“Chocolate” de Joanne Harris (ASA)
Vianne Rocher chega a Lansquenet-sous-Tannes na terça-feira de Carnaval, onde facilmente se apercebe tratar-se de uma cidadezinha de província onde as pessoas são “cinzentas”, tristes” e “de ombros curvados”. Possuem, não poucas vezes, um olhar “duro”. Vianne compreende, então ter chegado a uma povoação isolada, em cujo centro se ergue a torre branca da igreja, que domina todo o território, a partir da praça principal.
Vianne Rocher, depois de passar vários anos a viajar ao sabor do vento e a fugir dos seus fantasmas sente, de súbito, um forte desejo de sedentarização e estabilidade. E julga encontrar em Lansquenet o sítio ideal para lançar as suas raízes, um lugar perfeito para trazer às gentes locais um pequeno toque de felicidade, através da magia alquímica das suas mãos especializadas em elaborar a poção mágico do…
…CHOCOLATE!
Vianne é uma jovem mãe solteira que costuma sofrer, normalmente, de pesadelos recorrentes relacionados com uma figura masculina vestida de preto. Um ser misterioso e arquetípico que parece incarnar os seus próprios medos: a opressão e a restrição à liberdade de expressão e movimentos.
Vianne, ao instalar-se na pequena povoação, recebe a visita do Padre Reynaud – muito semelhante à figura sinistra dos seus pesadelos – o qual tenta, imediatamente, verificar que espécie de ser é a forasteira, aparentemente uma arrivista, que tem o descaramento de se instalar mesmo em frente à sua igreja, atitude que encara, desde logo, como uma provocação.
A antipatia que se estabelece entre os dois é, além de mútua, instantânea.
O padre Reynaud sente-se ameaçado com o aparente agnosticismo e o espírito independente de Mademoiselle Rocher, uma filha do Vento de Carnaval, chegada à aldeia no meio de um vendaval acompanhado por uma música ruidosa, um extravagante desfile onde a população, na data pagã que antecede a Quaresma dá largas à fantasia, á folia e ao prazer.
Logo que se apercebe que Vianne pretende abrir uma chocolataria mesmo no centro da povoação e em frente à sua paróquia Reynaud vislumbra imediatamente uma distracção destinada a desviar as suas ovelhas das respectivas “obrigações espirituais”. E percebe que a antítese da austeridade é a pedra base que sustenta a conduta da forasteira.
Vianne, por seu turno, escolhe aquele lugar precisamente por ser um lugar estratégico, um ponto de convergência dos habitantes de uma pequena cidade conservadora e, aparentemente, com um elevado índice de resistência à mudança, quer no que respeita aos hábitos e padrões de conduta, quer no que toca às preferências consumistas.
Reynaud encara a escolha da localização da chocolataria como uma afronta pessoal.
Trata-se, afinal, de uma loja de chocolates, cujo colorido, aromas e sabores é um apelo à sedução dos sentidos.
À Tentação.
Sobretudo quando tal loja ou “antro de perdição” é gerido por uma mulher com feições que em tudo lembram uma feiticeira medieval. Principalmente por ser uma mulher solitária, acompanhada de uma filha sem pai. O que é mais um motivo de desconfiança.
A montra da loja parece-lhe, mais do que nunca, um ardil semelhante ao utilizado pela bruxa da história de Hansel e Gretel – A Casinha de Chocolate…
A própria doçura de Vianne incomoda o pároco. Este olha a jovem como um contra-poder. Para Reynaud, a Igreja e a loja de chocolates encontram-se em pólos opostos. Ela é sua adversária. Uma enviada de Satã para desviar as almas das suas ovelhas…
A conduta do pároco de Chocolate pode ser explicada pelo espírito conservador de Reynaud, pela educação e um incidente ocorrido durante a infância o que faz com que este encare a sua missão não exactamente como uma forma de ajudar as pessoas, mas com o objectivo de aperfeiçoá-las. Como Pigmalião com a sua estátua. Ao mesmo tempo, o pároco sente a sedução do Poder, apesar de não se dar conta do facto.
Na realidade, ele julga, de uma forma algo simplista que o mal está no prazer, em qualquer das suas formas. Até no acto de saciar a fome: Reynaud sofre de delírios, exacerbados pelos jejuns espartanos a que se submete. Por outro lado, não consegue deixar de pensar em Vianne e na apelativa loja, apesar dos seus esforços titânicos…
Na vida de Reynaud, também não existe lugar para o amor.
