“Ódio Sustenido” de Nelson Oliveira (Língua Geral)
O Homem surge-nos, nesta mini colectânea de contos da Autoria de um dos mais proeminentes autores de vanguarda da literatura brasileira, na sua dimensão mais obscura, a dividir-se em múltiplas formas de manifestação. O resultado é um livro de pequenas estórias que são fotografias ou quadros sociais a ilustrar o universo emocional daqueles que vivem no inferno da exclusão, do desamor ou da desesperança.
Saliente-se a beleza da capa, verde e negra – as cores do ódio e da morte – a representar um pássaro de asas verdes com o peito dilacerado, que exibe poderosas garras, ao mesmo tempo que emerge das trevas.
O livro é, todo ele, uma crítica social, a vomitar ódio sustenido, fortíssimo, permanente, fruto do inconformismo face às desigualdades sociais e de oportunidades que grassam por todo o globo.
Estórias como Sai da chuva José mostram a forma como um homem simples como o hombre sencillode Neruda ganha as eleições – uma vitória fruto do carisma e da proximidade com as massas que facilmente se identificam com ele, se torna um fantoche de lobbies e políticos rapaces que comandam toda a engrenagem. José continua a ser apenas um pescador que se preocupa somente com as coisas do dia a dia, sem usufruir de qualquer tipo de poder de decisão. José a tainha que pode facilmente ser devorada, a qualquer momento, pelo cardume das piranhas.
A estrutura dos diálogos e o tom coloquial faz com que este mini-conto possa facilmente ser adaptado ao teatro.
Quando eu morrer não me enterrem nem me incinerem é um conto cujo objectivo é o de expor a obscenidade do repugnante fedor a decomposição, utilizado como uma metafórica bofetada à sociedade materialista que relega o idoso ou, simplesmente, a pessoa dependente, para a categoria de estorvo ou fardo. Há, neste episódio, um certo paralelismo com alguns poemas de Charles Baudelaire de AS Flores do Mal como O Esqueletoou O Cadáver ou mesmo com alguns dos contos da colectânea Olhos de Cão Azul de Gabriel García Márquez, apesar de na prosa do Nobel de origem colombiana encontremos apenas as emoções relacionadas com a melancolia e a dor da perda e não o veneno amargo de um ÓDIO tão presente na escrita destes contos de Nelson Oliveira.
“Bola na Trave” é um conto pungente, onde o Autor dá voz a um fantasma, o qual associa, estranhamente, o futebol à ideia de morte, talvez porque libertador de emoções negativas , e despoletador de uma agressividade e um ódio sustenido ao adversário, a originar um desejo de vencer de tal forma obsessivo que acaba por destruir a alma ou fazer o coração rebentar como uma bomba…
Morango é a comovente narrativa, sob a forma de um monólogo, povoado de frases recorrentes, de um homem apaixonado.
O ardente narrador deste texto é um sacerdote, fiel aos votos, mas que não consegue evitar amar as mulheres, objectos intocáveis, porque proibidos e, por isso mesmo, tentadores que lhe surgem diante dos olhos no acto de confissão “...com esses olhos, esse nariz….”. Uma contundente crítica à Igreja e ao voto de celibato, ao mostrá-lo como a contradição maior, a negação do amor como mais alto valor do cristianismo. Onde o homem se vê impedido de amar as mulheres por imperativos institucionais, sendo este obrigado a votar-lhes uma espécie de ódio sustenido, permanente e quase que em surdina.
Da mesma forma, Páscoa vermelha visa, também, criticar a mercantilização das festas religiosas. Trata-se de uma bela alegoria onde as personagens são os principais feriados ou dias santos celebrados no calendário cristão. O ataque é dirigido sobretudo ao consumismo desenfreado que transforma as convicções religiosas num apelo às compras, favorecendo o oportunismo e a ganância particularmente evidentes no Natal, época onde valores como a solidariedade deveriam falar mais alto. Termina sob a forma de sátira onde o Natal se traveste de Páscoa Vermelha – comunista –, a negação do capitalismo e aproximação com os valores mais básicos do fundador da principal religião no Ocidente.
Na fila do Correio é um conto que se poderá considerar como digno de um Nobel. As personagens que estão na fila do correio estão proibidas de falar sobre política . No entanto, as pessoas que integram a fila são possuidoras de uma cultura muito acima da média e, mediante uma espera interminável para serem atendidas, começam a conversar entre si, a dissertar sobre a história da ciência, do pensamento e da filosofia. Cada qual afirma a sua verdade, atirando, cada um, a sua acha para a fogueira da discussão, que acaba por entrar, inevitavelmente no campo da política. E, consequentemente, por despoletar a violência que atinge o seu paroxismo numa rixa monumental. Sobretudo quando as convicções chocam frontalmente com os interesses das pessoas comuns, que se preocupam apenas com as questões do quotidiano. É, então, que estala a violência num fortíssimo ódio em sustenido.
