“Filomeno, para meu pesar” de Gonzalo Torrente Ballester (Dom Quixote)
Filomeno Ademar de Alemcastre Freixomil é um jovem oriundo de uma família aristocrática pelo lado materno, com raízes galaico-portuguesas. Aos trinta e tantos anos, decide escrever as suas memórias que giram à volta da evolução dos próprios afectos e convicções bem como da luta pelo direito à liberdade de expressão, devidamente enquadrados num contexto histórico que tem como pano de fundo dois regimes totalitários. E também e da libertação progressiva do estigma que lhe confere o nome Filomeno – o qual abomina –, assim como do complexo de inferioridade desenvolvido face à sonoridade que associa ao seu nome: Filomeno, para seu pesar.
O nome Filomeno é-lhe imposto pelo pai, em homenagem ao avô, mas acaba por se tornar um fardo para o protagonista e narrador do romance impedindo-o de gozar da afectividade associada a um “diminutivo decente”, isto é que não soe, do seu ponto de vista, ridículo ou efeminado. O nome desagrada também à avó aristocrática, dona d e um “pequeno paço minhoto” e do solar de Villavieja del Oro, na Galiza. Ademar de Alemcastre soa-lhe muito mais romântico e literário, lembrando-lhe um antepassado seu, um sedutor galã que arrancava suspiros – e não só – a muitas damas lisboetas do século XIX, as quais, já no período da Belle Époque, recordam com nostalgia o galã aparentado com os Távoras.
A trama principal de Filomeno, para meu pesar, isto é, a infância e a juventude de Filomeno, ou Ademar, decorre na primeira metade do século XX, mais propriamente, no interregno das duas grandes guerras e, sobretudo, durante a ditadura franquista em paralelo com o período do governo do Estado Novo em Portugal, altura em que Filomeno sai do país para trabalhar, primeiro, como empregado bancário em Londres e, depois, em Paris, como correspondente de guerra.
Amores, desamores, amizade e paternalismo
A infância de Filomeno é marcada por alguns acontecimentos dramáticos. A morte da mãe, que não chega a conhecer, a relação problemática com o pai – profundamente cartesiano –, incapaz de demonstrar a menor sombra de afecto por um filho a quem, por ser diferente de si próprio, só consegue falar em tom de crítica ou de azedume, e ao qual insiste em chamar Filomeno – o nome detestado.
Ao pai, preocupa-lhe aquela extrema sensibilidade, a propensão para o sonho, a queda para a poesia e para a literatura por parte do filho, ferozmente protegido pela sogra. Este afecto protector, camuflado de formalismo, por parte da avó - a quem Ademar (é assim que ela o chama e como o chamam aqueles que o amam na infância e adolescência) respeita e admira – teria transformado o jovem numa criança apagada e, provavelmente, sem auto-estima, se não fosse Belinha, a jovem ama de Ademar, de origem portuguesa, a quem dedica a primeira parte das suas memórias. O primeiro grande amor de Filomeno é a jovem camponesa, de seios maternais e com sotaque do Minho. É ela o poço de afectividade para Ademar, enquanto criança – Belinha e a avó recusam-se a chamar-lhe Filomeno partilhando, dessa forma, a mesma relação conflituosa, baseada num desprezo educado, pelo Sr. Freijomil. Por outro lado, Ademar desenvolve, em relação a Belinha, um afecto edipiano, um amor absoluto e trágico que deixará no jovem a marca indelével que irá caracterizar a sua forma de amar e de se relacionar com as mulheres, ao longo de toda a sua vida.
A relação maternal de Belinha com Filomeno Ademar adquire laivos de erotismo. Trata-se, contudo, de um erotismo maternal, da mulher que dá o seio, como a loba que alimenta os órfãos, Rómulo e Remo.
Precisamente na altura em que o jovem Ademar se começa a aproximar da pré-adolescência, a relação dos dois é bruscamente interrompida, criando-lhe um hiato entre esta afectividade primária e aquela que é característica dos amores adultos.
O grande amor, o mais completo, Filomeno Ademar conhecerá, anos mais tarde, em Londres, já terminados os estudos, ao trabalhar no banco onde a avó tem os seus investimentos. É lá que conhece Úrsula, oriunda de uma família de banqueiros judeus, a qual contribui decisivamente para o desenvolvimento dos seus conhecimentos sobre a alta finança, a política e a economia internacionais.
Profundamente bela, distinta, além de inteligentíssima, a jovem alemã oculta, por detrás de uma aparente serenidade e equilíbrio, uma ferida profunda, resultado do culto da eugenia, cada vez mais disseminado nos círculos intelectuais e, sobretudo, médicos na Alemanha do início do século XX…
É através do contacto com Úrsula que Filomeno se apercebe das repercussões da ideologia nazi e dos regimes totalitários na vida do cidadão comum. E é, também, pelo contacto com a jovem que Filomeno se apercebe que pode ser amado apesar do seu nome. Mais: que Filomeno é um nome digno de ser amado. Até porque contém esse sentimento, na sua raiz etimológica.
