“O Conquistador” de Almeida Faria (Caminho)
Esta é uma divertida novela de Almeida Faria, marcada pelo toque de realismo mágico/surrealismo a lembrar um pouco o estilo brejeiro e o humor, cheio de especiarias, de Jorge Amado.
O misticismo que envolve o lendário desaparecimento de D. Sebastião surge, nesta obra, para servir de enquadramento ao ambiente insólito que rodeia o nascimento do protagonista, homónimo do rei desaparecido em Alcácer-Quibir. Sebastião adquire o nome do malogrado monarca por ter nascido no dia consagrado ao Santo com o mesmo nome. O fenómeno é contado pela avó Catarina, que se serve do inverosímil, para camuflar a origem incerta da paternidade do neto, onde está presente uma intertextualidade com o episódio da mitologia hindu que explica a criação – o nascimento de Brama –, ou até mesmo com a mitologia egípcia relacionada com o nascimento de Rá.
Por outro lado, as bizarras personagens que assistem à chegada do jovem Sebastião ao mundo, parecem saídas de um quadro de Hieronymous Bosch ou Dalí vão desaparecendo à medida que este cresce.
O nascimento de Sebastião é assinalado por um espectacular terramoto, que parece anunciar tratar-se este de alguém que irá gerar controvérsia e provocar cataclismos pessoais, sociais e nacionais.
O recurso à hipérbole e à utilização do absurdo estão associados à infância do pequeno Sebastião – vindo das brumas como a reencarnação do antigo soberano, para realizar aquilo que ele não realizou na outra vida: as conquistas amorosas. Este decide então, já adulto, contar as suas memórias, por altura do seu 24º aniversário, propondo-se relatar as suas façanhas sexuais, missão que acredita firmemente ter sido incumbido de realizar com o regresso à vida terrena.
A primeira fase da vida do jovem passa-se na casa do farol, situada no cabo da Rocha. É uma infância marcada por privações, vivida com a avó, mas onde não falta o afecto, garantido pela anciã. Esta imprime-lhe a marca cultural de onde se salienta a importância cultural dos saberes tradicionais, superstições e rituais de esconjura do mal, criando uma intertextualidade com o conteúdio das lendas e à tradição ocultista de de S. Cipriano, bem como todo um manancial de provérbios que reúnem o saber popular.
A passagem à adolescência, dá lugar a um período de transição onde se nota a tendência para uma priápica sexualidade, a par do fascínio pela música anglo saxónica nos anos, na época do apogeu do rock n’roll, dos bailes de garagem e daquele estilo que dança que o Autor compara a um ataque de epilepsia mas que coexiste com as danças consideradas clássicas para a época, como a valsa, o tango e o paso doble. O início da socialização do protagonista com o grupo de pares onde adquire e aperfeiçoa a capacidade de agangariar admiradoras
A sexualidade precoce do jovem manifesta-se, contudo, logo na pré-adolescência, entre os 8 e os 10 anos, um proto-erotismo /fetichismo cujo principal objecto é a professora primária, Justina, mulher que transpira sexo por todas as costuras e com a qual um dia Sebastião vai – ou sonha que vai – à caça dos pássaros numa praia deserta lá para os lados do Cabo da Roca.
A trama é composta por pequenos episódios ou sketches, marcados por uma divertida heresia e humor negro cujo objectivo é o de afrontar a “beatice” do Estado Novo, principalmente nas cenas em que o protagonista se dispõe a relatar os jogos de competição e proezas sexuais entre os colegas.
O primeiro grande amor do já adolescente Sebastião é uma jovem culta e inteligente, vinda do EUA que passa as férias em Portugal na residência de Verão de Gloria Swanson.
Sebastião possui uma cultura de raiz clássica, adquirida no liceu, expressa na sua prosa pela referência a Láquesis, uma das filhas da Justiça, irmã de Némesis. O convívio com a namorada dá-lhe a oportunidade de aperfeiçoar o inglês e aperceber-se das deficiências do ensino dessa língua no ensino secundário português de então. Os namorados passam a utilizar o quarto de Gloria Swanson para dar largas às suas fantasias eróticas.
Clara é um amor de Estio que precisa de superar o trauma que envolve o complexo de rejeição por parte da mãe. Os caseiros, em casa da velha diva americana, olham a adolescente com evidente desconfiança - a estrangeira perversa que seduz “um menino inocente” sem nunca imaginar que a realidade é precisamente o contrário…Ao fazer o liceu, Sebastião tem de se mudar para a cidade onde vai morar, também com a avó Catarina. Nesta fase, salienta-se o retrato grotesco de um professor pedante, cuja linguagem barroca o faz frequentemente cair no ridículo, assim como o papel de “corno manso” da responsabilidade da mulher – fêmea insaciável e omnívora.
