Babel Babilónia” de Nelson Oliveira
Babel Babilónia é uma obra que podemos considerar como uma novela atípica, uma vez que é constituída por vários segmentos – ou fragmentos –, pequenas estórias, as quais, apesar de poderem ser lidas separadamente, formam, na realidade, uma sequência cronológica.
O denominador comum, presente em todos estes fragmentos, que nos surgem sob a forma de pequenas estórias do quotidiano, é o conflito baseado numa dicotomia composta pelo trinómio Progresso-Ciência-Tecnologia versus Natureza-Biologia-Mundo Vegetal. O final é aberto deixando-nos a possibilidade de, a esta narrativa, serem acrescentados novos episódios…
As situações do quotidiano descritas em Babel Babilónia têm, como cenário, uma pequena cidade rural , no interior do estado de São Paulo, onde a erecção de uma torre de várias dezenas de andares irá gerar acerada controvérsia, divisão de opiniões e, mesmo, algumas reacções que podemos, sem sombra de dúvida, classificar de extremistas.
Face à problemática da verticalização e das vantagens imediatas que este fenómeno normalmente associado ao crescimento urbano implica, as discussões germinam, mais ou menos acaloradas, em todas as classes sociais e níveis etários. As opiniões dividem-se entre aqueles que defendem o avanço da tecnologia e a emancipação da Natureza com base na rejeição da Biologia, isto é, que apoiam incondicionalmente a urbanização e a disseminação de uma cultura essencialmente urbana e tecnológica e daqueles que Luiz Roberto Guedes, autor do prefácio da obra, «valorizam a adaptação espiritual à inércia plena» do Mundo Vegetal, onde se pode talvez encontrar uma certa influência do budismo-taoísmo pela «busca do equilíbrio na eternidade do momento presente» (Sic).
Segundo o próprio Nelson Oliveira, na Grande Metrópole não falamos todos a mesma língua quando o tema é o chamado “Progresso Humano” no seu vector destrutivo.
Entre a pressão dos lobbies, a favor da verticalização, e a reacção da ala mais crítica da população que defende a manutenção dos padrões de qualidade de vida para a maioria dos cidadãos – baseada num planeamento urbano cuidado, de forma a impedir a excessiva concentração demográfica na mesma área, numa tentativa de minimizar as assimetrias no que toca à densidade populacional e consequente degradação do meio pela contaminação das águas, emissão excessiva de monóxido de carbono e outros factores que coloquem em perigo a saúde pública. O aumento da criminalidade é outra das consequências associadas ao fenómeno assim como situações de exclusão social devido à discrepância entre as reais qualificações da mão-de-obra existente e as exigências – irreais, para não dizer utópicas – do mercado de trabalho. Tudo isto acaba por desembocar em conflitos mais ou menos graves, casos dramáticos de pobreza, em violento contraste com uma opulência que atinge os limites da obscenidade.
A protagonista da trama central é Beatriz, que aparece em diferentes episódios e tem uma relação algo mística com a Natureza, como se esta fosse uma entidade humana. Aliás, logo no primeiro episódio, no mundo que rodeia a Beatriz, ainda criança, a Natureza e a Biologia sobrepõem-se ainda à Cultura, num tempo que corresponde, de certa forma, à idade do ouro da jovem protagonista que habita um paraíso protegido. Mas Beatriz não resiste a espreitar o que se encontra para lá do Muro…
E, para lá do Muro está um rio que traz na corrente a cultura urbana em cujas águas alterosas o pai perde a vida….O rio traz sedimentos da cultura da metrópole como a deificação do Trabalho, a voracidade do Dinheiro a Ganância, que se infiltram insidiosamente pelas fendas do muro, pelo concreto. Mas por entre as fendas espreitam, também, os líquenes, os musgos, a vegetação apodrecida, a terra o húmus, o odor do próprio rio…que tudo leva com ele: a vida, os olhos do Afogado, comidos pelos peixes…
No final, o ser humano converte-se em alimento da biologia Nemésica que reclama o terreno que lhe foi roubado…
A última cena é uma espécie de ritual antigo, a fazer lembrar os Mistérios de Elêusis, que Luiz Roberto Guedes apelida de «uma integração alquímica, órfica, mágica, consequência da batalha final entre conservadores e progressistas.
