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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, November 27, 2008

“A Casa dos Espíritos” de Isabel Allende (Difel)


O primeiro romance da Autora é a saga de uma família de mulheres pouco convencionais através do período conturbado da história do Chile ao longo do século XX, mais precisamente até à década de 1970, altura em que morre Salvador Allende, primo do seu pai e vítima do golpe de estado perpetrado pelo General Augusto Pinochet.

O tom da narrativa é-nos dado pela “voz” de Alba, a última das mulheres Trueba/Del Valle, uma família cujas mulheres desafiam a autoridade patriarcal de forma a lutarem por aquilo que querem. A autonomia em relação ao tutor masculino, seja ele a figura paternal seja a do marido, bem como a defesa dos direitos das classes mais desfavorecidas é um dos principais objectivos das heroínas de
A Casa dos Espíritos de forma a atenuar as clivagens sociais, eliminar os vestígios da mentalidade feudal/colonialista fortemente implantada na América do Sul, acerrimamente defendida pelos descendentes quer dos antigos colonizadores quer de potências pretensamente liberais com pretensões notoriamente imperialistas.

Nívea del Valle, a mãe das duas jovens que cativam o amor de Esteban Trueba – Rosa e Clara – é a pedra basilar que molda a personalidade das mulheres que se destacam nas três gerações seguintes. Casada com o líder do Partido Liberal, Nívea del Valle integra-se no movimento sufragista, na luta pelo direito ao voto feminino e pelo acesso á instrução, assim com pelos direitos da mulheres operárias, desafiando a ala mais conservadora da sociedade chilena.

Ambas as filhas de Nívea têm características incomuns, que as demarcam das outras mulheres da mesma idade e nível sócio-económico, que as tornam especiais porque diferentes e, até mesmo, algo estranhas, aproximando-as mais de seres mitológicos, como as sereias ou os elfos, do que com as mulheres do mundo real.

Rosa, por exemplo, é detentora da beleza aquática das ninfas dos rios ou das sereias. O cabelo é verde como os fetos ou as algas a pele diáfana e quase transparente e os olhos, amarelos como os de um gato. Rosa cativa a admiração dos que a rodeiam pelo sortilégio que emana da sua beleza estranha e perturbadora. Dedica-se à arte de bordar, preferindo os motivos mitológicos, fazendo lembrar Penélope a braços com um trabalho gigantesco e interminável, enquanto espera pelo noivo. O desenrolar da trama que revela o destino de Rosa é, no entanto, marcado pela fatalidade. A jovem é vítima de um atentado, dirigido ao pai pelos inimigos políticos, um prenúncio daquilo que irá afectar a família algumas décadas mais tarde.

O extremo chauvinismo da sociedade chilena é evidenciado por Isabel Allende em A Casa dos Espíritos pela misoginia demonstrada pela opinião pública geral em relação à beleza feminina, que se traduz no medo de enfrentar futuros rivais. Rosa é preterida por muitos devido ao próprio carisma, que desperta o receio de uma futura infidelidade. Depreende-se, ao ler na entrelinhas da prosa da Autora, que no Chile do início do século XX, em plena belle époque, uma “boa esposa” não deveria ser muito admirada – ou cobiçada – ou, simplesmente não ter consciência da própria beleza. A submissão total ao marido seria, então, considerada o principal atributo de uma noiva.

Mas, se Rosa desafia o mundo ao exibir orgulhosamente a uma beleza, ora felina, ora aquática, ora vegetal, Clara, a clarividente irmã mais nova, utiliza os poderes paranormais para o fazer, desafiando abertamente a autoridade patriarcal ao lançar a dúvida sobre a existência do Inferno a um escandalizado e fanático padre Restrepo, durante a missa. O estigma de “esquisita”, “estranha” ou “semi-louca” cola-se-lhe à pele, apesar das atabalhoadas tentativas dos pais em esconder o fenómeno, com receio de uma possível excomunhão ou ingresso no grupo das “solteironas”, como quase acontecera a Rosa.

Clara é mais um ser etéreo, outro elfo ou fada, mas sem a estonteante beleza de Rosa. É um ser que seduz com um encanto mais discreto ao brilhar com “uma luz mais branda, que não fere a vista”. É, também, intuitiva e comunicativa, mas vive num mundo muito próprio, situado numa dimensão que transcende o sensível. Detesta ocupar-se das coisas terrenas como as tarefas domésticas. Herda o idealismo da mãe ao defender não só os direitos das mulheres, mas também dos trabalhadores da fazenda Las Trés Marias, onde viverá após casar com o ex-noivo de Rosa, Esteban Trueba.