A propósito da decoração de gosto duvidoso da casa do professor, num prédio setecentista o autor torna-se particularmente satírico:
“Toda a divisão (…) tinha um ar de casa de putas em dia de Entrudo, numa amálgama onde nem faltava um jacaré-bébé, embalsamado no topo de uma coluna entre plantas de plástico e penas de avestruz”.
A mulher do professor Gabriel, Julieta, é irmã de Justina, a professora primária cuja concupiscência parece ser transmitida por via genética.
No capítulo VI temos, mais uma vez, a referência à cultura clássica desta vez com a alusão a Artemísia, onde se nota o sincretismo religioso entre o paganismo da Antiguidade Clássica e o panteão dos santos cristãos.
Deve-se, no entanto, salientar que também o narrador cai, por vezes, no “pecado” do personagem Gabriel Gago de Carvalho pelo uso de palavras eruditas para descrever coisas triviais como “leporélico” para designar “gordo” ou “pos-prandial”, para designar, “depois do almoço”.
O fascínio exercido pelo poder de sedução de uma mulher da classe alta - uma verdadeira Helena de Tróia , bela e despudorada, mas cujo casamento é apenas um contrato formalizado e consequentemente não consegue evitar comportar-se como uma mulher disponível.
Helena convence Sebastião a acompanhá-la a Paris onde este, para além de prosseguir os estudos e ingressar na universidade, passa a dedicar-se ao seu passatempo favorito: desenvolver a sua actividade de artesão do sexo ou, a muito ovidiana “arte de amar”.
O horóscopo feito por Helena regista, apesar de muita efabulação, os principais traços de personalidade de Sebastião. Helena sendo proveniente do Brasil, país do sincretismo cultural por excelência, pertence, ainda, a uma estranha associação, constituída na Cidade –Luz:
a Societé pour usage convenable des hommes na qual deseja integrar Sebastião para que este possa dar vazão ao desejo sexual de um vasto conjunto de mulheres ricas e sexualmente carentes. O excesso de actividade sexual e principalmente, o “rame rame” de confidências sempre iguais obrigam-no a regressar do exílio, uma vez que a procura desenfreada do prazer, em Paris, parece ser, nada mais nada menos, do que a tentativa desesperada para esquecer Clara, cuja recordação permanece gravada na memória. Clara é a mulher com quem consegue conversar, que não fala de assuntos triviais, da “vidinha” medíocre como se depreende do texto que se segue:
“ Não foram os esforços eróticos que iam dando cabo de mim em Paris, foi a odisseia de escutar horas a fio mulheres, contando-me as suas vidas (…), Se não aguentava mais a logorreia das convencidas de si e das Julietas soporíferas levava-as a um concerto que as obrigasse a estarem caladas (…). Mesmo assim, achava preferível a companhia delas a ter de aturar as bazófias, balelas e verdades eternas dos representantes do meu sexo”.
Uma das poucas amizades deste amante rebelde foi um amigo da boémia, estudante de medicina, cuja paixão era o desenho: a descrição dos seus esboços inclui-o, definitivamente, dentro do movimento surrealista com o qual se identifica o Autor:
“Por ali deambulava uma fauna heróica e feroz (…) que sai dos meus sonhos. Fiquei siderado diante daquele bestiário de seres mais ou menos humanos, daquela irisão e zombaria de todas as formas de vida, terrestre ou celeste, animal ou anímica”.
Sebastião acaba por decidir refugiar-se no promontório da infância perdida, onde os ventos uivam como no romance de Emily Brontë, e que podem explicar o aparecimento de tantas lendas ligadas ao sobrenatural, ao poder das forças da natureza: fantasmas, demónios, monstros marinhos…
“ Não admira que em tão áspero sítio as pessoas procurem, aumentar o invisível, preenchendo-o de estórias para afugentar assombrações e noites temíveis…”
Um obra onde abunda o humor sobretudo quando se fala dos estereótipos femininos da época e, em particular, em tudo o que diz respeito à sexualidade, mas na qual o protagonista se consegue situar, apesar de tudo, acima da visão estreita que comporta o quadro de referências da época, pela impressão positiva que Clara lhe deixa na memória afectiva. É, também, pela pena do Autor que obtemos uma das mais fiéis descrições da luminosidade que envolve a cidade de Lisboa, a partir do alto das colinas, com vista para o Tejo, cuja doçura se espelha nas entrelinhas de uma prosa bela e provocadora…
Cláudia de Sousa Dias
O misticismo que envolve o lendário desaparecimento de D. Sebastião surge, nesta obra, para servir de enquadramento ao ambiente insólito que rodeia o nascimento do protagonista, homónimo do rei desaparecido em Alcácer-Quibir. Sebastião adquire o nome do malogrado monarca por ter nascido no dia consagrado ao Santo com o mesmo nome. O fenómeno é contado pela avó Catarina, que se serve do inverosímil, para camuflar a origem incerta da paternidade do neto, onde está presente uma intertextualidade com o episódio da mitologia hindu que explica a criação – o nascimento de Brama –, ou até mesmo com a mitologia egípcia relacionada com o nascimento de Rá.
