Tradutor: Maria Teresa Pinto Pereira
Abstract:
Devido à importância que atribuiu à paixão amorosa nos seus livros onde, muitas vezes, inclui às meticulosas descrições do amor físico, o Autor britânico D. H. Lawrence foi causador de acesa controvérsia, no seu tempo. Mais tarde passou a ser visto como alguém que revolucionou a prosa ficcional no século XX. Em 1928, já radicado em Florença, Lawrence publicou o seu mais célebre romance, O amante de Lady Chatterley, o qual foi alvo de sucessivas proibições e cujo texto integral só veio a público em 1959, em Nova York.
A obra incide sobre o relacionamento amoroso entre a mulher de um aristocrata inglês e guarda florestal da propriedade. O Autor defende abertamente liberdade sexual como condição essencial para a felicidade, atacando simultaneamente e de forma frontal as convenções sociais. A trama do romance é desenvolvida com base na pressão gerada pelo conflito o conflito entre a imperiosa exigência do sexo e a serenidade do amor. Na obra são notórias as influências de Sigmund Freud, no aspecto psicológico e de Karl Marx, relativamente à caracterização da época histórica e respectiva vertente sociológica que serve de pano de fundo aos obstáculos e dificuldades que vão surgindo no relacionamento amoroso de ambos os protagonistas.
Parte Introdutória: Vida e Obra
Tendo nascido em Eastwood, Reino Unido, em 1885, David Herbert Lawrence veio a falecer aos quarenta e quatro anos, vitimado pela tuberculose, em 1930, dois anos após a publicação do romance, sem chegar a ver a obra publicada no seu país de origem.
Todo o conjunto da sua obra, envolveu sempre alguma polémica relativa às questões de publicação na púdica Inglaterra, herdeira da moral vitoriana na primeira metade do século XX. Começa logo em 1911, com o primeiro romance, intitulado O pavão Branco, no qual pretendia mostrar ao público o amor como uma força da natureza onde caberia às mulheres o papel de carregar o fardo do destino dos casais. Em toda a obra deste Autor, as mulheres desempenham um papel decisivo na existência dos homens e no destino das famílias, tanto para o bem como para o mal. Lawrence, cuja mentalidade estava muito à frente do seu tempo, vê nas mulheres, uma sua natureza ambivalente, que reúne uma componente angelical, isto é, a imagem de um arquétipo idealizado e perfeito, com o seu oposto: o seu lado animal, incarnado na sua condição de ser humano.
D. H. Lawrence perde a mãe, Lydia, em 1910, após o que se sente tão inconsolável que decide romper com a noiva, Jessie, alegando que a sua “alma” fora dada à mãe. Esta fase da vida do Autor serviu-lhe de inspiração para escrever o drama presente a obra Filhos e Amantes a qual já aqui tratamos. Este estado de espírito, pautado pela depressão, apenas lhe permite, nesta fase passar por relações superficiais ou esporádicas. A situação altera-se quando Lawrence conhece Frieda, a aristocrata prussiana casada com um professor universitário e mãe de três filhos. A paixão entre ambos é de tal ordem que o casamento de Frieda se desfaz e os dois contraem novamente matrimónio na Prússia em 1914, ano me que estala o primeiro grande conflito mundial no século XX.
No ano seguinte, em 1915, publica O Arco-Íris que a crítica britânica classifica de “nauseabundo”, fazendo com que a edição seja apreendida pela polícia, sob ordem judicial. O livro é, nesta altura, considerado obsceno, mesmo sem ter uma única palavra considerada de “baixo calão” –, como é apanágio do Autor, dono de uma prosa simples, mas elegantemente literária –, cujo discurso se salienta por uma escrita predominantemente sensorial, telúrica e fortemente erotizada.
Lawrence é fortemente influenciado pelas teorias de Sigmund Freud acerca da sexualidade. Segundo a escola psicanalítica, o sexo fazia parte da essência do Homem. Ña obra O Arco-íris, Lawrence decide construir uma trama onde as personagens obedecem aos seus desejos, ignorando as convenções sociais, onde as paixões não escolhem género ou faixa etária. O Autor jamais aceitou adoptar a atitude hipócrita dos escritores de pornografia que, à época, publicavam os seus livros sob pseudónimo. Estes livros eram vocacionados para um público essencialmente masculino, cujo intuito era apenas o de facilitar a excitação sexual ou o simples acesso a conteúdos sexuais considerados socialmente reprováveis. Contrariando esta atitude, Lawrence pretendia antes de tudo discutir a sociedade humana e os seus preconceitos. É o que faz novamente, quando publica Mulheres Apaixonadas, cuja trama central se foca num dilema passional sofrido por dois casais: um deles fracassa, ao passo que o outro casal consegue superar o desafio. O fracasso do primeiro casal deve-se à ausência de um enfrentamento da própria natureza sexual como meta principal na vida em comum, uma vez que D.H. Lawrence estava convencido de que nenhum ser humano escapa a esse confronto essencial.
O Amante de Lady Chatterley
O Autor escreve o romance durante o período em que se encontra a viver com Frieda, na Toscana, iniciando a sua grande empreitada em 1926. Lawrence escreveu, ao todo, três versões do romance. A primeira é considerada mais "light", mas as duas últimas conseguem descrever a imensa força telúrica do amor sexual do casal protagonista, numa escrita ao mesmo tempo crua, para os padrões da época, mas indubitavelmente literária, onde é possível ao leitor imaginar uma cena de amor como se a visualizasse num filme, um golpe de audácia para a época.
A escrita é, ainda hoje considerada atraente e elegante, característica que a tornava, na primeira metade do século XX, "perigosa" para os padrões morais de então pois, a linguagem utilizada, tornava a obra passível de ser lida por meninas de “boas famílias”. Esta escrita foi identificada pela censura como "aparentemente inofensiva mas potencialmente corruptora” , uma vez que Lawrence glorifica a alegria dos corpos que se possuem mutuamente, como parte indissociável da natureza humana. À data da publicação do romance, Lawrence era submetido a um prolongado tratamento à tuberculose, na Suíça, embora já sem esperança de cura. Defendeu a sua criação até ao fim, acusando os seus detractores de, com os seus comentários virulentos, de “evitarem a sexualidade vital”.
