Flanzine nº 7 - “Miopia” (org. João Pedro Azul e Luís Olival)
Há uma semana atrás foi lançado o
mais recente nº da Flanzine, o nº 8 intitulado LOL
& Pop mas,
dado que este ainda não me chegou às mãos, falar-vos-ei do nº
anterior. Miopia,
precisamente. A Miopia
está
na ordem do dia, e é omnipresente, ubíqua. Dificuldade em ver ao
longe. Pode também ter a ver com a “cegueira” de que falava
Saramago no livro que lhe serviu de trampolim para o Nobel e que me
deixou intrigada numa primeira leitura, ainda no início dos anos
2000, sobretudo pela semelhança estrutural e pelo aspecto
progressivo que partilha com o romance de Camus, A Peste. Mas, após a segunda leitura, já dois anos após o rebentar a crise de
2008, vi-me obrigada a olhar a Europa com lentes progressivas, saindo
da miopia mental e sem precisar de um transplante de córnea.
Na
Flanzine nº 7 fala-se dos mais variados tipos de miopia, situações
episódicas, por vezes de cariz autobiográfico, histórias que
remetem para o lexema e a sua condição estigmatizante, associando-o
a uma miopia física que adquire a forma de metonímia. Ou não. De miopia mental, ideológica, social.
Este
número da Flanzine cativa ao primeiro olhar logo pela imagem arrepiante
que exibe a aguarela de cariz algo macabro onde pássaros
(estorninhos?) vazam o olho esquerdo de Jorge Luís Borges. As aves
picam o olho de onde emerge uma chuva de sangue, enquanto o outro, o
direito, está opaco e completamente incapaz de ver seja o que for. A
autoria da ilustração é de Tamara Alves.
João
Pedro Azul fala
de estigmatização e miopia levada a cabo pelos “outros” e de
como essa miopia pode ser usada em favor do estigmatizado.
No
texto de Catarina
Nunes de Almeida é
também abordada a situação onde o estigmatizado é o imigrante que
chega à Europa, através de um mais do que actual poema em prosa
“Naufrágio em Lampedusa”.
Aludindo
a um conto de Hans
Christian Andersen
e, simultaneamente ao mito de Fátima no poema “Miocardia ou Miopia
do Coração” o poema de F.S.
Hill aponta
os paradoxos da moderna cristandade, acompanhado da belíssima
ilustração em tons de cinza de Carlota
Lagido,
onde figura um coração que emerge de uma moita e se encaixa na
imagem de uma ave que, a alguns, poderá parecer uma pomba. Do lado
esquerdo, quase invisível, um gato preto de aparência algo
mefistofélica, com patas e nariz brancos e olhar fosforescente, suge uma luciférica anti-miopia.
Poema
magnífico é o de Joana
Bértholo a
revelar a exímia artífice da palavra e destreza no domínio da
linguagem, particularmente no aspecto das múltiplas declinações
semânticas da palavra “miopia” nas suas “Anotações
Inter-galácticas”.
João
Silveira traz
para a Flanzine 7
“As Dioptrias do Coração de Elisa” aludindo ao poema de António Gancho "As Dioptrias de Elisa" para dar uma machadada na
indiferença dos bem-instalados na vida e na respectiva miopia face
à miséria social que é sugerida pelo narrador acerca daqueles que
vivem centrados no próprio umbigo. O poema é satírica e
eficazmente ilustrado por Duarte G. exibindo dois hipsters blindados
num carro, encurralado por uma manifestação que decorre lá
fora, enquanto ligam a rádio para não ouvirem as vozes dos
manifestantes, preferindo ficar imersos em pilhas de revistas de arte e jornais sobre
finanças, viram a cara ao que se passa na rua. Sobre todos eles,
paira um balão, com um ícone obeso que ostenta um cifrão e um
sorriso obsceno.