Blanca a filha de Clara e Esteban, herda a beleza moura do pai a qual se funde com a delicadeza das feições da família del Valle, algo que faz dela a imagem típica da heroína romântica. É precisamente o Amor, ou o direito à livre escolha do amado/amante a bandeira que usa para enfrentar a autoridade patriarcal. Pedro Tercero, filho de um dos trabalhadores da quinta e cantor revolucionário, à semelhança de Victor Jara, não é um partido desejável para um senhor feudal da América do Sul como Trueba. Tal como todas as mulheres da família de Valle, Blanca dedica-se, de alguma forma, às artes – neste caso, a escultura, a olaria – partilhando também com estas a preocupação com os excluídos.

A arte seduz também a mulher mais jovem da família – Alba, a narradora que publica a história da família, em parceria com o avô, filha de Blanca e Pedro Tercero.

Alba é a única das mulheres de nomes luminosos descendentes de Nívea del Valle, que herda o cabelo verde de Rosa. No entanto, as restantes características físicas irá buscá-las a outros membros da família.

No que toca á personalidade, Alba revela-se como que a síntese de todas as mulheres que a antecedem em linha directa: de Blanca vai buscar a luta pelo amor, de Clara herda a preocupação com os desfavorecidos e o gosto pela escrita e, de Nívea, o sentido prático na defesa dos direitos humanos.

A missão principal de Alba é a de escrever a história da família, auxiliada pelas memórias da avó, as quais permanecem intactas nos seus diários, inserida no cenário das convulsões sociais que atravessaram o País durante mais de um século.

Trata-se, no entanto, de uma história narrada a duas vozes. A de Alba e a do avô Trueba, em cuja voz se evidencia a absoluta adoração pela neta, a qual supera, inclusive, o amor demonstrado por Clara e Rosa: é Alba quem desencadeia algumas mudanças subtis na personalidade do velho, patentes na forma como este passa a exprimir as emoções, limando algumas arestas do mau génio e intolerância que lhe valeram o afastamento de alguns entes queridos.

A par do temperamento sanguíneo e vulcânico, Esteban Trueba exibe, também, uma exuberante sexualidade, a qual atinge uma dimensão quase que priápica e tão telúrica quanto a ferocidade demonstrada.
Por outro lado, a sede ilimitada de poder e de riqueza, levam-no a exercer a defesa acérrima dos privilégios de classe e a adoptar uma atitude paternalista para com os trabalhadores da quinta.
É, no entanto o mais que sobejamente conhecido mau feitio de Esteban a mola que impulsiona o desenvolvimento da trama e impele a acção das personagens ao mesmo tempo que desencadeia o conflito.

A ânsia de controlo, de domínio, relativamente àqueles que o rodeiam leva a que este temperamento despótico afecte a relação com todos os parentes, amigos e colaboradores desde Férula, a irmã – à qual não suporta por tentar “amarrá-lo” através das grilhetas da gratidão – até Clara, que o repudia pelo comportamento violento, marcando o início da decadência da família, após a partida desta de Las Trés Marías para a cidade.

Blanca decide, por seu turno, afastar-se do pai, após a crueldade demonstrada em relação a Pedro Tercero, o mesmo acontecendo com os filhos, já adultos: Jaime, por um conflito ideológico e Nicolau por conta do temperamento excêntrico, herança da mãe.

Mas quando quase perde Alba por conta das próprias maquinações políticas e por um ajuste de contas com o passado, Esteban percebe que acabará por ficar completamente só, a não ser que se torne mais flexível.

O Estilo de Allende

O desenvolvimento da acção de A Casa dos Espíritos está marcado por dois momentos distintos.

Na primeira parte, desde a chegada do monstruoso e ternurento cachorro Barrabás, contada por Alba a partir do diário de Clara, até à partida desta com os filhos da fazenda para a casa da capital – “a casa dos espíritos”, onde Clara dará largas às suas experiências esotéricas. A narrativa flui, aqui, num ritmo ligeiro e trepidante à semelhança de uma opereta, enfatizado pelo humor cáustico da Autora, o qual imprime às peripécias vividas pela família, um tom que se aproxima da ópera buffa. Como por exemplo, o episódio de Barrabás, onde a velhacaria da ama que envenena os animais domésticos, acaba por se virar contra ela saindo-lhe o tiro pela culatra; a intervenção de Clara na Igreja, dirigida ao padre, os conselhos desta como pitonisa e até as proezas sexuais e as fúrias de Esteban são descritas num tom perfeitamente amoral e quase que satírico fazendo lembrar uma farsa de Gil Vicente ou uma peça de Moliére, como se as personagens fossem impulsionadas por uma força exterior à própria vontade que se sobrepõe a princípios éticos ou morais.