Resumo e comentário à obra
O romance inicia num tom pessimista, ao descrever o cenário de uma Europa devastada pela Primeira Grande Guerra, a de 1914-1918, mas de onde se vislumbra, no meio do caos económico, a esperança de uma longa e dolorosa convalescença económica:
“ A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a aceitá-la tragicamente. O cataclismo deu-se, estamos entre as ruínas, desatamos a construir novo pequenos habitat, a alimentar novas esperançazinhas. É uma tarefa difícil, já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro: rodeamos os obstáculos ou passamos por cima deles (…). Esta era, mais ou menos a posição de Costance Chatterley.”
Constance Chatterley, ou Connie, é a figura central do romance, casada com um baronete inglês, que regressa mutilado da guerra e paralisado da cintura para baixo. Clifford Chatterley começa por ver o futuro numa perspectiva cinzenta, destilando amargura nos seus comentários sarcásticos. Longe do fausto de outrora aquela família proveniente da nobreza rural vê os seus rendimentos limitados. Como tal, decidem refugiar-se na propriedade que dá pelo nome de Whragby Hall, nas Middlands, longe da dispendiosa e cosmopolita vida na capital. Por outro lado, Clifford tem a oportunidade de vigiar de perto os seus negócios, relacionados com a exploração mineira. A mina, confinada com os limites da propriedade, emprega uma percentagem considerável da população masculina das redondezas.
O aparente estoicismo de Clifford e a obsessão compulsiva que passará a dedicar ao trabalho escondem, segundo dá a entender o Autor, um avassalador complexo de inferioridade, despoletado pela limitação física. Trata-se de uma personagem complexa, com vários aspectos contraditórios da própria personalidade:
“Era um ser alegre, pela aparência do seu corado e saudável rosto e pelos seus olhos azuis-claros, provocadores e brilhantes (…)
(…) estivera de tal maneira à beira de perder a vida, que aquilo que restava dela era desmesuradamente precioso (…).
Mas havia sido tão desmesuradamente ferido que algo dentro dele morrera, alguns dos seus sentimentos tinham desaparecido. Havia um vazio de insensibilidade.
Antes de se dedicar aos negócios de exploração da mina, Clifford aspirava a tornar-se escritor. Reconhecido pela crítica e pelos seus pares, considerava-se um intelectual voltado para as artes sem, contudo, obter sucesso. Mas é com a administração da mina e da propriedade que dá mostras de uma invulgar sagacidade, dando largas à sua postura marcadamente liberal, exercendo um forte domínio ao lidar com os trabalhadores da mina.
Afasta-se, progressiva e gradualmente de Connie, quando as afinidades começam a escassear abrindo a porta para o conflito.
Constance é uma mulher fora do comum, com uma educação invulgar, mesmo para uma mulher da alta sociedade britânica, no período entre as duas Guerras Mundiais que assolaram a Europa no século passado:
Constance, a mulher de Clifford tinha um ar de rapariga do campo, corada, com cabelo castanho e suave, um corpo robusto e movimentos lentos carregados de uma invulgar energia.”
(...)
Criadas entre artistas e socialistas cultos, Constance e a irmã, Hilda, tinham tido o que se pode chamar uma educação estética, mas inconvencional (…). Eram ao mesmo tempo cosmopolitas e provincianas.
(…)
Viviam entre estudantes, discutiam com os homens assuntos filosóficos, sociológicos e artísticos, e eram tão boas como eles, ou melhores ainda, pelo facto de serem mulheres.”
Ambas as jovens desligam-se do tabu relativo às relações pré-maritais, já que conviviam com jovens da mesma idade e em pé de igualdade, sem haver qualquer tipo de relação de subordinação como era usual haver, então, no casamento.
Apesar disso, Hilda acabará, por contrair um casamento mais por razões de conveniência do que motivada pela paixão, ao passo que Constance conhece Clifford dentro do grupo de amigos de Cambridge, onde este estudava, criando-se entre ambos uma acentuada empatia, alimentada pelas afinidades. Clifford atrai Constance pelo humor acutilante, manifestando já a tendência para a ironia e mordacidade. No entanto, após o acidente, este traço de personalidade acentuar-se-á de forma desmesurada:
“Tem um espírito gelado e vaidoso, incapaz de contacto humano (…).”
Mas a família de Clifford não é de molde a favorece a inclinação para as artes. Por exemplo, a tia de Clifford é dona de uma arrogância gentil e simultaneamente superficial que a leva a interessar-se pelo triunfo efémero de Clifford no mundo das letras, mas de modo algum pelos seus livros, os quais efectivamente não lê.
O Ambiente social em Whragby Hall
Os seus amigos intelectuais que frequentam os serões na casa Chatterley possuem temperamentos variados: Sir Oliver lê “O admirável mundo novo” de Aldous Huxley; Duker mostra-se profundamente chauvinista, ao considerar as mulheres como apenas um veículo de reprodução, chegando a aconselhar a substituição do amor considerado como uma droga por uma micro-dose diária de morfina.
“O governo lança éter para o ar todos os sábados para as pessoas passarem um fim-de-semana agradável.” Aqui, alude também, à mascarada do eufemismo da situação socio-económica lançada pela classe política de então para acalmar um possível descontentamento popular.
É desta forma subtil que D-H. Lawrence lança a problemática do conflito de classes. Neste aspecto, na vertente sociológica, é Clifford quem assume a posição central. É notório que o marido de Constance Chatterley se sente algo desconfortável sempre que se encontra fora do seu meio social, recusando o contacto com a humanidade proveniente da classe média ou baixa por achar ridículas, por exemplo, todas as manifestações laborais. A dada altura, o aristocrata chega mesmo a obrigar os trabalhadores da mina a largarem o trabalho para se listarem no exército, chocando frontalmente com as convicções de Connie.