Mais tarde, em Paris, ao trabalhar como correspondente de guerra para um jornal Lisboeta, Filomeno conhece Clélia, uma personagem bizarra, misteriosa, surgida do nada e desaparecida de forma tão abrupta como entrou na sua vida. A paixão por Clélia nasce de um impulso de solidariedade, numa situação extrema, fruto da conjuntura de guerra num país ocupado e, também, da curiosidade que o impele a decifrar a personalidade de uma mulher enigmática, cuja conduta é, para si, um verdadeiro quebra-cabeças. A nostalgia causada pela partida da jovem, apesar de não lhe causar uma ferida tão profunda como a de Belinha ou Úrsula – patente até na dimensão dos retratos de ambas ou do tempo que dedica a cada uma na narrativa – transforma-se em mais uma razão para não se tornar simpatizante do nazismo. Ou de qualquer regime totalitário. O que provoca algumas dificuldades a Ademar enquanto cronista em Paris, nas suas relações com a direcção do jornal e, nomeadamente, com os mecanismos da Censura, a qual tenta encontrar, nas entrelinhas, das suas crónicas a mais leve marca de uma ideologia simpatizante com o regime estalinista que confunde com a simples crítica à política e ao sistema social impostos pelo Führer
Ballester dá-nos, através do olhar de Filomeno, a possibilidade de compararmos as relações das pessoas comuns em tempo de guerra, em duas cidades cujos cidadãos encontram formas de expressar o medo, o amor, a solidariedade, a compaixão, a estratégia de sobrevivência e a reacção ao invasor, de forma tão radicalmente diferente como a Paris e Londres.
Anos mais tarde, já de volta ao paço minhoto, Ademar tenta recuperar das perdas emocionais sofridas pela guerra – Úrsula e Clélia.
É então que conhece Maria de Fátima.
Esta é uma jovem oriunda do Brasil, que alia a extrema beleza, herdada da mãe, à sensualidade dos trópicos, onde os padrões de conduta e as normas sociais são mais flexíveis do que numa aldeia minhota, onde o controlo social é muito mais apertado.
Maria de Fátima provém de uma família rica. Contudo, as relações entre os seus membros são pautadas por uma extrema frieza, onde todos se comportam como super potências em plena guerra-fria. Uma guerra de palavras, disparadas como mísseis, e de frases carregadas de veneno nas entrelinhas.
Em casa de Maria de Fátima, existem três mulheres belíssimas. Regina, a mãe, Maria de Fátima e Paulinha, a criada. Esta última, desfruta de uma familiaridade com as patroas que não deixa de surpreender e, de certa forma, chocar, Filomeno.
Este sente-se quase como Páris, tendo que atribuir a maçã de ouro à mais bela e talentosa das três deusas.
A vencedora é Paulinha. De todas, só ela poderia ser equiparada a Afrodite. Além de bela, é a única a exprimir-se de forma a manter alguma harmonia em casa. Maria de Fátima seria a encarnação de Athena, principalmente pelo seu comportamento táctico e pela frieza absoluta da sua lógica. Regina seria, obviamente Hera, pela forma como exprime o seu poder quer sexual, quer como rainha da casa. Todas as suas atitudes são típicas de uma imperatriz despótica.
As três ficam imediatamente fascinadas com Ademar e com a elegância aristocrática do paço minhoto.
Mas Ademar não cai na armadilha.
Graças à recordação deixada por Úrsula e Clélia, que lhe permitem comparar e aumentar a sua capacidade de discriminação e discernimento.
Sobretudo porque, na personalidade de Maria de Fátima, são mais do que evidentes as consequências de uma infância sem afecto e, principalmente, na qual se sente, nitidamente, a falta da transmissão directa dos valores fundamentais pelas pessoas mais próximas. Apesar de exibir um fortíssimo magnetismo sexual, são a frieza e a secura emocionais, as características que mais se destacam na sua personalidade. O próprio Filomeno intui no olhar da jovem, de molde a gelar o desejo nas veias, o olhar da própria Medusa.
A solidão e a vida de celibatário do jovem fidalgo intelectual, aliados ao seu carácter introspectivo, permitem-lhe desenvolver um lento, embora sólido, processo de amadurecimento da própria consciência dos seus próprios desejos. A amizade de Flora – a prostituta amiga e ex-amante do próprio pai – é uma das peças fundamentais que acaba por ajudá-lo nesse sentido, ajudando-o a sanar velhas feridas. Para além disso, Flora acaba por se tornar uma espécie de fada-madrinha, protegendo Filomeno da perseguição do regime. A relação dos dois acaba por se tornar uma amizade sincera baseada na entreajuda mútua.