Por outro lado, as bizarras personagens que assistem à chegada do jovem Sebastião ao mundo, parecem saídas de um quadro de Hieronymous Bosch ou Dalí vão desaparecendo à medida que este cresce.
O nascimento de Sebastião é assinalado por um espectacular terramoto, que parece anunciar tratar-se este de alguém que irá gerar controvérsia e provocar cataclismos pessoais, sociais e nacionais.
O recurso à hipérbole e à utilização do absurdo estão associados à infância do pequeno Sebastião – vindo das brumas como a reencarnação do antigo soberano, para realizar aquilo que ele não realizou na outra vida: as conquistas amorosas. Este decide então, já adulto, contar as suas memórias, por altura do seu 24º aniversário, propondo-se relatar as suas façanhas sexuais, missão que acredita firmemente ter sido incumbido de realizar com o regresso à vida terrena.
A primeira fase da vida do jovem passa-se na casa do farol, situada no cabo da Rocha. É uma infância marcada por privações, vivida com a avó, mas onde não falta o afecto, garantido pela anciã. Esta imprime-lhe a marca cultural de onde se salienta a importância cultural dos saberes tradicionais, superstições e rituais de esconjura do mal, criando uma intertextualidade com o conteúdio das lendas e à tradição ocultista de de S. Cipriano, bem como todo um manancial de provérbios que reúnem o saber popular.
A passagem à adolescência, dá lugar a um período de transição onde se nota a tendência para uma priápica sexualidade, a par do fascínio pela música anglo saxónica nos anos, na época do apogeu do rock n’roll, dos bailes de garagem e daquele estilo que dança que o Autor compara a um ataque de epilepsia mas que coexiste com as danças consideradas clássicas para a época, como a valsa, o tango e o paso doble. O início da socialização do protagonista com o grupo de pares onde adquire e aperfeiçoa a capacidade de agangariar admiradoras
A sexualidade precoce do jovem manifesta-se, contudo, logo na pré-adolescência, entre os 8 e os 10 anos, um proto-erotismo /fetichismo cujo principal objecto é a professora primária, Justina, mulher que transpira sexo por todas as costuras e com a qual um dia Sebastião vai – ou sonha que vai – à caça dos pássaros numa praia deserta lá para os lados do Cabo da Roca.
A trama é composta por pequenos episódios ou sketches, marcados por uma divertida heresia e humor negro cujo objectivo é o de afrontar a “beatice” do Estado Novo, principalmente nas cenas em que o protagonista se dispõe a relatar os jogos de competição e proezas sexuais entre os colegas.
O primeiro grande amor do já adolescente Sebastião é uma jovem culta e inteligente, vinda do EUA que passa as férias em Portugal na residência de Verão de Gloria Swanson.
Sebastião possui uma cultura de raiz clássica, adquirida no liceu, expressa na sua prosa pela referência a Láquesis, uma das filhas da Justiça, irmã de Némesis. O convívio com a namorada dá-lhe a oportunidade de aperfeiçoar o inglês e aperceber-se das deficiências do ensino dessa língua no ensino secundário português de então. Os namorados passam a utilizar o quarto de Gloria Swanson para dar largas às suas fantasias eróticas.
Clara é um amor de Estio que precisa de superar o trauma que envolve o complexo de rejeição por parte da mãe. Os caseiros, em casa da velha diva americana, olham a adolescente com evidente desconfiança - a estrangeira perversa que seduz “um menino inocente” sem nunca imaginar que a realidade é precisamente o contrário…Ao fazer o liceu, Sebastião tem de se mudar para a cidade onde vai morar, também com a avó Catarina. Nesta fase, salienta-se o retrato grotesco de um professor pedante, cuja linguagem barroca o faz frequentemente cair no ridículo, assim como o papel de “corno manso” da responsabilidade da mulher – fêmea insaciável e omnívora.
