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Wednesday, March 26, 2008

“Entre Nós” de Luís Serguilha (Quasi Edições)


Um grupo de jovens passa as férias em Porto Covo e, entre eles, o narrador Luís, o alter-ego do Autor, aproveita o cenário idílico da paisagem estival para mostrar aos amigos a sua prosa, onírica, como livre expressão dos seus devaneios, onde se misturam, imagens fundidas com a paisagem que se estende diante deles. Estas imagens misturam-se, apresentando-se, muitas, vezes desenquadradas dos signos linguísticos, ou melhor, do significante que lhes é atribuído muito ao estilo dadaísta e com influência do cubismo, num registo que o autor desenvolve e aperfeiçoa em obras posteriores.

O grupo de jovens que compõe o leque de personagens de Entre Nós - a qual está classificada na categoria de neo roman, uma forma híbrida que se situa algures entre o conto e o romance -, tem em comum o facto de todos os seus elementos terem realizado os seus estudos académicos na cidade de Coimbra. Daí a nostalgia que os une ao evocarem a Cidade e o Fado, presentes no imaginário dos elementos do grupo através da manifestação dos gemidos da guitarra de Carlos Paredes e da beleza da poesia de José Afonso.

"Todos sentem Coimbra como uma segunda pele (segundo afirma o próprio Luís Serguilha), remetendo para um mundo, ou melhor, para um tempo fraccionado ao longo da narrativa: a realidade Coimbrã – reminiscente como o mundo ideal da república platónica – e a realidade presente, fora do mundo académico". Dois tempos e dois cenários que acabam por se fundir…

Luís Serguilha, partilha, nesta obra, o nome com o protagonista/narrador de Entre Nós. O Autor rompe com os moldes clássicos do desenvolvimento da estrutura narrativa, nesta fase inicial da sua carreira de escritor e escolhe, para tema principal, a descrição dos corpos como paisagens humanas.

Aquilo que nos vem à memória ao lermos Serguilha são, muitas vezes, reminiscências de cenas mitológicas. Não falamos, obviamente, de semelhanças formais com o estilo clássico da poesia homérica ou virgiliana, mas antes da fusão dos elementos paisagísticos, onde o carnal se mistura com o vegetal – à semelhança do episódio em que Apolo persegue a ninfa que se transforma em loureiro –, ou o humano com o animal, lembrando o estilo imagético de Dalí e, por vezes, o desenquadramento /desnivelamento das formas dos cubistas.

Daqui surgem, como consequência, seres humanos que se movimentam de maneira fluida, como num sonho, onde os acontecimentos se interceptam e os corpos se fundem e confundem com o cenário.

Segundo esta linha de raciocínio temos, então, uma personagem feminina que se identifica ou que podemos identificar com o Vento – Paula – outra, com o movimento das águas – Maria João, também obcecada pelo tango e pela cultura argentina, segundo o Autor – outra ainda, o Fogo da Sabedoria, da sede inesgotável do Saber – Sofia, claro. Uma jovem de grande sensibilidade e carácter humanista que se entrega às grandes causas com toda a paixão do seu ser. E, por último, o casal que se confunde com a linha do horizonte, dois corpos que surgem da força telúrica da Terra – Jorge e Clara.

Existe, ainda, a figura de José Coimbra, uma chama que serpenteia pelas areias ardentes da praia, que representa um fogo diferente do de Sofia – esta última de carácter muito mais espiritual. José Coimbra assemelha-se antes a Vulcano, dedicando-se a esculpir a sua própria carne, ao invés do ferro com o qual trabalhava o mitológico filho de Júpiter, José Coimbra molda, antes, o próprio corpo através de actividades desportivas. É um jovem que contagia os outros pela energia, pelo dinamismo que emana dos movimentos do próprio corpo. Um ser, sinestésico, por excelência.

No cenário estival da orla marítima de Porto Covo, as figuras humanas movem-se como num bailado de um filme de Man Ray, ou de uma sequência de cenas de Buñuel – ver pág 14 – com movimentos simultaneamente fluidos e sincronizados. As influências do Surrealismo, provenientes quer da pintura quer do cinema, são notórias, face à presença de elementos visuais como os que estão presentes neste parágrafo:

José Coimbra serpenteia nas estátuas de fogo e nas jarras levedadas de vida que se multiplicam ambreadas pelos bardos do Verão, onde se reconhece o amor como um homem inacabado, ou o vórtice no pecíolo da alma.

