“Entre Nós” de Luís Serguilha (Quasi Edições)
Um grupo de jovens passa as férias em Porto Covo e, entre eles, o narrador Luís, o alter-ego do Autor, aproveita o cenário idílico da paisagem estival para mostrar aos amigos a sua prosa, onírica, como livre expressão dos seus devaneios, onde se misturam, imagens fundidas com a paisagem que se estende diante deles. Estas imagens misturam-se, apresentando-se, muitas, vezes desenquadradas dos signos linguísticos, ou melhor, do significante que lhes é atribuído muito ao estilo dadaísta e com influência do cubismo, num registo que o autor desenvolve e aperfeiçoa em obras posteriores.
O grupo de jovens que compõe o leque de personagens de Entre Nós - a qual está classificada na categoria de neo roman, uma forma híbrida que se situa algures entre o conto e o romance -, tem em comum o facto de todos os seus elementos terem realizado os seus estudos académicos na cidade de Coimbra. Daí a nostalgia que os une ao evocarem a Cidade e o Fado, presentes no imaginário dos elementos do grupo através da manifestação dos gemidos da guitarra de Carlos Paredes e da beleza da poesia de José Afonso.
"Todos sentem Coimbra como uma segunda pele (segundo afirma o próprio Luís Serguilha), remetendo para um mundo, ou melhor, para um tempo fraccionado ao longo da narrativa: a realidade Coimbrã – reminiscente como o mundo ideal da república platónica – e a realidade presente, fora do mundo académico". Dois tempos e dois cenários que acabam por se fundir…
Luís Serguilha, partilha, nesta obra, o nome com o protagonista/narrador de Entre Nós. O Autor rompe com os moldes clássicos do desenvolvimento da estrutura narrativa, nesta fase inicial da sua carreira de escritor e escolhe, para tema principal, a descrição dos corpos como paisagens humanas.
Aquilo que nos vem à memória ao lermos Serguilha são, muitas vezes, reminiscências de cenas mitológicas. Não falamos, obviamente, de semelhanças formais com o estilo clássico da poesia homérica ou virgiliana, mas antes da fusão dos elementos paisagísticos, onde o carnal se mistura com o vegetal – à semelhança do episódio em que Apolo persegue a ninfa que se transforma em loureiro –, ou o humano com o animal, lembrando o estilo imagético de Dalí e, por vezes, o desenquadramento /desnivelamento das formas dos cubistas.
Daqui surgem, como consequência, seres humanos que se movimentam de maneira fluida, como num sonho, onde os acontecimentos se interceptam e os corpos se fundem e confundem com o cenário.
Segundo esta linha de raciocínio temos, então, uma personagem feminina que se identifica ou que podemos identificar com o Vento – Paula – outra, com o movimento das águas – Maria João, também obcecada pelo tango e pela cultura argentina, segundo o Autor – outra ainda, o Fogo da Sabedoria, da sede inesgotável do Saber – Sofia, claro. Uma jovem de grande sensibilidade e carácter humanista que se entrega às grandes causas com toda a paixão do seu ser. E, por último, o casal que se confunde com a linha do horizonte, dois corpos que surgem da força telúrica da Terra – Jorge e Clara.
Existe, ainda, a figura de José Coimbra, uma chama que serpenteia pelas areias ardentes da praia, que representa um fogo diferente do de Sofia – esta última de carácter muito mais espiritual. José Coimbra assemelha-se antes a Vulcano, dedicando-se a esculpir a sua própria carne, ao invés do ferro com o qual trabalhava o mitológico filho de Júpiter, José Coimbra molda, antes, o próprio corpo através de actividades desportivas. É um jovem que contagia os outros pela energia, pelo dinamismo que emana dos movimentos do próprio corpo. Um ser, sinestésico, por excelência.
No cenário estival da orla marítima de Porto Covo, as figuras humanas movem-se como num bailado de um filme de Man Ray, ou de uma sequência de cenas de Buñuel – ver pág 14 – com movimentos simultaneamente fluidos e sincronizados. As influências do Surrealismo, provenientes quer da pintura quer do cinema, são notórias, face à presença de elementos visuais como os que estão presentes neste parágrafo:
José Coimbra serpenteia nas estátuas de fogo e nas jarras levedadas de vida que se multiplicam ambreadas pelos bardos do Verão, onde se reconhece o amor como um homem inacabado, ou o vórtice no pecíolo da alma.
