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Sunday, November 27, 2011

A Cicatriz do Ar – Jorge Fallorca e “A Mulher Descalça” Jorge Fallorca


A Mulher Descalça é um desconcertante puzzle que desencadeia duas atitudes contrárias e uma certa tensão conflituosa:
  1. A do Autor, que desconstrói a narrativa, fragmentando-a e dando a configuração de um espelho quebrado.

  2. A do leitor, que tent de forma obsessiva, ao longo da leitura, reconstituir a acção, recolocar as peças no seu devido lugar, de maneira a compor o quadro final.

  3. O autor de língua Castelhana Enrique Vila-Matas dá o mote da acção, expresso na epígrafe, sintetiza a essência da trama. Vila-Matas é um autor que escreve sobre o acto de escrever e o processo mental que antecede e acompanha a escrita – a inspiração e a desinspiração, como o movimento rítmico da sístole e a diástole - vai servir de paradigma ao Autor deste livro, na construção da personagem central.

Na análise que faz sobre os romances policiais ou de intriga policial, de Autores como Roberto Bolaño, Riccardo Piglia ou Paul Auster os quais situam, tal como Jorge Fallorca, um detective - ou um jornalista/escritor no lugar de detective -, na posição central da trama. O local da acção começa por ser, aparentemente, numa aldeia do norte, provavelmente Mortágua, - a colina, o cabelo, a várzea – um lugar onde o tempo não passa e tudo parece estagnado, tal como refere JF na entrevista a António Cabrita ao semanário Expresso, em 2002.

O primeiro parágrafo do texto faz lembrar, precisamente, o autor de 2666: um crime, sangrento, perpetrado com requintes de crueldade, a carregar a marca do ódio, construído num cenário onde a vítima é rebaixada à categoria de animal: pendurada pelos pés, tal como um porco, um boi ou um cabrito, com uma maçã na boca e pronta a ser esquartejada.

Ocorre, também, um furto: os sapatos da vítima desapareceram. As suspeitas espalham-se, todos desconfiam de todos e todos receiam a desconfiança do outro. Trata-se de uma aldeia onde a as pessoas se preocupam com o que os outros possam pensar, receando serem apontadas como suspeitas, apenas pelo facto de exibirem uns sapatos novos. Durante um largo período de tempo, as pessoas suspendem a vida normal e vivem em função do que aconteceu.

O leitor, no entanto, logo no primeiro parágrafo, apercebe-se que está diante de um crime que vai ficar por resolver. As personagens são anónimas, nada se sabe sobre a sua identidade ou passado. Elas próprias – a vítima, a mulher descalça – estão ali de passagem.

O leitor consegue, entretanto, obter um vislumbre dos factos ocorridos, na tentativa de reconstituir o crime, através da trajectória de várias personagens que estiveram, directa ou indirectamente, ligadas ao morto.

Tal como acontece com a identidade do ginocida em 2666 de Bolaño, na fronteira norte do México, não temos aqui, no norte beirão, em Portugal, uma personagem central que consiga colar os fragmentos da história e reconstituir a peça original. Temos sim, um escritor, um jornalista que sofre um trauma que, por sua vez, desencadeia um lapso de memória. Este mesmo escritor/jornalista é assaltado momentaneamente por flashes, reminiscências do passado, que surgem como relâmpagos, intermitentes, mas sem se lembrar do “Filme” na totalidade. Esta personagem dispõe apenas de estilhaços de memória que vão desfilando, ao longo de uma sucessão de capítulos, sem respeitar necessariamente uma ordem espacial ou cronológica. A única ordem temporal que é respeitada é a do aparecimento desses mesmos flashes ou relâmpagos de memória. Ao leitor, caberá apenas reconstruir a sucessão espácio-temporal e preencher os “buracos” da trama, lançando ao ar as hipóteses que se multiplicam.

Após o primeiro quadro, a vítima pendurada na árvore, seguida do espanto e as consequências, desenrola-se o quadro seguinte: a imagem da mulher descalça, que foi vista a estender a corda entre duas árvores. É ela a principal suspeita. A forasteira, aproxima-se do local do crime, descalça, e tudo indica que tenha sido ela a roubar os sapatos ao morto. A mulher olha a cena e “lê a morte no chão” – isto é, a agonia da vítima escrita a vermelho, um recurso estilístico que leva os leitores a aperceberem-se do sofrimento da vítima com maior impacto.

No terceiro quadro, assistimos a uma regressão temporal, ou seja, recuamos ainda mais no tempo, na tentativa de reconstruir o percurso do estranho : o escritor viaja acompanhado do bloco-notas e tem escrito nos apontamentos que chegou ao local para cometer um crime. Literário, supomos nós.

A seguir, temos fragmentos de breves contactos com outros intervenientes da história. Não sabemos exactamente o tipo de relação o escritor tem com a mulher descalça ou a vitima com esta, mas sabemos que se conhecem. Da personalidade deste escritor misterioso, depreendemos ainda que se trata de alguém habituado a viajar. Que gosta de ver os cambiantes da paisagem.

Outro quadro marcante é a pensão onde o chefe da estação é arrastado e onde se aloja o escritor que assiste (ou participa) na cena. E o quarto, onde se encontra a escrever a história do crime.

Nunca nos chegamos a aperceber o móbil do crime. O leitor é apenas testemunha ocasional que também está naquele(s) local (is) de passagem. E é também sempre de passagem que toma contacto com as restantes personagens, sem chegar a conhecê-las, observando apenas o comportamento e atitudes externas: os gestos os movimentos. A partir daí, será sempre o leitor quem irá construir a sua própria versão da história.

Há várias personagens que morrem nesta intriga policial:

- O chefe da estação.

- A mulher que está descalça, no final, quando atravessa o rio, sem saber nadar, atrás de uma miragem, numa espécie de sonambulismo.

Há em todas estas mortes algo de onírico, de surrealista precisamente por não haver uma sequência espácio-temporal dos acontecimentos que obedeça a uma sequência cronológica.

Existem várias sobreposições tanto no que respeita aos locais (a colina em Mortágua, a estação em Aljustrel e o quarto da pensão onde está hospedado o escritor, no largo do Rato) como ao tempo. Não sabemos exactamente a localização temporal da história porque não há referência a factos ou datas e as regressões também dificultam a situação numa época específica. É-nos somente concedido um vislumbre de que os factos poderão ter ocorrido há mais de três décadas atrás no momento em que o escritor entra na redacção do jornal e é suspenso o barulho da máquina de escrever: o acontecimento dá-se antes da generalização do uso dos computadores na redacção dos jornais.

Este episódio dá-se na altura em que a mulher descalça vai ao jornal entregar as chaves que encontrou e colocar um anúncio. Há aqui uma sobreposição: perece que ambos se vão encontrar no momento em que o escritor vai à redacção à procura das chaves e a mulher descalça vai levar as mesmas chaves à redacção do jornal para lá colocar o anúncio que informa da perda das chaves. Esta poderá ser a altura em que se conheceram. Ou não. Este poderá ser o momento zero da narrativa em termos cronológicos. A história parece ser contada do fim para o princípio, invertendo quase que totalmente a ordem temporal, suspensa apenas durante a conversa do escritor com um amigo no deserto onde, aí sim, a acção poderá passar-se num momento posterior aos acontecimentos da trama.

A reconstituição, temporal é o grande desafio lançado ao leitor e o verdadeiro quebra-cabeças da história. É o grande exercício mental a que nos obriga Jorge Fallorca, fruto de uma imensa curiosidade felina de que sofremos compulsivamente, nós leitores, apaixonados pela grande Deusa que é a Literatura.



Cláudia de Sousa Dias

11.11.2011 e revisto a 12.11.2011





Escritor, poeta, tradutor e Autor do Blogue Nem sempre a Lápis – crónicas, aforismos, excertos de traduções d a sua autoria, música e cinema…Jorge Fallorca é um autor de escrita indisciplinada, intuitiva, errante, ao sabor das emoções e de inspiração marcadamente sensorial.

Ainda adolescente, decidie fugir daquilo a que chama de “Norte asfixiante” – o autor é natural de Mortágua , aldeia situada num vale, abaixo do nível do mar, ao fundo do qual jaz uma várzea, próxima a Santa Comba Dão. Mortágua, do latim Morta Lacum – a significar precisamente “água estagnada” - é uma localidade onde o tempo parece não passar e a mudança se recusa a ocorrer, onde “o mundo desacontece”. Jorge Fallorca sai de Mortágua para ir para a tropa e aproveita a oportunidade para dar um volte face ao curso da própria vida, agitar as águas paradas à sua volta, escoando-se para Lisboa com o firme propósito de aí, dar livre expressão à própria criatividade.

Colaborou no suplemento cultural & etc, do Diário de Lisboa, tendo a sua formação cultural e literária até então sido construída com base no proveito das visitas periódicas da Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian a Mortágua.

Jorge Fallorca é um escritor que associa a literatura e a experiência da escrita à experiência vivida no quotidiano. Um facto que se torna evidente para quem lê as crónicas de A cicatriz do Ar. As influências literárias que mais se evidenciam nas inúmeras intertextualidades da sua escrita são constituídas por um desfile de estrelas do universo da Literatura Mundial: J. Luís Borges, Michaux, Herberto Helder, Aquilino Ribeiro…

A escrita de J. Fallorca é por excelência insubmissa e ousada de tal forma fracturante que chega a acusar grande parte dos escritores contemporâneos de superficialidade e mediatismo. Aqueles que escrevem sobretudo para as revistas de papel couché – “Couché mais jamais touché” – afirma com despudor.