Esta é uma descrição que corresponde não só à essência da alma de José Coimbra - mas, sobretudo, à forma como este consegue comunicar com aqueles com quem convive - , e que também é proveniente da emanação directa do movimento estético que inspira o Autor: Trata-se da descrição de um quadro de Dalí, que é transposta para a paisagem de uma praia portuguesa, através duma figura humana retirada desse mesmo quadro e à qual é atribuído um nome. O quadro de onde essa mesma figura é extraída e, depois, projectada no conto, representa uma flor cujas pétalas são chamas. E onde cada chama é uma figura antropomórfica que dança com as outras, de mãos dadas em redor de um pistilo, que contém os órgãos sexuais da planta. Um pormenor: as figuras antropomórficas são assexuadas e a planta, hermafrodita. E, no conto, apercebemo-nos, por vezes, de uma ligação sensual que envolve pelo menos duas personagens femininas. Ligação essa que só se torna perceptível pela sincronia dos corpos e cumplicidade de movimentos entre as jovens, que se movem em perfeita harmonia sinestésica.

A personagem Sofia, independente e solitária como Diana é, ao mesmo tempo, possuidora do espírito dialéctico de Athena. É, talvez a figura feminina com quem o narrador mais se identifica, apesar de sempre fugidia, inatingível e inalcançável, como sugere o arquétipo das duas deusas mitológicas, as quais abdicam da sexualidade para serem colocadas no mesmo plano que os seus pares: os deuses masculinos. Sofia é equiparada a um rouxinol de Keats, pela sua extrema sensibilidade.

No conto de Luís Serguilha, as figuras masculinas não exprimem de forma explícita a sua sexualidade, ao passo que as femininas deixam transparecer, nas entrelinhas, uma sexualidade ambivalente.

O Fogo, associado à “dança” de José Coimbra – movimentos que o Autor confessa ter imaginado através de uma melodia de Aran Katchaturian – por entre as restantes personagens, está associado à energia termodinâmica de um atleta de alta competição que treina diariamente para o triatlo e que executa a dança do sabre movendo-se como uma chama, diabólica, rebelde...

É notório, também, o contraste relativamente às sensações térmicas, presentes também em trabalhos posteriores, em Luís Serguilha – característica já notada também por Luís Adriano Carlos (filólogo, ensaísta, crítico e professor na Faculdade de Letras do Porto). Em Entre nós, este contraste está presente em imagens como ígneos cirros e álgido estigma de tecedura marítima, ambos os termos situados no mesmo parágrafo.

O tema sobre o qual versa este conto ou “mini-romance” é "a problemática amorosa, sobretudo na conjugação da componente química e orgástica e a aproximação ao imaginário do Outro na dualidade entre o espiritual e o carnal" (sic).
O Autor chega mesmo a afirmar que, para ele, toda a obra de arte é um acto de amor (sic). No caso concreto de Entre Nós, trata-se de uma homenagem à Arte como forma de Amor, por onde deambula uma figura como José Coimbra, o qual para Luís Serguilha é como um Ulisses – ruivo de cabelo cor-de-fogo, que tal como a personagem de Homero, procura a sua Penélope, que será a sua Ítaca…

Relativamente à forma, apercebemo-nos de uma ousadia fora do comum, relativamente a associações sensoriais invulgares, em cuja linguagem onírica encontramos impulsos eróticos, fantasias, imagens em movimento, experiências estéticas, codificadas em símbolos, a remeter para a linguagem psicanalítica da Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud, principalmente no que diz respeito ao dualismo entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente dos textos de Luís Serguilha.

Além do mais, estão presentes, ao longo do texto Entre Nós, alusões a várias figuras dos grandes clássicos da literatura universal, desde Safo e Sófocles a Kundera, passando por Kafka e Joyce, num episódio onde o corpo de um homem é construído com base em referências literárias.

Notamos ainda, e talvez por se tratar de um dos trabalhos iniciais do Autor, e dos seus primeiros passos dentro do Surrealismo, a omissão de um ou outro termo numa frase que foi “cortada ao meio”e concatenada com outra sem haver, um elemento de ligação, o que faz com que o discurso seja sincopado e as imagens não se sucedam de forma tão fluida quanto seria de esperar, sendo, talvez, dispensável o uso de alguns advérbios.