Esta é uma descrição que corresponde não só à essência da alma de José Coimbra - mas, sobretudo, à forma como este consegue comunicar com aqueles com quem convive - , e que também é proveniente da emanação directa do movimento estético que inspira o Autor: Trata-se da descrição de um quadro de Dalí, que é transposta para a paisagem de uma praia portuguesa, através duma figura humana retirada desse mesmo quadro e à qual é atribuído um nome. O quadro de onde essa mesma figura é extraída e, depois, projectada no conto, representa uma flor cujas pétalas são chamas. E onde cada chama é uma figura antropomórfica que dança com as outras, de mãos dadas em redor de um pistilo, que contém os órgãos sexuais da planta. Um pormenor: as figuras antropomórficas são assexuadas e a planta, hermafrodita. E, no conto, apercebemo-nos, por vezes, de uma ligação sensual que envolve pelo menos duas personagens femininas. Ligação essa que só se torna perceptível pela sincronia dos corpos e cumplicidade de movimentos entre as jovens, que se movem em perfeita harmonia sinestésica.
A personagem Sofia, independente e solitária como Diana é, ao mesmo tempo, possuidora do espírito dialéctico de Athena. É, talvez a figura feminina com quem o narrador mais se identifica, apesar de sempre fugidia, inatingível e inalcançável, como sugere o arquétipo das duas deusas mitológicas, as quais abdicam da sexualidade para serem colocadas no mesmo plano que os seus pares: os deuses masculinos. Sofia é equiparada a um rouxinol de Keats, pela sua extrema sensibilidade.
No conto de Luís Serguilha, as figuras masculinas não exprimem de forma explícita a sua sexualidade, ao passo que as femininas deixam transparecer, nas entrelinhas, uma sexualidade ambivalente.
O Fogo, associado à “dança” de José Coimbra – movimentos que o Autor confessa ter imaginado através de uma melodia de Aran Katchaturian – por entre as restantes personagens, está associado à energia termodinâmica de um atleta de alta competição que treina diariamente para o triatlo e que executa a dança do sabre movendo-se como uma chama, diabólica, rebelde...
É notório, também, o contraste relativamente às sensações térmicas, presentes também em trabalhos posteriores, em Luís Serguilha – característica já notada também por Luís Adriano Carlos (filólogo, ensaísta, crítico e professor na Faculdade de Letras do Porto). Em Entre nós, este contraste está presente em imagens como ígneos cirros e álgido estigma de tecedura marítima, ambos os termos situados no mesmo parágrafo.
O tema sobre o qual versa este conto ou “mini-romance” é "a problemática amorosa, sobretudo na conjugação da componente química e orgástica e a aproximação ao imaginário do Outro na dualidade entre o espiritual e o carnal" (sic).
O Autor chega mesmo a afirmar que, para ele, toda a obra de arte é um acto de amor (sic). No caso concreto de Entre Nós, trata-se de uma homenagem à Arte como forma de Amor, por onde deambula uma figura como José Coimbra, o qual para Luís Serguilha é como um Ulisses – ruivo de cabelo cor-de-fogo, que tal como a personagem de Homero, procura a sua Penélope, que será a sua Ítaca…
Relativamente à forma, apercebemo-nos de uma ousadia fora do comum, relativamente a associações sensoriais invulgares, em cuja linguagem onírica encontramos impulsos eróticos, fantasias, imagens em movimento, experiências estéticas, codificadas em símbolos, a remeter para a linguagem psicanalítica da Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud, principalmente no que diz respeito ao dualismo entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente dos textos de Luís Serguilha.
Além do mais, estão presentes, ao longo do texto Entre Nós, alusões a várias figuras dos grandes clássicos da literatura universal, desde Safo e Sófocles a Kundera, passando por Kafka e Joyce, num episódio onde o corpo de um homem é construído com base em referências literárias.
Notamos ainda, e talvez por se tratar de um dos trabalhos iniciais do Autor, e dos seus primeiros passos dentro do Surrealismo, a omissão de um ou outro termo numa frase que foi “cortada ao meio”e concatenada com outra sem haver, um elemento de ligação, o que faz com que o discurso seja sincopado e as imagens não se sucedam de forma tão fluida quanto seria de esperar, sendo, talvez, dispensável o uso de alguns advérbios.