A ascensão de Franco ao poder desencadeia uma autêntica “caça às bruxas” no que respeita à perseguição dos opositores do regime, ainda durante o período de adolescência de Filomeno.
A situação em Madrid, na altura em frequenta o Ensino Superior, torna-se perigosa para um livre-pensador como Filomeno. Este não se sente propriamente bem regimes do género de ditadura militar. Sobretudo após o pai, o senador Freijomil, ter sido saneado, como pertencente ao regime anterior.
Durante a sua estadia em Madrid, Filomeno contacta com algumas figuras-chave as quais têm particular relevância no desenvolvimento e expressão da forma de se relacionar e comunicar com os outros e na consolidação da sua personalidade.
O primeiro foi o señor Praxedes, director do hotel onde se hospedava e que assume o papel de tutor do jovem, encarregue pelo pai de o proteger. O señor Praxedes gere as economias de Filomeno, aconselha-o nos gastos e, ao mesmo, tempo, deixa no ar algumas “dicas” no sentido de evitar dissabores na sua relação com os colegas e, principalmente, com as mulheres.
Praxedes é um homem de elevado senso prático, mundano e possuidor de uma extraordinária lucidez e perspicácia. Chega, inclusiva, a usar do poder e influência de que dispõe para tirar Filomeno de algumas situações difíceis, devido à sua ingenuidade.
É através de Praxedes que Filomeno aprende a melhor forma de lidar com o detestável Sotero, amigo invejoso e pedante, cuja necessidade de humilhar o colega, idealista, sonhador e com pouca auto-estima, atirando-lhe à cara o facto de o seu nascimento privilegiado e modos aristocráticos lhe retirarem o valor de todo e qualquer mérito ou conquista que venha a conquistar.
Também a amizade de Filomeno com Benito, amante da Literatura e apaixonado pela Poesia, permite-lhe comparar e, posteriormente, distinguir a verdadeira amizade do mero interesse.
Mais tarde, Filomeno terá a oportunidade de assistir à evolução de Benito para a situação de conformista frustrado, embora economicamente bem-sucedido – situação motivada pelas pressões familiares e no sentido de conservar o afecto de uma esposa interesseira e venal.
Filomeno e a maior parte dos seus amigos não gostam propriamente de ver o seu pensamento, gostos estéticos, filosóficos ou literários amputados pelo regime cujos mecanismos censores tentam indexar obras e autores – sobretudo se provenientes de países suspeitos como a França, a Rússia ou até a Inglaterra – como perigosas por opositoras ao estilo de governação de Franco.
Essa é, uma das razões que motivam a ida para Portugal após finalizar a Universidade, em Madrid.
A influência da família de Alemcastre em Portugal estende-se até à capital do País, factor que torna o ambiente um pouco mais favorável a Filomeno. Mesmo assim, este decide adoptar uma postura low-profile na manifestação dos seus ideais liberais, sem conseguir, no entanto, deixar de ser conotado pela mentalidade cartesiana do funcionalismo público português e de alguns membros da direcção do jornal onde trabalha, como possuidor de “ideais de tendência esquerdista”.
Em Lisboa, as afinidades entre a ditadura do Estado Novo e o fascismo franquista, juntamente com a simpatia do Presidente da República pelo regime nazi, criam algumas dificuldades no desempenho do trabalho de jornalista/cronista de Filomeno.
Este tenta, a partir da capital francesa sitiada, executar a função de comentador e crítico relativamente a eventos culturais parisienses para o jornal português debruçando-se sobre as áreas do teatro, da música e, também, crítica literária. Mas, para além de tudo o que diz respeito à cultura propriamente dita, Filomeno é, também, um perito na elaboração de análises politicamente neutras relativamente a economia, finanças internacionais, fruto da sua experiência em Londres, durante os seus primeiros anos de jovem adulto, logo após a morte da avó. O que o torna um pouco suspeito para os simpatizantes portugueses do nazismo e para os colaboracionistas franceses.
Também quando se trata de comentar algo como uma simples peça de teatro, Filomeno é obrigado a escolher as palavras com o mesmo cuidado com que um gato caminha sobre um parapeito cheio de estilhaços de vidro, numa janela aberta de um décimo andar.
Após o final da guerra, Filomeno Ademar “saltita” entre o paço minhoto e o solar de Villavieja del Oro, a aldeiazinha galega onde passou a primeira infância e conheceu Sotero.
