"Quando Portugal Ardeu - Histórias e segredos da violência Política no pós-25 de Abril" de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)
Já li e comentei vários livros do Miguel Carvalho neste blogue - Dentada em Orelha de Cão (Campo das Letras), Aqui na Terra (Deriva), Lúcio Feteira: A História Desconhecida (Quidnovi) e A última Criada de Salazar (Oficina do Livro) -, todos eles empolgantes trabalhos de jornalismo narrativo. Mas nada como o livro de que hoje falo. Este foi o primeiro dele que li a causar-me um impacto tal que me obrigou a olhar o país e o meu passado de forma completamente diferente, sobretudo os primeiros doze anos da minha vida, antes de Portugal fazer parte da chamada CE (Comunidade Europeia, como então se chamava). O livro surgiu em 2017, um ano de incêndios florestais e da tragédia de Pedrógão Grande e, por isso, na altura do lançamento e, principalmente da sua comercialização pouco meses depois, muitos leitores confundiram a temática tratada, julgando tratar-se a obra de fogos florestais, que foram pródigos naquela ano. Mas não era o o caso. Uma grande amiga, já falecida, até aventou a hipótese de os fogos do início do Verão escaldante daquele ano de 2017 terem sido criados para desviar a atenção do próprio livro e do que ele vinha recordar! Mas a verdade é que passei a olhar por um prisma completamente diferente o 25 de Abril de 1974 e os anos que se seguiram, num Portugal que não era nem estava tão pacífico como se pensava, após um revolução onde nem tudo foram cravos.
Tinha ouvido falar, é claro, nas FUP-FP 25, mas nunca como uma ameaça de longa duração (para alguns), apenas como fenómeno pontual (para muitos, sobretudo as gerações mais jovens que não têm a memória dos acontecimentos) e, sobretudo nunca tinha ouvido mencionar sequer os grupos e facções que faziam parte de uma rede bombista de extrema-direita (espalhada por todo o país, mas com maior incidência a norte do Douro), arquipélagos incluídos. Não conhecia de todo a sigla MDLP, em casa “não se falava de política”, as pessoas calavam-se e calavam os outros, impondo uma constante omertà. O regime havia mudado, mas o medo persistia. E os ‘Corrécios’ eram um grupúsculo cujo líder ninguém queria ofender ligados ao crime organizado e cujo nome ninguém, no seu juízo perfeito, queria sequer pronunciar em público. Portugal, nessa altura, era tão seguro quanto a Venezuela, o Brasil ou o México, mas faziam-nos pensar que o país era tão tranquilo quanto a Suécia, a Noruega ou a Finlândia. Para ficarmos com uma ideia mais exacta daquilo que trata o livro, passo a citar a introdução feita por Miguel Carvalho que ele intitula de “Contra o Esquecimento”:
«Este livro é jornalismo, não é História. Fala do “lado B” da revolução. Retrata personagens, recupera relatos, e desvenda segredos de uma época de inusitada violência política, entretanto apagada da memória histórica ou das “memórias consensuais” do regime saído da Revolução de Abril de 1974. Este apagão não é inocente. A versão dos vencedores de um determinado período histórico guarda sempre esqueletos nos armários, com receio de que possam deslustrar o retrato público, os consensos políticos e sociais e o unanimismo sobre os factos, trabalhado ao longo de décadas. A imposição dessa memória concordante, sem grandes fissuras, sobre a época de grande confronto ideológico, político e social de democracia insere-se, pois, numa estratégia de domínio. “O controlo da memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia de poder”, escreveu o antropólogo social Paul Connerton, no famoso ensaio Como as sociedades recordam. Ora, se a utilização sistemática do aparelho de Estado para despojar os cidadãos da sua memória é típica dos totalitarismos, como devemos ba[p]tizar em democracia o discurso simplificado e a doutrina do esquecimento organizado para suprimir parte da História à memória dos povos?
Falar desse período histórico português, escrever sobre ele, subverte, pois, a narrativa oficial sobre os acontecimentos, protagonistas e episódios dos primeiros anos da democracia.
Os episódios, personagens, testemunhos e documentos que desfilam ao longo destas páginas, em boa parte inéditos ou resgatados a décadas de silêncios, nascem da obrigação jornalística de interrogar o passado e dar aos esquecidos da História o seu próprio direito ao passado, por muito que alguns deles só queiram ser lembrados pelo presente. São conhecidas as diversas narrativas sobre o 28 de Setembro de 1974, o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975, os casos República e Rádio Renascença, o cerco à Assembleia Constituinte, entre outros. Aqui, o obje[c]tivo jornalístico é esgaravatar o que terá ficado ofuscado. Nestas páginas moram memórias clandestinas, subterrânea, mutiladas, marginais. Nelas cabem acontecimentos desconhecidos, ou relegados para segundo plano, subje[c]tividades e sombras que, uma vez iluminadas, ligadas e coligidas, talvez possam ampliar o olhar e o conhecimento sobre os extremos e as controvérsias de um tempo.
