“Freshwater – A Comedy” by Virginia Woolf (Harvest Books-Harcourt)
Drawings by Edward Gorey
Na nota do editor, na contracapa da
edição anglófona de que aqui famalos hoje, está escrito o seguinte (tradução minha):
A única peça de teatro conhecida,
de autoria de Virginia Woolf, Freshwater, é uma hilariante
farsa baseada na vida da tia-avó da escritora, Julia Margaret
Cameron, famosa fotógrafa da era vitoriana. Escrita originalmente
para ser representada em sessões privadas, Freshwater foi,
primeiramente, levada a cena no Vanessa Bell's London Studio, em
1935, num dos serões teatrais do Bloomsbury Group. Faziam parte do
elenco Leonard Woolf, Vanessa Bell, Duncan Grant, Julian e Angelica
Bell. Cerca de cinquenta anos depois, Freshwater voltaria a
ser notícia, após ser representada em Nova Iorque, contando com uma
equipa de produção francesa, recheada de estrelas do mundo das
Artes, incluindo o dramaturgo Eugène Ionesco, o realizador
Alain-Robbe-Grillet e a romancista Nathalie Sarraute.
Nesta edição, o espírito inerente aos diálogos escritos por Woolf é realçado pelas delicadas e algo naif ilustrações
macabras da autoria de Edward Gorey, cujo produto final numa perfeita combinação de
ironia e sátira.
Virginia
Woolf (1882-1941), foi um dos maiores ícones literários do século XX, marcando a arte da escrita ficcional com trabalhos tão
fracturantes como Mrs. Dalloway
ou To the Lighthouse.
(...)
Esta edição, em inglês no original,
conta com o prefácio de Lucio P. Ruotolo, que tem o mérito de fornecer uma contextualização detalhada da escrita e produção da peça para ambas as versões. Não explica, no
entanto, o porquê da razão pela qual um texto que contém uma
crítica social tão poderosa, dirigida à Inglaterra vitoriana e, sobretudo, a alguns dos seus ídolos com pés de barro, seja ainda hoje
considerada uma obra “menor”, saída do imaginário de Woolf, uma
vez que os críticos especializados no Reino Unido (país no qual ainda
não se encontra publicada) a classificam como representativa da feceta “light” da
autora de As Ondas. Sobre a obra, ainda só publicada nos
Estados Unidos, Ruotulo escreve o seguinte:
«A encenação de Freshwater,
em 1935, peça de teatro que Virginia Woolf escrevera doze anos antes e submetida a uma minuciosa revisão especialmente para este evento,
foi apenas um dos muitos serões teatrais que caracterizavam as
festas “Bloomsbury”, desde o início da década de 1920. O leque
de actividades deste grupo abrangia desde a produção do Comus de Milton, até espectáculos de variedades e dramatizações que, nas
palavras da própria Virginia, poderiam ser mesmo “obscenamente
sublimes” (ou sublimemente obscenas, se optarmos por uma tradução
mais literal). David Garnett [artista plástico e, dizem as más línguas, amante da irmã de Woolf Vanessa Bell], recorda, na sua autobiografia, de
entre as comédias mais antigas ali representadas, uma peça
intitulada Don't be Frightened, or Pippinngton Park, inspirada
no relato jornalístico sobre um cavalheiro abastado que molestara
uma jovem no parque. Vanessa
Bell fazia de vítima, e
o último acto era encenado como um pas de deux
por Lydia Lopokova
e Maynard Keynes.
Outra peça, escrita por Quentin
Bell [sobrinhode Virginia, filho de Clive e Vanessa Bell], mostrava a sua
casa em Charleston como uma ruína arqueológica, num futuro
distante, visitada por turistas. Bell recupera também o género
drama cómico em coplas rimadas, a que dá o título de The
Last Days of Old Pompeii. Estas
representações tiveram lugar em várias residências diferentes do
grupo.