N’algumas crónicas de A Cicatriz do Ar e sobretudo na intrigante trama policial A Mulher descalça, Jorge Fallorca projecta a atmosfera intelectual e socialmente mutiladora do Norte rural e sobretudo beirão, ao afirmar na entrevista a António Cabrita ao semanário Expresso, em 2002, o seguinte:

A Beira, e tudo o que é Norte, as brumas, a bruxaria, a cacicagem padreca, tudo isso me asfixia, é demasiado bolorento.

Após um interregno a que chamou de “dez anos de repouso criativo” - a que poderíamos nós chamar de Síndrome de Bartleby, um trema tão do agrado de Enrique Vila-matas, escritor de língua castelhana a que Fallorca vai buscar a epígrafe do novo livro – Fallorca regressa com uma absorvente intriga policial da qual falaremos mais tarde: A Mulher Descalça.

Depois de publicar Longe do Mundo, Jorge Fallorca adopta uma escrita “muito mais narrativa e controlada”. Numa palavra: contemplativa.

J.Fallorca é um Autor que se afirma adepto da “indisciplina da urgência”, cuja escrita parte da memória que sofre o processo de esquecimento e recordação, pela arte de evocar o passado, invocando-o. A arte de seleccionar a memória é feita através da dança dos processos de supressão ou esquecimento e retenção, a que Autor chama “arte de decantação”, como se faz ao vinho mais rico. Neste caso trata-se de um processo de decantação, feito com minúcia e a longo prazo, após as frases sofrerem o tempo necessário de repouso e serem transfiguradas pelo processo mental de selecção, eliminação. O Autor de que hoje tratamos é alguém que observa o real como “o caudal onde nos libertamos do fingimento, das armadilhas da sedução”.

Em A Cicatriz do ar encontramos dois tipos de textos: Bloco-Notas (parte I) e A cicatriz do Ar (parteII).

Bloco-Notas é constituído sobretudo por crónicas de viagens. Trata-se de uma escrita muito vegetal, pictórica, a registar as diversas gradações de luz e sombra, à medida que se vai modificando a paisagem. É uma escrita errante, porque andarilha.

A casa é sempre o lugar de refúgio, de intermezzo entre viagens. Outro dos elementos recorrentes nestas crónicas é o impacto dos livros no Autor e na forma como estes afectam o curso do seu pensamento que é tudo menos Morta Lacum…N’A cicatriz do Ar damo-nos conta da dimensão que para o Autor adquire a poesia e da grandeza dos poetas a quem chama de “os latifundiários da alma”. Mais uma vez, apercebemo-nos do que é, para o Autor, o processo poético de decantação e da aprendizagem ao longo da vida da “arte de se tornar poeta”, ou seja, da forma como a poesia se constrói a partir daquilo a que chama “momentos congelados do quotidiano” (p.23)

N’ A cicatriz do ar presenciamos sobretudo, a alternância e, por vezes a sobreposição de relatos do quotidiano, com breves instantes de poesia (24). Ou do bailado entre sarcasmo e nostalgia, onde onirismo e surrealismo estão presentes em relatos de sonhos ou projecções das preocupações do dia-a-dia , que afectam o estado de vigília e se manifestam ampliadas durante o sono.

O sentido do pitoresco e a ligação com a terra são-nos dados pela presença de onomatopeia, dos regionalismos e registo de diferentes sotaques (p.30 e 31).

A poesia de Jorge Fallorca é uma poesia animista, onde, na Natureza, está, normalmente projectado o reflexo da alma humana.

Para o Autor, O sul continua a ser uma transgressão (33), motivo pelo qual o Algarve e o Norte de África continuam a ser lugares de eleição para a inspiração poética. A Paisagem vai mudando da desolação da Beira e do cabeço de Mortágua para o quadro do litoral algarvio. O insólito invade o quotidiano e a escrita está na linha de fronteira entre o desejo da partilha e o impulso à clausura.

A Cicatriz do Ar pode ser o relâmpago de uma ideia, o aflorar à memória de algo que estava esquecido, sepultado nas dunas do inconsciente. Ou a inspiração que surge quando menos se espera.

Nada me enternece mais do que vê-la finalmente debruçada a brincar aos jardins nesta terra que tanto desejou e descobriu para se entregar, até me humedecer o olhar.

O local privilegiado de observação é a casa na colina, um lugar marginal, de fronteira, entre o céu e a terra. O ninho da águia. Ou, se preferirmos, entre o mar e a montanha: a água, a terra e as pedras.

A Natureza é o outro prato da balança que permite o equilíbrio do ser humano. No outro extremo está a cultura, isto é, a porção do homem que é burilada pelo meio, pela dita civilização. Na escrita de J. Fallorca, a subjectividade das palavras é-nos dada pelas inúmeras sinestesias.

Soa-me a nenúfares, mas tresanda a frutos.

No que respeita aos livros, o Autor, tal como qualquer coleccionador e leitor compulsivo, vê-se a braços com a falta de espaços para guardar todos os livros: o mesmo se passando com a memória. É mais uma vez obrigado a recorrer ao processo de selecção/eliminação.

Para Jorge Fallorca o processo de escrita resume-se a aprendizagem e memória, onde o sortilégio das palavras e das letras se combinam com a paixão pela vida, que se cruza com uma insaciável curiosidade, cuja sede só se sacia com a leitura.

Na escrita deste Bloco-Notas, sobressai, mais do que tudo, a associação de estímulos: imagens e cheiros ardentemente impossíveis de serem combinados “Glicínias e urina”. (62)

O regresso às origens e a evocação do passado são, por vezes, despoletados pelo surgir inesperado de um elemento do passado que ajuda a recriar o quadro de uma época distante e alimentados pela cumplicidade, observância do mesmo código de conduta.

Nete Bloco-notas As palavras são a casa do escritor. O seu refúgio. O seu Graal.

A Cicatriz do Ar

Todo lo que se disse es poesía

Todo lo que se escribe es prosa

Todo lo que se mueve es poesía

Todo lo que no cambia es prosa

Nicanor Parra

Os textos da segunda parte do livro, A Cicatriz do Ar são inequivocamente poesia. Móveis, flexíveis, podendo o leitor conferir-lhe o seu ritmo pessoal ao modular intencionalmente a frase com a tonalidade da voz, as pausas, criando a própria métrica, da respiração única e individual de cada um.

A Cicatriz do Ar pode ser lida com a voz cava de uma sibila, uma pitonisa, como quem lê um oráculo. As palavras, aqui, lançam um sortilégio, com o sabor de uma profecia. Enigmáticas, obscuras.

Ou o contrário. Pode ser lida com a voz angélica de um adolescente.

Uma poesia que poderá ilustrar o abandono dos homens pelos seus deuses, ou do povo pelos seus governantes, eternos tiranos, como na antiga Hélade, antes da democracia de Péricles.

A escrita prossegue com a mesma errância do espírito, mas desta feita, pelos subterrâneos da mente. Os versos de Fallorca soltam-se, violentos e selvagens como o torvelinho de um vento do deserto, da loucura do sirocco. Por vezes, parecem pintar a destruição do corpo, a erosão causada pela passagem das areias do tempo.

A natureza, hostil, mas ainda incólume é evocada através do mar ou do vento trazendo mais uma vez à luz, a memória, soterrada.

A ânsia ou desejo de liberdade absoluta está patente na imensidão da paisagem matinal do deserto ou do mar, visto da amurada de um veleiro.

Nos últimos textos, é descrita a paixão da liberdade e dos excessos motivados pela descompressão que se segue à opressão.

O silêncio surgirá depois, constante e imenso, como a voz da natureza hostil.

o luar por onde se escoa a vida rumo ao esquecimento”. Os últimos textos falam de morte, de uma vida que se dissolve no ar, deixando apenas um leve rasto de fumo – a cicatriz no ar.

Ou a errância de um Orfeu pelo Hades.

Cláudia de Sousa Dias

12.11.2011





Wednesday, November 23, 2011

“O Ditador e a Cama de Rede” de Daniel Pennac (ASA)



Tradução do francês por Isabel St. Aubyn

Uma reflexão sobre a busca da identidade, a ilusão do poder e a realidade da imaginação.

Manuel Pereira da Ponte Martins é ditador num país da América Latina. Mas após a consulta a uma sacerdotisa de Orixás, uma Mãe Branca, ter previsto o seu linchamento às mãos de uma multidão de camponeses enfurecidos torna-se agorafóbico. Para fugir a este vaticínio, o ditador decide recorrer aos serviços de um sósia, que deixa no poder em seu lugar, e abandonar o país rumo à Europa cidades como Paris ou Berlim, onde as hipóteses de se encontrar com os camponeses da sua terra Natal são praticamente nulas.

A história de O Ditador e a Cama de Rede alimenta-se de episódios sucessivos, permitindo-nos, assim, descobrir a peculiar história dos sósias do Ditador, num infinito desdobramento da mesma persona.

Uma história colorida pelo lirismo delirante do realismo mágico, que Daniel Pennac se diverte a reinventar.”