Subvertendo versões instituídas, sem maniqueísmos, nem ajustes de contas retroa[c]tivos, o jornalista pode e deve dessacralizar a memória cole[c]tiva, combater visões homogéneas e simplistas da História, estereótipos sobre o passado e desassossegar os mitos. Quanto mais o presente instrumentalizar o passado unificando-o e manipulando-o, mais deve o jornalismo combater o esquecimento, a amnésia e a mentira, sem que para tal tenha de impor uma Verdade.
A memória é plural.
Não há um passado, há passados.
Recuperar e reabilitar testemunhos e documentos tidos por inconvenientes ou menores, trazendo-os da memória privada para o espaço público é, pois, uma obrigação. Diversos historiadores e outros estudiosos oriundos das ciências sociais insistem em contrariar o argumento da superação de traumas do passado como pretexto para impor políticas de esquecimento, revisionismos despudorados e memórias de reconciliação. Alguns consideram imperioso lembrar que a memória não é composta de factos, mas de interpretações. E essas não são inamovíveis. “Os historiadores não devem esquecer que são os cidadãos que fazem realmente a História, os historiadores apenas a dizem”, escreveu, a este propósito Paul Ricoeur.
Consciente de que muitas democracias modernas fazem amplo uso do “esquecimento por imposição”, a pretexto da manutenção da “paz social”, o filósofo francês deixou-nos uma interrogação pertinente: “Não será a prática da amnistia prejudicial à verdade e à justiça? Por onde passa a linha de demarcação entre a amnistia e a amnésia? As respostas a estas questões não se encontram a nível político, mas ao nível mais íntimo de cada cidadão, no seu foro interior. Graças ao trabalho de memória completado pelo de luto, cada um de nós tem o dever de não esquecer, mas de dizer o passado, de um modo pacífico, sem cólera, por muito doloroso que seja”, afirmou.
Quase 27 anos de jornalismo [33, agora] ensinaram-me que o passado nunca está esgotado e obriga a reinterpretar o que sabemos.
O passado tem longa duração. Mexer nele é contrariar este eterno presente em que vivemos. Hobsbawn chamou-lhe o “presente contínuo”, François Hartog cunhou a expressão “presentismo”. Ambos constituem a maior ameaça à pluralidade da memória e corporizam, segundo Fernando Rosas, “um quotidiano sem qualquer relação orgânica com o passado público da época a[c]tual”. A desmemória é, pois, o resultado desse “apagão sele[c]tivo” onde o presente é apenas um lugar habitado pelo imediato, sem passado nem futuro.
Parafraseando T.S. Elliott, o mundo torna-se então propriedade exclusiva dos vivos, sem lugar para os mortos.
Mais de quatro décadas volvidas sobre a fundação do regime democrático [meio século agora] e das “amplas liberdades” o autor encontrou diversos obstáculos pela parte de zelosos guardiães de arquivos públicos. Obstáculos legais, claro, ou não fossem as leis e as normas jurídicas, por vezes, os maiores aliados do silêncio e do esquecimento.
Escudados na interpretação rigorosa das leis, o Arquivo geral do Exército ou a Assembleia da República podem, ainda hoje, recusar o acesso a documentos essenciais, para compreender, em toda a sua dimensão, este período turbulento da nossa História.
Mais: a lei dá aos protagonistas dessa história o direito de se tornarem donos desse mesmo silêncio e esquecimento, uma vez que “as respe[c]tivas autorizações para a libertação total de documentos só podem ser dadas pelos próprios ou pelos respe[c]tivos herdeiros”.
Será, de todo, aceitável esta privatização da memória pública? A isto juntou-se outra dificuldade, a do homem e das suas circunstâncias. Diversos protagonistas do período aqui retratado recusaram testemunhar sobre o mesmo. Uns de forma diplomática. Outros ignorando olimpicamente sucessivas solicitações. Outros ainda tendo por certo de que não passaram anos suficientes para que possam relatar as suas vivências no conforto da democracia, sem correr o risco de convocar certos demónios de tempos idos.
Estes últimos talvez tenham razão. Mas o caminho faz-se andando. Este livro deve, em primeiro lugar, a Josué da Silva (O Julgamento da Rede Bombista), João Paulo Guerra (Polícias e Ladrões) e Eduardo Dâmaso (A Invasão Spinolista) inspiração antiga para desbravar territórios novos de investigação jornalística sobre um período da História recente que permanece na penumbra e na obscuridade.