Mas em Babel Babilónia existem, também outras personagens, protagonistas de outras estórias, paralelas à de Beatriz, que se relacionam directa ou indirectamente com ela, como Marlene e Jorge – dois jovens corruptos e ambiciosos, sendo a primeira suficientemente inteligente para se manter na sombra, utilizando a camuflagem dada por uma profissão que lhe confere respeitabilidade e o segundo, mais ingénuo, mas com uma tendência bastante vincada para dramatizar a situação e para a auto-indulgência. Por outro lado, o comodismo leva-o a optar sempre pelo caminho mais fácil para atingir os objectivos a que se propõe. Manifesta igualmente uma recusa irrevogável em entender que é exactamente pela inércia, quer do pensamento quer da acção, que o círculo se fecha à sua volta levando-o a afundar-se, cada vez mais, num charco de areias movediças como o sub mundo do Crime…
Há, também Onofre, um idoso saudosista, que revive a infância espelhada no brilho dos olhos que observam a energia despendida pelas crianças que jogam futebol na rua. No entanto, já só os olhos conseguem acompanhar as correrias.
A linguagem utilizada pelo narrador é idêntica à de um locutor de rádio ao fazer o relato de um jogo de futebol, usando o mesmo tom coloquial e interjeições, tal como a gíria do desporto mesclada com o calão dos miúdos de rua…
Os gatos vadios como Sansão e Dalila são protagonistas a mais uma história paralela à de Beatriz, após invadir o quintal da casa da jovem. Esta, desde pequena, tem vindo a desenvolver uma forma muito especial de comportamento anti-social, depois do desaparecimento do pai, uma vítima do chamado Progresso. Beatriz deseja humilhar os outros exibindo uma “perfeição” algo pedante, atirando-lhes à cara uma superioridade que conjuga com uma indiferença felina, superior à do casal de gatos vadios que habita temporariamente o seu quintal…
Mas o episódio mais violento da obra consegue ser aquele em que duas crianças discutam selvaticamente acerca da verticalização. As duas defendem pontos de vista opostos, inculcados pelos pais, como se percebe pelo discurso de ambas no episódio Corrida de Elevador.
Já o proxenetismo e o sexo utilizado como suborno por alguém que aproveita um pretexto para usufruir do prazer de ultrapassar os limites compõem uma estória onde personagens como Gustavo e Débora são meros brinquedos, manipuláveis e substituíveis, traduz a desumanização progressiva que a construção da selva urbana acarreta e onde os fins, aliados ao individualismo na sua forma mais extrema, justificam os meios e a fragilidade humana de uns dá lugar ao cinismo oportunista de outros.
Beatriz surge, novamente, cada vez com traços mais evidentes de desenvolvimento de personalidade anti-social, a fechar-se cada vez mais no seu mundo, onde os outros contam cada vez menos. A jovem age sempre de uma forma algo despótica, como se fosse ela, apenas e só, no centro do seu mundo, fechada na torre de marfim, imersa no próprio narcisismo. Neste episódio há, no entanto, um encontro entre misticismo, a tocar na fronteira do realismo mágico, com o racionalismo cartesiano, dois pontos de vista que se digladiam, mais uma vez, numa luta onde não há lugar para vencedores nem vencidos…
Depois, existem crianças como Dudu que desaparecem no Lusco-Fusco, a ilustrar a ineficácia e ineficiência das forças da ordem. O destino de Dudu só será conhecido mais tarde, ao surgir de uma forma totalmente inesperada e já crescido, noutro episódio.
Aqui termina a primeira parte da obra, intitulada de Anunciação, onde é propagada a mensagem, isto é, a divulgação de uma mudança a ser introduzida e as diferentes reacções que lhe correspondem, incluindo expectativas e medos relativamente às pequenas alterações, já em curso, no quotidiano da pequena comunidade.
Na segunda parte desta alegoria, a Mudança está a ser operada a todo o vapor.
A primeira deste conjunto de cenas de transformação do quotidiano é, aparentemente um banal diálogo entre mãe e filha, cheio de repetições, onde se nota a ausências de nomes próprios assim como de um verdadeiro diálogo entre dois dos intervenientes: os pais da jovem que ajuda a mãe a preparar o jantar. A jovem tem a única a função, em sentido restrito, de verificar se o pai toma os remédios. Trata-se de um lar onde a filha é, também, e num sentido mais amplo, a única ponte a unir o casal e onde paira a sombra de um irmão ausente, acerca do qual se percebe estar a enveredar por um caminho que cada vez mais o afasta da família. A metástase do individualismo, gélido e cortante, acaba por diluir cada vez mais os laços familiares empurrando os seus membros para uma inevitável dissolução.