Lá, reencontra alguns conhecidos de outrora, alguns deles, os mesmos que formavam o grupo da tertúlia literária local, num pequeno café-concerto. Mais tarde, as sempiternas perseguições ideológicas pela polícia política fazem com que esses debates e discussões literárias se realizem clandestinamente no bordel de Flora.
O último capítulo é assaz divertido com o toque de ironia, tão típico de Ballester, a enfatizar a mesquinhez e a pobreza de espírito das forças de ordem bem como as estruturas paralelas que o apoiam, como é o caso da Igreja.
A amizade da prostituta Flora, ao abrigo da qual se realizam as conferências do bordel, como outrora em Portugal as Conferências do Casino pela Geração de ’70, constituem o baluarte de Filomeno, em Villavieja del Oro face à hipocrisia pseudo-intelectual local, liderada por Doña Eugénia, a bela e desejada viúva (pelos membros de todas as facções políticas), colaboradora directa com os organismos da Censura nas lides literárias. Sobretudo com o clero local, cuja audácia chega ao cúmulo de se introduzir nas casas particulares e indicar quais os livros a serem queimados. Este é um dos aspectos mais explorados nas últimas cem páginas do romance que culmina com o encerramento do bordel (tal como outrora em Portugal o encerramento das conferências do casino) e a morte da proxeneta Flora.
Uma das características mais presentes, ao longo de toda a narrativa, é a nítida admiração de Ballester autor por autores portugueses da referida Geração de ’70 como Eça de Queirós e Antero de Quental, aqui manifesta pelas preferências literárias de Filomeno.
A ácida troca de palavras entre Filomeno e Don Braulio, o pároco da aldeia, é magistral e marca definitivamente a posição ideológica da personagem ao defender, com a fleuma britânica – provavelmente adquirida durante a sua estadia em Londres durante o raid alemão sobre a cidade –, a conservação do património cultural da família e a integridade da sua biblioteca privada, que conta com volumes com vários séculos de existência. A atitude fria, calma e perfeitamente racional de Filomeno deixa o pároco Don Braulio sem palavras.
A hipocrisia e o falso moralismo locais são literalmente dissecadas pela acutilante pena de Ballester, à qual nada escapa. Nem a (falsa) virtude das aristocratas e burguesas empobrecidas que se escapam pela porta traseira da igreja e entram, discretamente, no bordel de Flora, onde arranjam o sustento para manterem as suas dignas famílias.
Neste capítulo, Ballester é o acérrimo defensor dos direitos e liberdades individuais assim como a não interferência, quer da Igreja quer do Estado, em assuntos privados, como por exemplo, o funeral de Flora.
A Linguagem e o teor a Narrativa
Gonzalo Torrente Ballester tem a particularidade que só um escritor de altíssimo nível consegue atingir: a demonstrar as suas convicções por via indirecta, isto é, sem recorrer a juízos de valor, quer no que respeita ao comportamento das personagens – como é o caso de Sotero, Regina ou Maria de Fátima – quer no que respeita às diferentes posições políticas de todos os intervenientes.
Quem toma posições e emite juízos são sempre as personagens, nunca o narrador, mesmo sendo participante.
Abstendo-se de desempenhar o papel de juiz, usando a máscara de Filomeno, Ballester empenha-se antes em realçar as consequências no foro íntimo de cada um face às atitudes dogmáticas e extremistas de quem se julga detentor da verdade quando se faz de uma crença ou de um paradigma, seja ele de ordem teológica, económica ou política, a tábua rasa ou o modelo universal de comportamento para todos os homens.
Profundamente individualista tal como o jovem Filomeno, Ballester expõe as falhas humanas através do comportamento dos sujeitos e da transcrição dos diálogos onde as palavras podem ter o impacto de um dardo ou a capacidade de restaurar o equilíbrio.
A pedra de toque na escrita de Ballester é sempre o equilíbrio, a procura do bom-senso e sobretudo a defesa da liberdade e da inviolabilidade do direito ao livre-pensamento.
Também a luta de Filomeno e o principal móbil da sua conduta é a preservação da própria identidade e o direito a fazer aquilo que mais gosta: escrever e zelar por aqueles a quem estima.
A avó Alemcastre, de quem Filomeno herda o paço minhoto, transmite-lhe, desde o berço, a noção da importância da própria independência. Ela própria era quem ditava o teor das relações da sua casa com o Bispo ao determinar qual seria a porta por onde o sacerdote deveria entrar e nunca o contrário. Também Filomeno se recusa a seguir as directivas de um guru ou de um guia espiritual, seja ele de natureza religiosa ou política. O princípio básico que norteia a sua conduta é sempre o do afecto e do respeito, muito kantiano, pela individualidade. Sua e do Outro.