Miguel
Martins traça
em linhas gerais uma cena do quotidiano, à mesa de um café
onde só se assiste à banalidade. E, no entanto, as questões mais
próximas do homem são precisamente as mais prosaicas, fazendo
lembrar a tarde de natação recordada por Kafka no seu diário,
referindo-se ao dia em que a Alemanha havia declarado guerra à
Polónia.
De
Sónia Batista
surge
o poema que fala do proibido e da educação que não ensina a ver
excepto por um único e determinado ponto de vista. Uma forma de
miopia selectiva, onde se joga com dioptrias e dislexias cognitivas.
Estereótipos e distorções, portanto.
Já
o texto de Miguel
Cardoso a miopia é encarada como o universo cognitivo dos medíocres ou dos
ingénuos que param no tempo.
Lina
e Nando
são os autores da ilustração que incarna a figura mitológica da
Miopia, com quatro olhos (ou lentes), acompanhada do texto: “Miopia,
filha de Zeus, de tanto espreitar ao longe homens e mulheres
desnudos, arregalou-se-lhe na face um segundo par de olhos...”
A
melancolia é a nota dominante do díptico, dois belos poemas de
Renato Cardoso,
acompanhados por uma lindíssima fotografia de
Olga Santos,
que recebem o título genérico de “Hipermetrofia de S. Lázaro”,
enquanto Marta
Bernardes nos
dá a conhecer uma visão desencantada do mundo e da sociedade com
“seis dioptrias à esquerda e sete e meia à direita”. Ao lado do poema mas independente deste, Luís Silva ilustra uns óculos que dificilmente se encaixariam na anatomia humana, pouco ajudando a curar a miopia de quem quer que seja.
Alex
Gozblau ilustra o poema
de Rute Castro,
inspirado em Virginia
Woolf e Valério
Romão aponta a miopia
relacionada com a falta de visão em relação ao futuro, que nada
tem a ver com astrologia, tarologia ou quiromancia (todas formas
míopes de olhar o futuro) e para o qual a sociedade (elites e
massas) só conseguem dirigir um olhar estrábico.
Hélder
Magalhães num poema
paródico que se decompõe em seis Hai-ku e uma quadra (apesar de não
se apresentar graficamente dessa forma, a leitura em alta voz dá-lhe
esse ritmo) congrega elementos vários como o amor, a nudez, luz e
miopia, criando um efeito, de certa forma, “impressionista. Ilustrado
por uma bela fotografia de
Mário Venda Nova.
Sempre
em tom de provocação, parodiando a obra “A Origem do Mundo” de
G. Courbet,
João Vilhena
apresenta o trabalho plástico (ou de silicone) intitulado “Stereo
Myope étant donnés Pubien”. O poema de Margarida
Ferra focaliza a miopia
da memória, o olhar que vê o passado desfocado, por vezes tão
esbatido que adquire a imaterialidade da inexistência em “Vilanela
como quem não vê”.
E
passemos agora aos textos em prosa.
Comecemos
pelo texto de Margarida
Ribeiro, que efectua a
ligação ao tema deste número da revista, na última frase do texto, a
remeter para a questão da visão míope quanto à forma específica
de captar imagens, dotando assim o texto de uma grande beleza plástica.
Nuno
Estêvão apresenta-nos
“O Senhor Serafim”, protagonista de um conto cujo cenário é
ambíguo, deixando o leitor na dúvida se se trata de uma consulta
num oftalmologista ou num hospital psiquiátrico, onde o narrador faz
a apologia do absurdo, a resultar num hilariante texto de teor
marcadamente surrealista.
Cláudia
Lucas Chéu constrói um
pequeno texto dramático cujo objectivo é realçar a componente
esquizofrénica dos programas de entretenimento televisivo que
transformam o espectador em espectáculo. Note-se a ironia do título
“Devemos ajudar os desprivilegiados”, objectivo que está
totalmente ausente da interacção entre o pivot e o ouvinte. Todo o
texto é um autêntico “diálogo” ou melhor um conjunto de enunciados que é tudo menos um diálogo,
onde a réplica ao outro é completamente ignorada, denunciando a
autêntica “miopia” patente na relação interpessoal entre ambos
os intervenientes.