Só para a Penitência.
Ou para o Sacrifício.
O objectivo, as motivações de Vianne têm como meta final fazer algo de que goste para sobreviver e, simultaneamente, trazer a felicidade ou, pelo menos, um pouco de alegria para a vida daqueles com quem contacta, com o toque mágico que as suas mãos imprimem aos chocolates, bombons e outras iguarias feitas à base de cacau. A sua religião é, como ela própria afirma, “ser feliz”, sendo a chocolataria o local onde se pratica o exorcismo face à amargura da vida.
Mais: La Celeste Praline (a chocolaterie de Vianne)é aquilo que se pode chamar de “um consultório de psicologia disfarçado”, porque, ao contactar com os clientes da loja, Vianne consegue pôr em prática várias terapias utilizadas em processos clínicos, desfrutando da vantagem de observar os comportamentos em contexto real, isto é, em interacção com os diferentes grupos a que pertencem: amigos, família colegas de trabalho, conhecidos da paróquia…
Por outro lado, a participação de Vianne nos diálogos é sempre não directiva. Isto é, ela evita cuidadosamente a utilização de um discurso persuasivo, utilizando, ao invés, perguntas exploratórias ou lançando às vezes uma pergunta retórica à laia de pequena provocação, com o objectivo de obrigar o interlocutor a reflectir e, posteriormente, a escolher se há-se reformular ou não a sua conduta.
Vianne poderia servir-se do seu poder de persuasão ou dos seus acutilantes insights para obrigar as pessoas a aderir à sua forma de pensar, contudo, prefere não fazê-lo. Opta, antes, pela alquimia do chocolate, um dos melhores anti depressivos da natureza que não causa efeitos secundários.
Vianne transporta para Lansquenet o Vento da Mudança, facto que é intuído por Armande Voizin, a anciã dissidente de espírito sufragista…
A Autora dedicou este livro à bisavó, Marie-André Sorin, a qual a inspirou na criação da personagem Armande Voizin, a avó sufragista que instila no neto o gosto pela poesia de Rimbaud, para desespero da mãe, a beata Caroline Clairmont.
Joanne Harris, aquando da entrevista concedida na Fnac do Norteshopping, por altura do lançamento de Danças e Contradanças em Portugal, comentou ter sido Chocolate o seu primeiro sucesso literário apesar de não ser o seu primeiro livro.
Adiantou, ainda, ter sido este um livro cuja escrita funcionou como uma terapia, após um período de depressão.
É notório, sobretudo nos diálogos de Vianne Rocher com os clientes, a aproximação, o conhecimento e o contacto com as já referidas técnicas de entrevista não directiva utilizadas em psicoterapia, particularmente notórias nos diálogos com Roux e com Josephine Muscat – duas personagens particularmente inacessíveis e fechadas como ostras nas suas conchas, solitárias e imersas no seu próprio sofrimento.
São-nos igualmente fornecidos, ao longo da narrativa, vários indícios que nos podem levar a concluir serem Josephine e Vianne o desdobramento da personalidade da autora – antes e depois da psicoterapia.
Melhor dizendo, Josephine e Vianne são, na realidade, a mesma pessoa, mas em fases diferentes: (Jo)sephine e Vi(anne) antes e depois da psicoterapia – Jo-anne. Josephine seria a mulher apagada, insegura, reprimida e dependente, antes da transformação operada pelo contacto com a psicoterapeuta/feiticeira do chocolate. Já Vianne é aquilo em que Jo se transforma após o tratamento – uma mulher livre, que viaja ao sabor do vento, sem raízes e independente, que exala magnetismo.
E que, além do mais, soube desenvolver uma arte: a de fazer as pessoas felizes. Através da química do chocolate e do poder da Palavra.
No final, Vianne abdica de uma paixão em favor de Josephine que encontra a sua outra metade.
Quase que poderíamos dizer que Vianne é o eu de Joanne, após ultrapassar os seus conflitos e bloqueios enquanto foi alguém semelhante a Josephine.
No filme de Patrick Maarsden, as duas fundem-se e é mesmo Vianne quem fica com Roux…
A escrita de JH é profundamente sensorial, com uma sedução muito particular, polvilhada de cheiros irresistíveis, sons inimagináveis – como o das velas a ondular ao sabor da brisa matinal. E é, sobretudo, uma escrita alquímica, na qual a magia dos contos de fadas se mescla com a realidade do dia-a-dia…
Como acontece com os ingredientes do chocolate…
Impossível resistir-lhe.
