“A Casa dos Espíritos” de Isabel Allende (Difel)
O primeiro romance da Autora é a saga de uma família de mulheres pouco convencionais através do período conturbado da história do Chile ao longo do século XX, mais precisamente até à década de 1970, altura em que morre Salvador Allende, primo do seu pai e vítima do golpe de estado perpetrado pelo General Augusto Pinochet.
O tom da narrativa é-nos dado pela “voz” de Alba, a última das mulheres Trueba/Del Valle, uma família cujas mulheres desafiam a autoridade patriarcal de forma a lutarem por aquilo que querem. A autonomia em relação ao tutor masculino, seja ele a figura paternal seja a do marido, bem como a defesa dos direitos das classes mais desfavorecidas é um dos principais objectivos das heroínas de A Casa dos Espíritos de forma a atenuar as clivagens sociais, eliminar os vestígios da mentalidade feudal/colonialista fortemente implantada na América do Sul, acerrimamente defendida pelos descendentes quer dos antigos colonizadores quer de potências pretensamente liberais com pretensões notoriamente imperialistas.
Nívea del Valle, a mãe das duas jovens que cativam o amor de Esteban Trueba – Rosa e Clara – é a pedra basilar que molda a personalidade das mulheres que se destacam nas três gerações seguintes. Casada com o líder do Partido Liberal, Nívea del Valle integra-se no movimento sufragista, na luta pelo direito ao voto feminino e pelo acesso á instrução, assim com pelos direitos da mulheres operárias, desafiando a ala mais conservadora da sociedade chilena.
Ambas as filhas de Nívea têm características incomuns, que as demarcam das outras mulheres da mesma idade e nível sócio-económico, que as tornam especiais porque diferentes e, até mesmo, algo estranhas, aproximando-as mais de seres mitológicos, como as sereias ou os elfos, do que com as mulheres do mundo real.
Rosa, por exemplo, é detentora da beleza aquática das ninfas dos rios ou das sereias. O cabelo é verde como os fetos ou as algas a pele diáfana e quase transparente e os olhos, amarelos como os de um gato. Rosa cativa a admiração dos que a rodeiam pelo sortilégio que emana da sua beleza estranha e perturbadora. Dedica-se à arte de bordar, preferindo os motivos mitológicos, fazendo lembrar Penélope a braços com um trabalho gigantesco e interminável, enquanto espera pelo noivo. O desenrolar da trama que revela o destino de Rosa é, no entanto, marcado pela fatalidade. A jovem é vítima de um atentado, dirigido ao pai pelos inimigos políticos, um prenúncio daquilo que irá afectar a família algumas décadas mais tarde.
O extremo chauvinismo da sociedade chilena é evidenciado por Isabel Allende em A Casa dos Espíritos pela misoginia demonstrada pela opinião pública geral em relação à beleza feminina, que se traduz no medo de enfrentar futuros rivais. Rosa é preterida por muitos devido ao próprio carisma, que desperta o receio de uma futura infidelidade. Depreende-se, ao ler na entrelinhas da prosa da Autora, que no Chile do início do século XX, em plena belle époque, uma “boa esposa” não deveria ser muito admirada – ou cobiçada – ou, simplesmente não ter consciência da própria beleza. A submissão total ao marido seria, então, considerada o principal atributo de uma noiva.
Mas, se Rosa desafia o mundo ao exibir orgulhosamente a uma beleza, ora felina, ora aquática, ora vegetal, Clara, a clarividente irmã mais nova, utiliza os poderes paranormais para o fazer, desafiando abertamente a autoridade patriarcal ao lançar a dúvida sobre a existência do Inferno a um escandalizado e fanático padre Restrepo, durante a missa. O estigma de “esquisita”, “estranha” ou “semi-louca” cola-se-lhe à pele, apesar das atabalhoadas tentativas dos pais em esconder o fenómeno, com receio de uma possível excomunhão ou ingresso no grupo das “solteironas”, como quase acontecera a Rosa.
Clara é mais um ser etéreo, outro elfo ou fada, mas sem a estonteante beleza de Rosa. É um ser que seduz com um encanto mais discreto ao brilhar com “uma luz mais branda, que não fere a vista”. É, também, intuitiva e comunicativa, mas vive num mundo muito próprio, situado numa dimensão que transcende o sensível. Detesta ocupar-se das coisas terrenas como as tarefas domésticas. Herda o idealismo da mãe ao defender não só os direitos das mulheres, mas também dos trabalhadores da fazenda Las Trés Marias, onde viverá após casar com o ex-noivo de Rosa, Esteban Trueba.