No início do relacionamento e mesmo depois de casados, antes do acidente, a união de ambos vai muito para além do sexo que, mesmo então, parece já ser muito menos importante para Clifford do que para a maior parte dos homens:
“Não, a intimidade era mais profunda do que isso, e o sexo era apenas um acidente ou um complemento desses processos curiosamente obsoletos, orgânicos, que persistem na sua própria inépcia, mas não são, na realidade, necessários.
A propriedade de Clifford Chatterley é um espaço de grande amplitude que proporciona uma visão panorâmica das terras em volta e grande parte da povoação vizinha, assim como dos terrenos da mina. Trata-se de um lugar apaziguador mas que não deixa de causar um certo sentimento de desolação pela degradação da paisagem que se deve à exploração da mina e às casas pobres e, de certa forma, também elas algo degradadas, da povoação. O Autor apresenta-nos uma visão um pouco apocalíptica acerca da situação de precariedade e miséria, vivida pelos mineiros e camponeses da região, pelo que a degradação da paisagem seria apenas um indício de factores latentes de instabilidade social. A caracterização de O Amante de lady Chatterley lembra vagamente o ambiente social de de O Vale era Verde de Richard Lewellyn. Aqui, o sinal mais evidente de descontentamento popular é a atitude dos trabalhadores e habitantes das redondezas face aos patrões de Whragby Hall: os trabalhadores da propriedade e das redondezas insistem em não cumprimentar o senhorio pelo casamento, na altura em que o casal se instala na propriedade. Existe, neste livro de Lawrence e de forma bastante evidente ao longo do romance, entre a classe abastada e as classes menos favorecidas, um forte clima de tensão, motivada pelo denso hermetismo social e ausência de comunicação entre ambos os lados:
Não havia comunicação entre Whragby Hall e a aldeia de Tevershall, nenhuma. Nem saudações, nem reverências.
Sem que haja lugar a uma hostilidade propriamente dita David Herbert Lawrence consegue recriar um clima social “de cortar à faca”, que é caracterizado pela barreira social invisível e se exprime na falsa amabilidade com que tratam Constance quando esta visita a povoação, o que torna artificial qualquer gesto cortês, afectação a que Connie é particularmente sensível:
A amabilidade curiosa, desconfiada, falsa, com que as mulheres dos mineiros lhe correspondiam e o tom estranhamente ofensivo (…) que sempre lhes ouvia vibrar nas vozes, quase aduladoras das mulheres, eram impossíveis de suportar.
Clifford permanece indiferente a esta situação, isolado no seu mundo. Para Cele, os mineiros são, meros objectos, não lapidados e retirados directamente emanados da natureza e, como tal, perfeitamente adequados para o trabalho duro na mina. Clifford suporta a compaixão de Connie, mas não lhe permite a mínima interferência em tudo o que se relaciona com a mina e os trabalhadores.
No interior da casa, o ambiente social é marcado pelo gosto em exibir todos os requintes de uma cultura refinada. Antes de se dedicar aos negócios, Clifford ambicionava tornar-se escritor de short stories, focando-se na sátira, na ironia, mesclada com um pouco de cinismo, mas sem ligação directa à vida real, ao quotidiano de todos os dias. Clifford desejava tornar-se o Proust da da inglaterra pós-vitoriana. As suas estórias eram sobretudo elogiadas por uma crítica bajuladora, mas sem causavam grande impacto, devido à ausência de um fio condutor, levando-o à dispersão. A falta de humanismo e de passionalidade no seu carácter sentia-se nos seus escritos e eram, também, sentidas nas relações íntimas com Connie e evidentemente notadas por alguns assíduos frequentadores da casa.
O vazio instala-se eentre ambos e Connie tenta escapar ao tédio envolvendo-se num torvelinho de reuniões sociais, à semelhança da personagem de Virgínia Woolf, Mrs. Dalloway…A verdadeira libertação da camisa de forças em que a coloca a relação com o marido encontra-a em espaços abertos,no contacto directo com a natureza, onde o corpo e a mente se encontram no seu elemento e para onde se tenta evadir sempre que pode.
Durante algum tempo, Constance ainda procura refúgio numa paixão efémera por um escritor e dramaturgo irlandês - Michaelis – que frequenta a casa, mas de cuja afectação acaba por se saturar.
Michaelis gosta de lançar as suas farpas sempre que o humilham e Connie admira-lhe a resiliência sabendo Michaelis se sente como um proscrito no meio da aristocracia. Clifford suspeita dos verdadeiros sentimentos do irlandês em relação a si próprio e à mulher mas está disposto a manter uma atitude de desafio pelo menos enquanto aquele estiver disposto a afrontá-lo com a sua presença. Ao mesmo tempo, inveja-lhe o sucesso como escritor.
Os afectos são complexos em D.H. Lawrence sobretudo quando a norma social se tenta impor, prevalecendo, como já vimos sobre as inclinações, naturais. Tal como o relacionamento progressivamente tenso entre as classes sociais, também a nível pessoal, o conflito ameaça estalar, quando é reprimido o conflito latente que resulta de um problema residual: a não aceitação da afectividade e do relacionamento sexual como essenciais ao equilíbrio psíquico.
A partida de Michaelis torna-se inevitável e Connie regressa ao vazio, apesar de consciente de que a relação não tem consistência para perdurar:
Ele não podia manter coisa nenhuma, era parte integrante da sua própria natureza, ter de romper todos os elos e ficar liberto, isolado, abandonado.