Zen e a arte de ocupar os espaços vazios trata da estória dos já mencionados Jorge e Marlene – uma estória que se desenvolve única e exclusivamente através de uma troca de e-mails, onde a insistência de Jorge choca com a indiferença e frieza de Marlene. Jorge refugia-se no passado recusando-se a perceber que o laço que os unia de quebrou definitivamente.
A violência extrema de crimes como sequestros, a impunidade, as vítimas que pagam pelos erros de terceiros proliferam em estórias como Retaliação. Ou como na do “gordo” Cácá, nascido em berço de ouro, na elite da grande metrópole, cujo ventre proeminente, físico deformado e precocemente envelhecido pela lassidão e por uma voracidade desmedida, transformam-no num ser mal-amado, apesar de rico. Cácá sonha com mulheres belas ou jovens púberes, mas tem de se limitar aos condicionalismos dos “feios”, “porcos” e pouco amados. A falta de disciplina e pouco afecto com que é brindado desde a infância ajudam ao desenvolvimento de uma faceta que em nada lhe ajuda a regredir o problema que se traduz numa tendência para ser “o bombo da festa”. A resposta é sempre a inércia, a indiferença, a escolha do caminho mais fácil. Mesmo quando se trata de ajudar alguém. Para quê afinal? Alguém, algum dia, faria o mesmo por ele? Se calhar, nem a própria mãe…
A visão do Autor acerca do apocalipse que é a invasão da pequena cidade rural pela Grande Babel começa com o projecto de construção do prédio de altura monstruosa, mas só se desenvolve na altura da sua implementação no terreno, o que desencadeia um verdadeiro Armaggedon ou o emergir de uma Nova Atlântida, marcada pela fatalidade…
Marlene surge novamente, a viver na sombra, mascarada sob a camuflagem perfeita de executiva perfeita, convive diariamente com o medo constante de ser descoberta a sua vida secreta, o esqueleto que guarda dentro do armário que é a sua vida privada... É o arquétipo oposto de Beatriz, cuja soberba consiste numa exibição agressiva - e, em muitos casos ofensiva -, da própria integridade e o pior defeito: o orgulho desmedido face à própria perfeição, traduzida no cumprimento rigoroso de todos os princípios que defende, o que a coloca acima dos demais.
Na estória Para onde vai a luz quando o medo acende o escuro as personagens da obra vão aparecendo sucessivamente à medida que se apercebem das consequências de uma decisão que se revelou nefasta, acabando por serem fulminadas com a Revelação da fúria nemésica da Natureza que decide impor a sua vontade aos homens.
O prédio foi erigido, o circo está armado e a sorte, lançada. O círio, esse arderá muito em breve.
Os últimos quatro mini-contos ou estórias formam como que um epílogo ao qual o Autor atribui o título de Redenção. Esta “redenção” é, nada mais nada menos do que o regresso do Homem às suas raízes biológicas e à fusão com o meio vegetal. Para tal recorre à imagem, do sacrifício de um ser imaculado, aumentando a dramaticidade através de um ritual a fazer lembrar os povos antigos da Arcádia…
A prosa de Nelson Oliveira é, sobretudo, um manifesto contra à urbanização e a destruição do meio ambiente assim como a progressiva degradação da qualidade de vida à escala Global. Tudo para usufruto de uma minoria de sátrapas a alta finança e das grandes multinacionais…
Ao lermos as frases deste Autor, carregadas de um pessimismo nihilista no que toca à crença da evolução dos seres humanos como pessoas – ao lermos Babel Babilónia – percebemos que o Autor pensa que, apesar dos progressos operados pela espécie humana na área da tecnologia, economia e cultura, o Homem não aprende com os erros. Por outro lado, o Autor acredita no romantismo da pequena minoria que tenta remar contra a maré. Dos que lutam contra os moinhos de vento. Os últimos textos da obra remetem-nos para a cegueira humana leva, invariavelmente, a que grupos extremistas, adversários da mesma guerra, esbatam, cada vez mais, as fronteiras entre o bem e o mal. Uma tendência que é, sempre foi, o grande flagelo da humanidade. Que aniquila o homem como ser social.
Babel Babilónia é, por tudo o que foi dito, o manifesto de um agnosticismo pagão ou se quisermos anti-cristão, pelas frequentes intertextualidades com a Bíblia, que visa destruir a ditadura de um Eu que já não consegue suportar o olhar do Outro.