Gonçalo
M. Tavares trata
o tema com “Miopia e Erudição” dois conceitos que, no conto, se
aproximam tanto que chegam a confundir-se, traçando cinco quadros
onde se desdobram critérios de (não) avaliação das dioptrias dos
utentes que vão parar à consulta do oftalmologista.
Já
para Beatriz Hierro
Lopez
miopia é tudo uma questão de perspectiva.
Filipa
Leal,
por sua vez, estabelece um diálogo, sob a forma de texto dramático,
inspirado na peça Salomé
de Oscar Wilde e nos Contos de Gin-tonic de Mário Henrique Leiria,
criando a história de um equívoco onde a culpada é a miopia: “É
o que faz a miopia”.
Com
João Reis
a miopia está presente por causa da presença de “um homem com
óculos”, apenas para demonstrar como pode a miopia matar por um
motivo fútil.
Manuel
Cintra
traz-nos, por outro lado, a “Desmiopiação” que surge ao lado de uma belíssima ilustração de Raquel
Costa a mostrar a forma de ultrapassar a miopia passando a realidade por uma lupa. No texto de Cintra o protagonista é jovem míope assediado, na melhor das hipóteses, por um
fantasma e, na pior, por um ser infernal, dotado de apetites
vampíricos.
Paulo
José Miranda
cria um dos mais belos e mais bem construídos textos das revista, a
articular-se na perfeição com o tema desta edição da Flanzine.
Discorrendo sobre as faculdades de ver ao longe e ao perto do ponto
de vista filosófico, o autor re-liga o mito e o sistema de crenças
à beleza da palavra e à criação de sentido(s). A ilustração é
de Rui Rasquinho.
Ariana
Aragão
mostra o seu “Plástico Fetiche” através de um mergulho sórdido
no ambiente de decadência, exclusão, desvalorização social e
destruição de ilusões em que se move uma trabalhadora do sexo,m
contraponto com o fascínio doentio que a sordidez nas relações
humanas exerce no voyeurismo de uma sociedade míope.
João
Sobral
expõe outro lado da miopia social numa mini banda desenhada onde
descreve, em poquíssimas palavras, a indiferença dos privilegiados e, mesmo, dos remediados que o sistema económico-financeiro empurra para
a miséria.
Frederico
Pereira
centra-se na dificuldade em remar contra a maré, ao compreender a
recusa da sociedade em lutar contra a solidão que implica a
degradação progressiva do corpo físico, a par da também
progressiva alienação da mente. A miopia voluntária da sociedade
para com este lado do real serve de base à construção do discurso
duríssimo do seu “Contracorrente”.
Inês
Fonseca e Santos
apresenta uma miopíssima “Lagarta Listrada”, de onde sobressai
um discurso intencionalmente híbrido entre o Português Europeu e
Brasileiro e, ao mesmo tempo, as intertextualidades com os contos
tradicionais como “O Capuchinho Vermelho”, com a poesia de Manuel
Bandeira e
com o discurso do absurdo e de cariz surrealista de Lewis
Carroll
em “Alice no País das Maravilhas”. Ilustrou Catarina
Vieira.
A
hilariante ilustração da contra-capa é de Pardal/Shut
up Cláudia a representar
uma Eva e um Adão míopes, totalmente desorientados na procura do
fruto proibido, procurando-o no chão, enquanto ele se encontra nas
árvores. O trocadilho fonético que lhe serve de legenda poderia
figurar no semanário de Charlie Hebdo, “Num bejo uma piça!” é
o mais perfeito retrato da MIOPIA. E com esta me calo.
Cláudia
de Sousa Dias
14.05.2015