Talvez por isso seja uma personagem que se consegue fazer respeitar e admirar até pelos próprios inimigos.
O livro Filomeno para meu pesar mereceu a distinção Prémio Planeta para o Autor, cuja obra se torna indispensável para os apreciadores da boa literatura.
Filomeno, para meu pesar ou a paixão da escrita como manifestação do poder criativo da mente humana.
Cláudia de Sousa Dias
O nome Filomeno é-lhe imposto pelo pai, em homenagem ao avô, mas acaba por se tornar um fardo para o protagonista e narrador do romance impedindo-o de gozar da afectividade associada a um “diminutivo decente”, isto é que não soe, do seu ponto de vista, ridículo ou efeminado. O nome desagrada também à avó aristocrática, dona d e um “pequeno paço minhoto” e do solar de Villavieja del Oro, na Galiza. Ademar de Alemcastre soa-lhe muito mais romântico e literário, lembrando-lhe um antepassado seu, um sedutor galã que arrancava suspiros – e não só – a muitas damas lisboetas do século XIX, as quais, já no período da Belle Époque, recordam com nostalgia o galã aparentado com os Távoras.
A trama principal de Filomeno, para meu pesar, isto é, a infância e a juventude de Filomeno, ou Ademar, decorre na primeira metade do século XX, mais propriamente, no interregno das duas grandes guerras e, sobretudo, durante a ditadura franquista em paralelo com o período do governo do Estado Novo em Portugal, altura em que Filomeno sai do país para trabalhar, primeiro, como empregado bancário em Londres e, depois, em Paris, como correspondente de guerra.
Amores, desamores, amizade e paternalismo
A infância de Filomeno é marcada por alguns acontecimentos dramáticos. A morte da mãe, que não chega a conhecer, a relação problemática com o pai – profundamente cartesiano –, incapaz de demonstrar a menor sombra de afecto por um filho a quem, por ser diferente de si próprio, só consegue falar em tom de crítica ou de azedume, e ao qual insiste em chamar Filomeno – o nome detestado.
Ao pai, preocupa-lhe aquela extrema sensibilidade, a propensão para o sonho, a queda para a poesia e para a literatura por parte do filho, ferozmente protegido pela sogra. Este afecto protector, camuflado de formalismo, por parte da avó - a quem Ademar (é assim que ela o chama e como o chamam aqueles que o amam na infância e adolescência) respeita e admira – teria transformado o jovem numa criança apagada e, provavelmente, sem auto-estima, se não fosse Belinha, a jovem ama de Ademar, de origem portuguesa, a quem dedica a primeira parte das suas memórias. O primeiro grande amor de Filomeno é a jovem camponesa, de seios maternais e com sotaque do Minho. É ela o poço de afectividade para Ademar, enquanto criança – Belinha e a avó recusam-se a chamar-lhe Filomeno partilhando, dessa forma, a mesma relação conflituosa, baseada num desprezo educado, pelo Sr. Freijomil. Por outro lado, Ademar desenvolve, em relação a Belinha, um afecto edipiano, um amor absoluto e trágico que deixará no jovem a marca indelével que irá caracterizar a sua forma de amar e de se relacionar com as mulheres, ao longo de toda a sua vida.
A relação maternal de Belinha com Filomeno Ademar adquire laivos de erotismo. Trata-se, contudo, de um erotismo maternal, da mulher que dá o seio, como a loba que alimenta os órfãos, Rómulo e Remo.
Precisamente na altura em que o jovem Ademar se começa a aproximar da pré-adolescência, a relação dos dois é bruscamente interrompida, criando-lhe um hiato entre esta afectividade primária e aquela que é característica dos amores adultos.
O grande amor, o mais completo, Filomeno Ademar conhecerá, anos mais tarde, em Londres, já terminados os estudos, ao trabalhar no banco onde a avó tem os seus investimentos. É lá que conhece Úrsula, oriunda de uma família de banqueiros judeus, a qual contribui decisivamente para o desenvolvimento dos seus conhecimentos sobre a alta finança, a política e a economia internacionais.
Profundamente bela, distinta, além de inteligentíssima, a jovem alemã oculta, por detrás de uma aparente serenidade e equilíbrio, uma ferida profunda, resultado do culto da eugenia, cada vez mais disseminado nos círculos intelectuais e, sobretudo, médicos na Alemanha do início do século XX…
É através do contacto com Úrsula que Filomeno se apercebe das repercussões da ideologia nazi e dos regimes totalitários na vida do cidadão comum. E é, também, pelo contacto com a jovem que Filomeno se apercebe que pode ser amado apesar do seu nome. Mais: que Filomeno é um nome digno de ser amado. Até porque contém esse sentimento, na sua raiz etimológica.