Freshwater
parece fazer parte de um conjunto de peças, levadas a palco em
meados dos anos 1930 no Vanessa Bell's London Studio sito no nº 8
Fitzroy Street. (...) O
estúdio de Vanessa tinha a forma de um L, onde os espectadores eram
dispostos ao longo do segmento mais comprido do “L”e com um palco
tapado por uma cortina no segmento mais curto. Na noite de 18 de
Janeiro de 1935, a lotação estava visivelmente esgotada, com uma
plateia de cerca de oitenta convidados, que haviam comparecido
especialmente, a pedido de Mrs. Clive Bell e Mrs. Leonard Woolf, para
assistir a Freshwater, A Comedy.
O evento era também parte da celebração do aniversário recente de
Angelica Bell [sobrinha de Virginia e irmã de Quentin]. O público estava,
já, em espírito de festa desde o início e a peça, que começara
às 9:30, foi representada em ambiente barulhento e informal. A voz
tonitroante de Clive Bell e, sobretudo, a sua gargalhada,
foram ouvidos na sala durante toda a performance. Dado que o palco
estava escassamente iluminado, nem sempre era possível ver, mas
apenas ouvir, o que aí se passava. Mas a entrada do diário de
Virginia no dia seguinte regista a sua própria apreciação acerca
deste “serão de riso desbragado”. A produção, apesar de
deturpada, assim como a própria escrita de Freshwater,
agradara-lhe claramente. A sala
onde decorrera a performance encontrava-se ligada por um passadiço
de madeira, coberto por um telhado de ferro ondulado, ao estúdio,
adjacente, de Duncan
Grant. Depois de caído o
pano, após a cena final, convidados e actores mudaram-se, como era
hábito, ruidosamente, através do corredor, para uma festa no
alojamento de Duncan. A reunião, depois da apresentação de
Freshwater foi,
como era previsível, longa e festiva.
Mas enquanto estas apresentações das
peças do grupo Bloomsbury decorriam numa atmosfera divertida, a sua
preparação obrigava a um grande dispêndio de tempo e trabalho
árduo, tanto para os autores como para os participantes. Isto
notou-se sobretudo no caso de Freshwater. Foram
feitos ensaios ao longo de todo o Verão que antecedeu a estreia da
peça e, até mesmo numa abordagem superficial ao texto, se consegue
ver o empenho de Virginia na investigação do tema central da peça,
a sua tia-avó, Julia
Margaret Cameron. As
notas desta edição Freshwater1dão
apenas uma pequena ideia da típica meticulosidade com que abordava
até mesmo projectos "menos sérios".
Os dois manuscritos
da peça, aqui publicados pela primeira vez, foram descobertos por Anne Olivier Bell [esposa de Quentin], em 1969, algumas semanas depois do falecimento de
Leonard Woolf [marido de Virginia Woolf]. Na verdade, Leonard Woolf só teve
conhecimento da sua existência entre a vasta acumulação de papéis
em Monk's House, mas não os conseguiu encontrar quando,
primeiramente, Quentin Bell lhe perguntara pela peça não
publicada de Virginia.
A questão da
identificação destes dois textos tornou-se, então, complicada pelo
facto de nenhum dos espectadores sobreviventes, assim como actores
participantes que foram entrevistados terem a certeza de qual das
duas versões havia sido representada em 1935. Quentin Bell
estava entre o grupo de pessoas que receberam convite mas não
puderam comparecer ao evento. Tendo faltado à representação feita
no estúdio da mãe, foi forçado a preparar o primeiro rascunho da
biografia da tia, para reconstruir a peça a partir da recolha de
ensaios a que ele próprio havia assistido em Charleston. As notas de
Quentin Bell2
são a melhor prova que permite a datação pelo menos de uma das
duas versões, uma vez que este escrevera-as antes de a sua esposa
ter encontrado os manuscritos e estas registam dois incidentes, que
ocorrem no texto que começa por “Sit still, Charles”. Os dois
incidentes são o poema de Tennyson sobre uma jovem afogada e,
sobretudo, a cena na praia entre Ellen Terry e John Craig. Uma transcrição
manuscrita feita por Vanessa, do seu papel como Mrs. Cameron, a qual
inclui a listagem do elenco, constitui uma prova adicional. Com uma
flagrante excepção (ver pp. 75-76, no original), Vanessa
transcrevera as suas deixas tal como estão na versão “Sit still,
Charles”.