Na segunda parte, a tonalidade do discurso adquire nuances mais sombrias. Neste momento da narrativa sente-se já a penumbra que vai invadindo a casa da rua da esquina na cidade e as vidas dos seus habitantes. Uma casa onde excluídos, desfavorecidos e refugiados políticos buscam abrigo, e que se vai tornando cada vez mais labiríntica, caótica, recheada de segredos e recantos ocultos.

Também a vida dos Trueba se torna progressivamente mais caótica à medida que estes se dispersam e se envolvem, cada vez mais, nos próprios projectos individuais.

A morte de Clara acentua ainda mais a já evidente desunião familiar, ao assinalar o período de decadência económica e desorganização doméstica, que Trueba tenta remediar. A família é que já nunca mais conseguirá recuperar do abalo.

A terceira parte é contada sob a forma de testemunho, talvez porque mais próxima da realidade vivida pela Autora: adquire, por isso, contornos de documento histórico e crónica política, o que faz com que a trama perca grande parte do seu valor romanesco e alguma da qualidade literária, presente nos momentos anteriores, onde encontramos marcas inequívocas do realismo mágico, com influência notória de autores como Gabriel García Márquez e Jorge Amado.

Estão, também, presentes referências a várias figuras e factos recentes da história do Chile, com particular incidência no assassinato do Presidente Salvador Allende, onde aparece mencionado simplesmente como “O Candidato” ou “O Presidente”. Da mesma forma, é descrito o funeral de Pablo Neruda, com honras de estado a quem chama a autora chama simplesmente de “O Poeta”.

Um livro que marca o início da carreira de Isabel Allende como escritora e que é sem dúvida uma das suas melhores obras literárias.

Cláudia de Sousa Dias

Saturday, November 08, 2008

“O homem sentimental” de Javier Marías (Dom Quixote)


Javier Marías nasceu em Madrid, em 1951. Licenciou-se em Filosofia e Letras tendo, posteriormente, leccionado literatura espanhola na Universidad de Madrid.

Foi galardoado, em 1997 com o
Prémio Nelly Sachs, pelo conjunto da sua obra, uma distinção considerada por muitos como a antecâmara do Prémio Nobel.

Mas para lá dos prémios e das distinções, a escrita de Javier Marías destaca-se pelo encantamento, pelo feitiço com o qual envolve o leitor ao transmitir não só a paisagem visual, mas também emocional e comportamental e ao enquadrar as personagens no cenário cultural onde elas se movimentam. A prosa de Marías é impressionista, pelo que não se detém em contornos fixos, no traçado da personalidade das suas personagens. Pelo contrário, dela brota uma tónica diarista, num discurso que parece aproximar-se um pouco da frieza analítica de um ensaio mas em cujas entrelinhas fervilha o caldeirão onde se cozinha o caldo das emoções que compõem a psique humana.


A descrição física, assim como a análise comportamental das personagens parecem brotar de um processo de acurada observação empírica e detalhada, pela dissecação dos mais ínfimos pormenores e cambiantes das expressões faciais, postura corporal, movimentos de mãos, onde até a indumentária serve como forma de expressão dos sentimentos ou da forma como se estabelece a comunicação com os outros. Uma profusão de sinais exteriores que denuncia, assim, o que vai na alma de cada um como por exemplo as peles roídas e cutículas inflamadas de Natália, conjugadas com o semblante que tenta ocultar com o cabelo, durante a viagem de comboio logo no primeiro capítulo, denunciam uma certa inquietação interior que tenta disfarçar a todo o custo.

Também as descrições de carácter mais generalista, como a panorâmica das cidades e dos respectivos transeuntes, das multidões anónimas que por elas circulam, obedecem ao mesmo processo ou, se calhar ao mesmo impulso. O Autor extrai, a partir da disposição, da configuração do aspecto exterior, da combinação entre as roupas escolhidas, as expressões faciais e a forma de caminhar dos seus habitantes, a respectiva forma de encarar a vida, inserindo-a na mesma visão pessoal, traçada pelo colorido emocional dos habitantes de cada cidade europeia, na sua própria cultura específica.