Voir

Um fascinante e divertido labirinto no qual convivem ficção e realidade, fantasia e autobiografia, história e política, aventura e poesia.”
La Repubblica

Daniel Pennac é filho de um oficial da marinha francesa, nascido em 1944 a bordo de um navio fundeado em Casablanca. Estudou em Nice, foi professor, tendo iniciado a carreira literária como escritor de livros direccionados para o público mais jovem. Ganhou, em 1990, o Prix du livre Inter com La petite Marchande de Prose. Em 2007, conquista o Prémio Renaudot com Chagrin d’École e, em 2008, o Grand Prix Metropolis Bleu pelo conjunto da sua obra.

A sua escrita é, muitas vezes, classificada como burlesca, pautando-se pela sátira e pela ironia – dois elementos que se destacam na prosa do Autor, no romance de que aqui tratamos. O Ditador e a Cama de Rede é inspirado no período que Daniel Pennac passou no Brasil, numa região do interior, enquanto fazia a pesquisa para o seu trabalho como docente. No romance, estão presentes inúmeros traços culturais relativos à cultura daquele país, no tocante à religião, à gastronomia, à tradição oral e ao património imaterial (o romance e a literatura de cordel), bem como à própria estrutura social e económica e respectiva ligação ao sistema político.

Trata-se de um romance que parece ter sido confeccionado como uma colcha em patchwork, recortado e recosido, numa deliciosa fusão de géneros literários: romance, narrativa, ensaio, reflexão filosófica. Daniel Pennac constrói, assim, uma trama na qual se encontram sobrepostos vários planos narrativos, contidos uns nos outros e (ou) se alternam: a estória do ditador Manuel Pereira da Ponte Martins, ditador vitalício na cidade de Teresina, numa remota cidade-estado no Brasil Profundo. Manuel Pereira da Ponte comporta-se para com os cidadãos com o paternalismo típico um senhor feudal dos trópicos, um grande latifundiário, herdeiro de uma cultura esclavagista com origem na mentalidade herdada dos donos das grandes plantações até finais do século XIX. Torna-se agorafóbico depois de consultar uma “mãe-branca” (sacerdotisa de “magia branca”, isto é, inofensiva, uma mediadora dos espíritos dos orixás, que executa os seus rituais, rezas e mezinhas, para o bem-comum, segundo a crença local), a qual prevê o seu linchamento às mãos de uma multidão de camponeses revoltosos. Farto da política, decide viver a própria vida segundo o princípio do prazer, viajar pela Europa e a fazer somente aquilo de que gosta: comer, jogar, dançar e seduzir as mais belas mulheres. Transforma-se num snobe, num playboy.

Tem, no entanto, de deixar alguém no seu lugar. Para tal, contrata um substituto que terá de sentar-se na cadeira do poder, sem que os seus pares se apercebam da troca, pois não quer decepcioná-los. Ocupa-se pessoalmente do treino do sósia que irá desempenhar o papel do Ditador. O sucessor tem de ser um actor brilhante, genial mesmo, para representar o papel vinte e quatro horas por dia, esquecendo o próprio eu. A estória do primeiro ditador, Manuel Pereira da Ponte, ocupa toda a primeira parte do romance.

A trama principal na obra de que aqui tratamos, sofre uma inflexão no momento em que o protagonista da primeira parte encontra o seu primeiro sósia, do qual só o separa “a diferença de um épsilon”, ou seja, algo de tão imperceptível que dificilmente alguém há-de reparar.

Entretanto, a história é interrompida por uma espécie de intermezzo, como que entrando numa narrativa externa, onde o narrador – que é a projecção do Autor – comenta a forma como vai construindo o romance, as fontes de investigação, inspiração, etc.

A inspiração para o romance parece ter surgido durante uma visita de estudo à idade de Fortaleza, enquanto prosseguia o trabalho de investigação para a Universidade onde leccionava.

É durante as horas vagas, nos intervalos do tempo dedicados à tese que se vai tecendo e cosendo o romance do Ditador Pereira da Ponte, enquanto o narrador desfruta do clima ameno, da riquíssima gastronomia local, do temperamento doce dos habitantes da região, e vai tomando as suas notas na cama de rede no alpendre…

O contacto com o misticismo, fortemente impregnado na cultura local, cuja influência se faz notar até mesmo no estilo dos escritos académicos dos seus colegas na Universidade, serve-lhe de inspiração para introduzir a figura carismática da mãe-branca, uma figura decisiva que irá alterar o rumo da vida do Ditador.

A terceira fase do romancetem a ver com a estória do primeiro dos sósias de Manuel pereira da Ponte. Dono de um inquestionável talento para representação teatral e dramatização, este primeiro sósia poderia ter sido considerado o maior actor de todos os tempos. Uma vocação compulsiva que lhe nasce do desejo que o leva à perseguição incansável de um sonho. Este sonho revela-se uma quimera, que acaba por não se concretizar mercê de todo um conjunto de circunstâncias adversas, incluindo uma deficiente planificação e falta de auto-confiança. Trata-se simplesmente da tragédia em que consiste no desperdício do potencial em termos de talento individual que, ou se inibe ou se estimula através do meio, influenciando o desempenho. A temática do livro e a evolução das personagens deixa entrever uma forte ionfluência das ciências sociais e do comportamento nas convicções do autor e na forma como o romance é contextualizado, a evolução psicológica dos sósias a situação política e económica do país, os padrões de cultura e traços culturais da região que marcam uma fusão de culturas provenientes de vários continentes.

O primeiro sósia - nenhum deles tem nome, já que aparecem despersonalizados – torna-se actor de cinema. Esta vocação é despoletada depois deste descobrir o cinematógrafo e converter-se à magia da mímica do incomparável Charles Chaplin. Daqui nasce um dos trechos mais empolgantes do romance que tem a ver com a inimaginável travessia do deserto do Sertão, em busca da Meca do cinema – uma alegoria representativa das dificuldades em triunfar no mundo das artes, tão exigente quanto competitivo. O episódio desta travessia é revestido de significado poético, devido ao ritmo vertiginoso com que é narrada a uma viagem de vários meses, em pouco mais de duas páginas. A narrativa adquire nesta fase, em termos formais, uma configuração muito semelhante à das sagas da literatura de cordel a qual é parte integrante do imenso património imaterial do Sertão. Os factos são fundidos com no colorido pitoresco dos prodígios que, supostamente, aconteceram dando-lhe quase o carácter de uma epopeia.

A projecção na praça da aldeia de um filme de Chaplin é a janela que, naquelas paragens, se abre para o mundo do sonho e da qual o primeiro sósia de Pereira da Ponte não hesita em defenestrar-se.

A quarta parte surge-nos como mais um intermezzo, ao longo do qual o Autor e narrador tenta explicar o ponto de partida para a criação de diversos personagens que intervém no romance: descreve o processo de transfiguração ficcional da realidade. É, também, a tentativa de explicar a importância e o papel do cinema na vida do cidadão comum, como sendo o despertar da consciência para determinados aspectos da realidade. Por exemplo: a película O Grande Ditador, protagonizada por Charles Chaplin, este aniquila a imagem de Hitler, ridicularizando-o. Chaplin é o homem pequeno e franzino que esmaga o gigante alemão (em sentido figurado) com uma explosão de gargalhadas. Chaplin é o oposto do ditador Pereira da Ponte e dos seus sósias, uma vez que, apesar de emprestar o corpo às suas personagens, conserva intacta a própria persona e a vida quotidiana com aqueles que lhe são próximos. Paga, no entanto, um preço elevado pela própria independência: recusa encaixar-se nos clichés que lhe querem impor – nem de herói nem de vilão, pois Chaplin gosta de representar em todas as cores recorrendo á ironia, à dramatização e á expressividade – e é afastado da grande indústria cinematográfica de Hollywood. Charles Chaplin é um homem à frente do seu tempo.

Na quinta parte, assistimos à crítica da própria obra por parte do próprio narrador-autor em diálogo com a interlocutora – Sónia, que parece estar a entrevistá-lo. Esta Sónia tanto pode ser uma personagem real como uma projecção de que se serve para tentar identificar possíveis falhas ou erros de idealização expressiva, segundo as pisadas do próprio ídolo – Chaplin, que abominava estereótipos.

E, se há coisa que não se pode afirmar acerca deste romance é a de que o seu autor se cole a qualquer tipo de estereótipo. O final surge como um epílogo: o desenvolvimento da cidade de Teresina, outrora governada por Manuel Pereira da Ponte o qual fo, sem que ninguém o saiba, sucessivamente substituído por inúmeros sósias e cuja personalidade e mentalidade se foi alterando progressivamente mercê da diferença infinitesimal que existia entre cada um dos sósias e o seu antecessor. A evolução económica está em consonância com a da classe dirigente daquele lugar, o que acaba por explicar a enorme clivagem social numa cidade no interior de um país tão cheio de contrastes como é o Brasil. Sobretudo o Brasil de há dez anos atrás, no dealbar da ascensão de Lula da Silva, no início dos anos 2000, altura em que acaba, precisamente, o romance.

Uma obra de conteúdo e estrutura insólita, estimulante e inteligente que se lê com voracidade.

