"A Sombra do Vento" de Carlos Ruiz de Zafón (Dom Quixote)
“Uma história de livros malditos, do homem que os escreveu, de uma personagem que se escapou das páginas de um romance para o queimar, de uma traição e de uma amizade perdida (...) amor, ódio e sonhos que vivem na sombra do vento”.
Carlos Ruiz de Zafón in A Sombra do Vento
Este é um dos raros casos em que o sucesso editorial e a rendição incondicional do público a um autor pouco conhecido em Portugal pelo grande público, coincide com a opinião favorável da crítica especializada e dos gourmets da palavra.
Romance vencedor do prémio “Correntes da Escrita” para o ano de 2005 - evento realizado anualmente na Póvoa de Varzim - A Sombra do Vento é um livro cuja qualidade foi aclamada unanimemente pela crítica especializada, à escala nacional e internacional.
Um dos principais atractivos do referido romance é o facto de a trama remeter para vários outros autores, clássicos e contemporâneos.
Trata-se de um enredo que envolve uma complexa e absorvente teoria da conspiração, em pleno governo do Ditador Franco, onde se misturam os ingredientes que, invariavelmente, conferem ao romance a compulsividade obsessiva necessária para prender o leitor como um íman até ao último parágrafo: amor, ódio, paixão, traição e vingança.
Tudo isto com a bela, imponente e brumosa Barcelona de há sessenta anos atrás como cenário.
A arquitectura da trama envolve um grupo restrito de coleccionadores de livros raros e um autor-mistério, cujas obras parecem ser alvo de um perseguidor anónimo, encarregue de as fazer desaparecer.
O autor perseguido tem o sugestivo nome de Julián Carax e a sua última obra é especialmente visada pelo vingador desconhecido cujo título é...
...A Sombra do Vento.
Mais: o romance de Carlos Ruiz de Zafón debruça-se, nem mais nem menos, sobre a magia que os livros exercem na alma humana, aludindo a toda uma plêiade de autores mais do que consagrados. Por exemplo, por um lado lado, a biblioteca chamada de “o cemitério dos livros esquecidos” remete para Arturo Pérez-Reverte e o seu best-seller intitulado de O Cemitério dos Barcos sem Nome; há, por outro lado, uma intertextualidade com Umberto Eco em O Nome da Rosa, devido à labiríntica configuração da biblioteca descrita na Abadia - onde William Baskerville vai, em plena época medieval, desempenhar o papel de Sherlock Holmes – e a de Barcelona, cujo guardião Isaac faz lembrar vagamente o antigo bibliotecário do romance do autor piemontês.
Em ambos os casos, é na biblioteca que se encontra a chave mestra que possibilita o desvendar da trama.
A influência de Alexandre Dumas também está presente na construção de uma teoria da conspiração que em nada fica a dever à de O Conde de Monte Cristo. O mesmo se pode dizer em relação a Gaston Leroux e Michael Ondaatje pela semelhança de Laín Coubert - o perseguidor de A Sombra do Vento de Carax - cuja movimentação na sombra e deformidade física trazem, respectivamente, reminiscências de O Fantasma da Ópera e O Paciente Inglês.
A intertextualidades continuam com o tema da solidão interior de algumas das personagens, como a tradutora Nuria Monfort, o jornalista filantropo Miquel, a bela Clara Barceló – aprisionada dentro da sua limitação física –, Sophie Carax, mãe de Julián e, claro o próprio protagonista, Carax, nem mais nem menos – e a forma como o autor inicia o romance. Estas duas características fazem-nos lembrar imediatamente as circunstâncias e a primeira frase com que García Márquez inicia o seu célebre Cem Anos de Solidão: a visita de Daniel ao Cemitério dos livros esquecidos pela mão do pai, tal como o pai de José Arcadio Buendía quando leva o filho a ver o gelo pela primeira vez.
Voltando ao tema da solidão e prosseguindo a analogia com García Márquez, a maior parte das personagens sofre dessa mesma solidão asfixiante. Mas, no caso de A Sombra do Vento, a solidão das personagens deve-se a uma auto ou hetero-censura que as impede de darem largas às suas emoções e viverem os afectos mais profundos na sua plenitude.