Mais tarde, em Paris, ao trabalhar como correspondente de guerra para um jornal Lisboeta, Filomeno conhece Clélia, uma personagem bizarra, misteriosa, surgida do nada e desaparecida de forma tão abrupta como entrou na sua vida. A paixão por Clélia nasce de um impulso de solidariedade, numa situação extrema, fruto da conjuntura de guerra num país ocupado e, também, da curiosidade que o impele a decifrar a personalidade de uma mulher enigmática, cuja conduta é, para si, um verdadeiro quebra-cabeças. A nostalgia causada pela partida da jovem, apesar de não lhe causar uma ferida tão profunda como a de Belinha ou Úrsula – patente até na dimensão dos retratos de ambas ou do tempo que dedica a cada uma na narrativa – transforma-se em mais uma razão para não se tornar simpatizante do nazismo. Ou de qualquer regime totalitário. O que provoca algumas dificuldades a Ademar enquanto cronista em Paris, nas suas relações com a direcção do jornal e, nomeadamente, com os mecanismos da Censura, a qual tenta encontrar, nas entrelinhas, das suas crónicas a mais leve marca de uma ideologia simpatizante com o regime estalinista que confunde com a simples crítica à política e ao sistema social impostos pelo Führer
Ballester dá-nos, através do olhar de Filomeno, a possibilidade de compararmos as relações das pessoas comuns em tempo de guerra, em duas cidades cujos cidadãos encontram formas de expressar o medo, o amor, a solidariedade, a compaixão, a estratégia de sobrevivência e a reacção ao invasor, de forma tão radicalmente diferente como a Paris e Londres.
Anos mais tarde, já de volta ao paço minhoto, Ademar tenta recuperar das perdas emocionais sofridas pela guerra – Úrsula e Clélia.
É então que conhece Maria de Fátima.
Esta é uma jovem oriunda do Brasil, que alia a extrema beleza, herdada da mãe, à sensualidade dos trópicos, onde os padrões de conduta e as normas sociais são mais flexíveis do que numa aldeia minhota, onde o controlo social é muito mais apertado.
Maria de Fátima provém de uma família rica. Contudo, as relações entre os seus membros são pautadas por uma extrema frieza, onde todos se comportam como super potências em plena guerra-fria. Uma guerra de palavras, disparadas como mísseis, e de frases carregadas de veneno nas entrelinhas.
Em casa de Maria de Fátima, existem três mulheres belíssimas. Regina, a mãe, Maria de Fátima e Paulinha, a criada. Esta última, desfruta de uma familiaridade com as patroas que não deixa de surpreender e, de certa forma, chocar, Filomeno.
Este sente-se quase como Páris, tendo que atribuir a maçã de ouro à mais bela e talentosa das três deusas.
A vencedora é Paulinha. De todas, só ela poderia ser equiparada a Afrodite. Além de bela, é a única a exprimir-se de forma a manter alguma harmonia em casa. Maria de Fátima seria a encarnação de Athena, principalmente pelo seu comportamento táctico e pela frieza absoluta da sua lógica. Regina seria, obviamente Hera, pela forma como exprime o seu poder quer sexual, quer como rainha da casa. Todas as suas atitudes são típicas de uma imperatriz despótica.
As três ficam imediatamente fascinadas com Ademar e com a elegância aristocrática do paço minhoto.
Mas Ademar não cai na armadilha.
Graças à recordação deixada por Úrsula e Clélia, que lhe permitem comparar e aumentar a sua capacidade de discriminação e discernimento.
Sobretudo porque, na personalidade de Maria de Fátima, são mais do que evidentes as consequências de uma infância sem afecto e, principalmente, na qual se sente, nitidamente, a falta da transmissão directa dos valores fundamentais pelas pessoas mais próximas. Apesar de exibir um fortíssimo magnetismo sexual, são a frieza e a secura emocionais, as características que mais se destacam na sua personalidade. O próprio Filomeno intui no olhar da jovem, de molde a gelar o desejo nas veias, o olhar da própria Medusa.
A solidão e a vida de celibatário do jovem fidalgo intelectual, aliados ao seu carácter introspectivo, permitem-lhe desenvolver um lento, embora sólido, processo de amadurecimento da própria consciência dos seus próprios desejos. A amizade de Flora – a prostituta amiga e ex-amante do próprio pai – é uma das peças fundamentais que acaba por ajudá-lo nesse sentido, ajudando-o a sanar velhas feridas. Para além disso, Flora acaba por se tornar uma espécie de fada-madrinha, protegendo Filomeno da perseguição do regime. A relação dos dois acaba por se tornar uma amizade sincera baseada na entreajuda mútua.
A ascensão de Franco ao poder desencadeia uma autêntica “caça às bruxas” no que respeita à perseguição dos opositores do regime, ainda durante o período de adolescência de Filomeno.