Em Babel, Babilónia o autor mostra-nos as três subespécies humanas que são obrigadas a coexistirem no labirinto da Grande Metrópole. São elas: os dramaturgos ou os intelectuais que vêem o entardecer luminoso todos os dias, uma vez que habitam os arranha-céus, elevando-se acima do resto da humanidade; os nutricionistas das ruas, que vêm um entardecer fuliginoso pois encontram-se ao nível do subsolo, apanhando os gases dos canos de escape dos carros e vivem à sombra dos arranha-céus. Por último, na base, estão os cartógrafos dos túneis, que vivem no subsolo e vêem o pôr-do-sol na obscuridade.
Nesta Babel Babilónia, todos os dias são 11 de Setembro. O dia a dia é marcado pela tragédia e por um violento ódio sustenido numa única nota que se faz ouvir permanentemente.
Quem manda, na realidade são os cartógrafos, que não olham a meios para atingirem os seus fins e que expulsam a alcateia de dramaturgos lá para o alto onde vivem isolados, alheados no seu mundo perfeito, ideal.
Na Babel Babilónia de Nelson Oliveira há várias cidades dentro da mesma cidade ou vários homens dentro do mesmo homem, numa estória com várias intertextualidades como num conto de Jorge Luis Borges.
Também no conto Meu tio, mameluco-malaco é possível sentir o ódio sustenido nas ruas de uma sociedade doente. Trata-se de um conto escrito numa linguagem que faz lembrar algumas personagens dos romances de Jorge Amado, embora sem o calor solar do bonacheirão romancista baiano. O vocabulário presente no conto faz lembrar o ambiente de S. Jorge dos IIhéus, no entanto, encontramos, nas entrelinhas, o ódio visceral patente entre as gentes do povo, das ruas, daqueles que nada têm, face ao resto da humanidade, que ali é apenas uma minoria muito pequena.
A Fortuna de um intelectual, acumulada ao longo de muitas décadas, reside numa vasta biblioteca, que pode, no entanto, considera-se minúscula, diante da gigantesca Biblioteca Municipal. Trata-se, no entanto, de um tipo d riqueza que os outros não valorizam que não tornam ninguém imortal e que é, também, apesar de tudo, perecível, uma vez que também os livros se deterioram. Na perspectiva do narrador, a morte e a degradação são os únicos factores niveladores na humanidade e em tudo o que existe no universo o que leva a que este, que vê a vida escapar-se-lhe por entre os dedos, a e desfazer-se como papel velho, a dedicar à Morte um ódio em sustenido como manifestação do inconformismo face à finitude da vida humana.
Já Treze razões para não ir para a avenida é como que um diálogo de surdos onde expõem os motivos para esquecer os problemas e ir dançar para o sambódromo, celebrar a vida, durante o Carnaval.
Na perspectiva do narrador, os brasileiros não deveriam ter motivos para festejar tão ruidosamente a alegria de viver, uma vez que a maior parte das pessoas que desfilam na Avenida, vivem muito abaixo do limiar da pobreza. Para a pessoa consciente das desigualdades sociais , o Carnaval deveria ser antes uma forma de protesto, de manifestação de um ódio sustenido ao capitalismo desenfreado, dançando até à exaustão.
Marché aux Puces é uma sátira/alegoria que exprime a oposição de dois arqui-inimigos de forma a enfatizar a clivagem entre o pensamento crítico e criativo e o pensamento cartesiano.
O Fantasma da Máquina aparenta ser uma espécie de vírus num computador que desformata um texto ao trocar as letras das palavras. Só depois de alguns parágrafos é que se torna possível perceber tratar-se de um recurso de estilo ao darmo-nos conta do paralelismo existente entre a desagregação das letras e a destruição da mente humana, após um avc. A própria humanidade parece, na óptica de Nelson Oliveira, ela própria, ter sofrido um avc – ou vários – como organismo vivo que é.
A ideia de sedução da Morte e do esquecimento manifesta-se numa súbita e irresistível atracção pelo abismo, que se apresenta sob a forma de uma mulher, sedutora, encarregue de levar o ser humano para o mundo onde os sentimentos como o ódio são apenas palavras.
Por último, o texto Ódio Sustenido, o mais contundente dos contos deste livro, onde cada frase transpira fel, visa retratar a mente sádica e o extremo egoísmo de um psicopata, fruto de uma sociedade podre, onde está patente a total anestesia emocional, relativamente aos sentimentos do outro.