A interdição do amor, numa sociedade onde impera a falta de liberdade, o autoritarismo e a ambição desmedida, só é interrompida pelo jovem Daniel quando este se esquece de si próprio e se dedica altruisticamente a uma causa – o desvendar do mistério do fracasso editorial do autor de A Sombra do Vento - contando com a ajuda do ex-espião Fermín Romero de Torres. Daniel e Fermín escapam à maldição dessa mesma solidão, numa primeira fase, refugiando-se nos livros e na sedução hipnótica que estes provocam na alma humana e, posteriormente, no amor. Beatriz resgata o jovem protagonista de um amor não correspondido e possibilita ao autor Carax um juste de contas com o passado. Por seu lado, a companheira de Fermín - ex-empregada da loja do pai de Daniel - dedica-se integralmente ao namorado trazendo-lhe maior estabilidade e normalidade à sua vida de filme de intriga internacional. Trata-se de um quarteto composto por personagens atípicas em relação aos outros intervenientes do romance. Daniel, pela sua candura e fidelidade aos seus ideais de Verdade, Justiça e Amor; Bea, pelo seu magnetismo, inteligência e personalidade solar – uma mulher fatal, mas só na aparência, em tudo semelhante a Veronica Lake ou Rita Hayworth; Fermín, pelo seu humor cáustico e um pouco escabroso, fidelidade e afecto caninos em relação a Daniel e um sentimento algo condescendente mas tenaz para com a namorada, uma alma simples e rude mas com um coração de manteiga.
Fermín é uma das personagens mais interessantes do romance, não só pela capacidade crítica que demonstra face a alguns acontecimentos políticos e sociais da época, mas principalmente pela astúcia que sabe usar de uma forma positiva.
Ao contrário do grande vilão do romance - o sinistro inspector Fumero - que, no entender de Miquel, o jornalista, é possuidor de “uma alma de aranha” e não consegue deixar de odiar, vivendo, para a concretização da sua vingança.
A originalidade de Zafón está, sobretudo, na peculiar emotividade de uma escrita, dotada de uma profundidade pungente, manifesta na qualidade das imagens, metáforas, comparações e sinestesias utilizadas”, “... a ausência da minha mãe era para mim ainda uma miragem, um silêncio gritante que até então não tinha aprendido a emudecer com palavras”, “o coração batia-me no peito como se a alma quisesse abrir caminho e desatar a correr pelas escadas abaixo” ou “...olhos envenenados de lágrimas” ou ainda “...um céu incendiado de nódoas negras”.
As descrições das personagens são eloquentes e de uma impressionante exactidão evocativa, devido à atribuição de características normalmente associadas a outros seres vivos não humanos ou objectos inanimados, por exemplo, “um homenzinho com traços de ave de rapina”.
O cenário onde a trama atinge o seu climax – uma velha casa em ruínas onde, no passado, ocorreu a tragédia – remete para a atmosfera lúgubre dos romances góticos, cujo objectivo é o de aumentar o suspense ou a sensação de adrenalina nos leitores.
O romance inicia e termina exactamente da mesma forma. A cena repete-se, mas ocorre em gerações diferentes. O objectivo é mostrar que a evolução da mentalidade humana não é linear mas cíclica, de cariz pitagórico, onde o início é o fim e o fim é o início, com mais uma visita ao cemitério dos livros esquecidos. Pretende, também, mostrar a continuidade dos ideais e objectivos de vida de Daniel, que se repercutem nas gerações futuras, num lugar onde a alma de escritores e poetas está sepultada pela eternidade, mas que revive sempre que um leitor curioso, os arranca e ao seu pensamento, palavras e emoções do reino das sombras, para enriquecer o espírito das gerações vindouras.
Um cemitério de imortalidade.
Porque “os livros são espelhos, só se vê neles o que uma pessoa tem por dentro" – através do mecanismo de projecção. Ler torna-se, no entender de Bea, uma arte, um ritual íntimo que está a morrer lentamente e que “...ao ler aplicamos a mente e a alma e estes são bens cada vez mais escassos”.
O final é uma nota de esperança no futuro e o saldar de contas com o passado. Por tudo isto, A Sombra do Vento é um livro que consegue converter as almas mais avessas à leitura. Suceptível de cativar os espíritos mais renitentes.
Um estrondoso sucesso de qualidade estética, narrativa e ideológica inquestionável.