Blanca a filha de Clara e Esteban, herda a beleza moura do pai a qual se funde com a delicadeza das feições da família del Valle, algo que faz dela a imagem típica da heroína romântica. É precisamente o Amor, ou o direito à livre escolha do amado/amante a bandeira que usa para enfrentar a autoridade patriarcal. Pedro Tercero, filho de um dos trabalhadores da quinta e cantor revolucionário, à semelhança de Victor Jara, não é um partido desejável para um senhor feudal da América do Sul como Trueba. Tal como todas as mulheres da família de Valle, Blanca dedica-se, de alguma forma, às artes – neste caso, a escultura, a olaria – partilhando também com estas a preocupação com os excluídos.
A arte seduz também a mulher mais jovem da família – Alba, a narradora que publica a história da família, em parceria com o avô, filha de Blanca e Pedro Tercero.
Alba é a única das mulheres de nomes luminosos descendentes de Nívea del Valle, que herda o cabelo verde de Rosa. No entanto, as restantes características físicas irá buscá-las a outros membros da família.
No que toca á personalidade, Alba revela-se como que a síntese de todas as mulheres que a antecedem em linha directa: de Blanca vai buscar a luta pelo amor, de Clara herda a preocupação com os desfavorecidos e o gosto pela escrita e, de Nívea, o sentido prático na defesa dos direitos humanos.
A missão principal de Alba é a de escrever a história da família, auxiliada pelas memórias da avó, as quais permanecem intactas nos seus diários, inserida no cenário das convulsões sociais que atravessaram o País durante mais de um século.
Trata-se, no entanto, de uma história narrada a duas vozes. A de Alba e a do avô Trueba, em cuja voz se evidencia a absoluta adoração pela neta, a qual supera, inclusive, o amor demonstrado por Clara e Rosa: é Alba quem desencadeia algumas mudanças subtis na personalidade do velho, patentes na forma como este passa a exprimir as emoções, limando algumas arestas do mau génio e intolerância que lhe valeram o afastamento de alguns entes queridos.
A par do temperamento sanguíneo e vulcânico, Esteban Trueba exibe, também, uma exuberante sexualidade, a qual atinge uma dimensão quase que priápica e tão telúrica quanto a ferocidade demonstrada.
Por outro lado, a sede ilimitada de poder e de riqueza, levam-no a exercer a defesa acérrima dos privilégios de classe e a adoptar uma atitude paternalista para com os trabalhadores da quinta.
É, no entanto o mais que sobejamente conhecido mau feitio de Esteban a mola que impulsiona o desenvolvimento da trama e impele a acção das personagens ao mesmo tempo que desencadeia o conflito.
A ânsia de controlo, de domínio, relativamente àqueles que o rodeiam leva a que este temperamento despótico afecte a relação com todos os parentes, amigos e colaboradores desde Férula, a irmã – à qual não suporta por tentar “amarrá-lo” através das grilhetas da gratidão – até Clara, que o repudia pelo comportamento violento, marcando o início da decadência da família, após a partida desta de Las Trés Marías para a cidade.
Blanca decide, por seu turno, afastar-se do pai, após a crueldade demonstrada em relação a Pedro Tercero, o mesmo acontecendo com os filhos, já adultos: Jaime, por um conflito ideológico e Nicolau por conta do temperamento excêntrico, herança da mãe.
Mas quando quase perde Alba por conta das próprias maquinações políticas e por um ajuste de contas com o passado, Esteban percebe que acabará por ficar completamente só, a não ser que se torne mais flexível.
O Estilo de Allende
O desenvolvimento da acção de A Casa dos Espíritos está marcado por dois momentos distintos.
