“A Ignorância” de Milan Kundera (Dom Quixote)
Escrito no ano 2000 e traduzido para português a partir do manuscrito original, ainda antes de ser publicado em França – país onde reside o Autor desde 1975. A Ignorância é um romance que fala de nostalgia, de memória, de anoranza – palavra espanhola de raiz etimológica latina do verbo ignorare – e que é utilizada como equivalente a nostalgia ou até saudade; um sofrimento causado pelas reminiscências do passado onde o pathos provém da ignorância: “Tu estás longe, eu não sei o que te acontece”. Logo, sofre-se.
Com A Ignorância, Milan Kundera regressa, em Maio de 2001, às montras das livrarias, com mais um romance de carácter introspectivo e, ao mesmo tempo, analítico, do comportamento do Outro. Ao basear-se num método de observação em contexto real, ou pelo menos assim parece, o narrador parte para uma análise, com olho clínico, embora utilizando uma linguagem mais do universo literário do que técnico, dos comportamentos das personagens, entrando nas respectivas casas e caixinhas cerebrais para analisar e dissecar todas as componentes emocionais que desencadeiam atitudes aparentemente incompreensíveis.
Neste caso, existem dois protagonistas, com duas estórias paralelas que se traduzem num desdobramento de duas vertentes de um mesmo tema. Um técnica de construção utilizada também, aliás, em A Insustentável Leveza do Ser. Duas estórias onde, mais uma vez, o fio condutor é o narrador não participante.
A visão global é-nos, desta forma, facultada pelo cruzamento dos vários pontos de vista.
Em A Ignorância, o Autor aborda directamente o problema da emigração do Leste europeu antes e após o terminus da Guerra Fria, em Novembro de 1989.
Fala-se, sobretudo, de desenraizamento, de enfraquecimento dos vínculos sociais em relação ao local de origem, quando se trata de refugiados políticos.
O enfraquecimento, aliado ao crescimento das distâncias, que une o emigrado à terra onde nasceu e cresceu, faz esmorecer os laços familiares e está ligado a um certo ressentimento por parte de quem fica – salvo raríssimas excepções. Trata-se de uma consequência natural da perseguição às famílias dos emigrados por parte de um Estado que encarava o desejo de sair da terra natal como um acto de alta traição despoletando a frieza e o ressentimento por quem se sente deixado ao abandono.
Nas ligações de amizade, observa-se tanto a tentativa de apagar os anos de vida “lá fora” por parte que quem fica, como o desejo irreprimível e constantemente frustrado de relatar a própria odisseia por parte de quem regressa, ainda que esse regresso seja temporário.
A ausência de perguntas em relação aos anos passados fora do país é uma constante. Salvo uma única excepção.
No caso da camaradagem entre refugiados.
Em relação às ligações amorosas, mesmo situadas num passado longínquo, Milan Kundera cria uma interessante dicotomia, em relação ao binómio esquecimento/lembrança, particularmente nas recordações fugazes mas sempre presentes de Irena – imigrada em França – e nas diluidíssimas memórias de Josef ao reler o diário da sua adolescência…
Tudo conspira para a destruição progressiva da vontade de voltar. Apesar do amor, da nostalgia dos lugares, da História, dos poetas, das sonoridades linguísticas, da literatura…
Logo no segundo capítulo, o Autor consegue cativar-nos com um mini-ensaio sobre a nostalgia, palavra de origem grega, quase universal para a maior parte das línguas europeias. Mas as subtis declinações semânticas da palavra, desdobrada em outros signos equivalentes como por exemplo, saudade, são-nos dadas através de uma análise transversal desses sinónimos, nos vários idiomas. É então que chegamos ao conceito de ignorância como declinação de nostalgia. E ignorância é a palavra ou variante de nostalgia que melhor define a exacta coloração do estado de espírito de dois protagonistas de estórias gémeas que se cruzam num ponto de fuga, situado num passado distante: Irena e Josef.
Ignorância é, pois, a irmã siamesa da saudade, ambas filhas da nostalgia…é este o tema do livro. Uma emoção a cujo desdobramento vamos assistir em dois seres que emigraram, tal como acontece em A insustentável Leveza do Ser entre Thomas e Sabina, embora este num prisma diferente: o custo de oportunidade relativamente à decisão de emigrar ou não emigrar.
É por este motivo que A Ignorância é, de certa forma, um desenvolvimento da obra anterior.
Por outro lado, A Ignorância relaciona-se, ainda, com a disposição psicológica da personalidade colectiva do povo boémio, em grande parte condicionada por mudanças históricas que se traduzem em alterações estruturais profundas a nível económico, social e político em momentos-chave que acontecem segundo uma sequência de periodicidade regular, sincopada (em espiral?) no caso particular do povo checo, ao longo do conturbado século XX.
O Autor destaca também a problemática da imprevisibilidade do rumo da História que se traduz num desconhecimento em relação ao futuro, ao exemplificar com as vãs pretensões de Schönberg à imortalidade, no sentido de permanência na memória colectiva não só do seu nome, mas, sobretudo, da sua música.
A analogia do exílio de Josef com a viagem de Ulisses, presente nos sentimentos de frustração de Odisseu, torna-se por demais evidente para o protagonista.
A propósito de Josef, o protagonista masculino de A Ignorância, o autor/narrador disserta ainda sobre a forma de amar de um Ulisses de origem checa: o amor que dedica a Penélope e o amor que o retém junto de Calipso, num refúgio idílico. Narrador e Josef não hesitam em valorizar a segunda, apesar da tradição colocar a primeira num pedestal.
Irena é ainda mais difícil de desiludir, devido ao seu passado familiar. Mas é simultaneamente mais vulnerável, por perseguir uma lembrança…fugaz como uma miragem.
A nostalgia, sob a forma de ignorância, no caso de Irena e, também, um pouco em Josef (embora este seja menos fácil de iludir por estereótipos) é, sobretudo, induzida pela sociedade ocidental e pelos clichés que fazem parte do imaginário colectivo e que não comportam casos específicos como o destas personagens. Dois Ulisses nos tempos modernos, para os quais a deturpação da realidade é, também, dada pelo carácter selectivo da memória, pela reconstrução dessa mesma realidade com o objectivo de dar, aos elementos seleccionados, um enquadramento, dotando-os de um sentido fictício…
Mas enquanto que, para Josef, o local escolhido para viver se revestiu de referências positivas, que lhe permitiram distanciar-se ainda mais de um passado do qual não colheu, praticamente, boas recordações, para Irena a vida no Ocidente não foi fácil.
Sobretudo depois de enviuvar.
Acompanha-a, sempre, uma nota de insatisfação, em relação à vida afectiva o que a leva a perseguir uma imagem, cristalizada num passado remoto.
As componentes emocionais como a solidariedade/rivalidade entre irmãos, ambições e conflitos entre cunhados, competição e desejo de domínio numa relação mãe-filha, aliada a uma sede irreprimível de libertação – seja através da fuga, seja através de um amor ideal, utópico, imaginado, construído, se quisermos –, são alguns dos ingredientes que vêm enriquecer uma obra de volume diminuto, mas de conteúdo inesgotável.
Sempre com a marca da extraordinária leveza da escrita de Kundera.
Cláudia de Sousa Dias