Nas entrelinhas de Entre Nós – um trocadilho que pode significar nós, entrelaçados, ou interceptados –, um conto que é constituído por um conjunto de cenas dificilmente seccionáveis e onde a complexidade de codificação de elementos pertencentes a cada uma das personagens se torna bastante difícil de destrinçar, percebe-se o nihilismo, fortemente enraizado no pensamento do Autor, de onde emana uma ácida verve, que é nada mais nada menos do que a aversão ao Kitsch, de inspiração kunderiana, isto é, o desprezo patente pela “cobertura de lantejoulas que esconde um vazio existencial”como referiu o ensaísta e escritor Claudio Magris em Danúbio, a propósito da Viena dos Habsburgos, no dealbar do século XX. Ao mesmo tempo Luís Serguilha empunha o estandarte da livre expressão da sensualidade e da sexualidade que joga às escondidas com o leitor, camuflada na audácia da sua escrita.
A Estrutura
Relativamente à estrutura narrativa, temos uma estória dentro de outra estória, ou antes, uma narrativa principal – que envolve o grupo de jovens junto à praia – descrita por um narrador participante, que é um dos elementos do grupo, mas que se mantém, pelo menos na fase inicial, um pouco à margem, no papel de observador e a qual contém uma narrativa secundária que é contada pela personagem Luís.
Este começa a dada altura a contar a sua estória, a sua pequena criação e o grupo, a interpretá-la: trata-se de uma estória que contém a espinha dorsal da cultura de um povo – mais propriamente da cultura europeia e norte americana, através da referência aos seus autores mais significativos na pág 52, onde se vê que o Homem é o edifício resultante da sedimentação de todos os seus elementos culturais. Este Homem surge como um ser em contínua transformação, onde a cultura é um dos agentes desta transformação, mas que, por si só se revela insuficiente para acabar com a barbárie.
É abordada a problemática do poder, com uma piscadela de olho a Shakespeare, no que se refere ao Nome, atingindo, desta forma, o cerne da temática do livro que vem já impressa na epígrafe: aquilo a que chamamos Rosa, se tivesse outro nome, cheiraria igualmente bem (William Shakespeare in Romeu e Julieta). Isto é trata-se de um conflito baseado na dicotomia entre aquilo que já tem “nome” – o preconcebido, standartizado, normalizado – e aquilo que “ainda não tem nome”. Isto é, aquilo que rompe com a norma, a dinâmica de transformação, que se traduz na revolução do imaginário, o experimentalismo na Arte, filho directo do surrealismo. Ou seja, a via para onde está a ser conduzida a forma de arte de um Autor como Luís Serguilha: através da criação de um estilo próprio que choca o leitor habituado à norma, àquilo que já é conhecido, nomeado.
Segundo o Autor, "A modernidade sempre existiu mas sempre em conflito com o pré-estabelecido. Safo era moderna assim como Cristo "(sic).
Luís, a personagem que é o alter-ego do Autor, acentua esta ideia, quando afirma, ainda na pag. 41, que Desgraçada da cor que tenta vestir ou sentir outra cor, exaltando o desprezo pelo pré-estabelecido, por aquilo que tenta aniquilar o que sai da norma.
A dada altura, esta mesma personagem muda o posicionamento dentro da narrativa principal, abandonando o papel marginal de observador e passa a ocupar a posição central, ao mostrar aos companheiros os seus escritos em prosa poética que versam sobre a intemporalidade e a tragicidade do amor, inspirado na obra de Marguerite Yourcenar e a obra O Tempo, esse grande escultor, sendo a intemporalidade uma das principais características deste conto.
É nesse momento da narrativa que se começa a desenhar a Mulher sem Nome, a" filha da fogueira dos homens e mulheres sem nome (sic) que sai para a ribalta". Segundo o Autor, as restantes personagens tentam identificá-la. É vista inicialmente como “a indigente, mas que anda como o calor dos sinos”, isto é possui algo de especial. Tentam denegri-la chamando-a de “debochada” – mais uma vez a tentativa de aniquilar quem não se encontra dentro do pré-estabelecido.
A dada altura Jorge e Clara começam a identificar-se com as duas personagens sem nome da estória do seu colega de grupo, as quais, mais tarde, percebem tratar-se, na realidade, dos wagnerianos Isolda e Tristão. Há, aqui, uma inversão de nomes em homenagem ao movimento de libertação da mulher e à livre expressão e assumpção da sexualidade feminina, segundo o comentário do próprio Luís Serguilha.