Angelica
Garnett [Bell de nascimento] descobrira recentemente, antes desta publicação, outra
listagem do elenco, esta com a letra de Virginia, que mostra uma
listagem de personagens Dramatis Personae
de certa forma diferente e maior. Apesar da existência de diferentes
listagens do elenco poderem significar outra representação da peça
revista/reescrita, não se consegue encontrar indícios de que esta
lenha sido levada a cena mais do que uma vez.
As
notas de Vanessa Bell encontram-se depositadas, juntamente com as
duas versões de Freshwater, na
Biblioteca da Universidade do Sussex, em Brighton.
Apesar
de a primeira versão não revista de Freshwater,
incluída aqui no Apêndice, ser
de certa forma mais difícil de datar, um exame tipográfico e das
referências contidas sustentam a afirmação de Quentin
Bell de que aquela é a
versão de 1923. Já em
1919, Virginia demonstrara intenções de escrever uma comédia sobre
Julia Cameron.
Na entrada do seu diário de Julho de 1923, Virginia referencia ter estado a
trabalhar arduamente em Freshwater, A Comedy,
uma diversão bem-vinda na sua luta com The Hours
(Mrs. Dalloway). Ela contava acabar a peça no dia seguinte. Mas seis
semanas mais tarde, numa carta dirigida a Vanessa, Virginia exprimia
consternação pelo facto de a peça ainda não estar acabada e
convidava a irmã e Duncan
Grant para a virem ouvir
lê-la “o quanto antes”. A urgência da expressão sugere um
prazo, o que é esclarecido na carta a Desmond
MacCarthy, escrita
provavelmente em Outubro daquele ano, a perguntar se ele consideraria
conduzir a encenação da peça em palco, para uma produção de
Natal. Este concordara, então, dirigir Freshwater.
Virginia, no entanto, profundamente envolvida na escrita do seu novo
romance, decepcionaria um número considerável de pessoas, ao
decidir abandonar a produção. “ Eu podia escrever algo muito
melhor,” explica ela a Vanessa, já no final do Outono de 1923, “
se eu disponibilizasse um pouco mais de tempo para tal: e antevejo
que todo aquele assunto será um empreendimento muito maior do que eu
pensava.” No entanto, só conseguiria arranjar tempo para melhorar
aquela peça uma década mais tarde(...)».
Lucio P.
Ruotolo
No tocante à contextualização literária, Freshwater
traz implícita, até no
próprio título, uma ruptura com o cânon, melhor dizendo os escritores contemporâneos consagrados na época em que viveu a autora, já no final da era vitoriana, o qual era sobretudo constituído pelos escritores do período edwardiano. Estes representavam a
escrita clássica, de narrativa de desenvolvimento linear, com
temáticas associadas à exaltação do império Britânico e os
valores da sociedade vitoriana. Ruptura essa pela qual Woolf ansiava
ardentemente e que foi conseguida passando a autora de “To the
Lighthouse” a figurar entre os escritores do período georgiano e
do movimento modernista que incluía autores como T.S. Elliot, Katherine Mansfield e James
Joyce.