Connie fica, a partir daí, totalmente à mercê de Clifford e seus companheiros de tertúlias em Whragby, que vêem os seres humanos apenas como máquinas biológicas: Tommy Dukes que privilegia a vida de espírito como se vivesse na República de Platão e não acredita na amizade desinteressada entre pessoas de sexos diferentes; Mick, que se opõe ao paternalismo de Clifford; o astrónomo Charles May e o escritor Hammond compõem o quarteto que rodeia o dono da casa. Entre eles, predomina a ideia de que nas relações, o plano pessoal não é importante, isto é, interessa apenas o indivíduo, até porque a mulher tende apenas a ser vista como um símbolo de afirmação sexual e social do macho.
Clifford e o seu quarteto valorizam o super-homem, liberto de emoções numa espécie de reacção à época do Romantismo do século XIX. Criticam abertamente o bolchevismo por recearem o ódio ao estilo de vida burguês, mas preconizam, eles próprios, o sufocar do mesmo homem enquanto pessoa.: o sujeito individual é diluído numa supra-entidade que, para o bolchevismo seria o Estado e, para eles será, a Fábrica, a Mina ou simplesmente o Exército. Na perpectiva de Connie, o capitalismo cai na mesma armadilha do bolchevismo, ao diluir a personalidade do operário com a da empresa. A única diferença entre ambos os sistemas, para a senhora de Whragby Hall, consiste, no caso do capitalismo, na negação do ódio entre classes como força motriz:
“O espírito lógico pretende ordenar tudo, e esse tudo converte-se em ódio. Somos todos bolchevistas e hipócritas. Os Russos são bolchevistas sem serem hipócritas.
(…) Somos uns cretinos, uns idiotas desaipaixonados.
Para se ser humano, é necessário possuir um coração, um sexo, senão transformamo-nos em deuses ou em bolchevistas porque deus e os bolchevistas são a mesma coisa, demasiado boas para serem verdadeiras.”
Este posição cria um violento contraste com o discurso do brigadeiro Tommy Dukes
O amor é outra das coisas imbecis dos nossos dias.
(…) Intelectualmente, acredito que tenho bom coração, uma inteligência activa e a coragem de dizer “merda”diante de uma senhora.
Ah!, se eu tivesse! Não, o eu coração está tão paralisado como uma batata, o eu pénis cai e nunca se levanta e eu preferia cortá-lo a dizer “merda” à frente da minha mãe ou da minha tia que são senhoras (pelos vistos Connie não o é). E não sou realmente inteligente, sou apenas um adepto da vida mental.
É precisamente neste ponto, ainda mais do que no plano sexual, que provém a fissura no casamento dos Chatterley, alargada posteriormente com a entrada em cena da figura do couteiro Mellors.
O Couteiro Mellors: o elemento dissonante para uma revolução socio e psicossexual e afectiva
O ponto de viragem na trama dá-se com a entrada em cena desta personagem. O aparecimento do couteiro Oliver Mellors em Whragby Hall marca o ponto de inflexão no curso dos acontecimentos e no quotidiano de Constance. Mas todo o processo começa um pouco antes, com a vinda da enfermeira Mrs Bolton, por insistência de Hilda, que exige a presença de alguém que cuide de Clifford e liberte Constance da influência opressiva do marido. Para Hilda, irmã de Constance, Clifford tem uma personalidade de tal forma sufocante e castradora que se torna imperativo contratar alguém que se encarregue dele de forma a não fazer estiolar a irmã. Mrs Bolton é viúva de um mineiro e uma mulher de meia-idade que se torna uma presença fundamental no romance. Trata-se de uma mulher enérgica e muito dada a mexericos, bastante emotiva nos diálogos, que são autênticas caricaturas. O seu discurso é composto por longos monólogos, cheios de personagens estilizadas, ora angélicas ora demoníacas, como nos folhetins. Mrs. Bolton acaba por divertir Clifford a quem trata como a uma criança grande. Dona de um carácter intrépido e, ao mesmo tempo, caloroso à sua maneira, Mrs. Bolton é a primeira personagem a abrir uma pequena brecha no snobismo de Clifford.
Connie agora tem mais tempo para pensar em si mesma e em começar a ter vida própria.
Relativamente a Mellors, Constance encara-o, inicialmente, como um intruso, uma presença que vem perturbar a tranquilidade que encontra na floresta – o seu local de evasão – e da cabana de caça. No entanto, ao possuir um sentido de observação particularmente apurado, Constance apercebe-se que, para além do efeito de halo provocado pela personalidade fortemente vincada do guarda-florestal, existe naquele homem aparentemente rude uma certa fragilidade: o físico de Mellors, apesar de agradável e atlético, apresenta alguns sinais de exaustão, à semelhança das terras à volta de Whragby Hall, que confinam com a propriedade. Ali, tudo é cinzento, tudo caminha para a morte, exceptuando a faixa verde do bosque e o caminho rosa que vai de casa à floresta. Até aqui as cores se revestem de significado: o cinzento, morte, degradação, doença, miséria; o verde, a vida; o rosa, a felicidade.
Oliver Mellors e D.H. Lawrence- Uma projecção?
Há muitas semelhanças entre o protagonista deste romance e a vida do próprio Autor. Mellors é, tal como D.H. Lawrence, filho de um mineiro e detentor de algumas afecções pulmonares, o que não lhe permite aguentar esforços físicos exagerados como empurrar a cadeira de Clifford colina acima. A Oliver Mellors, tal como acontecia ao jovem D. H. Lawrence, a vida conjugal não lhe sorri: está casado com uma mulher rude e modos desabridos que o abandona para viver com outro homem. Há, aqui, também um certo paralelismo com outro romance do Autor, já anteriormente mencionado, Filhos e Amantes, cujo protagonista é, também, abandonado pela companheira.