Ódio sustenido é, por tudo isto, uma fascinante colectânea de contos que nos levam a reflectir sobre as principais tendências de comportamento individual e colectivo da sociedade actual.
Um livro profundo, visceral, contundente.
O retrato da Besta, que insiste em colar-se ao género humano.
Cláudia de Sousa Dias
Saliente-se a beleza da capa, verde e negra – as cores do ódio e da morte – a representar um pássaro de asas verdes com o peito dilacerado, que exibe poderosas garras, ao mesmo tempo que emerge das trevas.
O livro é, todo ele, uma crítica social, a vomitar ódio sustenido, fortíssimo, permanente, fruto do inconformismo face às desigualdades sociais e de oportunidades que grassam por todo o globo.
Estórias como Sai da chuva José mostram a forma como um homem simples como o hombre sencillode Neruda ganha as eleições – uma vitória fruto do carisma e da proximidade com as massas que facilmente se identificam com ele, se torna um fantoche de lobbies e políticos rapaces que comandam toda a engrenagem. José continua a ser apenas um pescador que se preocupa somente com as coisas do dia a dia, sem usufruir de qualquer tipo de poder de decisão. José a tainha que pode facilmente ser devorada, a qualquer momento, pelo cardume das piranhas.
A estrutura dos diálogos e o tom coloquial faz com que este mini-conto possa facilmente ser adaptado ao teatro.
Quando eu morrer não me enterrem nem me incinerem é um conto cujo objectivo é o de expor a obscenidade do repugnante fedor a decomposição, utilizado como uma metafórica bofetada à sociedade materialista que relega o idoso ou, simplesmente, a pessoa dependente, para a categoria de estorvo ou fardo. Há, neste episódio, um certo paralelismo com alguns poemas de Charles Baudelaire de AS Flores do Mal como O Esqueletoou O Cadáver ou mesmo com alguns dos contos da colectânea Olhos de Cão Azul de Gabriel García Márquez, apesar de na prosa do Nobel de origem colombiana encontremos apenas as emoções relacionadas com a melancolia e a dor da perda e não o veneno amargo de um ÓDIO tão presente na escrita destes contos de Nelson Oliveira.
“Bola na Trave” é um conto pungente, onde o Autor dá voz a um fantasma, o qual associa, estranhamente, o futebol à ideia de morte, talvez porque libertador de emoções negativas , e despoletador de uma agressividade e um ódio sustenido ao adversário, a originar um desejo de vencer de tal forma obsessivo que acaba por destruir a alma ou fazer o coração rebentar como uma bomba…
Morango é a comovente narrativa, sob a forma de um monólogo, povoado de frases recorrentes, de um homem apaixonado.
O ardente narrador deste texto é um sacerdote, fiel aos votos, mas que não consegue evitar amar as mulheres, objectos intocáveis, porque proibidos e, por isso mesmo, tentadores que lhe surgem diante dos olhos no acto de confissão “...com esses olhos, esse nariz….”. Uma contundente crítica à Igreja e ao voto de celibato, ao mostrá-lo como a contradição maior, a negação do amor como mais alto valor do cristianismo. Onde o homem se vê impedido de amar as mulheres por imperativos institucionais, sendo este obrigado a votar-lhes uma espécie de ódio sustenido, permanente e quase que em surdina.
Da mesma forma, Páscoa vermelha visa, também, criticar a mercantilização das festas religiosas. Trata-se de uma bela alegoria onde as personagens são os principais feriados ou dias santos celebrados no calendário cristão. O ataque é dirigido sobretudo ao consumismo desenfreado que transforma as convicções religiosas num apelo às compras, favorecendo o oportunismo e a ganância particularmente evidentes no Natal, época onde valores como a solidariedade deveriam falar mais alto. Termina sob a forma de sátira onde o Natal se traveste de Páscoa Vermelha – comunista –, a negação do capitalismo e aproximação com os valores mais básicos do fundador da principal religião no Ocidente.
Na fila do Correio é um conto que se poderá considerar como digno de um Nobel. As personagens que estão na fila do correio estão proibidas de falar sobre política . No entanto, as pessoas que integram a fila são possuidoras de uma cultura muito acima da média e, mediante uma espera interminável para serem atendidas, começam a conversar entre si, a dissertar sobre a história da ciência, do pensamento e da filosofia. Cada qual afirma a sua verdade, atirando, cada um, a sua acha para a fogueira da discussão, que acaba por entrar, inevitavelmente no campo da política. E, consequentemente, por despoletar a violência que atinge o seu paroxismo numa rixa monumental. Sobretudo quando as convicções chocam frontalmente com os interesses das pessoas comuns, que se preocupam apenas com as questões do quotidiano. É, então, que estala a violência num fortíssimo ódio em sustenido.