A pequena história dentro do romance, contada pela personagem Luís, termina com a referência a uma sociedade global, a qual funciona como uma grande Babel, forno de todos os conflitos, onde o homem se movimenta como o grande criminoso da memória por não ser capaz de aprender com os erros do passado…
É, talvez, por isso que Entre Nós marca a fase de arranque de um escritor que se propõe trilhar ou mesmo a dar continuidade à senda dos poetas que marcaram o surrealismo em Portugal…
Cláudia de Sousa Dias
O grupo de jovens que compõe o leque de personagens de Entre Nós - a qual está classificada na categoria de neo roman, uma forma híbrida que se situa algures entre o conto e o romance -, tem em comum o facto de todos os seus elementos terem realizado os seus estudos académicos na cidade de Coimbra. Daí a nostalgia que os une ao evocarem a Cidade e o Fado, presentes no imaginário dos elementos do grupo através da manifestação dos gemidos da guitarra de Carlos Paredes e da beleza da poesia de José Afonso.
"Todos sentem Coimbra como uma segunda pele (segundo afirma o próprio Luís Serguilha), remetendo para um mundo, ou melhor, para um tempo fraccionado ao longo da narrativa: a realidade Coimbrã – reminiscente como o mundo ideal da república platónica – e a realidade presente, fora do mundo académico". Dois tempos e dois cenários que acabam por se fundir…
Luís Serguilha, partilha, nesta obra, o nome com o protagonista/narrador de Entre Nós. O Autor rompe com os moldes clássicos do desenvolvimento da estrutura narrativa, nesta fase inicial da sua carreira de escritor e escolhe, para tema principal, a descrição dos corpos como paisagens humanas.
Aquilo que nos vem à memória ao lermos Serguilha são, muitas vezes, reminiscências de cenas mitológicas. Não falamos, obviamente, de semelhanças formais com o estilo clássico da poesia homérica ou virgiliana, mas antes da fusão dos elementos paisagísticos, onde o carnal se mistura com o vegetal – à semelhança do episódio em que Apolo persegue a ninfa que se transforma em loureiro –, ou o humano com o animal, lembrando o estilo imagético de Dalí e, por vezes, o desenquadramento /desnivelamento das formas dos cubistas.
Daqui surgem, como consequência, seres humanos que se movimentam de maneira fluida, como num sonho, onde os acontecimentos se interceptam e os corpos se fundem e confundem com o cenário.
Segundo esta linha de raciocínio temos, então, uma personagem feminina que se identifica ou que podemos identificar com o Vento – Paula – outra, com o movimento das águas – Maria João, também obcecada pelo tango e pela cultura argentina, segundo o Autor – outra ainda, o Fogo da Sabedoria, da sede inesgotável do Saber – Sofia, claro. Uma jovem de grande sensibilidade e carácter humanista que se entrega às grandes causas com toda a paixão do seu ser. E, por último, o casal que se confunde com a linha do horizonte, dois corpos que surgem da força telúrica da Terra – Jorge e Clara.
Existe, ainda, a figura de José Coimbra, uma chama que serpenteia pelas areias ardentes da praia, que representa um fogo diferente do de Sofia – esta última de carácter muito mais espiritual. José Coimbra assemelha-se antes a Vulcano, dedicando-se a esculpir a sua própria carne, ao invés do ferro com o qual trabalhava o mitológico filho de Júpiter, José Coimbra molda, antes, o próprio corpo através de actividades desportivas. É um jovem que contagia os outros pela energia, pelo dinamismo que emana dos movimentos do próprio corpo. Um ser, sinestésico, por excelência.
No cenário estival da orla marítima de Porto Covo, as figuras humanas movem-se como num bailado de um filme de Man Ray, ou de uma sequência de cenas de Buñuel – ver pág 14 – com movimentos simultaneamente fluidos e sincronizados. As influências do Surrealismo, provenientes quer da pintura quer do cinema, são notórias, face à presença de elementos visuais como os que estão presentes neste parágrafo:
José Coimbra serpenteia nas estátuas de fogo e nas jarras levedadas de vida que se multiplicam ambreadas pelos bardos do Verão, onde se reconhece o amor como um homem inacabado, ou o vórtice no pecíolo da alma.