Nas entrelinhas de Entre Nós – um trocadilho que pode significar nós, entrelaçados, ou interceptados –, um conto que é constituído por um conjunto de cenas dificilmente seccionáveis e onde a complexidade de codificação de elementos pertencentes a cada uma das personagens se torna bastante difícil de destrinçar, percebe-se o nihilismo, fortemente enraizado no pensamento do Autor, de onde emana uma ácida verve, que é nada mais nada menos do que a aversão ao Kitsch, de inspiração kunderiana, isto é, o desprezo patente pela “cobertura de lantejoulas que esconde um vazio existencial”como referiu o ensaísta e escritor Claudio Magris em Danúbio, a propósito da Viena dos Habsburgos, no dealbar do século XX. Ao mesmo tempo Luís Serguilha empunha o estandarte da livre expressão da sensualidade e da sexualidade que joga às escondidas com o leitor, camuflada na audácia da sua escrita.

A Estrutura

Relativamente à estrutura narrativa, temos uma estória dentro de outra estória, ou antes, uma narrativa principal – que envolve o grupo de jovens junto à praia – descrita por um narrador participante, que é um dos elementos do grupo, mas que se mantém, pelo menos na fase inicial, um pouco à margem, no papel de observador e a qual contém uma narrativa secundária que é contada pela personagem Luís.
Este começa a dada altura a contar a sua estória, a sua pequena criação e o grupo, a interpretá-la: trata-se de uma estória que contém a espinha dorsal da cultura de um povo – mais propriamente da cultura europeia e norte americana, através da referência aos seus autores mais significativos na pág 52, onde se vê que o Homem é o edifício resultante da sedimentação de todos os seus elementos culturais. Este Homem surge como um ser em contínua transformação, onde a cultura é um dos agentes desta transformação, mas que, por si só se revela insuficiente para acabar com a barbárie.

É abordada a problemática do poder, com uma piscadela de olho a Shakespeare, no que se refere ao Nome, atingindo, desta forma, o cerne da temática do livro que vem já impressa na epígrafe: aquilo a que chamamos Rosa, se tivesse outro nome, cheiraria igualmente bem (William Shakespeare in Romeu e Julieta). Isto é trata-se de um conflito baseado na dicotomia entre aquilo que já tem “nome” – o preconcebido, standartizado, normalizado – e aquilo que “ainda não tem nome”. Isto é, aquilo que rompe com a norma, a dinâmica de transformação, que se traduz na revolução do imaginário, o experimentalismo na Arte, filho directo do surrealismo. Ou seja, a via para onde está a ser conduzida a forma de arte de um Autor como Luís Serguilha: através da criação de um estilo próprio que choca o leitor habituado à norma, àquilo que já é conhecido, nomeado.

Segundo o Autor, "A modernidade sempre existiu mas sempre em conflito com o pré-estabelecido. Safo era moderna assim como Cristo "(sic).

Luís, a personagem que é o alter-ego do Autor, acentua esta ideia, quando afirma, ainda na pag. 41, que Desgraçada da cor que tenta vestir ou sentir outra cor, exaltando o desprezo pelo pré-estabelecido, por aquilo que tenta aniquilar o que sai da norma.
A dada altura, esta mesma personagem muda o posicionamento dentro da narrativa principal, abandonando o papel marginal de observador e passa a ocupar a posição central, ao mostrar aos companheiros os seus escritos em prosa poética que versam sobre a intemporalidade e a tragicidade do amor, inspirado na obra de Marguerite Yourcenar e a obra O Tempo, esse grande escultor, sendo a intemporalidade uma das principais características deste conto.
É nesse momento da narrativa que se começa a desenhar a Mulher sem Nome, a" filha da fogueira dos homens e mulheres sem nome (sic) que sai para a ribalta". Segundo o Autor, as restantes personagens tentam identificá-la. É vista inicialmente como “a indigente, mas que anda como o calor dos sinos”, isto é possui algo de especial. Tentam denegri-la chamando-a de “debochada” – mais uma vez a tentativa de aniquilar quem não se encontra dentro do pré-estabelecido.
A dada altura Jorge e Clara começam a identificar-se com as duas personagens sem nome da estória do seu colega de grupo, as quais, mais tarde, percebem tratar-se, na realidade, dos wagnerianos Isolda e Tristão. Há, aqui, uma inversão de nomes em homenagem ao movimento de libertação da mulher e à livre expressão e assumpção da sexualidade feminina, segundo o comentário do próprio Luís Serguilha.