O Instinto Maternal de Constance Chatterley e o eclodir do Desejo
A dada altura, o impulso maternal surge na vida de Connie. Clifford está na disposição de aceitar que a esposa tenha um amante, desde que não seja um homem abaixo da sua condição social. O primeiro sinal de atracção de Constance por Mellors é despertado por um acontecimento no qual podemos encontrar alguma intertextualidade ou uma certa analogia com o episódio bíblico em que o Rei David observa Betsabé a banhar-se, sem ser visto. No romance de que aqui tratamos, assiste-se a um episódio semelhante, mas os papéis são invertidos. Neste caso, é a mulher a observadora já que é ela quem ocupa a posição central na trama: Constance dá-se conta da fragilidade nua, presente no corpo do guarda-florestal, exposta à luminosidade diurna, coada pelo vivificante verde das árvores, enternecendo-se. A consciência da beleza e sensualidade do corpo do guarda-florestal virão logo depois. Mellors parece-lhe desde então, um homem substancialmente diferente daqueles que frequentam a sua casa. A visão da semi-nudez de Mellors acordará em Connie o Desejo.
Noutra das suas visitas à cabana de caça, Connie sente-se atacada pela melancolia, causada pelos entraves físicos e sociais à possibilidade de ser mãe. Comove-se ao olhar de uma ninhada de pintainhos, qua a fazem sentir-se inferior até mesmo a uma vulgar galinha poedeira. O sentimento de desolação é ainda mais avassalador quando visita a mulher de um dos caseiros que acabou de ter uma criança. Constance deixa-se fascinar por tudo o que é natural e espontâneo, daí a sua extrema adoração por crianças.
Ao lermos as cenas em que nos transformam em testemunhas dos enocntros do casal, conseguimos perceber em D. H. Lawrence a existência de um paralelismo por ele estabelecido entre a terra e o corpo feminino, o que torna ainda mais violento o impulso que leva à fecundidade em Connie, em harmonia com a estação do ano em que ela e Mellors se tornam amantes - a Primavera - altura em que toda a Natureza parece querer germinar. É neste contexto que acontece o momento mais intenso de fusão entre o ser humano com a Natureza na cena protagonizada por ambos, debaixo de chuva intensa, no bosque, como que num regresso ao Eden genesíaco. O encontro sob a chuva é, ao mesmo tempo, quase uma liturgia pagã, a celebrar a vitalidade do corpo e a fertilidade:
A chuva miúda era como um véu lançado sobre o mundo, tornando-o misterioso e tranquilo, não era fria. O bosque estava silencioso (…) as árvores reluziam parecendo nuas e escuras, como se elas próprias se tivessem despido e as manchas verdes do solo eram ainda mais verdes.
A escrita de Lawrence sofre, a partir do momento em que os amantes se possuem, uma transfiguração radical: passa de analítica, racional e argumentativa a emocional, sensorial e poética, num discurso pautado sobretudo por sensações tácteis, cinestésicas e visuais, celebrando a beleza e a vitalidade da juventude fértil.
As marcas da escrita refinadamente erótica de D.H. Lawrence são marcadamente evidentes notória, sobretudo na forma descrever o acto sexual integrado numa espécie de quadro panteísta (pags 185 e 186), ao glorificar o acto de gerar um filho, sacralizado-o mediante uma espécie de ritual primitivo no ambiente da floresta como os antigos celtas e outras civilizações pré-cristãs. Há, também, neste género de escrita, uma forte intertextualidade com o paganismo dos antigos cultos presentes nos mistérios de Elêusis e nos ritos órficos:
Ela sentia, nos membros e no corpo, a força da bacante a mulher cintilante e veloz que destrói o macho.
O Autor identifica o amor sensual com a vida e cuja vivência se reflecte tanto na personalidade como no estado emocional dos protagonistas.
A partir desta fase do romance, Constance sofre também uma transformação: passa a transmitir a impressão fulgurante de uma mulher realizada , com um leve ar de embriaguez báquica com os seus olhos azuis, velados e estranhamente belos, a ponto de despertar as suspeitas em Mrs. Bolton que fica, a partir de então, fortemente convencida de que a patroa tem um amante:
Ela observou a profunda chama que se via no fundo daqueles olhos azuis e de novo sentiu receio (…) pela sua tranquilidade suave. Ela nunca estivera tão doce e tranquila. (161) As suspeitas de Mrs. Bolton agudizam-se ainda no dia em que esta suurpreende Mellors a vigiar o solar, intuindo ser ele o amante da patroa. Curioso, ainda, é o sentimento de despeito da empregada em virtude de esta ter sentido um certo interesse, não correspondido, por Mellors no passado…
As origens sociais de Oliver Mellors e as afinidades com Constance
Mellors é um homem conhecedor de outros continentes, detentor de uma visão mais ampla do mundo: esteve na Índia, integrado no Exército, fora da Europa talvez demasiadamente civilizada. Dá mostras de ser um homem também invulgarmente culto, sendo filho de um mineiro, o que constitui para Connie prova de esforço pessoal.
Já Clifford, olha o couteiro com alguma distância, precisamente por apresentar estas características, uma vez que “detestava a sugestão de que um ser de outra classe fosse excepcional”.
Do ponto de vista de Oliver Mellors este, ao tomar contacto com Connie, começa por recebê-la com afabilidade, mas muda, depois, para um tratamento formal e algo seco, quando se apercebe que é a esposa de Clifford. Na verdade, não consegue ficar indiferente à sua presença dela, fisicamente, a jovem não se enquadrar nos cânones de beleza da época. Constance é considerada uma mulher de corpo “demasiado feminino”, numa época em que o padrão tido como “ideal” de beleza feminina são as formas angulosas e andróginas, à semelhança dos corpos adolescentes. O físico de Constance transmite, pelo contrário, a proporção das formas arredondadas de uma mulher na plenitude da feminilidade, isto é, a harmonia e a graça, ao invés da beleza propriamente dita: a pele apresenta-se ligeiramente mais morena do que o tão apreciado e aristocrático “mate”. Os olhos são azuis, mas o cabelo, castanho em vez de louro.