Se não vejamos:

(…) Madrid, a cidade onde passei a minha infância e adolescência (…) pareceu-me solitária e triste como poucas nas minhas inúmeras viagens pelo estrangeiro. Ainda mais que as cidades inglesas, que são as piores do globo, as mais enfermiças e as mais hostis; ainda mais do que as da Alemanha do Leste, nas quais há tanta disciplina e tanto amortecimento que passar pela rua a assobiar produz o efeito de um cataclismo; ainda mais do que as suíças que, pelo menos, são limpas e calmas e dão uma oportunidade à imaginação pelo próprio facto de não dizerem nada.
Madrid, pelo contrário parece ter pressa de dizer tudo, como se estivesse consciente de que a sua única possibilidade de conquistar o viajante reside no aturdimento e na veemência sem freio (…). Madrid é rústica e chocarreira e não encerra qualquer mistério; e não há nada de tão triste e solitário como uma cidade sem enigma aparente ou aparência de enigma., nada de tão dissuasório, nada de tão opressivo para o visitante.

A trama tem como personagem central e, também, como narrador um cantor de ópera que se encontra em Madrid de passagem para representar o papel de Cássio, no Othello de Verdi. Este acabará por entrar, ele próprio, numa trama paralela e tornar-se num dos vértices de um triângulo amoroso semelhante – embora não idêntico – ao da trama shakespeariana que deu origem à ópera do compositor italiano.

A personagem que podemos identificar com o Othello é um banqueiro belga Hieronymous Manur – tão tirânico como o Mouro de Veneza, mas cuja violência em relação à sua Desdémona madrilena, Natália, se manifesta sobretudo na privação de liberdade: Natália é vigiada vinte e quatro horas por dia pelo esbirro do banqueiro, o narcisista e venal Dato, que não chaga a ter a maldade de Iago e cuja missão é a de entreter a esposa do patrão e reportar a este as suas actividades diárias.

Hieronymous Manur é, no entanto, referido várias vezes quase como que num estribilho como sendo “um potentado, um ambicioso, um político, um explorador”. A visão do narrador transmite-nos o retrato de uma ave rapace, um homem habituado a dar ordens, sem nunca ser questionado. Manur compra a esposa a uma família que pertencente à elite empobrecida madrilena comprometendo-se, em troca, a reabilitar os negócios da família, arruinada por investimentos desastrosos. Natália é tratada pelo marido como um objecto muito caro, praticamente como uma prostituta de luxo, de quem se obtêm exclusividade em troca de conforto material e, simultaneamente, um animal doméstico ou, ainda, uma peça de museu.

Natália está demasiado consciente da dependência de um gesto seu para resgatar a família da ruína ou lançá-la de vez na penúria, pelo que se submete ao proxenetismo dos familiares, manifestando para com estes um amor e solidariedade incondicionais. Natália só consegue sair do estado de melancolia permanente quando encontra o irmão, Roberto, em Madrid. Ou o tenor madrileno que representa o papel de Cassio…

Existe ainda Berta, a namorada do tenor cognominado de “O leão de Nápoles” em virtude sucesso e reconhecimento que obteve nesta cidade – uma jovem agradável e culta mas sem mistério, que não deixa marca.

Já na figura de Natália, o tenor parece encontrar a melancolia e o mistério que lhe despertam o instinto cavalheiresco que se manifesta num desejo leonino de aniquilar o adversário: Manur. Trata-se de algo atávico, uma espécie de instinto que impele a derrubar o macho dominante, numa dada espécie animal. Algo que leva o protagonista a perseguir um amor, construído com base naquilo que o autor chama de “imitação” mas que nada mais é do que o desejo de competir.

Natália, por seu lado, vê no amigo o veículo que poderá libertá-la das amarras, das grilhetas, que a impedem de ser ela mesma e lhe bloqueiam a autonomia…

O Homem Sentimental é, desta forma, “…uma história de um amor que não se vê nem se vive mas que se anuncia e se recorda” (JM), porque o tempo da narração não é exactamente o tempo da vivência desse mesmo amor. Mas antes a vivência da expectativa e, posteriormente, quando este já se tornou apenas uma recordação.

É uma história que se anuncia trágica mas que só consegue verdadeiramente sê-lo para o homem sentimental que parecendo ser à primeira vista, o artista ou o pensador – cuja capacidade em fazer cedências é desenvolvida logo a partir da pré-adolescência o habitua, logo desde cedo, a saber perder e a reerguer-se das cinzas – mas que acaba por ser o homem de negócios, “o potentado, o ambicioso, o político, o explorador”, o homem de acção, que nunca é contrariado e que não sabe aceitar uma derrota.

Uma obra que se lê com prazer e lentamente, como que sorvendo, em pequenos goles, uma bebida rara e preciosa. Para degustar e absorver frase por frase.

Javier Marías é, por isso, uma excelente companhia para levar numa viagem de férias.


Cláudia de Sousa Dias