Na primeira parte, desde a chegada do monstruoso e ternurento cachorro Barrabás, contada por Alba a partir do diário de Clara, até à partida desta com os filhos da fazenda para a casa da capital – “a casa dos espíritos”, onde Clara dará largas às suas experiências esotéricas. A narrativa flui, aqui, num ritmo ligeiro e trepidante à semelhança de uma opereta, enfatizado pelo humor cáustico da Autora, o qual imprime às peripécias vividas pela família, um tom que se aproxima da ópera buffa. Como por exemplo, o episódio de Barrabás, onde a velhacaria da ama que envenena os animais domésticos, acaba por se virar contra ela saindo-lhe o tiro pela culatra; a intervenção de Clara na Igreja, dirigida ao padre, os conselhos desta como pitonisa e até as proezas sexuais e as fúrias de Esteban são descritas num tom perfeitamente amoral e quase que satírico fazendo lembrar uma farsa de Gil Vicente ou uma peça de Moliére, como se as personagens fossem impulsionadas por uma força exterior à própria vontade que se sobrepõe a princípios éticos ou morais.
Na segunda parte, a tonalidade do discurso adquire nuances mais sombrias. Neste momento da narrativa sente-se já a penumbra que vai invadindo a casa da rua da esquina na cidade e as vidas dos seus habitantes. Uma casa onde excluídos, desfavorecidos e refugiados políticos buscam abrigo, e que se vai tornando cada vez mais labiríntica, caótica, recheada de segredos e recantos ocultos.
Também a vida dos Trueba se torna progressivamente mais caótica à medida que estes se dispersam e se envolvem, cada vez mais, nos próprios projectos individuais.
A morte de Clara acentua ainda mais a já evidente desunião familiar, ao assinalar o período de decadência económica e desorganização doméstica, que Trueba tenta remediar. A família é que já nunca mais conseguirá recuperar do abalo.
A terceira parte é contada sob a forma de testemunho, talvez porque mais próxima da realidade vivida pela Autora: adquire, por isso, contornos de documento histórico e crónica política, o que faz com que a trama perca grande parte do seu valor romanesco e alguma da qualidade literária, presente nos momentos anteriores, onde encontramos marcas inequívocas do realismo mágico, com influência notória de autores como Gabriel García Márquez e Jorge Amado.
Estão, também, presentes referências a várias figuras e factos recentes da história do Chile, com particular incidência no assassinato do Presidente Salvador Allende, onde aparece mencionado simplesmente como “O Candidato” ou “O Presidente”. Da mesma forma, é descrito o funeral de Pablo Neruda, com honras de estado a quem chama a autora chama simplesmente de “O Poeta”.
Um livro que marca o início da carreira de Isabel Allende como escritora e que é sem dúvida uma das suas melhores obras literárias.
Cláudia de Sousa Dias
O tom da narrativa é-nos dado pela “voz” de Alba, a última das mulheres Trueba/Del Valle, uma família cujas mulheres desafiam a autoridade patriarcal de forma a lutarem por aquilo que querem. A autonomia em relação ao tutor masculino, seja ele a figura paternal seja a do marido, bem como a defesa dos direitos das classes mais desfavorecidas é um dos principais objectivos das heroínas de A Casa dos Espíritos de forma a atenuar as clivagens sociais, eliminar os vestígios da mentalidade feudal/colonialista fortemente implantada na América do Sul, acerrimamente defendida pelos descendentes quer dos antigos colonizadores quer de potências pretensamente liberais com pretensões notoriamente imperialistas.
Nívea del Valle, a mãe das duas jovens que cativam o amor de Esteban Trueba – Rosa e Clara – é a pedra basilar que molda a personalidade das mulheres que se destacam nas três gerações seguintes. Casada com o líder do Partido Liberal, Nívea del Valle integra-se no movimento sufragista, na luta pelo direito ao voto feminino e pelo acesso á instrução, assim com pelos direitos da mulheres operárias, desafiando a ala mais conservadora da sociedade chilena.
Ambas as filhas de Nívea têm características incomuns, que as demarcam das outras mulheres da mesma idade e nível sócio-económico, que as tornam especiais porque diferentes e, até mesmo, algo estranhas, aproximando-as mais de seres mitológicos, como as sereias ou os elfos, do que com as mulheres do mundo real.
Rosa, por exemplo, é detentora da beleza aquática das ninfas dos rios ou das sereias. O cabelo é verde como os fetos ou as algas a pele diáfana e quase transparente e os olhos, amarelos como os de um gato. Rosa cativa a admiração dos que a rodeiam pelo sortilégio que emana da sua beleza estranha e perturbadora. Dedica-se à arte de bordar, preferindo os motivos mitológicos, fazendo lembrar Penélope a braços com um trabalho gigantesco e interminável, enquanto espera pelo noivo. O desenrolar da trama que revela o destino de Rosa é, no entanto, marcado pela fatalidade. A jovem é vítima de um atentado, dirigido ao pai pelos inimigos políticos, um prenúncio daquilo que irá afectar a família algumas décadas mais tarde.