Cláudia de Sousa Dias
O denominador comum, presente em todos estes fragmentos, que nos surgem sob a forma de pequenas estórias do quotidiano, é o conflito baseado numa dicotomia composta pelo trinómio Progresso-Ciência-Tecnologia versus Natureza-Biologia-Mundo Vegetal. O final é aberto deixando-nos a possibilidade de, a esta narrativa, serem acrescentados novos episódios…
As situações do quotidiano descritas em Babel Babilónia têm, como cenário, uma pequena cidade rural , no interior do estado de São Paulo, onde a erecção de uma torre de várias dezenas de andares irá gerar acerada controvérsia, divisão de opiniões e, mesmo, algumas reacções que podemos, sem sombra de dúvida, classificar de extremistas.
Face à problemática da verticalização e das vantagens imediatas que este fenómeno normalmente associado ao crescimento urbano implica, as discussões germinam, mais ou menos acaloradas, em todas as classes sociais e níveis etários. As opiniões dividem-se entre aqueles que defendem o avanço da tecnologia e a emancipação da Natureza com base na rejeição da Biologia, isto é, que apoiam incondicionalmente a urbanização e a disseminação de uma cultura essencialmente urbana e tecnológica e daqueles que Luiz Roberto Guedes, autor do prefácio da obra, «valorizam a adaptação espiritual à inércia plena» do Mundo Vegetal, onde se pode talvez encontrar uma certa influência do budismo-taoísmo pela «busca do equilíbrio na eternidade do momento presente» (Sic).
Segundo o próprio Nelson Oliveira, na Grande Metrópole não falamos todos a mesma língua quando o tema é o chamado “Progresso Humano” no seu vector destrutivo.
Entre a pressão dos lobbies, a favor da verticalização, e a reacção da ala mais crítica da população que defende a manutenção dos padrões de qualidade de vida para a maioria dos cidadãos – baseada num planeamento urbano cuidado, de forma a impedir a excessiva concentração demográfica na mesma área, numa tentativa de minimizar as assimetrias no que toca à densidade populacional e consequente degradação do meio pela contaminação das águas, emissão excessiva de monóxido de carbono e outros factores que coloquem em perigo a saúde pública. O aumento da criminalidade é outra das consequências associadas ao fenómeno assim como situações de exclusão social devido à discrepância entre as reais qualificações da mão-de-obra existente e as exigências – irreais, para não dizer utópicas – do mercado de trabalho. Tudo isto acaba por desembocar em conflitos mais ou menos graves, casos dramáticos de pobreza, em violento contraste com uma opulência que atinge os limites da obscenidade.
A protagonista da trama central é Beatriz, que aparece em diferentes episódios e tem uma relação algo mística com a Natureza, como se esta fosse uma entidade humana. Aliás, logo no primeiro episódio, no mundo que rodeia a Beatriz, ainda criança, a Natureza e a Biologia sobrepõem-se ainda à Cultura, num tempo que corresponde, de certa forma, à idade do ouro da jovem protagonista que habita um paraíso protegido. Mas Beatriz não resiste a espreitar o que se encontra para lá do Muro…
E, para lá do Muro está um rio que traz na corrente a cultura urbana em cujas águas alterosas o pai perde a vida….O rio traz sedimentos da cultura da metrópole como a deificação do Trabalho, a voracidade do Dinheiro a Ganância, que se infiltram insidiosamente pelas fendas do muro, pelo concreto. Mas por entre as fendas espreitam, também, os líquenes, os musgos, a vegetação apodrecida, a terra o húmus, o odor do próprio rio…que tudo leva com ele: a vida, os olhos do Afogado, comidos pelos peixes…
No final, o ser humano converte-se em alimento da biologia Nemésica que reclama o terreno que lhe foi roubado…
A última cena é uma espécie de ritual antigo, a fazer lembrar os Mistérios de Elêusis, que Luiz Roberto Guedes apelida de «uma integração alquímica, órfica, mágica, consequência da batalha final entre conservadores e progressistas.