Cláudia de Sousa Dias

23.09.2011

Monday, November 14, 2011

O Amante de Lady Chatterley” de D.H. Lawrence (Colecção MilFolhas - Público)




Tradutor: Maria Teresa Pinto Pereira

Abstract:

Devido à importância que atribuiu à paixão amorosa nos seus livros onde, muitas vezes, inclui às meticulosas descrições do amor físico, o Autor britânico D. H. Lawrence foi causador de acesa controvérsia, no seu tempo. Mais tarde passou a ser visto como alguém que revolucionou a prosa ficcional no século XX. Em 1928, já radicado em Florença, Lawrence publicou o seu mais célebre romance, O amante de Lady Chatterley, o qual foi alvo de sucessivas proibições e cujo texto integral só veio a público em 1959, em Nova York.

A obra incide sobre o relacionamento amoroso entre a mulher de um aristocrata inglês e guarda florestal da propriedade. O Autor defende abertamente liberdade sexual como condição essencial para a felicidade, atacando simultaneamente e de forma frontal as convenções sociais. A trama do romance é desenvolvida com base na pressão gerada pelo conflito o conflito entre a imperiosa exigência do sexo e a serenidade do amor. Na obra são notórias as influências de Sigmund Freud, no aspecto psicológico e de Karl Marx, relativamente à caracterização da época histórica e respectiva vertente sociológica que serve de pano de fundo aos obstáculos e dificuldades que vão surgindo no relacionamento amoroso de ambos os protagonistas.


Parte Introdutória: Vida e Obra

Tendo nascido em Eastwood, Reino Unido, em 1885, David Herbert Lawrence veio a falecer aos quarenta e quatro anos, vitimado pela tuberculose, em 1930, dois anos após a publicação do romance, sem chegar a ver a obra publicada no seu país de origem.

Todo o conjunto da sua obra, envolveu sempre alguma polémica relativa às questões de publicação na púdica Inglaterra, herdeira da moral vitoriana na primeira metade do século XX. Começa logo em 1911, com o primeiro romance, intitulado O pavão Branco, no qual pretendia mostrar ao público o amor como uma força da natureza onde caberia às mulheres o papel de carregar o fardo do destino dos casais. Em toda a obra deste Autor, as mulheres desempenham um papel decisivo na existência dos homens e no destino das famílias, tanto para o bem como para o mal. Lawrence, cuja mentalidade estava muito à frente do seu tempo, vê nas mulheres, uma sua natureza ambivalente, que reúne uma componente angelical, isto é, a imagem de um arquétipo idealizado e perfeito, com o seu oposto: o seu lado animal, incarnado na sua condição de ser humano.

D. H. Lawrence perde a mãe, Lydia, em 1910, após o que se sente tão inconsolável que decide romper com a noiva, Jessie, alegando que a sua “alma” fora dada à mãe. Esta fase da vida do Autor serviu-lhe de inspiração para escrever o drama presente a obra Filhos e Amantes a qual já aqui tratamos. Este estado de espírito, pautado pela depressão, apenas lhe permite, nesta fase passar por relações superficiais ou esporádicas. A situação altera-se quando Lawrence conhece Frieda, a aristocrata prussiana casada com um professor universitário e mãe de três filhos. A paixão entre ambos é de tal ordem que o casamento de Frieda se desfaz e os dois contraem novamente matrimónio na Prússia em 1914, ano me que estala o primeiro grande conflito mundial no século XX.

No ano seguinte, em 1915, publica O Arco-Íris que a crítica britânica classifica de “nauseabundo”, fazendo com que a edição seja apreendida pela polícia, sob ordem judicial. O livro é, nesta altura, considerado obsceno, mesmo sem ter uma única palavra considerada de “baixo calão” –, como é apanágio do Autor, dono de uma prosa simples, mas elegantemente literária –, cujo discurso se salienta por uma escrita predominantemente sensorial, telúrica e fortemente erotizada.

Lawrence é fortemente influenciado pelas teorias de Sigmund Freud acerca da sexualidade. Segundo a escola psicanalítica, o sexo fazia parte da essência do Homem. Ña obra O Arco-íris, Lawrence decide construir uma trama onde as personagens obedecem aos seus desejos, ignorando as convenções sociais, onde as paixões não escolhem género ou faixa etária. O Autor jamais aceitou adoptar a atitude hipócrita dos escritores de pornografia que, à época, publicavam os seus livros sob pseudónimo. Estes livros eram vocacionados para um público essencialmente masculino, cujo intuito era apenas o de facilitar a excitação sexual ou o simples acesso a conteúdos sexuais considerados socialmente reprováveis. Contrariando esta atitude, Lawrence pretendia antes de tudo discutir a sociedade humana e os seus preconceitos. É o que faz novamente, quando publica Mulheres Apaixonadas, cuja trama central se foca num dilema passional sofrido por dois casais: um deles fracassa, ao passo que o outro casal consegue superar o desafio. O fracasso do primeiro casal deve-se à ausência de um enfrentamento da própria natureza sexual como meta principal na vida em comum, uma vez que D.H. Lawrence estava convencido de que nenhum ser humano escapa a esse confronto essencial.

O Amante de Lady Chatterley

O Autor escreve o romance durante o período em que se encontra a viver com Frieda, na Toscana, iniciando a sua grande empreitada em 1926. Lawrence escreveu, ao todo, três versões do romance. A primeira é considerada mais "light", mas as duas últimas conseguem descrever a imensa força telúrica do amor sexual do casal protagonista, numa escrita ao mesmo tempo crua, para os padrões da época, mas indubitavelmente literária, onde é possível ao leitor imaginar uma cena de amor como se a visualizasse num filme, um golpe de audácia para a época.

A escrita é, ainda hoje considerada atraente e elegante, característica que a tornava, na primeira metade do século XX, "perigosa" para os padrões morais de então pois, a linguagem utilizada, tornava a obra passível de ser lida por meninas de “boas famílias”. Esta escrita foi identificada pela censura como "aparentemente inofensiva mas potencialmente corruptora” , uma vez que Lawrence glorifica a alegria dos corpos que se possuem mutuamente, como parte indissociável da natureza humana. À data da publicação do romance, Lawrence era submetido a um prolongado tratamento à tuberculose, na Suíça, embora já sem esperança de cura. Defendeu a sua criação até ao fim, acusando os seus detractores de, com os seus comentários virulentos, de “evitarem a sexualidade vital”.

Resumo e comentário à obra

O romance inicia num tom pessimista, ao descrever o cenário de uma Europa devastada pela Primeira Grande Guerra, a de 1914-1918, mas de onde se vislumbra, no meio do caos económico, a esperança de uma longa e dolorosa convalescença económica:

A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a aceitá-la tragicamente. O cataclismo deu-se, estamos entre as ruínas, desatamos a construir novo pequenos habitat, a alimentar novas esperançazinhas. É uma tarefa difícil, já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro: rodeamos os obstáculos ou passamos por cima deles (…). Esta era, mais ou menos a posição de Costance Chatterley.

Constance Chatterley, ou Connie, é a figura central do romance, casada com um baronete inglês, que regressa mutilado da guerra e paralisado da cintura para baixo. Clifford Chatterley começa por ver o futuro numa perspectiva cinzenta, destilando amargura nos seus comentários sarcásticos. Longe do fausto de outrora aquela família proveniente da nobreza rural vê os seus rendimentos limitados. Como tal, decidem refugiar-se na propriedade que dá pelo nome de Whragby Hall, nas Middlands, longe da dispendiosa e cosmopolita vida na capital. Por outro lado, Clifford tem a oportunidade de vigiar de perto os seus negócios, relacionados com a exploração mineira. A mina, confinada com os limites da propriedade, emprega uma percentagem considerável da população masculina das redondezas.

O aparente estoicismo de Clifford e a obsessão compulsiva que passará a dedicar ao trabalho escondem, segundo dá a entender o Autor, um avassalador complexo de inferioridade, despoletado pela limitação física. Trata-se de uma personagem complexa, com vários aspectos contraditórios da própria personalidade:

“Era um ser alegre, pela aparência do seu corado e saudável rosto e pelos seus olhos azuis-claros, provocadores e brilhantes (…)

(…) estivera de tal maneira à beira de perder a vida, que aquilo que restava dela era desmesuradamente precioso (…).

Mas havia sido tão desmesuradamente ferido que algo dentro dele morrera, alguns dos seus sentimentos tinham desaparecido. Havia um vazio de insensibilidade.

Antes de se dedicar aos negócios de exploração da mina, Clifford aspirava a tornar-se escritor. Reconhecido pela crítica e pelos seus pares, considerava-se um intelectual voltado para as artes sem, contudo, obter sucesso. Mas é com a administração da mina e da propriedade que dá mostras de uma invulgar sagacidade, dando largas à sua postura marcadamente liberal, exercendo um forte domínio ao lidar com os trabalhadores da mina.

Afasta-se, progressiva e gradualmente de Connie, quando as afinidades começam a escassear abrindo a porta para o conflito.


Constance é uma mulher fora do comum, com uma educação invulgar, mesmo para uma mulher da alta sociedade britânica, no período entre as duas Guerras Mundiais que assolaram a Europa no século passado:

Constance, a mulher de Clifford tinha um ar de rapariga do campo, corada, com cabelo castanho e suave, um corpo robusto e movimentos lentos carregados de uma invulgar energia.”

(...)

Criadas entre artistas e socialistas cultos, Constance e a irmã, Hilda, tinham tido o que se pode chamar uma educação estética, mas inconvencional (…). Eram ao mesmo tempo cosmopolitas e provincianas.