Durante as evasões de Connie para os lados da cabana e do bosque, a caracterização da natureza é, quase sempre, evocativa do estado de espírito da personagem e os diferentes elementos são usados estrategicamente como símbolos. É assim que vemos os narcisos, símbolo da vaidade e do egocentrismo, que prolifera dentro da propriedade dos Chatterley, são alvo das "chicotadas do vento" (pg.101). Constance corre para a cabana para se abrigar das rajadas. Connie está cada vez mais consciente de que casou com Clifford mediante uma atracção mútua que se desgastou a tal ponto que o casamento se transformou numa união que faz cada vez menos sentido manter:
A sociedade era terrível porque estava louca. A sociedade civilizada está alucinada. O dinheiro e o pseudo-amor são as duas grandes manias…(pg.113).
Entretanto, entre a Sra. Bolton e Clifford estabelece-se uma relação assexuada que se baseia na luta pelo predomínio mental de um sobre o outro, a ponto de o Autor classifica-los como “um casal doente”opondo-se ao casal saudável, composto por Connie e Mellors.
Durante os primeiros tempos em que Mrs Bolton se instala em casa dos Chatterley, Clifford sente prazer em contradizê-la e à sua pouco subtil forma de tirania: ela domina-o com os seus cuidados, em virtude da sua fragilidade física, e ele a ela, com o seu refinamento.
Connie toma imediatamente consciência da personalidade da enfermeira, sem conseguir evitar um certo sentimento de aversão pela mulher, a quem identifica como uma perfeita bisbilhoteira e um autêntico livro sobre a vida das pessoas da aldeia, que Clifford devora, porque tem uma espécie de gosto pela má língua, que usa na literatura. Mas ambos falam dos outros sem empatia nem respeito.
A partir daqui, o narrador desenvolve uma mini-dissertação sobre a “boa” ou “má” literatura e o apego às convenções ao invés do primado da ética.
Mrs. Bolton acaba por exercer, de forma indirecta, uma influência de alguma maneira positiva em Clifford, levando-o a interessar-se pela mina e pela vida dos mineiros e a desligar-se das suas actividades literárias. Clifford revela-se um industrial de espírito prático, sagaz e astuto, encontrando naquela actividade uma forma como que de compensação face à fragilidade da sua condição física e à aridez da própria vida emocional. À medida que Constance se distancia do marido, este vai-se tonando cada vez mais autónomo no aspecto emocional, mercê dos cuidados de Mrs Bolton e da canalização dos seus interesses, cada vez mais premente, para os negócios.
As dificuldades a longo prazo
O facto de na alta sociedade britânica, herdeira da moral vitoriana, o amor ser sancionado pelas convenções sociais é, para o Autor, sinónimo de uma sociedade doente, que mata a felicidade com a mesma impunidade com que vê a Terra a ser profanada pela poluição, ou mutilada pela indústria. O autor vê este tipo de sociedade como uma sociedade onde a cobiça mecanizada destrói a terra, a vida e o amor.
Face a isto, Mellors tem motivos para, numa sociedade essencialmente materialista, recear o boicote da sociedade ao seu relacionamento com Connie. Em relação às elites, Mellors sentir-se-á sempre como um peixe fora de água:
As classes média e superior que ele tão bem tinha conhecido, eram constituídas por pessoas inflexíveis, de uma crueldade…sem vida por dentro…
Mellors receia a avidez do ser humano sobretudo se combinada com a crueldade mesquinha do mundo do ferro (dureza de personalidade dos industriais do ferro e das condições de vida dos mineiros) e a contaminação da sujidade do mundo do carvão e do ferro. Afinal trata-se da matéria-prima que esteve na base do deflagrar da primeira guerra mundial...
Entretanto, espalham-se rumores acerca de uma suposta gravidez de Connie. Especula-se sobre as capacidades sexuais de Cliff, para o que contribui largamente a tendência para a bisbilhotice de Mrs. Bolton. Constance decide, então, viajar para Veneza e afastar-se de olhares e comentários indiscretos. A cidade italiana é o oposto de Tevershall, escravizada pelo trabalho contínuo e de atmosfera deprimente, onde os pobres são reduzidos a qualquer coisa abaixo do humano. O clima soalheiro é anti-depressivo e facilita o convívio social, mas as diferenças culturais não possibilitam relações profundas ou muito íntimas.
Através da visão de Constance Chatterley, D.H. Lawrence deixa transparecer um profundo pesar pelo facto de: a Inglaterra Industrial apagar a Inglaterra Agrícola, como consequência da visão cínica do mundo, pautado pela inesgotável avidez do lucro, sem deixar de criticar abertamente o conformismo da classe operária.
Connie está convencida que os mineiros são pessoas que se preocupam não com o futuro, mas com o imediato, com a questão diária da sobrevivência (185).
O ferro e o carvão tinham devorado o corpo daqueles homens (…). Tinham a estranha beleza dos minerais.
Clifford, olha-os como combustível: A indústria enche-lhes as barrigas mesmo quando o dinheiro não lhes sobra na algibeira.
Quando se fala em educação dos trabalhadores, Clifford não acredita na transformação do “visco” pelo verniz superficial da educação. Acredita, sim, na pressão esmagadora do meio como modeladora do carácter. Cliff encara a aristocracia como uma função e não como uma linhagem. No plano pessoal, é um homem que parece ter o condão de destruir tudo aquilo em que toca, até mesmo nas coisas materiais, como o jardim e a cadeira motorizada e até a vitalidade dos próprios trabalhadores. É uma personagem que esgota a vitalidade e a duração da vida útil de tudo o que o rodeia.
No tocante ao casal protagonista, começam, entretanto a notar-se algumas fragilidades no relacionamento, fruto sobretudo da insegurança de Mellors. Este receia o desprezo de Constance no momento em que a paixão abrandar, que ela comece a aperceber-se das diferenças sociais entre ambos. O primeiro conflito surge em consequência de Constance achar Mellors “demasiado domesticado”, isto é, sem força de carácter suficiente para defrontar Clifford.
