro
irlandês quando viaja por outras épocas durante o sono.
O primeiro capítulo após o Prólogo é
narrado pela “voz” de Camões enquanto personagem do romance, à
chegada a Lisboa, altura em que se dispõe a verter, em tom
confessional, a recordação dos seus amores em terras do Oriente e do
Reino Proibido.
O capítulo II passa-se, outra vez, no
Oriente.
O terceiro capítulo é narrado pelo
ponto de vista de três portugueses ou ibéricos a viver no reino
Proibido: o minhoto Pedro Velho, um lobo do mar, ou melhor, uma raposa
cuja astúcia o torna implacável. Faz inimigos com facilidade, uma vez que a sua postura é sempre a de um triunfador. Possui uma
personalidade optimista. O segundo é Ronquillo, venal e corrupto
frade dominicano, o qual tenta violar a lindíssima filha euro-asiática do Procurador Campos– a terceira voz –
Pilar, a qual está entregue às freiras do convento local.
No capitulo IV, a trama que se
desenvolve no século XVI, prossegue até ao desfecho trágico, mas
ressurge depois no século XX, com o radio-telegrafista a unir os dois
tempos da história...e da História.
O diálogo entre épocas e a forma como
é explorada a personalidade do Poeta/Marinheiro à deriva no
deserto, expulso da cidade e com o coração destroçado,
perdido de amores pela rara beleza de Pilar, mostra-o completamente
subjugado ao seu daimon, que o impele a escrever para melhor
lembrar tudo o que vivera.
Tal como o marinheiro especialista em código MORSE no século XX com
que se parece muito mais com Camões do que se poderia pensar à partida, devido ao carácter andarilho, sempre em busca do impossível e cuja meta
parece sempre estar para lá da linha do horizonte, por não caber dentro dos limites do seu pequeno território geográfico.
Uma história onde a beleza plástica
das imagens e a imaginação não conhecem limites para quem nasce
com a inquietação do espírito de aventura.
O livro foi editado em Portugal, pouco
antes da celebração doa quinhentos anos da expansão portuguesa e
da Expo 98, sendo publicado com o apoio da Fundação do Oriente. Leio-o um pouco tarde tendo-me sido oferecido após ser repescado num alfarrabista. Um belo presente, sem dúvida.
Cláudia de Sousa Dias
01.12.2014