A pequena história dentro do romance, contada pela personagem Luís, termina com a referência a uma sociedade global, a qual funciona como uma grande Babel, forno de todos os conflitos, onde o homem se movimenta como o grande criminoso da memória por não ser capaz de aprender com os erros do passado…

É, talvez, por isso que Entre Nós marca a fase de arranque de um escritor que se propõe trilhar ou mesmo a dar continuidade à senda dos poetas que marcaram o surrealismo em Portugal…


Cláudia de Sousa Dias

Monday, March 10, 2008

“Orgulho e Preconceito” de Jane Austen (Europa-América; Planeta DeAgostini)


Orgulho e Preconceito é um dos romances mais mediáticos de Jane Austen, facto que poderá estar relacionado com a adaptação a diversas obras de cinema e televisão. Mas fascínio deste romance reside não só numa extraordinária capacidade de observação e acutilante sentido crítico – visando sobretudo, uma aristocracia rural e burguesia em ascensão – mas sobretudo a um detalhado estudo de caracteres de algumas figuras-tipo inseridas num grupo muito específico, por sua vez integrado numa dada época histórica. Mais propriamente nas primeiras décadas do século XIX, de onde resulta que o conflito presente no romance é o espelho das consequências a longo prazo dos acontecimentos que se sucedem à Revolução Francesa, traduzindo-se na mudança das mentalidades no que toca à mobilidade social de uma Inglaterra bucólica onde se começa a fazer sentir o domínio do Liberalismo, não só na economia mas também numa maior flexibilidade da estrutura social e também dos padrões de conduta e culturais…

Logo no primeiro capítulo, a Autora começa por fazer a descrição da mentalidade dominante no Hertfordshire, quando o narrador se refere às expectativas da vizinhança, sempre que um jovem solteiro e de rendimentos acima da média vem ocupar uma das propriedades das redondezas…

Também, logo na primeira página, é definido o carácter e o temperamento dos dois cônjuges que lideram a família nuclear, sobre cuja situação precária se debruça a narrativa.

O Sr. Bennet era um misto tão extraordinário de petulância, sarcasmo, reserva e capricho que a experiência de vinte e três anos não bastara, ainda, para a mulher compreender o seu carácter.

Por seu lado a mentalidade dela (o uso do pronome implica por si só uma desvalorização) era bem menos difícil de revelar. Tratava-se de uma mulher de inteligência medíocre, cultura rudimentar e temperamento incerto. Quando irritada procurava refúgio nos nervos. A principal ocupação da sua vida era casar as filhas e o seu passatempo preferido, as visitas e os mexericos.

E está dado o mote para o desenvolvimento da narrativa. Esta seria de uma simplicidade folhetinesca não fosse um pormenor: a lei do morgadio. O livro pode ser considerado como o apontar de um dedo acusador ao carácter abusivamente discriminatório de uma lei que impede as mulheres de herdarem os bens ou as propriedades da família, os quais, na falta de um herdeiro directo varão, passariam para o parente masculino mais próximo - um primo, por exemplo – colocando as descendentes directas numa situação financeira bastante complicada quando não bem próximo da indigência. Ora, os Bennet têm cinco filhas, o que faz antever uma situação deveras grave em termos de futuro e segurança financeira. Isto explica, em grande parte, a urgência e a compulsividade da Sra. Bennet em organizar bailes, com o fito de procurar cinco noivos para as filhas, de preferência com rendimento apreciável.
O retrato da família Bennet prossegue com a apresentação das irmãs mais novas: Lydia, cuja infantilidade e teimosia, aliadas ao excesso de energia de uma adolescente pujante, a tornam num ser praticamente indomável, será o elemento desestabilizador do romance, sem ser propriamente uma vilã.