Este livro é também o resultado de dezenas de corajosos e contrastados testemunhos. Trata-se de protagonistas que permitiram exclusivo acesso a preciosos arquivos pessoais e aceitaram falar pela primeira vez, ou quebrar silêncios de décadas, sobre episódios que viveram, moldaram as suas existências e o nosso percurso cole[c]tivo, para o bem e para o mal.
Este livro resgata memórias de vítimas das primeiras horas, meses e anos da revolução, a maioria delas ignoradas ou reduzidas a uma nota fúnebre num pé de página da História. Vidas que nenhum Juízo Final, parafraseando Jorge de Sena, poderá devolver “aquele instante que não viveram, aquele obje[cto que não fruíram, aquele gesto de amor que fariam ‘amanhã’.”.
Este livro mergulha nas origens, cumplicidades e desenlaces da rede bombista de extrema-direita, nas investigações e processos judiciais turvos sobre os quais ainda hoje se guardam judiciosos e prudentes silêncios, não vá estragar-se a moldura do regime.
Este livro pretende, por fim, iluminar as trevas de uma época irrepetível [será?, esperemos que sim, que não volte a acontecer], obedecendo a um ponto de vista jornalístico e a um conceito moral de dever de memória que recusa as “estratégias de esquecimento” teorizadas por Paul Ricoeur.
No conjunto dos 18 capítulos, este livro é, na esmagadora maioria, inédito e original, mas também recupera e a[c]tualiza relatos, memórias e episódios trazidos a público, em primeira instância, na revista Visão.
O que vão ler é, pois, a outra história da Revolução.
Uma narrativa que foi sendo obstruída, reciclada ou sujeita a demasiados esquecimentos, mas sobreviveu até aos nossos dias e se oferece agora enquanto escrutínio e contraste das versões canonizadas.
A construção da democracia não foi apenas isto? É verdade. Mas foi também isto. A História, essa, será sempre o que fizermos dela.»
Miguel Carvalho
Porto, 11 de Dezembro de 2016
Lembro-me de ter ficado muito poucas vezes, ao longo de quase cinco décadas de vida, tão intrigada como fiquei naquela Primavera de 2017, aquando da apresentação deste livro em S. Pedro da Cova, antiga cidade mineira. Tinha saído a correr de um outro encontro de escritores em Famalicão, onde também estive pela última vez com uma querida amiga antes de ela falecer cerca de dois meses depois, para aterrar num vale, onde se narrava episódios absolutamente extraordinários acerca dos primeiros meses/ anos do PREC (que depois os meus queridos amigos, agora falecidos, Manuela Monteiro e Fausto Lima, me haviam confirmado também). Afinal, a Revolução não fora feita só de cravos e canções. Houve sangue, também. O livro dá a entender, logo no índice, de um conteúdo dramático a esconder-se por debaixo de um ambiente de festa e poesia, com títulos a remeter para poetas, músicos de intervenção, escritores e cineastas neo-realistas e ficção de espionagem sob a conjuntura histórica a envolver a Guerra Fria. Sim, esta última também mexe os cordelinhos com a História de Portugal. Não somos assim tão periféricos nem tão desinteressantes do jogo do xadrez geopolítico internacional, mas já lá vamos.
Senão veja-se a epígrafe, retirada da opera magna de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo: “É preciso que tudo mude, se quisermos que tudo fique como está”. Uma frase que remete para a circulação das elites, a sua renovação, mas garantindo que o sistema não mude demasiado. É um facto que mudou muita coisa no estilo de vida das classes menos favorecidas e um crescimento exponencial de uma classe média nos últimos cinquenta anos, mas estruturalmente o país não mudou tanto como seria de esperar.
Não quero entrar demasiado na explicação, capítulo a capítulo, para não roubar aos leitores o prazer de ler o livro, mas posso desde já dizer que os primeiros capítulos são dedicados àqueles que morreram no próprio dia da Revolução de quem quase nunca se fala, histórias que Miguel Carvalho vem contar aqui, sob o formato de reportagem, muito ao estilo de Antonio Tabucchi. Histórias de gente que não fazia mal a ninguém, como a cotovia de Harper Lee (e de José Afonso, também), mas que morreram por um capricho da fatalidade e por se encontrarem no lugar errado à hora errada. São histórias trágicas, de pessoas comuns, iguais a qualquer um de nós, que poderiam ter escolhido andar na multidão naquele dia para ver o que se passava e assistir a tudo na crista dos acontecimentos. Testemunhas de um momento chave na história recente e que tiveram o azar de levar com uma rajada de metralhadora vinda de uma das janelas do quartel general da PIDE na Rua António Maria Cardoso, hoje transformado num condomínio de luxo.