Esta é uma descrição que corresponde não só à essência da alma de José Coimbra - mas, sobretudo, à forma como este consegue comunicar com aqueles com quem convive - , e que também é proveniente da emanação directa do movimento estético que inspira o Autor: Trata-se da descrição de um quadro de Dalí, que é transposta para a paisagem de uma praia portuguesa, através duma figura humana retirada desse mesmo quadro e à qual é atribuído um nome. O quadro de onde essa mesma figura é extraída e, depois, projectada no conto, representa uma flor cujas pétalas são chamas. E onde cada chama é uma figura antropomórfica que dança com as outras, de mãos dadas em redor de um pistilo, que contém os órgãos sexuais da planta. Um pormenor: as figuras antropomórficas são assexuadas e a planta, hermafrodita. E, no conto, apercebemo-nos, por vezes, de uma ligação sensual que envolve pelo menos duas personagens femininas. Ligação essa que só se torna perceptível pela sincronia dos corpos e cumplicidade de movimentos entre as jovens, que se movem em perfeita harmonia sinestésica.
A personagem Sofia, independente e solitária como Diana é, ao mesmo tempo, possuidora do espírito dialéctico de Athena. É, talvez a figura feminina com quem o narrador mais se identifica, apesar de sempre fugidia, inatingível e inalcançável, como sugere o arquétipo das duas deusas mitológicas, as quais abdicam da sexualidade para serem colocadas no mesmo plano que os seus pares: os deuses masculinos. Sofia é equiparada a um rouxinol de Keats, pela sua extrema sensibilidade.
No conto de Luís Serguilha, as figuras masculinas não exprimem de forma explícita a sua sexualidade, ao passo que as femininas deixam transparecer, nas entrelinhas, uma sexualidade ambivalente.
O Fogo, associado à “dança” de José Coimbra – movimentos que o Autor confessa ter imaginado através de uma melodia de Aran Katchaturian – por entre as restantes personagens, está associado à energia termodinâmica de um atleta de alta competição que treina diariamente para o triatlo e que executa a dança do sabre movendo-se como uma chama, diabólica, rebelde...
É notório, também, o contraste relativamente às sensações térmicas, presentes também em trabalhos posteriores, em Luís Serguilha – característica já notada também por Luís Adriano Carlos (filólogo, ensaísta, crítico e professor na Faculdade de Letras do Porto). Em Entre nós, este contraste está presente em imagens como ígneos cirros e álgido estigma de tecedura marítima, ambos os termos situados no mesmo parágrafo.
O tema sobre o qual versa este conto ou “mini-romance” é "a problemática amorosa, sobretudo na conjugação da componente química e orgástica e a aproximação ao imaginário do Outro na dualidade entre o espiritual e o carnal" (sic).
O Autor chega mesmo a afirmar que, para ele, toda a obra de arte é um acto de amor (sic). No caso concreto de Entre Nós, trata-se de uma homenagem à Arte como forma de Amor, por onde deambula uma figura como José Coimbra, o qual para Luís Serguilha é como um Ulisses – ruivo de cabelo cor-de-fogo, que tal como a personagem de Homero, procura a sua Penélope, que será a sua Ítaca…
Relativamente à forma, apercebemo-nos de uma ousadia fora do comum, relativamente a associações sensoriais invulgares, em cuja linguagem onírica encontramos impulsos eróticos, fantasias, imagens em movimento, experiências estéticas, codificadas em símbolos, a remeter para a linguagem psicanalítica da Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud, principalmente no que diz respeito ao dualismo entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente dos textos de Luís Serguilha.
Além do mais, estão presentes, ao longo do texto Entre Nós, alusões a várias figuras dos grandes clássicos da literatura universal, desde Safo e Sófocles a Kundera, passando por Kafka e Joyce, num episódio onde o corpo de um homem é construído com base em referências literárias.
Notamos ainda, e talvez por se tratar de um dos trabalhos iniciais do Autor, e dos seus primeiros passos dentro do Surrealismo, a omissão de um ou outro termo numa frase que foi “cortada ao meio”e concatenada com outra sem haver, um elemento de ligação, o que faz com que o discurso seja sincopado e as imagens não se sucedam de forma tão fluida quanto seria de esperar, sendo, talvez, dispensável o uso de alguns advérbios.
Nas entrelinhas de Entre Nós – um trocadilho que pode significar nós, entrelaçados, ou interceptados –, um conto que é constituído por um conjunto de cenas dificilmente seccionáveis e onde a complexidade de codificação de elementos pertencentes a cada uma das personagens se torna bastante difícil de destrinçar, percebe-se o nihilismo, fortemente enraizado no pensamento do Autor, de onde emana uma ácida verve, que é nada mais nada menos do que a aversão ao Kitsch, de inspiração kunderiana, isto é, o desprezo patente pela “cobertura de lantejoulas que esconde um vazio existencial”como referiu o ensaísta e escritor Claudio Magris em Danúbio, a propósito da Viena dos Habsburgos, no dealbar do século XX. Ao mesmo tempo Luís Serguilha empunha o estandarte da livre expressão da sensualidade e da sexualidade que joga às escondidas com o leitor, camuflada na audácia da sua escrita.