Cláudia de Sousa Dias
Vianne Rocher, depois de passar vários anos a viajar ao sabor do vento e a fugir dos seus fantasmas sente, de súbito, um forte desejo de sedentarização e estabilidade. E julga encontrar em Lansquenet o sítio ideal para lançar as suas raízes, um lugar perfeito para trazer às gentes locais um pequeno toque de felicidade, através da magia alquímica das suas mãos especializadas em elaborar a poção mágico do…
…CHOCOLATE!
Vianne é uma jovem mãe solteira que costuma sofrer, normalmente, de pesadelos recorrentes relacionados com uma figura masculina vestida de preto. Um ser misterioso e arquetípico que parece incarnar os seus próprios medos: a opressão e a restrição à liberdade de expressão e movimentos.
Vianne, ao instalar-se na pequena povoação, recebe a visita do Padre Reynaud – muito semelhante à figura sinistra dos seus pesadelos – o qual tenta, imediatamente, verificar que espécie de ser é a forasteira, aparentemente uma arrivista, que tem o descaramento de se instalar mesmo em frente à sua igreja, atitude que encara, desde logo, como uma provocação.
A antipatia que se estabelece entre os dois é, além de mútua, instantânea.
O padre Reynaud sente-se ameaçado com o aparente agnosticismo e o espírito independente de Mademoiselle Rocher, uma filha do Vento de Carnaval, chegada à aldeia no meio de um vendaval acompanhado por uma música ruidosa, um extravagante desfile onde a população, na data pagã que antecede a Quaresma dá largas à fantasia, á folia e ao prazer.
Logo que se apercebe que Vianne pretende abrir uma chocolataria mesmo no centro da povoação e em frente à sua paróquia Reynaud vislumbra imediatamente uma distracção destinada a desviar as suas ovelhas das respectivas “obrigações espirituais”. E percebe que a antítese da austeridade é a pedra base que sustenta a conduta da forasteira.
Vianne, por seu turno, escolhe aquele lugar precisamente por ser um lugar estratégico, um ponto de convergência dos habitantes de uma pequena cidade conservadora e, aparentemente, com um elevado índice de resistência à mudança, quer no que respeita aos hábitos e padrões de conduta, quer no que toca às preferências consumistas.
Reynaud encara a escolha da localização da chocolataria como uma afronta pessoal.
Trata-se, afinal, de uma loja de chocolates, cujo colorido, aromas e sabores é um apelo à sedução dos sentidos.
À Tentação.
Sobretudo quando tal loja ou “antro de perdição” é gerido por uma mulher com feições que em tudo lembram uma feiticeira medieval. Principalmente por ser uma mulher solitária, acompanhada de uma filha sem pai. O que é mais um motivo de desconfiança.
A montra da loja parece-lhe, mais do que nunca, um ardil semelhante ao utilizado pela bruxa da história de Hansel e Gretel – A Casinha de Chocolate…
A própria doçura de Vianne incomoda o pároco. Este olha a jovem como um contra-poder. Para Reynaud, a Igreja e a loja de chocolates encontram-se em pólos opostos. Ela é sua adversária. Uma enviada de Satã para desviar as almas das suas ovelhas…
A conduta do pároco de Chocolate pode ser explicada pelo espírito conservador de Reynaud, pela educação e um incidente ocorrido durante a infância o que faz com que este encare a sua missão não exactamente como uma forma de ajudar as pessoas, mas com o objectivo de aperfeiçoá-las. Como Pigmalião com a sua estátua. Ao mesmo tempo, o pároco sente a sedução do Poder, apesar de não se dar conta do facto.
Na realidade, ele julga, de uma forma algo simplista que o mal está no prazer, em qualquer das suas formas. Até no acto de saciar a fome: Reynaud sofre de delírios, exacerbados pelos jejuns espartanos a que se submete. Por outro lado, não consegue deixar de pensar em Vianne e na apelativa loja, apesar dos seus esforços titânicos…
Na vida de Reynaud, também não existe lugar para o amor.
Só para a Penitência.
Ou para o Sacrifício.