Sendo Freshwater, como já foi referido, na nossa opinião injustamente tratada pela crítica, torna-se importante frisar a importância da classificação da obra dentro do género comédia ou sátira
social dirigida precisamente à facção intelectual que estava em voga no
final da era vitoriana (os escritores e artistas do período edwardiano). A
acutilância de Woolf exprime-se aqui na forma como são mostradas as
atitudes das diferentes personagens que roçam a hipocrisia, o
ridículo e, por vezes, o patético, onde a diferença entre o ser e o parecer é
de tal forma chocante e o abismo entre o ethos individual ( o eu na
sua faceta privada e interior, a componente interna da sua
personalidade) e ethos colectivo (imagem pública, o comportamento observado) da mesma
personagem é tal que esta se torna objecto de troça por parte dos
destinatários anónimos a quem se destina o conteúdo da peça
(o público leitor ou a plateia que assite à cena) sobretudo ao poeta Tennyson e ao pintor
Watts (ambos condecorados pela Rainha Vitória) sem deixar contudo
escapar, o perfeccionismo obsessivo e algo caprichoso da própria tia, a fotógrafa
Julia Cameron. Tennyson e Watts são especialmente visados pela
apuradíssima arte do escárnio e mal-dizer de Woolf: Tennyson é mostrado na peça como a incarnação de fauno, ou de um velho maníaco, que gosta de perseguir jovenzinhas
púberes no parque. Neste caso, tenta seduzir a esposa adolescente de outro personagem
cujo ethos individual não é também de todo favorável, o pintor Watts, idoso
e impotente, o qual escraviza a jovem esposa, obrigando-a a posar horas a
fio, imóvel e com roupas escassas independentemente das condições
climatéricas, até a adolescente chegar ao cúmulo de desmaiar de exaustão. Por outro
lado, na versão de Freshwater de 1932, Woolf enfatiza bastante mais
do que na primeira, escrita dez anos antes, o carácter enérgico e
dominador de Julia Cameron logo a partir do primeiro enunciado da
peça, a qual abre com esta personagem, cujo discurso, nesta versão refinada e melhorada pela autora, jorra
com uma extraordinária força ilocutória: “Sit still, Charles! Sit
still!”. Esta forte componente performativa do discurso contrasta
com o tom introspectivo da mesma personagem na primeira versão, a qual se exprime num monólogo perorativo com o qual é aberta a cena. Também
o final desta primeira versão é dotado de um tom bastante mais
solene e lúgubre, a denunciar um olhar mais dramático e (talvez) um pouco mais
pessimista. Tudo isto resulta numa atmosfera bastante mais pesada do que aquela com
que a autora apresenta na versão dos anos trinta, onde a dimensão e teor do ridículo têm um peso muito maior, pela associação da ideia de hipocrisia, onde se premeia uma fachada que tem por base uma construção de um ethos colectivo fictício por não ter correspondência ou reflexo no ethos individual. Isto porque, Sua Majestade a Rainha não está
a premiar a beleza dos versos de Tennyson, nem a perfeição das
arte plástica de Watts, mas a repercussão que tem a imagem pública de
ambos os vates em todos os recantos do Império e para lá dele. A
Magnificência ou a Grandiosidade, implícitas na expressão "The Utmost for the Highest" que é aplicada às artes e repetida até à exaustão durante a peça, servem para enaltecer o mesmo
império e a própria imagem da Rainha, do seu poder e da grandeza do Império.
Por último, uma palavra para o título da peça: "Freshwater" é a localidade onde se passa a acção, na vivenda Dimbola. É o lugar onde, por via da imaginação de Woolf, se refresca o
espírito, através da contestação dos símbolos inatacáveis do
Imperialismo Britânico e à suposta rigidez da moral vitoriana, da obsessão pelo politicamente
correcto para em seu lugar fazer
a apologia da espontaneidade, da livre expressão, verbal e corporal dos desejos, características de personalidade que são
incarnadas pela jovem adolescente Ellen Terry (Nell) e são plenamente verbalizadas quando esta
decide finalmente deixar o dever (de esposa obediente), seguir o
seu próprio rumo e abandonar uma vida sufocante, recheada de
pompa e circunstância, uma autêntica feira de vaidades, onde todos
a tratam com condescendência devido às suas origens e lhe ditam
constantemente o que deve e não deve fazer. Nell é a única
personagem que é caracterizada com benevolência e com alguma
ternura por Woolf que lhe atribuiu ethos (imagem) de um ser algo angélico,
naïf que passa a agir orientada pelo princípio do prazer
libertando-se do seu superego (as restrições morais impostas pela
sociedade que dispõem do
poder e da vida dos outros) mas sempre sem intenção de magoar seja
quem for. o amadurecimento de Nell dá-se quando aprende, progressivamente, a dizer “não”.
O
desenrolar das peripécias de Freshwater, por se tratar de uma peça composta por personagens reais, algumas
delas sendo pessoas próximas e inclusivamente familiares da autora,
cujos defeitos são exagerados, foi, por esse motivo, representada em
privado durante a vida da autora, persistindo até hoje no domínio
da semi-obscuridade. Já é, pois, por tudo o que já aqui foi dito, tempo
de lhe dar o destaque mais do que merecido.
Cláudia
de Sousa Dias
Londres,
14 de Dezembro de 2015.
1As
quais também incluímos nesta tradução a partir do original.
2Para
essa biografia.