A Estrutura
Relativamente à estrutura narrativa, temos uma estória dentro de outra estória, ou antes, uma narrativa principal – que envolve o grupo de jovens junto à praia – descrita por um narrador participante, que é um dos elementos do grupo, mas que se mantém, pelo menos na fase inicial, um pouco à margem, no papel de observador e a qual contém uma narrativa secundária que é contada pela personagem Luís.
Este começa a dada altura a contar a sua estória, a sua pequena criação e o grupo, a interpretá-la: trata-se de uma estória que contém a espinha dorsal da cultura de um povo – mais propriamente da cultura europeia e norte americana, através da referência aos seus autores mais significativos na pág 52, onde se vê que o Homem é o edifício resultante da sedimentação de todos os seus elementos culturais. Este Homem surge como um ser em contínua transformação, onde a cultura é um dos agentes desta transformação, mas que, por si só se revela insuficiente para acabar com a barbárie.
É abordada a problemática do poder, com uma piscadela de olho a Shakespeare, no que se refere ao Nome, atingindo, desta forma, o cerne da temática do livro que vem já impressa na epígrafe: aquilo a que chamamos Rosa, se tivesse outro nome, cheiraria igualmente bem (William Shakespeare in Romeu e Julieta). Isto é trata-se de um conflito baseado na dicotomia entre aquilo que já tem “nome” – o preconcebido, standartizado, normalizado – e aquilo que “ainda não tem nome”. Isto é, aquilo que rompe com a norma, a dinâmica de transformação, que se traduz na revolução do imaginário, o experimentalismo na Arte, filho directo do surrealismo. Ou seja, a via para onde está a ser conduzida a forma de arte de um Autor como Luís Serguilha: através da criação de um estilo próprio que choca o leitor habituado à norma, àquilo que já é conhecido, nomeado.
Segundo o Autor, "A modernidade sempre existiu mas sempre em conflito com o pré-estabelecido. Safo era moderna assim como Cristo "(sic).
Luís, a personagem que é o alter-ego do Autor, acentua esta ideia, quando afirma, ainda na pag. 41, que Desgraçada da cor que tenta vestir ou sentir outra cor, exaltando o desprezo pelo pré-estabelecido, por aquilo que tenta aniquilar o que sai da norma.
A dada altura, esta mesma personagem muda o posicionamento dentro da narrativa principal, abandonando o papel marginal de observador e passa a ocupar a posição central, ao mostrar aos companheiros os seus escritos em prosa poética que versam sobre a intemporalidade e a tragicidade do amor, inspirado na obra de Marguerite Yourcenar e a obra O Tempo, esse grande escultor, sendo a intemporalidade uma das principais características deste conto.
É nesse momento da narrativa que se começa a desenhar a Mulher sem Nome, a" filha da fogueira dos homens e mulheres sem nome (sic) que sai para a ribalta". Segundo o Autor, as restantes personagens tentam identificá-la. É vista inicialmente como “a indigente, mas que anda como o calor dos sinos”, isto é possui algo de especial. Tentam denegri-la chamando-a de “debochada” – mais uma vez a tentativa de aniquilar quem não se encontra dentro do pré-estabelecido.
A dada altura Jorge e Clara começam a identificar-se com as duas personagens sem nome da estória do seu colega de grupo, as quais, mais tarde, percebem tratar-se, na realidade, dos wagnerianos Isolda e Tristão. Há, aqui, uma inversão de nomes em homenagem ao movimento de libertação da mulher e à livre expressão e assumpção da sexualidade feminina, segundo o comentário do próprio Luís Serguilha.
A pequena história dentro do romance, contada pela personagem Luís, termina com a referência a uma sociedade global, a qual funciona como uma grande Babel, forno de todos os conflitos, onde o homem se movimenta como o grande criminoso da memória por não ser capaz de aprender com os erros do passado…
É, talvez, por isso que Entre Nós marca a fase de arranque de um escritor que se propõe trilhar ou mesmo a dar continuidade à senda dos poetas que marcaram o surrealismo em Portugal…
Cláudia de Sousa Dias