Mais do que apelativo.
Sedutor. Misterioso.
Envolvente como os tentáculos de um polvo.
Cláudia de Sousa Dias
Carlos Ruiz de Zafón in A Sombra do Vento
Este é um dos raros casos em que o sucesso editorial e a rendição incondicional do público a um autor pouco conhecido em Portugal pelo grande público, coincide com a opinião favorável da crítica especializada e dos gourmets da palavra.
Romance vencedor do prémio “Correntes da Escrita” para o ano de 2005 - evento realizado anualmente na Póvoa de Varzim - A Sombra do Vento é um livro cuja qualidade foi aclamada unanimemente pela crítica especializada, à escala nacional e internacional.
Um dos principais atractivos do referido romance é o facto de a trama remeter para vários outros autores, clássicos e contemporâneos.
Trata-se de um enredo que envolve uma complexa e absorvente teoria da conspiração, em pleno governo do Ditador Franco, onde se misturam os ingredientes que, invariavelmente, conferem ao romance a compulsividade obsessiva necessária para prender o leitor como um íman até ao último parágrafo: amor, ódio, paixão, traição e vingança.
Tudo isto com a bela, imponente e brumosa Barcelona de há sessenta anos atrás como cenário.
A arquitectura da trama envolve um grupo restrito de coleccionadores de livros raros e um autor-mistério, cujas obras parecem ser alvo de um perseguidor anónimo, encarregue de as fazer desaparecer.
O autor perseguido tem o sugestivo nome de Julián Carax e a sua última obra é especialmente visada pelo vingador desconhecido cujo título é...
...A Sombra do Vento.
Mais: o romance de Carlos Ruiz de Zafón debruça-se, nem mais nem menos, sobre a magia que os livros exercem na alma humana, aludindo a toda uma plêiade de autores mais do que consagrados. Por exemplo, por um lado lado, a biblioteca chamada de “o cemitério dos livros esquecidos” remete para Arturo Pérez-Reverte e o seu best-seller intitulado de O Cemitério dos Barcos sem Nome; há, por outro lado, uma intertextualidade com Umberto Eco em O Nome da Rosa, devido à labiríntica configuração da biblioteca descrita na Abadia - onde William Baskerville vai, em plena época medieval, desempenhar o papel de Sherlock Holmes – e a de Barcelona, cujo guardião Isaac faz lembrar vagamente o antigo bibliotecário do romance do autor piemontês.
Em ambos os casos, é na biblioteca que se encontra a chave mestra que possibilita o desvendar da trama.
A influência de Alexandre Dumas também está presente na construção de uma teoria da conspiração que em nada fica a dever à de O Conde de Monte Cristo. O mesmo se pode dizer em relação a Gaston Leroux e Michael Ondaatje pela semelhança de Laín Coubert - o perseguidor de A Sombra do Vento de Carax - cuja movimentação na sombra e deformidade física trazem, respectivamente, reminiscências de O Fantasma da Ópera e O Paciente Inglês.
A intertextualidades continuam com o tema da solidão interior de algumas das personagens, como a tradutora Nuria Monfort, o jornalista filantropo Miquel, a bela Clara Barceló – aprisionada dentro da sua limitação física –, Sophie Carax, mãe de Julián e, claro o próprio protagonista, Carax, nem mais nem menos – e a forma como o autor inicia o romance. Estas duas características fazem-nos lembrar imediatamente as circunstâncias e a primeira frase com que García Márquez inicia o seu célebre Cem Anos de Solidão: a visita de Daniel ao Cemitério dos livros esquecidos pela mão do pai, tal como o pai de José Arcadio Buendía quando leva o filho a ver o gelo pela primeira vez.
Voltando ao tema da solidão e prosseguindo a analogia com García Márquez, a maior parte das personagens sofre dessa mesma solidão asfixiante. Mas, no caso de A Sombra do Vento, a solidão das personagens deve-se a uma auto ou hetero-censura que as impede de darem largas às suas emoções e viverem os afectos mais profundos na sua plenitude.