O extremo chauvinismo da sociedade chilena é evidenciado por Isabel Allende em A Casa dos Espíritos pela misoginia demonstrada pela opinião pública geral em relação à beleza feminina, que se traduz no medo de enfrentar futuros rivais. Rosa é preterida por muitos devido ao próprio carisma, que desperta o receio de uma futura infidelidade. Depreende-se, ao ler na entrelinhas da prosa da Autora, que no Chile do início do século XX, em plena belle époque, uma “boa esposa” não deveria ser muito admirada – ou cobiçada – ou, simplesmente não ter consciência da própria beleza. A submissão total ao marido seria, então, considerada o principal atributo de uma noiva.
Mas, se Rosa desafia o mundo ao exibir orgulhosamente a uma beleza, ora felina, ora aquática, ora vegetal, Clara, a clarividente irmã mais nova, utiliza os poderes paranormais para o fazer, desafiando abertamente a autoridade patriarcal ao lançar a dúvida sobre a existência do Inferno a um escandalizado e fanático padre Restrepo, durante a missa. O estigma de “esquisita”, “estranha” ou “semi-louca” cola-se-lhe à pele, apesar das atabalhoadas tentativas dos pais em esconder o fenómeno, com receio de uma possível excomunhão ou ingresso no grupo das “solteironas”, como quase acontecera a Rosa.
Clara é mais um ser etéreo, outro elfo ou fada, mas sem a estonteante beleza de Rosa. É um ser que seduz com um encanto mais discreto ao brilhar com “uma luz mais branda, que não fere a vista”. É, também, intuitiva e comunicativa, mas vive num mundo muito próprio, situado numa dimensão que transcende o sensível. Detesta ocupar-se das coisas terrenas como as tarefas domésticas. Herda o idealismo da mãe ao defender não só os direitos das mulheres, mas também dos trabalhadores da fazenda Las Trés Marias, onde viverá após casar com o ex-noivo de Rosa, Esteban Trueba.
Blanca a filha de Clara e Esteban, herda a beleza moura do pai a qual se funde com a delicadeza das feições da família del Valle, algo que faz dela a imagem típica da heroína romântica. É precisamente o Amor, ou o direito à livre escolha do amado/amante a bandeira que usa para enfrentar a autoridade patriarcal. Pedro Tercero, filho de um dos trabalhadores da quinta e cantor revolucionário, à semelhança de Victor Jara, não é um partido desejável para um senhor feudal da América do Sul como Trueba. Tal como todas as mulheres da família de Valle, Blanca dedica-se, de alguma forma, às artes – neste caso, a escultura, a olaria – partilhando também com estas a preocupação com os excluídos.
A arte seduz também a mulher mais jovem da família – Alba, a narradora que publica a história da família, em parceria com o avô, filha de Blanca e Pedro Tercero.
Alba é a única das mulheres de nomes luminosos descendentes de Nívea del Valle, que herda o cabelo verde de Rosa. No entanto, as restantes características físicas irá buscá-las a outros membros da família.
No que toca á personalidade, Alba revela-se como que a síntese de todas as mulheres que a antecedem em linha directa: de Blanca vai buscar a luta pelo amor, de Clara herda a preocupação com os desfavorecidos e o gosto pela escrita e, de Nívea, o sentido prático na defesa dos direitos humanos.
A missão principal de Alba é a de escrever a história da família, auxiliada pelas memórias da avó, as quais permanecem intactas nos seus diários, inserida no cenário das convulsões sociais que atravessaram o País durante mais de um século.
Trata-se, no entanto, de uma história narrada a duas vozes. A de Alba e a do avô Trueba, em cuja voz se evidencia a absoluta adoração pela neta, a qual supera, inclusive, o amor demonstrado por Clara e Rosa: é Alba quem desencadeia algumas mudanças subtis na personalidade do velho, patentes na forma como este passa a exprimir as emoções, limando algumas arestas do mau génio e intolerância que lhe valeram o afastamento de alguns entes queridos.