(…)

Viviam entre estudantes, discutiam com os homens assuntos filosóficos, sociológicos e artísticos, e eram tão boas como eles, ou melhores ainda, pelo facto de serem mulheres.

Ambas as jovens desligam-se do tabu relativo às relações pré-maritais, já que conviviam com jovens da mesma idade e em pé de igualdade, sem haver qualquer tipo de relação de subordinação como era usual haver, então, no casamento.

Apesar disso, Hilda acabará, por contrair um casamento mais por razões de conveniência do que motivada pela paixão, ao passo que Constance conhece Clifford dentro do grupo de amigos de Cambridge, onde este estudava, criando-se entre ambos uma acentuada empatia, alimentada pelas afinidades. Clifford atrai Constance pelo humor acutilante, manifestando já a tendência para a ironia e mordacidade. No entanto, após o acidente, este traço de personalidade acentuar-se-á de forma desmesurada:

“Tem um espírito gelado e vaidoso, incapaz de contacto humano (…).”

Mas a família de Clifford não é de molde a favorece a inclinação para as artes. Por exemplo, a tia de Clifford é dona de uma arrogância gentil e simultaneamente superficial que a leva a interessar-se pelo triunfo efémero de Clifford no mundo das letras, mas de modo algum pelos seus livros, os quais efectivamente não lê.

O Ambiente social em Whragby Hall

Os seus amigos intelectuais que frequentam os serões na casa Chatterley possuem temperamentos variados: Sir Oliver lê “O admirável mundo novo” de Aldous Huxley; Duker mostra-se profundamente chauvinista, ao considerar as mulheres como apenas um veículo de reprodução, chegando a aconselhar a substituição do amor considerado como uma droga por uma micro-dose diária de morfina.

“O governo lança éter para o ar todos os sábados para as pessoas passarem um fim-de-semana agradável.” Aqui, alude também, à mascarada do eufemismo da situação socio-económica lançada pela classe política de então para acalmar um possível descontentamento popular.

É desta forma subtil que D-H. Lawrence lança a problemática do conflito de classes. Neste aspecto, na vertente sociológica, é Clifford quem assume a posição central. É notório que o marido de Constance Chatterley se sente algo desconfortável sempre que se encontra fora do seu meio social, recusando o contacto com a humanidade proveniente da classe média ou baixa por achar ridículas, por exemplo, todas as manifestações laborais. A dada altura, o aristocrata chega mesmo a obrigar os trabalhadores da mina a largarem o trabalho para se listarem no exército, chocando frontalmente com as convicções de Connie.

No início do relacionamento e mesmo depois de casados, antes do acidente, a união de ambos vai muito para além do sexo que, mesmo então, parece já ser muito menos importante para Clifford do que para a maior parte dos homens:

Não, a intimidade era mais profunda do que isso, e o sexo era apenas um acidente ou um complemento desses processos curiosamente obsoletos, orgânicos, que persistem na sua própria inépcia, mas não são, na realidade, necessários.

A propriedade de Clifford Chatterley é um espaço de grande amplitude que proporciona uma visão panorâmica das terras em volta e grande parte da povoação vizinha, assim como dos terrenos da mina. Trata-se de um lugar apaziguador mas que não deixa de causar um certo sentimento de desolação pela degradação da paisagem que se deve à exploração da mina e às casas pobres e, de certa forma, também elas algo degradadas, da povoação. O Autor apresenta-nos uma visão um pouco apocalíptica acerca da situação de precariedade e miséria, vivida pelos mineiros e camponeses da região, pelo que a degradação da paisagem seria apenas um indício de factores latentes de instabilidade social. A caracterização de O Amante de lady Chatterley lembra vagamente o ambiente social de de O Vale era Verde de Richard Lewellyn. Aqui, o sinal mais evidente de descontentamento popular é a atitude dos trabalhadores e habitantes das redondezas face aos patrões de Whragby Hall: os trabalhadores da propriedade e das redondezas insistem em não cumprimentar o senhorio pelo casamento, na altura em que o casal se instala na propriedade. Existe, neste livro de Lawrence e de forma bastante evidente ao longo do romance, entre a classe abastada e as classes menos favorecidas, um forte clima de tensão, motivada pelo denso hermetismo social e ausência de comunicação entre ambos os lados:

Não havia comunicação entre Whragby Hall e a aldeia de Tevershall, nenhuma. Nem saudações, nem reverências.

Sem que haja lugar a uma hostilidade propriamente dita David Herbert Lawrence consegue recriar um clima social “de cortar à faca”, que é caracterizado pela barreira social invisível e se exprime na falsa amabilidade com que tratam Constance quando esta visita a povoação, o que torna artificial qualquer gesto cortês, afectação a que Connie é particularmente sensível:

A amabilidade curiosa, desconfiada, falsa, com que as mulheres dos mineiros lhe correspondiam e o tom estranhamente ofensivo (…) que sempre lhes ouvia vibrar nas vozes, quase aduladoras das mulheres, eram impossíveis de suportar.

Clifford permanece indiferente a esta situação, isolado no seu mundo. Para Cele, os mineiros são, meros objectos, não lapidados e retirados directamente emanados da natureza e, como tal, perfeitamente adequados para o trabalho duro na mina. Clifford suporta a compaixão de Connie, mas não lhe permite a mínima interferência em tudo o que se relaciona com a mina e os trabalhadores.

No interior da casa, o ambiente social é marcado pelo gosto em exibir todos os requintes de uma cultura refinada. Antes de se dedicar aos negócios, Clifford ambicionava tornar-se escritor de short stories, focando-se na sátira, na ironia, mesclada com um pouco de cinismo, mas sem ligação directa à vida real, ao quotidiano de todos os dias. Clifford desejava tornar-se o Proust da da inglaterra pós-vitoriana. As suas estórias eram sobretudo elogiadas por uma crítica bajuladora, mas sem causavam grande impacto, devido à ausência de um fio condutor, levando-o à dispersão. A falta de humanismo e de passionalidade no seu carácter sentia-se nos seus escritos e eram, também, sentidas nas relações íntimas com Connie e evidentemente notadas por alguns assíduos frequentadores da casa.

O vazio instala-se eentre ambos e Connie tenta escapar ao tédio envolvendo-se num torvelinho de reuniões sociais, à semelhança da personagem de Virgínia Woolf, Mrs. Dalloway…A verdadeira libertação da camisa de forças em que a coloca a relação com o marido encontra-a em espaços abertos,no contacto directo com a natureza, onde o corpo e a mente se encontram no seu elemento e para onde se tenta evadir sempre que pode.

Durante algum tempo, Constance ainda procura refúgio numa paixão efémera por um escritor e dramaturgo irlandês - Michaelis – que frequenta a casa, mas de cuja afectação acaba por se saturar.

Michaelis gosta de lançar as suas farpas sempre que o humilham e Connie admira-lhe a resiliência sabendo Michaelis se sente como um proscrito no meio da aristocracia. Clifford suspeita dos verdadeiros sentimentos do irlandês em relação a si próprio e à mulher mas está disposto a manter uma atitude de desafio pelo menos enquanto aquele estiver disposto a afrontá-lo com a sua presença. Ao mesmo tempo, inveja-lhe o sucesso como escritor.

Os afectos são complexos em D.H. Lawrence sobretudo quando a norma social se tenta impor, prevalecendo, como já vimos sobre as inclinações, naturais. Tal como o relacionamento progressivamente tenso entre as classes sociais, também a nível pessoal, o conflito ameaça estalar, quando é reprimido o conflito latente que resulta de um problema residual: a não aceitação da afectividade e do relacionamento sexual como essenciais ao equilíbrio psíquico.

A partida de Michaelis torna-se inevitável e Connie regressa ao vazio, apesar de consciente de que a relação não tem consistência para perdurar:

Ele não podia manter coisa nenhuma, era parte integrante da sua própria natureza, ter de romper todos os elos e ficar liberto, isolado, abandonado.

Connie fica, a partir daí, totalmente à mercê de Clifford e seus companheiros de tertúlias em Whragby, que vêem os seres humanos apenas como máquinas biológicas: Tommy Dukes que privilegia a vida de espírito como se vivesse na República de Platão e não acredita na amizade desinteressada entre pessoas de sexos diferentes; Mick, que se opõe ao paternalismo de Clifford; o astrónomo Charles May e o escritor Hammond compõem o quarteto que rodeia o dono da casa. Entre eles, predomina a ideia de que nas relações, o plano pessoal não é importante, isto é, interessa apenas o indivíduo, até porque a mulher tende apenas a ser vista como um símbolo de afirmação sexual e social do macho.

Clifford e o seu quarteto valorizam o super-homem, liberto de emoções numa espécie de reacção à época do Romantismo do século XIX. Criticam abertamente o bolchevismo por recearem o ódio ao estilo de vida burguês, mas preconizam, eles próprios, o sufocar do mesmo homem enquanto pessoa.: o sujeito individual é diluído numa supra-entidade que, para o bolchevismo seria o Estado e, para eles será, a Fábrica, a Mina ou simplesmente o Exército. Na perpectiva de Connie, o capitalismo cai na mesma armadilha do bolchevismo, ao diluir a personalidade do operário com a da empresa. A única diferença entre ambos os sistemas, para a senhora de Whragby Hall, consiste, no caso do capitalismo, na negação do ódio entre classes como força motriz:

O espírito lógico pretende ordenar tudo, e esse tudo converte-se em ódio. Somos todos bolchevistas e hipócritas. Os Russos são bolchevistas sem serem hipócritas.