Kitty, pouco mais velha do que Lydia, é extremamente influenciável, chegando a tornar-se um pouco impertinente; há, nela, uma necessidade evidente de aprender a dialogar e, sobretudo, a escutar os outros mais atentamente de forma a desenvolver a sensibilidade necessária para não se tornar inconveniente.
Ambas as irmãs mais jovens são alvo da ironia acutilante do pai, à qual Kitty se mostra sensível, embora se refugie amiúde no papel de vítima, enquanto que Lydia se mostra totalmente indiferente, não só devido ao feitio arrogante, mas também a um certo grau de obtusidade.

O pedantismo de Mary é, por seu lado, violentamente atacado pelo sarcasmo virulento do pai que não suporta a vaidade de uma filha que quer aparentar ser possuidora de um talento musical ou de um nível cultural, na época invulgar para uma mulher, mas que, na prática, se limita a repetir citações carregadas de um moralismo desadequado ás situações ou a infernizar os ouvidos dos convivas com prolongadas e ruidosas execuções ao piano…

O carácter das duas irmãs mais velhas é estrategicamente ocultado, nos capítulos introdutórios, para ser detalhadamente explorado ao longo de toda a narrativa.

A Autora passa, de seguida, à análise dos dois protagonistas masculinos da trama: o afável Charles Bingley e o aristocrático Fitzwilliam Darcy.
Bingley é um jovem belo, distinto, bem-humorado e sociável, mas ingénuo. Já Darcy chama a atenção pela alta e elegante estatura, traços formosos e porte desenvolto. Mas as restantes qualidades atribuídas aos dois cavalheiros, captadas através dos murmúrios durante um baile, são associadas aos rendimentos de ambos, o que os transforma em dois jovens altamente elegíveis para as famílias onde haja jovens solteiras.

No entanto, Darcy acaba por perder a popularidade inicial pela exibição permanente de um ar de enfado, uma indiferença entediada face a tudo e a todos, atitude que o torna antipático aos olhos de quase toda a gente, sobretudo aos utilizar expressões do género gente como esta.
Relativamente ao ideal feminino de Darcy, este está situado numa fasquia tão elevada que o faz desdenhar, de uma forma algo precipitada, a segunda das jovens Bennet, Elizabeth, referindo-se-lhe nestes termos, em conversa com Bingley:

É razoável, mas não suficientemente bonita para me tentar. Aliás, de momento, não me sinto na disposição de consolar as jovens que outros desdenharam.
A extrema arrogância desta atitude inicial reflecte-se, ainda, na falta de cuidado em ser evitar ser ouvido pelo objecto destas mesmas afirmações, facto que irá desencadear todo um conjunto de reacções negativas por parte daquela personagem.

Elizabeth, possui, na realidade, uma figura bastante agradável, sublinhada pela prática regular de exercício físico, como longas caminhadas. É mais esguia do que Jane, que exibe formas mais voluptuosas. É possuidora de uma beleza mais discreta, menos radiosa do que a da irmã. O rosto não é perfeitamente simétrico, mas nele sobressaem um grandes e luminosos olhos negros, apesar da tez, menos pálida do que o exigido pelos cânones da época…A jovem é, também, detentora de um refinado sentido de humor, feitio alegre e brincalhão “capaz de tirar partido das situações mais ridículas”. É também dotada de grande generosidade e demonstra um amor profundo pela irmã mais velha, Jane.

A personalidade de Jane é mostrada através do olhar de Elizabeth, segundo a qual ã irmã favorita teria uma capacidade ampla de mais para gostar das pessoas”, que nunca vê mal em ninguém aproveitando o que há de bom nas pessoas para torná-lo ainda melhor, sem dizer nada sobre o mal. E também através da própria Jane: Procuro não me precipitar, no juízo que faço das outras pessoas; mas digo sempre o que penso. A candura e a tolerância de Jane são duas características que, mais tarde, a impedem de fazer um juízo enviesado em mais do que uma personagem – um enviesamento ao qual Elizabeth não consegue escapar, devido a uma perda temporária de objectividade. Elizabeth possui, contudo, um sentido de observação mais frio do que Jane, mais penetrante, devido a um temperamento menos dócil do que a irmã e a um sentido crítico marcado por uma forte impessoalidade, duas características que a impedem, normalmente, de se sentir afectada por adulações. É notório, também, o facto de Lizzy possuir uma melhor auto-estima do que a irmã, mais carente, dotando-a de maior independencia nos juízos que emite.
A untuosidade hipócrita das irmãs Bingley que pretendem a ascensão à aristocracia tentando esconder a origem da fortuna da família no comércio, não escapa ao olhar de lince de Elizabeth. As duas snobs incentivam o irmão a adquirir grandes propriedades que sejam depois frequentadas por gente da categoria de Darcy…