A par do temperamento sanguíneo e vulcânico, Esteban Trueba exibe, também, uma exuberante sexualidade, a qual atinge uma dimensão quase que priápica e tão telúrica quanto a ferocidade demonstrada.
Por outro lado, a sede ilimitada de poder e de riqueza, levam-no a exercer a defesa acérrima dos privilégios de classe e a adoptar uma atitude paternalista para com os trabalhadores da quinta.
É, no entanto o mais que sobejamente conhecido mau feitio de Esteban a mola que impulsiona o desenvolvimento da trama e impele a acção das personagens ao mesmo tempo que desencadeia o conflito.
A ânsia de controlo, de domínio, relativamente àqueles que o rodeiam leva a que este temperamento despótico afecte a relação com todos os parentes, amigos e colaboradores desde Férula, a irmã – à qual não suporta por tentar “amarrá-lo” através das grilhetas da gratidão – até Clara, que o repudia pelo comportamento violento, marcando o início da decadência da família, após a partida desta de Las Trés Marías para a cidade.
Blanca decide, por seu turno, afastar-se do pai, após a crueldade demonstrada em relação a Pedro Tercero, o mesmo acontecendo com os filhos, já adultos: Jaime, por um conflito ideológico e Nicolau por conta do temperamento excêntrico, herança da mãe.
Mas quando quase perde Alba por conta das próprias maquinações políticas e por um ajuste de contas com o passado, Esteban percebe que acabará por ficar completamente só, a não ser que se torne mais flexível.
O Estilo de Allende
O desenvolvimento da acção de A Casa dos Espíritos está marcado por dois momentos distintos.
Na primeira parte, desde a chegada do monstruoso e ternurento cachorro Barrabás, contada por Alba a partir do diário de Clara, até à partida desta com os filhos da fazenda para a casa da capital – “a casa dos espíritos”, onde Clara dará largas às suas experiências esotéricas. A narrativa flui, aqui, num ritmo ligeiro e trepidante à semelhança de uma opereta, enfatizado pelo humor cáustico da Autora, o qual imprime às peripécias vividas pela família, um tom que se aproxima da ópera buffa. Como por exemplo, o episódio de Barrabás, onde a velhacaria da ama que envenena os animais domésticos, acaba por se virar contra ela saindo-lhe o tiro pela culatra; a intervenção de Clara na Igreja, dirigida ao padre, os conselhos desta como pitonisa e até as proezas sexuais e as fúrias de Esteban são descritas num tom perfeitamente amoral e quase que satírico fazendo lembrar uma farsa de Gil Vicente ou uma peça de Moliére, como se as personagens fossem impulsionadas por uma força exterior à própria vontade que se sobrepõe a princípios éticos ou morais.
Na segunda parte, a tonalidade do discurso adquire nuances mais sombrias. Neste momento da narrativa sente-se já a penumbra que vai invadindo a casa da rua da esquina na cidade e as vidas dos seus habitantes. Uma casa onde excluídos, desfavorecidos e refugiados políticos buscam abrigo, e que se vai tornando cada vez mais labiríntica, caótica, recheada de segredos e recantos ocultos.
Também a vida dos Trueba se torna progressivamente mais caótica à medida que estes se dispersam e se envolvem, cada vez mais, nos próprios projectos individuais.
A morte de Clara acentua ainda mais a já evidente desunião familiar, ao assinalar o período de decadência económica e desorganização doméstica, que Trueba tenta remediar. A família é que já nunca mais conseguirá recuperar do abalo.
A terceira parte é contada sob a forma de testemunho, talvez porque mais próxima da realidade vivida pela Autora: adquire, por isso, contornos de documento histórico e crónica política, o que faz com que a trama perca grande parte do seu valor romanesco e alguma da qualidade literária, presente nos momentos anteriores, onde encontramos marcas inequívocas do realismo mágico, com influência notória de autores como Gabriel García Márquez e Jorge Amado.
Estão, também, presentes referências a várias figuras e factos recentes da história do Chile, com particular incidência no assassinato do Presidente Salvador Allende, onde aparece mencionado simplesmente como “O Candidato” ou “O Presidente”. Da mesma forma, é descrito o funeral de Pablo Neruda, com honras de estado a quem chama a autora chama simplesmente de “O Poeta”.
Um livro que marca o início da carreira de Isabel Allende como escritora e que é sem dúvida uma das suas melhores obras literárias.
Cláudia de Sousa Dias