(…) Somos uns cretinos, uns idiotas desaipaixonados.

Para se ser humano, é necessário possuir um coração, um sexo, senão transformamo-nos em deuses ou em bolchevistas porque deus e os bolchevistas são a mesma coisa, demasiado boas para serem verdadeiras.

Este posição cria um violento contraste com o discurso do brigadeiro Tommy Dukes

O amor é outra das coisas imbecis dos nossos dias.

(…) Intelectualmente, acredito que tenho bom coração, uma inteligência activa e a coragem de dizer “merda”diante de uma senhora.

Ah!, se eu tivesse! Não, o eu coração está tão paralisado como uma batata, o eu pénis cai e nunca se levanta e eu preferia cortá-lo a dizer “merda” à frente da minha mãe ou da minha tia que são senhoras (pelos vistos Connie não o é). E não sou realmente inteligente, sou apenas um adepto da vida mental.

É precisamente neste ponto, ainda mais do que no plano sexual, que provém a fissura no casamento dos Chatterley, alargada posteriormente com a entrada em cena da figura do couteiro Mellors.

O Couteiro Mellors: o elemento dissonante para uma revolução socio e psicossexual e afectiva

O ponto de viragem na trama dá-se com a entrada em cena desta personagem. O aparecimento do couteiro Oliver Mellors em Whragby Hall marca o ponto de inflexão no curso dos acontecimentos e no quotidiano de Constance. Mas todo o processo começa um pouco antes, com a vinda da enfermeira Mrs Bolton, por insistência de Hilda, que exige a presença de alguém que cuide de Clifford e liberte Constance da influência opressiva do marido. Para Hilda, irmã de Constance, Clifford tem uma personalidade de tal forma sufocante e castradora que se torna imperativo contratar alguém que se encarregue dele de forma a não fazer estiolar a irmã. Mrs Bolton é viúva de um mineiro e uma mulher de meia-idade que se torna uma presença fundamental no romance. Trata-se de uma mulher enérgica e muito dada a mexericos, bastante emotiva nos diálogos, que são autênticas caricaturas. O seu discurso é composto por longos monólogos, cheios de personagens estilizadas, ora angélicas ora demoníacas, como nos folhetins. Mrs. Bolton acaba por divertir Clifford a quem trata como a uma criança grande. Dona de um carácter intrépido e, ao mesmo tempo, caloroso à sua maneira, Mrs. Bolton é a primeira personagem a abrir uma pequena brecha no snobismo de Clifford.

Connie agora tem mais tempo para pensar em si mesma e em começar a ter vida própria.

Relativamente a Mellors, Constance encara-o, inicialmente, como um intruso, uma presença que vem perturbar a tranquilidade que encontra na floresta – o seu local de evasão – e da cabana de caça. No entanto, ao possuir um sentido de observação particularmente apurado, Constance apercebe-se que, para além do efeito de halo provocado pela personalidade fortemente vincada do guarda-florestal, existe naquele homem aparentemente rude uma certa fragilidade: o físico de Mellors, apesar de agradável e atlético, apresenta alguns sinais de exaustão, à semelhança das terras à volta de Whragby Hall, que confinam com a propriedade. Ali, tudo é cinzento, tudo caminha para a morte, exceptuando a faixa verde do bosque e o caminho rosa que vai de casa à floresta. Até aqui as cores se revestem de significado: o cinzento, morte, degradação, doença, miséria; o verde, a vida; o rosa, a felicidade.

Oliver Mellors e D.H. Lawrence- Uma projecção?

Há muitas semelhanças entre o protagonista deste romance e a vida do próprio Autor. Mellors é, tal como D.H. Lawrence, filho de um mineiro e detentor de algumas afecções pulmonares, o que não lhe permite aguentar esforços físicos exagerados como empurrar a cadeira de Clifford colina acima. A Oliver Mellors, tal como acontecia ao jovem D. H. Lawrence, a vida conjugal não lhe sorri: está casado com uma mulher rude e modos desabridos que o abandona para viver com outro homem. Há, aqui, também um certo paralelismo com outro romance do Autor, já anteriormente mencionado, Filhos e Amantes, cujo protagonista é, também, abandonado pela companheira.

O Instinto Maternal de Constance Chatterley e o eclodir do Desejo

A dada altura, o impulso maternal surge na vida de Connie. Clifford está na disposição de aceitar que a esposa tenha um amante, desde que não seja um homem abaixo da sua condição social. O primeiro sinal de atracção de Constance por Mellors é despertado por um acontecimento no qual podemos encontrar alguma intertextualidade ou uma certa analogia com o episódio bíblico em que o Rei David observa Betsabé a banhar-se, sem ser visto. No romance de que aqui tratamos, assiste-se a um episódio semelhante, mas os papéis são invertidos. Neste caso, é a mulher a observadora já que é ela quem ocupa a posição central na trama: Constance dá-se conta da fragilidade nua, presente no corpo do guarda-florestal, exposta à luminosidade diurna, coada pelo vivificante verde das árvores, enternecendo-se. A consciência da beleza e sensualidade do corpo do guarda-florestal virão logo depois. Mellors parece-lhe desde então, um homem substancialmente diferente daqueles que frequentam a sua casa. A visão da semi-nudez de Mellors acordará em Connie o Desejo.

Noutra das suas visitas à cabana de caça, Connie sente-se atacada pela melancolia, causada pelos entraves físicos e sociais à possibilidade de ser mãe. Comove-se ao olhar de uma ninhada de pintainhos, qua a fazem sentir-se inferior até mesmo a uma vulgar galinha poedeira. O sentimento de desolação é ainda mais avassalador quando visita a mulher de um dos caseiros que acabou de ter uma criança. Constance deixa-se fascinar por tudo o que é natural e espontâneo, daí a sua extrema adoração por crianças.

Ao lermos as cenas em que nos transformam em testemunhas dos enocntros do casal, conseguimos perceber em D. H. Lawrence a existência de um paralelismo por ele estabelecido entre a terra e o corpo feminino, o que torna ainda mais violento o impulso que leva à fecundidade em Connie, em harmonia com a estação do ano em que ela e Mellors se tornam amantes - a Primavera - altura em que toda a Natureza parece querer germinar. É neste contexto que acontece o momento mais intenso de fusão entre o ser humano com a Natureza na cena protagonizada por ambos, debaixo de chuva intensa, no bosque, como que num regresso ao Eden genesíaco. O encontro sob a chuva é, ao mesmo tempo, quase uma liturgia pagã, a celebrar a vitalidade do corpo e a fertilidade:

A chuva miúda era como um véu lançado sobre o mundo, tornando-o misterioso e tranquilo, não era fria. O bosque estava silencioso (…) as árvores reluziam parecendo nuas e escuras, como se elas próprias se tivessem despido e as manchas verdes do solo eram ainda mais verdes.

A escrita de Lawrence sofre, a partir do momento em que os amantes se possuem, uma transfiguração radical: passa de analítica, racional e argumentativa a emocional, sensorial e poética, num discurso pautado sobretudo por sensações tácteis, cinestésicas e visuais, celebrando a beleza e a vitalidade da juventude fértil.

As marcas da escrita refinadamente erótica de D.H. Lawrence são marcadamente evidentes notória, sobretudo na forma descrever o acto sexual integrado numa espécie de quadro panteísta (pags 185 e 186), ao glorificar o acto de gerar um filho, sacralizado-o mediante uma espécie de ritual primitivo no ambiente da floresta como os antigos celtas e outras civilizações pré-cristãs. Há, também, neste género de escrita, uma forte intertextualidade com o paganismo dos antigos cultos presentes nos mistérios de Elêusis e nos ritos órficos:

Ela sentia, nos membros e no corpo, a força da bacante a mulher cintilante e veloz que destrói o macho.

O Autor identifica o amor sensual com a vida e cuja vivência se reflecte tanto na personalidade como no estado emocional dos protagonistas.

A partir desta fase do romance, Constance sofre também uma transformação: passa a transmitir a impressão fulgurante de uma mulher realizada , com um leve ar de embriaguez báquica com os seus olhos azuis, velados e estranhamente belos, a ponto de despertar as suspeitas em Mrs. Bolton que fica, a partir de então, fortemente convencida de que a patroa tem um amante:

Ela observou a profunda chama que se via no fundo daqueles olhos azuis e de novo sentiu receio (…) pela sua tranquilidade suave. Ela nunca estivera tão doce e tranquila. (161) As suspeitas de Mrs. Bolton agudizam-se ainda no dia em que esta suurpreende Mellors a vigiar o solar, intuindo ser ele o amante da patroa. Curioso, ainda, é o sentimento de despeito da empregada em virtude de esta ter sentido um certo interesse, não correspondido, por Mellors no passado…

As origens sociais de Oliver Mellors e as afinidades com Constance

Mellors é um homem conhecedor de outros continentes, detentor de uma visão mais ampla do mundo: esteve na Índia, integrado no Exército, fora da Europa talvez demasiadamente civilizada. Dá mostras de ser um homem também invulgarmente culto, sendo filho de um mineiro, o que constitui para Connie prova de esforço pessoal.

Já Clifford, olha o couteiro com alguma distância, precisamente por apresentar estas características, uma vez que “detestava a sugestão de que um ser de outra classe fosse excepcional”.