A situação em Madrid, na altura em frequenta o Ensino Superior, torna-se perigosa para um livre-pensador como Filomeno. Este não se sente propriamente bem regimes do género de ditadura militar. Sobretudo após o pai, o senador Freijomil, ter sido saneado, como pertencente ao regime anterior.
Durante a sua estadia em Madrid, Filomeno contacta com algumas figuras-chave as quais têm particular relevância no desenvolvimento e expressão da forma de se relacionar e comunicar com os outros e na consolidação da sua personalidade.
O primeiro foi o señor Praxedes, director do hotel onde se hospedava e que assume o papel de tutor do jovem, encarregue pelo pai de o proteger. O señor Praxedes gere as economias de Filomeno, aconselha-o nos gastos e, ao mesmo, tempo, deixa no ar algumas “dicas” no sentido de evitar dissabores na sua relação com os colegas e, principalmente, com as mulheres.
Praxedes é um homem de elevado senso prático, mundano e possuidor de uma extraordinária lucidez e perspicácia. Chega, inclusiva, a usar do poder e influência de que dispõe para tirar Filomeno de algumas situações difíceis, devido à sua ingenuidade.
É através de Praxedes que Filomeno aprende a melhor forma de lidar com o detestável Sotero, amigo invejoso e pedante, cuja necessidade de humilhar o colega, idealista, sonhador e com pouca auto-estima, atirando-lhe à cara o facto de o seu nascimento privilegiado e modos aristocráticos lhe retirarem o valor de todo e qualquer mérito ou conquista que venha a conquistar.
Também a amizade de Filomeno com Benito, amante da Literatura e apaixonado pela Poesia, permite-lhe comparar e, posteriormente, distinguir a verdadeira amizade do mero interesse.
Mais tarde, Filomeno terá a oportunidade de assistir à evolução de Benito para a situação de conformista frustrado, embora economicamente bem-sucedido – situação motivada pelas pressões familiares e no sentido de conservar o afecto de uma esposa interesseira e venal.
Filomeno e a maior parte dos seus amigos não gostam propriamente de ver o seu pensamento, gostos estéticos, filosóficos ou literários amputados pelo regime cujos mecanismos censores tentam indexar obras e autores – sobretudo se provenientes de países suspeitos como a França, a Rússia ou até a Inglaterra – como perigosas por opositoras ao estilo de governação de Franco.
Essa é, uma das razões que motivam a ida para Portugal após finalizar a Universidade, em Madrid.
A influência da família de Alemcastre em Portugal estende-se até à capital do País, factor que torna o ambiente um pouco mais favorável a Filomeno. Mesmo assim, este decide adoptar uma postura low-profile na manifestação dos seus ideais liberais, sem conseguir, no entanto, deixar de ser conotado pela mentalidade cartesiana do funcionalismo público português e de alguns membros da direcção do jornal onde trabalha, como possuidor de “ideais de tendência esquerdista”.
Em Lisboa, as afinidades entre a ditadura do Estado Novo e o fascismo franquista, juntamente com a simpatia do Presidente da República pelo regime nazi, criam algumas dificuldades no desempenho do trabalho de jornalista/cronista de Filomeno.
Este tenta, a partir da capital francesa sitiada, executar a função de comentador e crítico relativamente a eventos culturais parisienses para o jornal português debruçando-se sobre as áreas do teatro, da música e, também, crítica literária. Mas, para além de tudo o que diz respeito à cultura propriamente dita, Filomeno é, também, um perito na elaboração de análises politicamente neutras relativamente a economia, finanças internacionais, fruto da sua experiência em Londres, durante os seus primeiros anos de jovem adulto, logo após a morte da avó. O que o torna um pouco suspeito para os simpatizantes portugueses do nazismo e para os colaboracionistas franceses.
Também quando se trata de comentar algo como uma simples peça de teatro, Filomeno é obrigado a escolher as palavras com o mesmo cuidado com que um gato caminha sobre um parapeito cheio de estilhaços de vidro, numa janela aberta de um décimo andar.
Após o final da guerra, Filomeno Ademar “saltita” entre o paço minhoto e o solar de Villavieja del Oro, a aldeiazinha galega onde passou a primeira infância e conheceu Sotero.
Lá, reencontra alguns conhecidos de outrora, alguns deles, os mesmos que formavam o grupo da tertúlia literária local, num pequeno café-concerto. Mais tarde, as sempiternas perseguições ideológicas pela polícia política fazem com que esses debates e discussões literárias se realizem clandestinamente no bordel de Flora.