Em Babel, Babilónia o autor mostra-nos as três subespécies humanas que são obrigadas a coexistirem no labirinto da Grande Metrópole. São elas: os dramaturgos ou os intelectuais que vêem o entardecer luminoso todos os dias, uma vez que habitam os arranha-céus, elevando-se acima do resto da humanidade; os nutricionistas das ruas, que vêm um entardecer fuliginoso pois encontram-se ao nível do subsolo, apanhando os gases dos canos de escape dos carros e vivem à sombra dos arranha-céus. Por último, na base, estão os cartógrafos dos túneis, que vivem no subsolo e vêem o pôr-do-sol na obscuridade.
Nesta Babel Babilónia, todos os dias são 11 de Setembro. O dia a dia é marcado pela tragédia e por um violento ódio sustenido numa única nota que se faz ouvir permanentemente.
Quem manda, na realidade são os cartógrafos, que não olham a meios para atingirem os seus fins e que expulsam a alcateia de dramaturgos lá para o alto onde vivem isolados, alheados no seu mundo perfeito, ideal.
Na Babel Babilónia de Nelson Oliveira há várias cidades dentro da mesma cidade ou vários homens dentro do mesmo homem, numa estória com várias intertextualidades como num conto de Jorge Luis Borges.
Também no conto Meu tio, mameluco-malaco é possível sentir o ódio sustenido nas ruas de uma sociedade doente. Trata-se de um conto escrito numa linguagem que faz lembrar algumas personagens dos romances de Jorge Amado, embora sem o calor solar do bonacheirão romancista baiano. O vocabulário presente no conto faz lembrar o ambiente de S. Jorge dos IIhéus, no entanto, encontramos, nas entrelinhas, o ódio visceral patente entre as gentes do povo, das ruas, daqueles que nada têm, face ao resto da humanidade, que ali é apenas uma minoria muito pequena.
A Fortuna de um intelectual, acumulada ao longo de muitas décadas, reside numa vasta biblioteca, que pode, no entanto, considera-se minúscula, diante da gigantesca Biblioteca Municipal. Trata-se, no entanto, de um tipo d riqueza que os outros não valorizam que não tornam ninguém imortal e que é, também, apesar de tudo, perecível, uma vez que também os livros se deterioram. Na perspectiva do narrador, a morte e a degradação são os únicos factores niveladores na humanidade e em tudo o que existe no universo o que leva a que este, que vê a vida escapar-se-lhe por entre os dedos, a e desfazer-se como papel velho, a dedicar à Morte um ódio em sustenido como manifestação do inconformismo face à finitude da vida humana.
Já Treze razões para não ir para a avenida é como que um diálogo de surdos onde expõem os motivos para esquecer os problemas e ir dançar para o sambódromo, celebrar a vida, durante o Carnaval.
Na perspectiva do narrador, os brasileiros não deveriam ter motivos para festejar tão ruidosamente a alegria de viver, uma vez que a maior parte das pessoas que desfilam na Avenida, vivem muito abaixo do limiar da pobreza. Para a pessoa consciente das desigualdades sociais , o Carnaval deveria ser antes uma forma de protesto, de manifestação de um ódio sustenido ao capitalismo desenfreado, dançando até à exaustão.
Marché aux Puces é uma sátira/alegoria que exprime a oposição de dois arqui-inimigos de forma a enfatizar a clivagem entre o pensamento crítico e criativo e o pensamento cartesiano.
O Fantasma da Máquina aparenta ser uma espécie de vírus num computador que desformata um texto ao trocar as letras das palavras. Só depois de alguns parágrafos é que se torna possível perceber tratar-se de um recurso de estilo ao darmo-nos conta do paralelismo existente entre a desagregação das letras e a destruição da mente humana, após um avc. A própria humanidade parece, na óptica de Nelson Oliveira, ela própria, ter sofrido um avc – ou vários – como organismo vivo que é.
A ideia de sedução da Morte e do esquecimento manifesta-se numa súbita e irresistível atracção pelo abismo, que se apresenta sob a forma de uma mulher, sedutora, encarregue de levar o ser humano para o mundo onde os sentimentos como o ódio são apenas palavras.
Por último, o texto Ódio Sustenido, o mais contundente dos contos deste livro, onde cada frase transpira fel, visa retratar a mente sádica e o extremo egoísmo de um psicopata, fruto de uma sociedade podre, onde está patente a total anestesia emocional, relativamente aos sentimentos do outro.
Ódio sustenido é, por tudo isto, uma fascinante colectânea de contos que nos levam a reflectir sobre as principais tendências de comportamento individual e colectivo da sociedade actual.
Um livro profundo, visceral, contundente.
O retrato da Besta, que insiste em colar-se ao género humano.
Cláudia de Sousa Dias