Do ponto de vista de Oliver Mellors este, ao tomar contacto com Connie, começa por recebê-la com afabilidade, mas muda, depois, para um tratamento formal e algo seco, quando se apercebe que é a esposa de Clifford. Na verdade, não consegue ficar indiferente à sua presença dela, fisicamente, a jovem não se enquadrar nos cânones de beleza da época. Constance é considerada uma mulher de corpo “demasiado feminino”, numa época em que o padrão tido como “ideal” de beleza feminina são as formas angulosas e andróginas, à semelhança dos corpos adolescentes. O físico de Constance transmite, pelo contrário, a proporção das formas arredondadas de uma mulher na plenitude da feminilidade, isto é, a harmonia e a graça, ao invés da beleza propriamente dita: a pele apresenta-se ligeiramente mais morena do que o tão apreciado e aristocrático “mate”. Os olhos são azuis, mas o cabelo, castanho em vez de louro.

Durante as evasões de Connie para os lados da cabana e do bosque, a caracterização da natureza é, quase sempre, evocativa do estado de espírito da personagem e os diferentes elementos são usados estrategicamente como símbolos. É assim que vemos os narcisos, símbolo da vaidade e do egocentrismo, que prolifera dentro da propriedade dos Chatterley, são alvo das "chicotadas do vento" (pg.101). Constance corre para a cabana para se abrigar das rajadas. Connie está cada vez mais consciente de que casou com Clifford mediante uma atracção mútua que se desgastou a tal ponto que o casamento se transformou numa união que faz cada vez menos sentido manter:

A sociedade era terrível porque estava louca. A sociedade civilizada está alucinada. O dinheiro e o pseudo-amor são as duas grandes manias…(pg.113).

Entretanto, entre a Sra. Bolton e Clifford estabelece-se uma relação assexuada que se baseia na luta pelo predomínio mental de um sobre o outro, a ponto de o Autor classifica-los como “um casal doente”opondo-se ao casal saudável, composto por Connie e Mellors.

Durante os primeiros tempos em que Mrs Bolton se instala em casa dos Chatterley, Clifford sente prazer em contradizê-la e à sua pouco subtil forma de tirania: ela domina-o com os seus cuidados, em virtude da sua fragilidade física, e ele a ela, com o seu refinamento.

Connie toma imediatamente consciência da personalidade da enfermeira, sem conseguir evitar um certo sentimento de aversão pela mulher, a quem identifica como uma perfeita bisbilhoteira e um autêntico livro sobre a vida das pessoas da aldeia, que Clifford devora, porque tem uma espécie de gosto pela má língua, que usa na literatura. Mas ambos falam dos outros sem empatia nem respeito.

A partir daqui, o narrador desenvolve uma mini-dissertação sobre a “boa” ou “má” literatura e o apego às convenções ao invés do primado da ética.

Mrs. Bolton acaba por exercer, de forma indirecta, uma influência de alguma maneira positiva em Clifford, levando-o a interessar-se pela mina e pela vida dos mineiros e a desligar-se das suas actividades literárias. Clifford revela-se um industrial de espírito prático, sagaz e astuto, encontrando naquela actividade uma forma como que de compensação face à fragilidade da sua condição física e à aridez da própria vida emocional. À medida que Constance se distancia do marido, este vai-se tonando cada vez mais autónomo no aspecto emocional, mercê dos cuidados de Mrs Bolton e da canalização dos seus interesses, cada vez mais premente, para os negócios.

As dificuldades a longo prazo

O facto de na alta sociedade britânica, herdeira da moral vitoriana, o amor ser sancionado pelas convenções sociais é, para o Autor, sinónimo de uma sociedade doente, que mata a felicidade com a mesma impunidade com que vê a Terra a ser profanada pela poluição, ou mutilada pela indústria. O autor vê este tipo de sociedade como uma sociedade onde a cobiça mecanizada destrói a terra, a vida e o amor.

Face a isto, Mellors tem motivos para, numa sociedade essencialmente materialista, recear o boicote da sociedade ao seu relacionamento com Connie. Em relação às elites, Mellors sentir-se-á sempre como um peixe fora de água:

As classes média e superior que ele tão bem tinha conhecido, eram constituídas por pessoas inflexíveis, de uma crueldade…sem vida por dentro

Mellors receia a avidez do ser humano sobretudo se combinada com a crueldade mesquinha do mundo do ferro (dureza de personalidade dos industriais do ferro e das condições de vida dos mineiros) e a contaminação da sujidade do mundo do carvão e do ferro. Afinal trata-se da matéria-prima que esteve na base do deflagrar da primeira guerra mundial...

Entretanto, espalham-se rumores acerca de uma suposta gravidez de Connie. Especula-se sobre as capacidades sexuais de Cliff, para o que contribui largamente a tendência para a bisbilhotice de Mrs. Bolton. Constance decide, então, viajar para Veneza e afastar-se de olhares e comentários indiscretos. A cidade italiana é o oposto de Tevershall, escravizada pelo trabalho contínuo e de atmosfera deprimente, onde os pobres são reduzidos a qualquer coisa abaixo do humano. O clima soalheiro é anti-depressivo e facilita o convívio social, mas as diferenças culturais não possibilitam relações profundas ou muito íntimas.

Através da visão de Constance Chatterley, D.H. Lawrence deixa transparecer um profundo pesar pelo facto de: a Inglaterra Industrial apagar a Inglaterra Agrícola, como consequência da visão cínica do mundo, pautado pela inesgotável avidez do lucro, sem deixar de criticar abertamente o conformismo da classe operária.

Connie está convencida que os mineiros são pessoas que se preocupam não com o futuro, mas com o imediato, com a questão diária da sobrevivência (185).

O ferro e o carvão tinham devorado o corpo daqueles homens (…). Tinham a estranha beleza dos minerais.

Clifford, olha-os como combustível: A indústria enche-lhes as barrigas mesmo quando o dinheiro não lhes sobra na algibeira.

Quando se fala em educação dos trabalhadores, Clifford não acredita na transformação do “visco” pelo verniz superficial da educação. Acredita, sim, na pressão esmagadora do meio como modeladora do carácter. Cliff encara a aristocracia como uma função e não como uma linhagem. No plano pessoal, é um homem que parece ter o condão de destruir tudo aquilo em que toca, até mesmo nas coisas materiais, como o jardim e a cadeira motorizada e até a vitalidade dos próprios trabalhadores. É uma personagem que esgota a vitalidade e a duração da vida útil de tudo o que o rodeia.

No tocante ao casal protagonista, começam, entretanto a notar-se algumas fragilidades no relacionamento, fruto sobretudo da insegurança de Mellors. Este receia o desprezo de Constance no momento em que a paixão abrandar, que ela comece a aperceber-se das diferenças sociais entre ambos. O primeiro conflito surge em consequência de Constance achar Mellors “demasiado domesticado”, isto é, sem força de carácter suficiente para defrontar Clifford.

Trata-se de uma crítica indirecta, por parte do Autor, ao conformismo do homem-máquina, o escravo dos tempos modernos, da era industrial, que obedece passivamente enquanto destrói a saúde no trabalho, ao contrair doenças profissionais, como é o caso dos mineiros. A separação eminente do amante deixa-a triste, enquanto que Mellors que a amada, durante a estadia na soalheira Itália, deixe de se interessar por ele.

Em casa, Constante tem ainda de aguentar a falsa submissão e amabilidade de Mrs. Bolton. A irmã, Hilda, desempenha o papel de suporte emocional de Constance Chatterley, apesar de aquela alimentar ainda alguma desconfiança em relação a Mellors, por ser oriundo de um meio social tão diverso do delas. Um abismo social que é, apesar de tudo, fortemente atenuado pelo percurso de Mellors. Apesar das origens humildes, o couteiro dos Chatterley desenvolveu um certo refinamento a que não é alheia a sensualidade. A esta faceta de Mellors está associada a convicção de D.H. Lawrence de que o espírito necessita de sensualidade para poder evoluir. Deste ponto de vista, Clifford representaria a estagnação sentimental e física, que estaria na génese de um falso puritanismo, tão castrador quanto hipócrita, por via de uma sensualidade que erodiu por falta de ternura.

Um interregno no romance

A relação do casal protagonista, sofre um momento de pausa, é suspensa, durante a estadia de Constance em Itália. A descrição do ambiente humano na Villa Esmeralda, onde Connie está hospedada, lembra um romance de Jane Austen, onde não falta uma velha matrona com os seus comentários malévolos, um pároco cerimonioso e interesseiro e jovens raparigas a exibir os seus atributos – físicos e não só – com o único objectivo de arranjar um marido.Veneza era já, no período entre as duas Guerras Mundiais, uma cidade que vivia do turismo, bastante povoada, e em permanente clima de festa. Mas a alegria meridional acaba por se tornar fatigante para o temperamento fleumático, tipicamente setentrional de Connie, a quem o alheamento não conforta, ao contrário do que sucede com Hilda. Para Mrs. Chatterley, actua antes como uma espécie de narcótico. Por fim, Constance acha os italianos afectuosos mas não apaixonados e até um pouco frívolos agindo com as mulheres estrangeiras como se fossem gigolôs. Daniele, o gondoleiro, chama-lhe a atenção pela personalidade esfíngica, independente e incorruptível, ao contrário da maior parte dos seus conterrâneos, fazendo-a lembrar-lhe vagamente Mellors.