E a seguir à revolução seguem-se os movimentos contra-revolucionários, com algumas facções de esquerda a lançar ainda mais confusão na luta pelo poder, sendo que a quase totalidade desses movimentos tinha intenções muito pouco democráticas. Convém esclarecer que esses movimentos contra-revolucionários eram facções extremistas de direita e pretendiam reinstaurar o regime anterior - uma ditadura, com base num império colonial - e anular qualquer tentativa de mudança na pirâmide social. Convém, também, não esquuecer que, em Espanha, Franco ainda estava no poder e no Chile Pinochet seguia atentamente os movimentos da evolução política em Portugal com amigos-satélite no país. E, para complicar ainda mais as coisas, parte da esquerda ‘mainstream’ e certas organizações embriagadas por um horizonte de ‘poder popular’, ajudavam, segundo Miguel Carvalho, a ‘incendiar’ ainda mais o clima.
No Norte de Portugal, a ala da Igreja mais radical, com o Cónego Melo à cabeça [que hoje tem uma estátua no centro de Braga] juntava-se aos movimentos contra-revolucionários, participando em acções violentas, inclusive atentados bombistas. A CIA, na pessoa do embaixador Carlucci, estava preocupada com uma possível sovietização do país. E, sobretudo a região a norte do Douro, estava toda em polvorosa, a braços com as arbitrariedades de grupos de “jagunços”, ao serviço de velhas elites, que beneficiavam do regime anterior, gente contratada para assediar a população e, particularmente, consciências potencialmente revolucionárias.
É nesta época que políticos de grande carisma televisivo, oriundos quer do centro-esquerda quer do centro-direita, a que vulgarmente se chama de ‘arco da governação’, tentam chegar a uma conciliação e serenar os ânimos mas não conseguem evitar ter de fazer concessões a grupos que tinham muito poucas intenções democráticas, sobretudo com a direita reaccionária não democrática, a qual ficou durante grande parte das décadas que se seguiram, a operar fora do radar.
A cidade do Porto, sobretudo na figura do Bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes foi fundamental na mediação e execução do processo de paz, ao persuadir, por exemplo, os sectores mais radicais da Igreja a não se envolver no conflito político e, principalmente, em movimentos bélicos ou atentados a alvos ditos ‘comunistas’.
Durante mais de dois anos o país, ao contrário do que se apregoava, foi de facto muito pouco pacífico, com atentados terroristas à bomba e assassinatos cirúrgicos perpetrados por forças reaccionárias. Entretanto, partidos do centro, movem-se como já foi dito parar serenar os ânimos, mas há acordos que implicam uma paz ‘podre’, permitindo que crimes de sangue permaneçam até hoje impunes, “conseguindo-se a paz mas não a justiça”.
Em suma, só para abrir o apetite, este é o retrato de uma época ‘quente’, de uma faceta do país que conhecemos ainda muito pouco e que alguns insistem em fazer de conta que não existiu, mas permitiu que muito “lixo” fosse varrido para debaixo do tapete. Esse lixo que entretanto foi apodrecendo e gerando novos fungos, bactérias e vírus, hoje recrudesce em extremismos de mentes ressabiadas e a contagiar descontentes como a ‘Peste’ de que falava Albert Camus. E fazendo correr o risco de implodir cinquenta anos de uma frágil democracia.
O livro de Miguel Carvalho é produto de muitos anos de investigação bibliográfica (muito completa e variada), consulta de arquivos judiciais e inclui documentos que servem de testemunho e janela para um passado de grande turbulência e medo.
Só para ficar um ‘cheirinho’ do conteúdo aqui vai o texto da contracapa:
«Quem foram as primeiras vítimas mortais da democracia? Porque razão foram assassinados Padre Max, Rosinda Teixeira e Joaquim Ferreira Torres? Que “crime” cometeu o professor sequestrado na Madeira? Quem protegia e que segredos escondia a rede bombista de extrema-direita? Como enfrentou o cônsul dos EUA no Porto o PREC? O que relatam os diários do norueguês baleado no “Verão Quente” de 1975? Que organizações conspiraram contra a revolução? Como é que a Igreja mobilizou e abençoou a luta contra o “comunismo”? Como foram tratados todos os presos de direita em Caxias? O que sabia a PJ sobre o terrorismo político e tudo o que nunca chegou a julgamento?
Com recurso a centenas de documentos [muitos deles aqui digitalizados], entrevistas e documentos inéditos, esta investigação jornalística traz à luz do dia histórias secretas ou esquecidas da contra[-]revolução. Quando Portugal ardeu e esteve à beira da guerra civil.»
Este é um livro que me mostra que escrever é sobretudo um acto de extrema coragem e temeridade.
Cláudia de Sousa Dias
Londres, 27 de Abril de 2024