A interdição do amor, numa sociedade onde impera a falta de liberdade, o autoritarismo e a ambição desmedida, só é interrompida pelo jovem Daniel quando este se esquece de si próprio e se dedica altruisticamente a uma causa – o desvendar do mistério do fracasso editorial do autor de A Sombra do Vento - contando com a ajuda do ex-espião Fermín Romero de Torres. Daniel e Fermín escapam à maldição dessa mesma solidão, numa primeira fase, refugiando-se nos livros e na sedução hipnótica que estes provocam na alma humana e, posteriormente, no amor. Beatriz resgata o jovem protagonista de um amor não correspondido e possibilita ao autor Carax um juste de contas com o passado. Por seu lado, a companheira de Fermín - ex-empregada da loja do pai de Daniel - dedica-se integralmente ao namorado trazendo-lhe maior estabilidade e normalidade à sua vida de filme de intriga internacional. Trata-se de um quarteto composto por personagens atípicas em relação aos outros intervenientes do romance. Daniel, pela sua candura e fidelidade aos seus ideais de Verdade, Justiça e Amor; Bea, pelo seu magnetismo, inteligência e personalidade solar – uma mulher fatal, mas só na aparência, em tudo semelhante a Veronica Lake ou Rita Hayworth; Fermín, pelo seu humor cáustico e um pouco escabroso, fidelidade e afecto caninos em relação a Daniel e um sentimento algo condescendente mas tenaz para com a namorada, uma alma simples e rude mas com um coração de manteiga.
Fermín é uma das personagens mais interessantes do romance, não só pela capacidade crítica que demonstra face a alguns acontecimentos políticos e sociais da época, mas principalmente pela astúcia que sabe usar de uma forma positiva.
Ao contrário do grande vilão do romance - o sinistro inspector Fumero - que, no entender de Miquel, o jornalista, é possuidor de “uma alma de aranha” e não consegue deixar de odiar, vivendo, para a concretização da sua vingança.
A originalidade de Zafón está, sobretudo, na peculiar emotividade de uma escrita, dotada de uma profundidade pungente, manifesta na qualidade das imagens, metáforas, comparações e sinestesias utilizadas”, “... a ausência da minha mãe era para mim ainda uma miragem, um silêncio gritante que até então não tinha aprendido a emudecer com palavras”, “o coração batia-me no peito como se a alma quisesse abrir caminho e desatar a correr pelas escadas abaixo” ou “...olhos envenenados de lágrimas” ou ainda “...um céu incendiado de nódoas negras”.
As descrições das personagens são eloquentes e de uma impressionante exactidão evocativa, devido à atribuição de características normalmente associadas a outros seres vivos não humanos ou objectos inanimados, por exemplo, “um homenzinho com traços de ave de rapina”.
O cenário onde a trama atinge o seu climax – uma velha casa em ruínas onde, no passado, ocorreu a tragédia – remete para a atmosfera lúgubre dos romances góticos, cujo objectivo é o de aumentar o suspense ou a sensação de adrenalina nos leitores.
O romance inicia e termina exactamente da mesma forma. A cena repete-se, mas ocorre em gerações diferentes. O objectivo é mostrar que a evolução da mentalidade humana não é linear mas cíclica, de cariz pitagórico, onde o início é o fim e o fim é o início, com mais uma visita ao cemitério dos livros esquecidos. Pretende, também, mostrar a continuidade dos ideais e objectivos de vida de Daniel, que se repercutem nas gerações futuras, num lugar onde a alma de escritores e poetas está sepultada pela eternidade, mas que revive sempre que um leitor curioso, os arranca e ao seu pensamento, palavras e emoções do reino das sombras, para enriquecer o espírito das gerações vindouras.
Um cemitério de imortalidade.
Porque “os livros são espelhos, só se vê neles o que uma pessoa tem por dentro" – através do mecanismo de projecção. Ler torna-se, no entender de Bea, uma arte, um ritual íntimo que está a morrer lentamente e que “...ao ler aplicamos a mente e a alma e estes são bens cada vez mais escassos”.
O final é uma nota de esperança no futuro e o saldar de contas com o passado. Por tudo isto, A Sombra do Vento é um livro que consegue converter as almas mais avessas à leitura. Suceptível de cativar os espíritos mais renitentes.
Um estrondoso sucesso de qualidade estética, narrativa e ideológica inquestionável.
Mais do que apelativo.
Sedutor. Misterioso.
Envolvente como os tentáculos de um polvo.
Cláudia de Sousa Dias