Mas em Babel Babilónia existem, também outras personagens, protagonistas de outras estórias, paralelas à de Beatriz, que se relacionam directa ou indirectamente com ela, como Marlene e Jorge – dois jovens corruptos e ambiciosos, sendo a primeira suficientemente inteligente para se manter na sombra, utilizando a camuflagem dada por uma profissão que lhe confere respeitabilidade e o segundo, mais ingénuo, mas com uma tendência bastante vincada para dramatizar a situação e para a auto-indulgência. Por outro lado, o comodismo leva-o a optar sempre pelo caminho mais fácil para atingir os objectivos a que se propõe. Manifesta igualmente uma recusa irrevogável em entender que é exactamente pela inércia, quer do pensamento quer da acção, que o círculo se fecha à sua volta levando-o a afundar-se, cada vez mais, num charco de areias movediças como o sub mundo do Crime…
Há, também Onofre, um idoso saudosista, que revive a infância espelhada no brilho dos olhos que observam a energia despendida pelas crianças que jogam futebol na rua. No entanto, já só os olhos conseguem acompanhar as correrias.
A linguagem utilizada pelo narrador é idêntica à de um locutor de rádio ao fazer o relato de um jogo de futebol, usando o mesmo tom coloquial e interjeições, tal como a gíria do desporto mesclada com o calão dos miúdos de rua…
Os gatos vadios como Sansão e Dalila são protagonistas a mais uma história paralela à de Beatriz, após invadir o quintal da casa da jovem. Esta, desde pequena, tem vindo a desenvolver uma forma muito especial de comportamento anti-social, depois do desaparecimento do pai, uma vítima do chamado Progresso. Beatriz deseja humilhar os outros exibindo uma “perfeição” algo pedante, atirando-lhes à cara uma superioridade que conjuga com uma indiferença felina, superior à do casal de gatos vadios que habita temporariamente o seu quintal…
Mas o episódio mais violento da obra consegue ser aquele em que duas crianças discutam selvaticamente acerca da verticalização. As duas defendem pontos de vista opostos, inculcados pelos pais, como se percebe pelo discurso de ambas no episódio Corrida de Elevador.
Já o proxenetismo e o sexo utilizado como suborno por alguém que aproveita um pretexto para usufruir do prazer de ultrapassar os limites compõem uma estória onde personagens como Gustavo e Débora são meros brinquedos, manipuláveis e substituíveis, traduz a desumanização progressiva que a construção da selva urbana acarreta e onde os fins, aliados ao individualismo na sua forma mais extrema, justificam os meios e a fragilidade humana de uns dá lugar ao cinismo oportunista de outros.
Beatriz surge, novamente, cada vez com traços mais evidentes de desenvolvimento de personalidade anti-social, a fechar-se cada vez mais no seu mundo, onde os outros contam cada vez menos. A jovem age sempre de uma forma algo despótica, como se fosse ela, apenas e só, no centro do seu mundo, fechada na torre de marfim, imersa no próprio narcisismo. Neste episódio há, no entanto, um encontro entre misticismo, a tocar na fronteira do realismo mágico, com o racionalismo cartesiano, dois pontos de vista que se digladiam, mais uma vez, numa luta onde não há lugar para vencedores nem vencidos…
Depois, existem crianças como Dudu que desaparecem no Lusco-Fusco, a ilustrar a ineficácia e ineficiência das forças da ordem. O destino de Dudu só será conhecido mais tarde, ao surgir de uma forma totalmente inesperada e já crescido, noutro episódio.
Aqui termina a primeira parte da obra, intitulada de Anunciação, onde é propagada a mensagem, isto é, a divulgação de uma mudança a ser introduzida e as diferentes reacções que lhe correspondem, incluindo expectativas e medos relativamente às pequenas alterações, já em curso, no quotidiano da pequena comunidade.
Na segunda parte desta alegoria, a Mudança está a ser operada a todo o vapor.
A primeira deste conjunto de cenas de transformação do quotidiano é, aparentemente um banal diálogo entre mãe e filha, cheio de repetições, onde se nota a ausências de nomes próprios assim como de um verdadeiro diálogo entre dois dos intervenientes: os pais da jovem que ajuda a mãe a preparar o jantar. A jovem tem a única a função, em sentido restrito, de verificar se o pai toma os remédios. Trata-se de um lar onde a filha é, também, e num sentido mais amplo, a única ponte a unir o casal e onde paira a sombra de um irmão ausente, acerca do qual se percebe estar a enveredar por um caminho que cada vez mais o afasta da família. A metástase do individualismo, gélido e cortante, acaba por diluir cada vez mais os laços familiares empurrando os seus membros para uma inevitável dissolução.