Trata-se de uma crítica indirecta, por parte do Autor, ao conformismo do homem-máquina, o escravo dos tempos modernos, da era industrial, que obedece passivamente enquanto destrói a saúde no trabalho, ao contrair doenças profissionais, como é o caso dos mineiros. A separação eminente do amante deixa-a triste, enquanto que Mellors que a amada, durante a estadia na soalheira Itália, deixe de se interessar por ele.
Em casa, Constante tem ainda de aguentar a falsa submissão e amabilidade de Mrs. Bolton. A irmã, Hilda, desempenha o papel de suporte emocional de Constance Chatterley, apesar de aquela alimentar ainda alguma desconfiança em relação a Mellors, por ser oriundo de um meio social tão diverso do delas. Um abismo social que é, apesar de tudo, fortemente atenuado pelo percurso de Mellors. Apesar das origens humildes, o couteiro dos Chatterley desenvolveu um certo refinamento a que não é alheia a sensualidade. A esta faceta de Mellors está associada a convicção de D.H. Lawrence de que o espírito necessita de sensualidade para poder evoluir. Deste ponto de vista, Clifford representaria a estagnação sentimental e física, que estaria na génese de um falso puritanismo, tão castrador quanto hipócrita, por via de uma sensualidade que erodiu por falta de ternura.
Um interregno no romance
A relação do casal protagonista, sofre um momento de pausa, é suspensa, durante a estadia de Constance em Itália. A descrição do ambiente humano na Villa Esmeralda, onde Connie está hospedada, lembra um romance de Jane Austen, onde não falta uma velha matrona com os seus comentários malévolos, um pároco cerimonioso e interesseiro e jovens raparigas a exibir os seus atributos – físicos e não só – com o único objectivo de arranjar um marido.Veneza era já, no período entre as duas Guerras Mundiais, uma cidade que vivia do turismo, bastante povoada, e em permanente clima de festa. Mas a alegria meridional acaba por se tornar fatigante para o temperamento fleumático, tipicamente setentrional de Connie, a quem o alheamento não conforta, ao contrário do que sucede com Hilda. Para Mrs. Chatterley, actua antes como uma espécie de narcótico. Por fim, Constance acha os italianos afectuosos mas não apaixonados e até um pouco frívolos agindo com as mulheres estrangeiras como se fossem gigolôs. Daniele, o gondoleiro, chama-lhe a atenção pela personalidade esfíngica, independente e incorruptível, ao contrário da maior parte dos seus conterrâneos, fazendo-a lembrar-lhe vagamente Mellors.
O pai de Constance tem, a respeito dos relacionamentos entre classes sociais diferentes, a atitude e a visão de uma pessoa tolerante. Trata-se de um homem abastado, que assume a postura de um livre-pensador, de mentalidade liberal, pragmático embora voltado para si mesmo no aspecto emocional, deixando as filhas libertas para conduzir a vida afectiva como bem entendem.
Mellors, fora do ambiente rural de Whragby Hall, inserido na vida urbana, causa boa impressão, ao transmitir a imagem de homem distinto.
(…) ele podia ser o que quisesse. Tinha um bom ar, natural, que era mais agradável do que qualquer estereótipo.
Apesar de tudo, a insegurança acompanha-o sempre, tendo a consciência de não poder equiparar-se financeiramente à mulher que ama. O motor da vida de Mellors é a ternura, que, de acordo com a convicção do Autor, se funde no Desejo, o qual desperta sempre o sentimento de medo nas pessoas. Este receio está quase sempre associado o sentimento de que o desenvolvimento da relação amorosa se traduza no fracasso das expectativas. D.H. Lawrence é da opinião que isto é extremamente prejudicial uma vez que "um estado de espírito caracterizado pelo medo ou pela apreensão que torna dez vezes mais violentos quaisquer choques sofridos”. Falando pela voz da sua personagem, Oliver Mellors, o Autor fala do medo da própria morte ou de qualquer outro cataclismo ou acontecimento imprevisto que possa colocar um fim ao relacionamento.
Um aspecto positivo é o facto de Mellors e sir Malcolm se tornarem aliados, uma surpresa até mesmo para a própria Constance:
“A sério, não fizeram nada excepto estabelecerem a velha franco-maçonaria da solidariedade masculina”. (pag 328)
Face à notícia da intenção de divórcio de Connie e da existêcia de outro homem na vida desta Clifford reage de forma infantil, exactamente como a criança que se vê de repente sem um brinquedo com o qual há mito tempo não jogava, refugiando-se no “colo” de Mrs. Bolton, a qual apesar de tudo não deixa de sentir por ele uma ponta de desprezo.
A revelação total das intenções de Connie o golpe de misericórdia para Clifford. Na sua última carta a Mellors, Constance fala da situação económica, das alterações estruturais, do trabalho no ramo das minas e do carvão onde, numa profunda reestruturação da economia em consequência do crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, o acto de não gastar só resolve uma parte do problema, o qual só se combate eficazmente criando mais emprego e mais salários, fazendo antever as Grande Depressão que se avizinha e antecede uma Segunda Guerra Mundial
Sinto no ar as grandes mãos humanas que apertam a garganta dos que querem viver. Dos que querem viver para além do dinheiro.
Face a tudo isto, "O Amante de Lady Chatterley" será sempre o livro que fala do desejo como pulsão fundamental para a vida mas que, para além disso, põe em evidência a extrema importância da eterna procura d ideal absoluto de justiça social.
Cláudia de Sousa Dias
17.09.2011 e revisto em 14.11.2011
O Filme Lady Chatterley, de Pascale Ferran
Apontamento:
(a partir do blogue: http://50anosdefilmes.com.br/2009/lady-chatterley/ ):
“No ano 2006 foi lançado uma excelente adaptação do romance para o cinema pela realizadora francesa Pascale Ferran. Esta mulher de talento e sensibilidade inequívocos, produziu um filme descrito como uma adaptação que se caracteriza por:
um ritmo lento, um pouco como o próprio ritmo da vida no campo. O visual é primoroso, cuidadíssimo; intercalando-se às sequências de acção, há diversas cenas da natureza, as árvores, um riacho, um detalhe de uma flor, um pequeno lagarto.