O pai de Constance tem, a respeito dos relacionamentos entre classes sociais diferentes, a atitude e a visão de uma pessoa tolerante. Trata-se de um homem abastado, que assume a postura de um livre-pensador, de mentalidade liberal, pragmático embora voltado para si mesmo no aspecto emocional, deixando as filhas libertas para conduzir a vida afectiva como bem entendem.

Mellors, fora do ambiente rural de Whragby Hall, inserido na vida urbana, causa boa impressão, ao transmitir a imagem de homem distinto.

(…) ele podia ser o que quisesse. Tinha um bom ar, natural, que era mais agradável do que qualquer estereótipo.

Apesar de tudo, a insegurança acompanha-o sempre, tendo a consciência de não poder equiparar-se financeiramente à mulher que ama. O motor da vida de Mellors é a ternura, que, de acordo com a convicção do Autor, se funde no Desejo, o qual desperta sempre o sentimento de medo nas pessoas. Este receio está quase sempre associado o sentimento de que o desenvolvimento da relação amorosa se traduza no fracasso das expectativas. D.H. Lawrence é da opinião que isto é extremamente prejudicial uma vez que "um estado de espírito caracterizado pelo medo ou pela apreensão que torna dez vezes mais violentos quaisquer choques sofridos”. Falando pela voz da sua personagem, Oliver Mellors, o Autor fala do medo da própria morte ou de qualquer outro cataclismo ou acontecimento imprevisto que possa colocar um fim ao relacionamento.

Um aspecto positivo é o facto de Mellors e sir Malcolm se tornarem aliados, uma surpresa até mesmo para a própria Constance:

A sério, não fizeram nada excepto estabelecerem a velha franco-maçonaria da solidariedade masculina”. (pag 328)

Face à notícia da intenção de divórcio de Connie e da existêcia de outro homem na vida desta Clifford reage de forma infantil, exactamente como a criança que se vê de repente sem um brinquedo com o qual há mito tempo não jogava, refugiando-se no “colo” de Mrs. Bolton, a qual apesar de tudo não deixa de sentir por ele uma ponta de desprezo.

A revelação total das intenções de Connie o golpe de misericórdia para Clifford. Na sua última carta a Mellors, Constance fala da situação económica, das alterações estruturais, do trabalho no ramo das minas e do carvão onde, numa profunda reestruturação da economia em consequência do crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, o acto de não gastar só resolve uma parte do problema, o qual só se combate eficazmente criando mais emprego e mais salários, fazendo antever as Grande Depressão que se avizinha e antecede uma Segunda Guerra Mundial

Sinto no ar as grandes mãos humanas que apertam a garganta dos que querem viver. Dos que querem viver para além do dinheiro.

Face a tudo isto, "O Amante de Lady Chatterley" será sempre o livro que fala do desejo como pulsão fundamental para a vida mas que, para além disso, põe em evidência a extrema importância da eterna procura d ideal absoluto de justiça social.

Cláudia de Sousa Dias

17.09.2011 e revisto em 14.11.2011

O Filme Lady Chatterley, de Pascale Ferran

Apontamento:

(a partir do blogue: http://50anosdefilmes.com.br/2009/lady-chatterley/ ):

No ano 2006 foi lançado uma excelente adaptação do romance para o cinema pela realizadora francesa Pascale Ferran. Esta mulher de talento e sensibilidade inequívocos, produziu um filme descrito como uma adaptação que se caracteriza por:

um ritmo lento, um pouco como o próprio ritmo da vida no campo. O visual é primoroso, cuidadíssimo; intercalando-se às sequências de acção, há diversas cenas da natureza, as árvores, um riacho, um detalhe de uma flor, um pequeno lagarto.

A realizadora inspirou-se na segunda versão do romance O Amante de Lady Chatterley, ao contrário do comentário do livro acima descrito que se baseou na terceira e definitiva versão do romance.

«Os últimos anos de Lawrence foram dedicados principalmente a pintar quadros e a escrever e reescrever sua última novela, O Amante de Lady Chatterley, para descarregar sua amargura acumulada contra a sociedade e gravar sua crença de que a civilização poderia encontrar a cura através de um novo relacionamento entre homens e mulheres. Publicado numa edição limitada em Florença (1928) e em Paris (1929), apareceu em uma versão expurgada em 1932. O texto completo só seria publicado em 1959, em Nova York e, em 1960, em Londres, quando foi tema de um sensacional caso judicial, que girou em boa parte em torno da justificativa do uso nesse romance de palavras ‘tabu’ relativos ao sexo

«Quando o livro foi lançado, a imprensa inglesa usou expressões como “esgotos da pornografia francesa”; “o livro mais sujo da literatura inglesa

Frieda Lawrence, a viúva do autor, fala de três versões versões do romance. Frieda, em solteira, Frieda von Richthofen, era descendente de um barão alemão, tendo casado com Ernest Weekley, que por sua vez foi professor de francês de Lawrence na Universidade de Nottinhgam. Lawrence "rouba-a" ao ex-professor e vivem juntos até o final da sua curta e agitada vida.

Frieda escreve uma carta aberta, datada de Londres, 26 de janeiro de 1933: «D.H.Lawrence escreveu três versões do romance O Amante de Lady Chatterley, porém tão diversas entre si que, na realidade, constituem três diferentes livros. Conheço o fundo da versão original e acompanhei o terramoto que sobreveio à publicação reservada dessa versão, e às várias edições seguintes, autorizadas ou não. Desesperado por não encontrar editor na Inglaterra, Lawrence autorizou uma edição na França, a qual saiu pouco antes de sua morte. (…) Por uns tantos motivos que não quero mencionar, autorizei uma edição expurgada, para introduzir esse livro na Inglaterra, na parte contra a qual não houvesse objecções. Mas Lawrence queria uma edição bem impressa, sem as falhas tipográficas da edição original, e a um preço ao alcance de todos. Queria mergulhar no povo. Trabalhando de acordo com os seus desejos, promovo, agora, a presente edição, que deve ser considerada a forma definitiva de sua terceira versão, escamoteada dos defeitos da primeira e sem corte ou atenuação nenhuma. Suponho que Lawrence aprovaria de coração a saída desta bela edição a preço popular; e, no caso de a tentativa ser bem sucedida, editaremos também a segunda e, se possível, ainda a terceira versão da sua obra – a que lhe custou o último esforço.”

A versão da realizadora: "Eles não comentam, eles experimentam"

Pascale Ferran, então, escolheu como base do argumento que escreveu em colaboração com Roger Bohbot, a segunda versão do romance, e não a terceira, a que “custou a Lawrence o último esforço”. A realizadora escreveu, ela mesma, um texto,reproduzido no site www.unifrance.org, explicando por que fez essa opção: «A existência destas três versões não tem nada de surpreendente em si mesma; é o método de Lawrence escrevê-las que éo uma excepção na história da literatura. Entre cada versão, Lawrence deixava repousar o manuscrito por vários meses, e passava a escrever outras coisas. Quando retomava seu projecto, ele não partia do manuscrito precedente para fazer modificações, e sim reescrevia integralmente uma segunda versão. Depois, mais tarde, uma terceira

Segundo a realizadora, a trama e as situações básicas são comuns às três versões, mas elas não são estritamente similares, nem os diálogos são os mesmos. E as próprias personagens centrais do romance – Lady Chatterley e o marido, Sir Clifford, o couteiro que se torna seu amante, a Sra. Bolton, a enfermeira de Clifford – “flutuam muito de uma versão para outra”. Até o nome do amante varia; Mellors numa, e Parkin na outra.

Pascale Ferran acha a terceira versão é muito “palavrosa” e que, nesse ponto, o livro ficou envelhecido. «Como se Lawrence, diante do carácter eminentemente subversivo de seu tema e da censura que ele antecipava, se tivesse sentido obrigado a teorizar, pela voz de seus personagens, a tese de seu romance: o amor é mais forte que todas as barreiras sociais.»

E então ela leu a segunda versão, editada em França pela Gallimard, com o título de Lady Chatterley et l’homme des bois (o homem do bosque). A segunda versão pareceu a ela mais simples, mais directa no tratamento do tema, menos atormentada. Parkin, o couteiro, aqui é um homem simples, do povo, das classes trabalhadoras, que deveria ter sido mineiro, que escolheu trabalhar no campo, ser couteiro, para escapar da vida em grupo, em sociedade. Na terceira versão, o couteiro Mellors é um ex-oficial do exército na Índia que escolhe uma vida de eremita. “Mas sua cultura e suas origens tornam menos escandalosa sua relação com Lady Chatterley. De uma certa maneira, intelectualmente, eles são quase do mesmo mundo, o que explica que eles podem comentar juntos o que se passa entre eles. Em Lady Chatterley et l’homme des bois, eles não comentam, eles experimentam.”

Ambas as versões são, no entanto complementares, sobretudo a terceira, na forma de livro (mais cerebral) e a segunda como base de argumento para o filme de Ferran (mais sensorial). De facto, o Autor era da opinião que no homem ambas as facetas se desenvolvem em simultâneo.

Depois de todas as aberrações que se escreveram sobre o romance e o Autor mais vale que o leitor descubra por si: leia o livro, veja o filme ou se possível, leia a segunda e a terceira versão do romance. E diga de sua justiça.

CSD