Entre Bingley e Darcy existe uma sólida amizade, apesar dos feitios opostos. Bingley cativa Darcy pela brandura, franqueza e docilidade de carácter. Por outro lado, o jovem deposita total confiança quer no juízo quer na opinião do jovem aristocrata. Contudo em inteligência, Darcy superava-o.

Ambos são, na realidade, o espelho das duas irmãs, Elizabeth e Jane, o que faz prever o final do romance. No entanto, as quatro personagens principais são de tal forma, modeladas, que se torna sempre aliciante percorrer as cerca de quatrocentas páginas da obra de Jane Austen, detendo-nos nos meandros dos processos psicológicos, das atitudes externas, gestos, expressões…

Para além do núcleo da família Bennet, em Longbourn e dos vizinhos em Netherfield, há uma extensa lista de personagens pitorescas em Orgulho e Preconceito, dissecadas pela análise da Autora.
Por exemplo, Charlotte Lucas, a amiga de Elizabeth que faz um casamento de conveniência com um homem que lhe é claramente inferior, tanto em inteligência como em carácter, em nome da segurança ou estabilidade financeira. Com vinte e sete anos, nas primeiras décadas do século XIX, uma jovem era considerada uma solteirona. Além disso, a falta de atributos físicos em Charlotte – largamente compensados por uma inteligência invulgar, mas uma característica muito pouco valorizada numa jovem de classe média sem dote – e a ausência de sentido romântico nas relações entre casais, levam-na a encarar o casamento como fonte de rendimento e forma de escapar a um futuro de indigência. Um ponto de vista fortemente contestado por Elizabeth. É aliás, notória em Jane Austen a preocupação em frisar, em toda a sua obra, o direito de uma mulher escolher o próprio marido e casar por amor ou motivada por afinidades intelectuais ou, ainda, de temperamento. Convicção que se reflecte expressamente nas observações de Elizabeth, que se convence que a amiga se anulará por completo com tal casamento. Charlotte consegue, contudo, minimizar esta tendência ao evitar, tanto quanto possível, a convivência com o marido.
Mr. Collins, o noivo de Charlotte, é também o primo dos Bennet que herdará Lonbourn, é outra das figuras tipo criticadas por Jane Austen. Mr. Bennet mostra-o como uma mistura de pretensiosismo servil, untuosidade e com um talento invulgar para a adulação, presunção, orgulho e falta de humildade.

A sua carta denuncia um misto de subserviência e auto-importância que promete muito.

Inicialmente, Mr. Collins aparece em Lonburn com o objectivo de casar com uma das irmãs Bennet, querendo compensá-las pelo facto de um dia vir a despojá-las da herança. No entanto, vê-se forçado a desistir, ao ser preterido pelas duas mais velhas (e mais interessantes) o que acaba por originar um certo atrito entre Elizabeth e Mrs. Bennet a qual gostaria de conservar a propriedade e os seus bens para os seus descendentes directos, pelos menos durante mais algumas gerações. A intervenção do Sr.Bennet, que não tem quaisquer pudores em desautorizar a esposa, vem sanar definitivamente a questão.

O romance prossegue enquanto nos damos conta do crescente interesse de Darcy por Elizabeth, de que só nos apercebemos de forma indirecta, através de olhares e dos subentendidos nas entrelinhas. É aqui que Jane Austen exibe a qualidade da sua escrita que é, realmente, superior.
A fleuma de Elizabeth deixa Darcy sem palavras ao criar um contraste flagrante com a adulação de Miss Bingley. Esta não consegue encontrar um tema mais interessante para cativar a sua presa do que elogiar a sua caligrafia, chagando ao cúmulo de arrastar Elizabeth para passear-se juntamente consigo na sala, diante do jovem numa tentativa desesperada de combater a indiferença do pretendente, criando um efeito contrário àquele que pretende. Apenas consegue que Darcy lhe repare no chicote do cinismo quando se refere àqueles que não estão presentes.