A realizadora inspirou-se na segunda versão do romance O Amante de Lady Chatterley, ao contrário do comentário do livro acima descrito que se baseou na terceira e definitiva versão do romance.
«Os últimos anos de Lawrence foram dedicados principalmente a pintar quadros e a escrever e reescrever sua última novela, O Amante de Lady Chatterley, para descarregar sua amargura acumulada contra a sociedade e gravar sua crença de que a civilização poderia encontrar a cura através de um novo relacionamento entre homens e mulheres. Publicado numa edição limitada em Florença (1928) e em Paris (1929), apareceu em uma versão expurgada em 1932. O texto completo só seria publicado em 1959, em Nova York e, em 1960, em Londres, quando foi tema de um sensacional caso judicial, que girou em boa parte em torno da justificativa do uso nesse romance de palavras ‘tabu’ relativos ao sexo.»
«Quando o livro foi lançado, a imprensa inglesa usou expressões como “esgotos da pornografia francesa”; “o livro mais sujo da literatura inglesa.»
Frieda Lawrence, a viúva do autor, fala de três versões versões do romance. Frieda, em solteira, Frieda von Richthofen, era descendente de um barão alemão, tendo casado com Ernest Weekley, que por sua vez foi professor de francês de Lawrence na Universidade de Nottinhgam. Lawrence "rouba-a" ao ex-professor e vivem juntos até o final da sua curta e agitada vida.
Frieda escreve uma carta aberta, datada de Londres, 26 de janeiro de 1933: «D.H.Lawrence escreveu três versões do romance O Amante de Lady Chatterley, porém tão diversas entre si que, na realidade, constituem três diferentes livros. Conheço o fundo da versão original e acompanhei o terramoto que sobreveio à publicação reservada dessa versão, e às várias edições seguintes, autorizadas ou não. Desesperado por não encontrar editor na Inglaterra, Lawrence autorizou uma edição na França, a qual saiu pouco antes de sua morte. (…) Por uns tantos motivos que não quero mencionar, autorizei uma edição expurgada, para introduzir esse livro na Inglaterra, na parte contra a qual não houvesse objecções. Mas Lawrence queria uma edição bem impressa, sem as falhas tipográficas da edição original, e a um preço ao alcance de todos. Queria mergulhar no povo. Trabalhando de acordo com os seus desejos, promovo, agora, a presente edição, que deve ser considerada a forma definitiva de sua terceira versão, escamoteada dos defeitos da primeira e sem corte ou atenuação nenhuma. Suponho que Lawrence aprovaria de coração a saída desta bela edição a preço popular; e, no caso de a tentativa ser bem sucedida, editaremos também a segunda e, se possível, ainda a terceira versão da sua obra – a que lhe custou o último esforço.”
A versão da realizadora: "Eles não comentam, eles experimentam"
“Pascale Ferran, então, escolheu como base do argumento que escreveu em colaboração com Roger Bohbot, a segunda versão do romance, e não a terceira, a que “custou a Lawrence o último esforço”. A realizadora escreveu, ela mesma, um texto,reproduzido no site www.unifrance.org, explicando por que fez essa opção: «A existência destas três versões não tem nada de surpreendente em si mesma; é o método de Lawrence escrevê-las que éo uma excepção na história da literatura. Entre cada versão, Lawrence deixava repousar o manuscrito por vários meses, e passava a escrever outras coisas. Quando retomava seu projecto, ele não partia do manuscrito precedente para fazer modificações, e sim reescrevia integralmente uma segunda versão. Depois, mais tarde, uma terceira.»
Segundo a realizadora, a trama e as situações básicas são comuns às três versões, mas elas não são estritamente similares, nem os diálogos são os mesmos. E as próprias personagens centrais do romance – Lady Chatterley e o marido, Sir Clifford, o couteiro que se torna seu amante, a Sra. Bolton, a enfermeira de Clifford – “flutuam muito de uma versão para outra”. Até o nome do amante varia; Mellors numa, e Parkin na outra.
Pascale Ferran acha a terceira versão é muito “palavrosa” e que, nesse ponto, o livro ficou envelhecido. «Como se Lawrence, diante do carácter eminentemente subversivo de seu tema e da censura que ele antecipava, se tivesse sentido obrigado a teorizar, pela voz de seus personagens, a tese de seu romance: o amor é mais forte que todas as barreiras sociais.»
E então ela leu a segunda versão, editada em França pela Gallimard, com o título de Lady Chatterley et l’homme des bois (o homem do bosque). A segunda versão pareceu a ela mais simples, mais directa no tratamento do tema, menos atormentada. Parkin, o couteiro, aqui é um homem simples, do povo, das classes trabalhadoras, que deveria ter sido mineiro, que escolheu trabalhar no campo, ser couteiro, para escapar da vida em grupo, em sociedade. Na terceira versão, o couteiro Mellors é um ex-oficial do exército na Índia que escolhe uma vida de eremita. “Mas sua cultura e suas origens tornam menos escandalosa sua relação com Lady Chatterley. De uma certa maneira, intelectualmente, eles são quase do mesmo mundo, o que explica que eles podem comentar juntos o que se passa entre eles. Em Lady Chatterley et l’homme des bois, eles não comentam, eles experimentam.”
Ambas as versões são, no entanto complementares, sobretudo a terceira, na forma de livro (mais cerebral) e a segunda como base de argumento para o filme de Ferran (mais sensorial). De facto, o Autor era da opinião que no homem ambas as facetas se desenvolvem em simultâneo.
Depois de todas as aberrações que se escreveram sobre o romance e o Autor mais vale que o leitor descubra por si: leia o livro, veja o filme ou se possível, leia a segunda e a terceira versão do romance. E diga de sua justiça.
CSD