O objectivo, as motivações de Vianne têm como meta final fazer algo de que goste para sobreviver e, simultaneamente, trazer a felicidade ou, pelo menos, um pouco de alegria para a vida daqueles com quem contacta, com o toque mágico que as suas mãos imprimem aos chocolates, bombons e outras iguarias feitas à base de cacau. A sua religião é, como ela própria afirma, “ser feliz”, sendo a chocolataria o local onde se pratica o exorcismo face à amargura da vida.
Mais: La Celeste Praline (a chocolaterie de Vianne)é aquilo que se pode chamar de “um consultório de psicologia disfarçado”, porque, ao contactar com os clientes da loja, Vianne consegue pôr em prática várias terapias utilizadas em processos clínicos, desfrutando da vantagem de observar os comportamentos em contexto real, isto é, em interacção com os diferentes grupos a que pertencem: amigos, família colegas de trabalho, conhecidos da paróquia…
Por outro lado, a participação de Vianne nos diálogos é sempre não directiva. Isto é, ela evita cuidadosamente a utilização de um discurso persuasivo, utilizando, ao invés, perguntas exploratórias ou lançando às vezes uma pergunta retórica à laia de pequena provocação, com o objectivo de obrigar o interlocutor a reflectir e, posteriormente, a escolher se há-se reformular ou não a sua conduta.
Vianne poderia servir-se do seu poder de persuasão ou dos seus acutilantes insights para obrigar as pessoas a aderir à sua forma de pensar, contudo, prefere não fazê-lo. Opta, antes, pela alquimia do chocolate, um dos melhores anti depressivos da natureza que não causa efeitos secundários.
Vianne transporta para Lansquenet o Vento da Mudança, facto que é intuído por Armande Voizin, a anciã dissidente de espírito sufragista…
A Autora dedicou este livro à bisavó, Marie-André Sorin, a qual a inspirou na criação da personagem Armande Voizin, a avó sufragista que instila no neto o gosto pela poesia de Rimbaud, para desespero da mãe, a beata Caroline Clairmont.
Joanne Harris, aquando da entrevista concedida na Fnac do Norteshopping, por altura do lançamento de Danças e Contradanças em Portugal, comentou ter sido Chocolate o seu primeiro sucesso literário apesar de não ser o seu primeiro livro.
Adiantou, ainda, ter sido este um livro cuja escrita funcionou como uma terapia, após um período de depressão.
É notório, sobretudo nos diálogos de Vianne Rocher com os clientes, a aproximação, o conhecimento e o contacto com as já referidas técnicas de entrevista não directiva utilizadas em psicoterapia, particularmente notórias nos diálogos com Roux e com Josephine Muscat – duas personagens particularmente inacessíveis e fechadas como ostras nas suas conchas, solitárias e imersas no seu próprio sofrimento.
São-nos igualmente fornecidos, ao longo da narrativa, vários indícios que nos podem levar a concluir serem Josephine e Vianne o desdobramento da personalidade da autora – antes e depois da psicoterapia.
Melhor dizendo, Josephine e Vianne são, na realidade, a mesma pessoa, mas em fases diferentes: (Jo)sephine e Vi(anne) antes e depois da psicoterapia – Jo-anne. Josephine seria a mulher apagada, insegura, reprimida e dependente, antes da transformação operada pelo contacto com a psicoterapeuta/feiticeira do chocolate. Já Vianne é aquilo em que Jo se transforma após o tratamento – uma mulher livre, que viaja ao sabor do vento, sem raízes e independente, que exala magnetismo.
E que, além do mais, soube desenvolver uma arte: a de fazer as pessoas felizes. Através da química do chocolate e do poder da Palavra.
No final, Vianne abdica de uma paixão em favor de Josephine que encontra a sua outra metade.
Quase que poderíamos dizer que Vianne é o eu de Joanne, após ultrapassar os seus conflitos e bloqueios enquanto foi alguém semelhante a Josephine.
No filme de Patrick Maarsden, as duas fundem-se e é mesmo Vianne quem fica com Roux…
A escrita de JH é profundamente sensorial, com uma sedução muito particular, polvilhada de cheiros irresistíveis, sons inimagináveis – como o das velas a ondular ao sabor da brisa matinal. E é, sobretudo, uma escrita alquímica, na qual a magia dos contos de fadas se mescla com a realidade do dia-a-dia…
Como acontece com os ingredientes do chocolate…
Impossível resistir-lhe.
Cláudia de Sousa Dias