A propósito da decoração de gosto duvidoso da casa do professor, num prédio setecentista o autor torna-se particularmente satírico:
“Toda a divisão (…) tinha um ar de casa de putas em dia de Entrudo, numa amálgama onde nem faltava um jacaré-bébé, embalsamado no topo de uma coluna entre plantas de plástico e penas de avestruz”.
A mulher do professor Gabriel, Julieta, é irmã de Justina, a professora primária cuja concupiscência parece ser transmitida por via genética.
No capítulo VI temos, mais uma vez, a referência à cultura clássica desta vez com a alusão a Artemísia, onde se nota o sincretismo religioso entre o paganismo da Antiguidade Clássica e o panteão dos santos cristãos.
Deve-se, no entanto, salientar que também o narrador cai, por vezes, no “pecado” do personagem Gabriel Gago de Carvalho pelo uso de palavras eruditas para descrever coisas triviais como “leporélico” para designar “gordo” ou “pos-prandial”, para designar, “depois do almoço”.
O fascínio exercido pelo poder de sedução de uma mulher da classe alta - uma verdadeira Helena de Tróia , bela e despudorada, mas cujo casamento é apenas um contrato formalizado e consequentemente não consegue evitar comportar-se como uma mulher disponível.
Helena convence Sebastião a acompanhá-la a Paris onde este, para além de prosseguir os estudos e ingressar na universidade, passa a dedicar-se ao seu passatempo favorito: desenvolver a sua actividade de artesão do sexo ou, a muito ovidiana “arte de amar”.
O horóscopo feito por Helena regista, apesar de muita efabulação, os principais traços de personalidade de Sebastião. Helena sendo proveniente do Brasil, país do sincretismo cultural por excelência, pertence, ainda, a uma estranha associação, constituída na Cidade –Luz:
a Societé pour usage convenable des hommes na qual deseja integrar Sebastião para que este possa dar vazão ao desejo sexual de um vasto conjunto de mulheres ricas e sexualmente carentes. O excesso de actividade sexual e principalmente, o “rame rame” de confidências sempre iguais obrigam-no a regressar do exílio, uma vez que a procura desenfreada do prazer, em Paris, parece ser, nada mais nada menos, do que a tentativa desesperada para esquecer Clara, cuja recordação permanece gravada na memória. Clara é a mulher com quem consegue conversar, que não fala de assuntos triviais, da “vidinha” medíocre como se depreende do texto que se segue:
“ Não foram os esforços eróticos que iam dando cabo de mim em Paris, foi a odisseia de escutar horas a fio mulheres, contando-me as suas vidas (…), Se não aguentava mais a logorreia das convencidas de si e das Julietas soporíferas levava-as a um concerto que as obrigasse a estarem caladas (…). Mesmo assim, achava preferível a companhia delas a ter de aturar as bazófias, balelas e verdades eternas dos representantes do meu sexo”.
Uma das poucas amizades deste amante rebelde foi um amigo da boémia, estudante de medicina, cuja paixão era o desenho: a descrição dos seus esboços inclui-o, definitivamente, dentro do movimento surrealista com o qual se identifica o Autor:
“Por ali deambulava uma fauna heróica e feroz (…) que sai dos meus sonhos. Fiquei siderado diante daquele bestiário de seres mais ou menos humanos, daquela irisão e zombaria de todas as formas de vida, terrestre ou celeste, animal ou anímica”.
Sebastião acaba por decidir refugiar-se no promontório da infância perdida, onde os ventos uivam como no romance de Emily Brontë, e que podem explicar o aparecimento de tantas lendas ligadas ao sobrenatural, ao poder das forças da natureza: fantasmas, demónios, monstros marinhos…
“ Não admira que em tão áspero sítio as pessoas procurem, aumentar o invisível, preenchendo-o de estórias para afugentar assombrações e noites temíveis…”
Um obra onde abunda o humor sobretudo quando se fala dos estereótipos femininos da época e, em particular, em tudo o que diz respeito à sexualidade, mas na qual o protagonista se consegue situar, apesar de tudo, acima da visão estreita que comporta o quadro de referências da época, pela impressão positiva que Clara lhe deixa na memória afectiva. É, também, pela pena do Autor que obtemos uma das mais fiéis descrições da luminosidade que envolve a cidade de Lisboa, a partir do alto das colinas, com vista para o Tejo, cuja doçura se espelha nas entrelinhas de uma prosa bela e provocadora…
Cláudia de Sousa Dias