O último capítulo é assaz divertido com o toque de ironia, tão típico de Ballester, a enfatizar a mesquinhez e a pobreza de espírito das forças de ordem bem como as estruturas paralelas que o apoiam, como é o caso da Igreja.
A amizade da prostituta Flora, ao abrigo da qual se realizam as conferências do bordel, como outrora em Portugal as Conferências do Casino pela Geração de ’70, constituem o baluarte de Filomeno, em Villavieja del Oro face à hipocrisia pseudo-intelectual local, liderada por Doña Eugénia, a bela e desejada viúva (pelos membros de todas as facções políticas), colaboradora directa com os organismos da Censura nas lides literárias. Sobretudo com o clero local, cuja audácia chega ao cúmulo de se introduzir nas casas particulares e indicar quais os livros a serem queimados. Este é um dos aspectos mais explorados nas últimas cem páginas do romance que culmina com o encerramento do bordel (tal como outrora em Portugal o encerramento das conferências do casino) e a morte da proxeneta Flora.
Uma das características mais presentes, ao longo de toda a narrativa, é a nítida admiração de Ballester autor por autores portugueses da referida Geração de ’70 como Eça de Queirós e Antero de Quental, aqui manifesta pelas preferências literárias de Filomeno.
A ácida troca de palavras entre Filomeno e Don Braulio, o pároco da aldeia, é magistral e marca definitivamente a posição ideológica da personagem ao defender, com a fleuma britânica – provavelmente adquirida durante a sua estadia em Londres durante o raid alemão sobre a cidade –, a conservação do património cultural da família e a integridade da sua biblioteca privada, que conta com volumes com vários séculos de existência. A atitude fria, calma e perfeitamente racional de Filomeno deixa o pároco Don Braulio sem palavras.
A hipocrisia e o falso moralismo locais são literalmente dissecadas pela acutilante pena de Ballester, à qual nada escapa. Nem a (falsa) virtude das aristocratas e burguesas empobrecidas que se escapam pela porta traseira da igreja e entram, discretamente, no bordel de Flora, onde arranjam o sustento para manterem as suas dignas famílias.
Neste capítulo, Ballester é o acérrimo defensor dos direitos e liberdades individuais assim como a não interferência, quer da Igreja quer do Estado, em assuntos privados, como por exemplo, o funeral de Flora.
A Linguagem e o teor a Narrativa
Gonzalo Torrente Ballester tem a particularidade que só um escritor de altíssimo nível consegue atingir: a demonstrar as suas convicções por via indirecta, isto é, sem recorrer a juízos de valor, quer no que respeita ao comportamento das personagens – como é o caso de Sotero, Regina ou Maria de Fátima – quer no que respeita às diferentes posições políticas de todos os intervenientes.
Quem toma posições e emite juízos são sempre as personagens, nunca o narrador, mesmo sendo participante.
Abstendo-se de desempenhar o papel de juiz, usando a máscara de Filomeno, Ballester empenha-se antes em realçar as consequências no foro íntimo de cada um face às atitudes dogmáticas e extremistas de quem se julga detentor da verdade quando se faz de uma crença ou de um paradigma, seja ele de ordem teológica, económica ou política, a tábua rasa ou o modelo universal de comportamento para todos os homens.
Profundamente individualista tal como o jovem Filomeno, Ballester expõe as falhas humanas através do comportamento dos sujeitos e da transcrição dos diálogos onde as palavras podem ter o impacto de um dardo ou a capacidade de restaurar o equilíbrio.
A pedra de toque na escrita de Ballester é sempre o equilíbrio, a procura do bom-senso e sobretudo a defesa da liberdade e da inviolabilidade do direito ao livre-pensamento.
Também a luta de Filomeno e o principal móbil da sua conduta é a preservação da própria identidade e o direito a fazer aquilo que mais gosta: escrever e zelar por aqueles a quem estima.
A avó Alemcastre, de quem Filomeno herda o paço minhoto, transmite-lhe, desde o berço, a noção da importância da própria independência. Ela própria era quem ditava o teor das relações da sua casa com o Bispo ao determinar qual seria a porta por onde o sacerdote deveria entrar e nunca o contrário. Também Filomeno se recusa a seguir as directivas de um guru ou de um guia espiritual, seja ele de natureza religiosa ou política. O princípio básico que norteia a sua conduta é sempre o do afecto e do respeito, muito kantiano, pela individualidade. Sua e do Outro.
Talvez por isso seja uma personagem que se consegue fazer respeitar e admirar até pelos próprios inimigos.
O livro Filomeno para meu pesar mereceu a distinção Prémio Planeta para o Autor, cuja obra se torna indispensável para os apreciadores da boa literatura.
Filomeno, para meu pesar ou a paixão da escrita como manifestação do poder criativo da mente humana.
Cláudia de Sousa Dias