O vilão - o falso e o verdadeiro

O aparecimento de George Wickham, filho do antigo intendente da propriedade de Darcy no Derbyshire, traz um volte-face à história.
Os seus modos sedutores encantam as pessoas com quem contacta. Consegue cativar, inclusive, Elizabeth que vê, nas atenções dele para consigo, o oposto daquilo que inicialmente viu em Darcy.
Wickham e Darcy detestam-se com uma antipatia mútua e antiga, com raízes na infância.
Elizabeth repara que os dois se evitam e ficam perturbados ao frequentarem os mesmos locais. A jovem sente uma curiosidade irresistível em descobrir a origem desta animosidade.
Wickham aproveita-se do facto para difamar Darcy, por quem nutre um forte sentimento de inveja e fá-lo de forma bastante convincente, confirmando a opinião já decididamente negativa de Eliza Bennet, limitando-se a contar só o que lhe interessa por um lado, e destruindo a credibilidade dos aspectos positivos conhecidos publicamente acerca da personalidade do rival pelo outro, projectando nele os próprios defeitos. Uma obra-prima digna de um grande mestre da mentira…

Lady Catherine de Bourgh, tia de Darcy é a típica aristocrática da velha guarda, do Antigo Regime, cuja arrogância raia a grosseria e a inconveniência. Durante o curto período de convivência em Rosings, propriedade vizinha à dos Collins, onde vive a velha senhora, Elizabeth tem a oportunidade de sentir-se vingada face às duras críticas tecidas por Darcy relativamente ao comportamento de alguns membros da própria família…

A opinião de Elizabeth acerca de Darcy torna-se cada vez mais negativa, sobretudo após tomar consciência da influência que este exerce relativamente ao afastamento de Bingley e Jane. O que ajuda bastante a rejeitar a primeira proposta de casamento de Darcy, o qual fica mortificado e surpreendido com a recusa…

A falta de diplomacia de Darcy, que Wickham exibe em excesso e que esconde a sua falta de carácter, prejudica fortemente o primeiro, cuja integridade continua a permanecer na sombra…

No entanto, após a saída de Darcy, Elizabeth tem uminexplicável ataque de choro o que acaba por confirmar as suspeitas de Charlotte cuja perspicácia não deixa de reparar que a opinião de Elizabeth acerca de Darcy seria muito mais favorável se ele não a tivesse desdenhado.

No entanto, só após a recepção de uma carta de Darcy, na qual este põe a nu a verdadeira personalidade de Wickham, Eliza começa a analisar mais detalhadamente a conduta deste último e a posição dos pratos na balança inverte-se subitamente…principalmente a partir do momento em que verifica que as afirmações de Darcy são fundamentadas em provas concretas e testemunhas cuja idoneidade é inquestionável.

Logo a seguir, os acontecimentos precipitam-se no sentido de apressar o desfecho da trama.

Há, ao longo de toda a narrativa várias figuras que se apercebem da paixão crescente de Darcy por Eliza. Desde Charlotte, na altura em que este visita a residência paroquial, sem nenhum motivo aparente, uma vez que não possui quaisquer afinidades com os Collins, a Mrs.Gardiner, aquando da visita a Netherfield.
Na realidade, a timidez de Darcy prejudica-o ao esconder a sua verdadeira personalidade mascarando-a sob uma capa de frieza e orgulho de classe.

A própria Elizabeth encarrega-se de colocar as coisas no seu devido lugar quando, em conversa com Mr. Wickham, dispara: Mr. Darcy ganha muito em ser conhecido.

Eliza chega, inclusive, a aperceber-se de que Wickham não é tão bem formado quanto seria desejável sobretudo quando tem a oportunidade de compará-lo com a integridade de pessoas como, por exemplo, o Coronel Fitzwilliam – um pouco menos amável, ou melífluo mas, sem dúvida mais bem formado que o primeiro.

E, assim as peças do puzzlle vão-se encaixando…

…uma a uma.

O que resulta uma obra notável de uma escritora do princípio do século XIX, que exibe, nas entrelinhas de uma prosa acessível, uma inteligência invulgar e uma personalidade extemporânea, mais característica da segunda metade do século XX, do que propriamente na época em que viveu…

Cláudia de Sousa Dias