Zen e a arte de ocupar os espaços vazios trata da estória dos já mencionados Jorge e Marlene – uma estória que se desenvolve única e exclusivamente através de uma troca de e-mails, onde a insistência de Jorge choca com a indiferença e frieza de Marlene. Jorge refugia-se no passado recusando-se a perceber que o laço que os unia de quebrou definitivamente.
A violência extrema de crimes como sequestros, a impunidade, as vítimas que pagam pelos erros de terceiros proliferam em estórias como Retaliação. Ou como na do “gordo” Cácá, nascido em berço de ouro, na elite da grande metrópole, cujo ventre proeminente, físico deformado e precocemente envelhecido pela lassidão e por uma voracidade desmedida, transformam-no num ser mal-amado, apesar de rico. Cácá sonha com mulheres belas ou jovens púberes, mas tem de se limitar aos condicionalismos dos “feios”, “porcos” e pouco amados. A falta de disciplina e pouco afecto com que é brindado desde a infância ajudam ao desenvolvimento de uma faceta que em nada lhe ajuda a regredir o problema que se traduz numa tendência para ser “o bombo da festa”. A resposta é sempre a inércia, a indiferença, a escolha do caminho mais fácil. Mesmo quando se trata de ajudar alguém. Para quê afinal? Alguém, algum dia, faria o mesmo por ele? Se calhar, nem a própria mãe…
A visão do Autor acerca do apocalipse que é a invasão da pequena cidade rural pela Grande Babel começa com o projecto de construção do prédio de altura monstruosa, mas só se desenvolve na altura da sua implementação no terreno, o que desencadeia um verdadeiro Armaggedon ou o emergir de uma Nova Atlântida, marcada pela fatalidade…
Marlene surge novamente, a viver na sombra, mascarada sob a camuflagem perfeita de executiva perfeita, convive diariamente com o medo constante de ser descoberta a sua vida secreta, o esqueleto que guarda dentro do armário que é a sua vida privada... É o arquétipo oposto de Beatriz, cuja soberba consiste numa exibição agressiva - e, em muitos casos ofensiva -, da própria integridade e o pior defeito: o orgulho desmedido face à própria perfeição, traduzida no cumprimento rigoroso de todos os princípios que defende, o que a coloca acima dos demais.
Na estória Para onde vai a luz quando o medo acende o escuro as personagens da obra vão aparecendo sucessivamente à medida que se apercebem das consequências de uma decisão que se revelou nefasta, acabando por serem fulminadas com a Revelação da fúria nemésica da Natureza que decide impor a sua vontade aos homens.
O prédio foi erigido, o circo está armado e a sorte, lançada. O círio, esse arderá muito em breve.
Os últimos quatro mini-contos ou estórias formam como que um epílogo ao qual o Autor atribui o título de Redenção. Esta “redenção” é, nada mais nada menos do que o regresso do Homem às suas raízes biológicas e à fusão com o meio vegetal. Para tal recorre à imagem, do sacrifício de um ser imaculado, aumentando a dramaticidade através de um ritual a fazer lembrar os povos antigos da Arcádia…
A prosa de Nelson Oliveira é, sobretudo, um manifesto contra à urbanização e a destruição do meio ambiente assim como a progressiva degradação da qualidade de vida à escala Global. Tudo para usufruto de uma minoria de sátrapas a alta finança e das grandes multinacionais…
Ao lermos as frases deste Autor, carregadas de um pessimismo nihilista no que toca à crença da evolução dos seres humanos como pessoas – ao lermos Babel Babilónia – percebemos que o Autor pensa que, apesar dos progressos operados pela espécie humana na área da tecnologia, economia e cultura, o Homem não aprende com os erros. Por outro lado, o Autor acredita no romantismo da pequena minoria que tenta remar contra a maré. Dos que lutam contra os moinhos de vento. Os últimos textos da obra remetem-nos para a cegueira humana leva, invariavelmente, a que grupos extremistas, adversários da mesma guerra, esbatam, cada vez mais, as fronteiras entre o bem e o mal. Uma tendência que é, sempre foi, o grande flagelo da humanidade. Que aniquila o homem como ser social.
Babel Babilónia é, por tudo o que foi dito, o manifesto de um agnosticismo pagão ou se quisermos anti-cristão, pelas frequentes intertextualidades com a Bíblia, que visa destruir a ditadura de um Eu que já não consegue suportar o olhar do Outro.
Cláudia de Sousa Dias