Dados Bio-bibliográficos:
José Eduardo Agualusa é
natural do Huambo, Angola, nascido a 13 de Dezembro de 1960. Viveu a
infância e a adolescência rodeado do contexto de guerra do
Ultramar. Frequentou a Universidade na capital portuguesa, tendo
estudado Agronomia e Silvicultura. Actualmente, reparte a vida entre
três continentes: Portugal, Angola e Brasil.
José Eduardo Agualusa escreveu
várias peças de teatro, duas delas e parceria com o escritor
moçambicano Mia Couto. Agualusa beneficiou já de três bolsas de
criação literária: a primeira, atribuída pelo Centro Nacional de
Cultura, produziu Nação Crioula e 1997; a segunda, em 2000,
foi atribuída pela Fundação Oriente e permitiu-lhe visitar Goa
durante três meses, cenário que serviu para inspirar a trama de Um
estranho em Goa; a terceira, obteve-a em 2001 através da
instituição alemã Deutscher Akademisher Auslandersdienst
durante a qual residiu em Berlim ocupando-se a escrever O
ano em que zumbi tomou o rio. No
ano de 2009, ficou dois meses em Amsterdão, onde escreveu Barroco
Tropical, a convite da Fundação
Holandesa para a Literatura. José
Eduardo Agualusa é
também cronista da revista “Ler” tendo também dirigido o
programa “A hora das Cigarras” na RDP África, dedicado
inteiramente à música e literatura africana. Em 2006, tinha-se já
tornado membro fundador da editora brasileira Língua Geral, dedicada
às Literaturas Lusófonas. É também membro da União de Escritores
Angolanos.
Olhares sobre
Estação das Chuvas
Dada a complexidade da obra decidimos, numa perspectiva comparativa
dotar os leitores deste blogue da visão de quatro autores que
investigaram esta obra de José Eduardo Agualusa, após o que
finalizaremos com uma breve conclusão acerca da obra em si.
1. José Eduardo
Agualusa é considerado segundo vários investigadores, um
escritor pós-moderno, criador de uma meta ficção histórica, no
caso particular do romance Estação das chuvas, embora
possamos encontrar marcas dessas corrente literária também em
outras obras da sua autoria como no caso de O Vendedor de
Passados. Mas é neste Estação das Chuvas que o Autor
faz uma tentativa evidente de reconstituição histórica e
identitária de um determinado período da história de Angola.
Tentativa essa que está imbuída de uma forte componente social,
cultural e política da Angola pós-colonial, a pretexto de uma
suposta biografia romanceada acerca de uma poetisa e historiadora,
por parte do narrador participante: Lídia do Carmo Ferreira ,
activista do Movimento de Libertação de Angola. Esta é uma
personagem ficcional, mas poderia perfeitamente ser uma personagem
histórica dada a sua verosimilhança. Lídia é o pretexto do qual
se serve o narrador para efectuar uma minuciosa investigação e
discussão histórica usando o monólogo interior levado a cabo pelo
jornalista enquanto se dedica a reconstituir a vida da
poeta-historiadora, sobre o intrincado e interminável processo de
Guerra Civil e que sofreu aquele país após a Independência em
1975.
O relato biográfico
desta personagem fascinante que é Lídia do Carmo Ferreira, a qual
desaparece em 1992, é construído de forma consolidar a ideia de
verosimilhança da heroína do romance sendo-lhe conferindos os
contornos de uma personagem real.
A verosimilhança
desta personagem ficcional é construída de forma cuidada, partindo
da acção do narrador participante: um jornalista, assume a missão
de entrevistar a escritora para construir a sua biografia, integrada
no processo histórico do seu próprio País e cuja credibilidade é
sublinhada por uma cuidadosa recolha de documentos efectuada pelo
biógrafo: cartas, depoimento, entrevistas e escritos dispersos.
O romance inicia
com um episódio onírico, uma espécie de sonho-pesadelo de conteúdo
aziago, cheio de presságios de morte – a poeta sente-se boiar num
mar infestado de medusas - , um lugar onde o veneno e o perigo de
morte pairam apesar da beleza e paz aparente. Não se trata de
coincidência o facto de este sonho ocorrer logo na madrugada que se
segue à declaração de independência daquela nação País,
assinalada pelo discurso do Presidente Agostinho Neto. A história de
Lídia prossegue com um recuo no tempo, até ao início do século
XX, onde assistimos ao início da decadência do domínio português
em África, passando depois a observar o percurso da escritora
durante a Guerra do Ultramar, e da Guerra Civil, após a
descolonização.
O desaparecimento
de Lídia, altera um pouco os planos do jornalista cujo o principal
objectivo será, então, o de descobrir o seu rasto e, ao mesmo
tempo, reconstituir o passado histórico daquela nação,que se
desenvolve paralelamente à versão oficial dos factos. Ao mesmo
tempo, resgata a voz de todos os poetas desaparecidos e caídos no
esquecimento ou afogados na malha de intrigas de um regime político
pouco tolerante com a diferença.
Para a
investigadora Tércia de Montenegro (1) detecta dois tipos de
narrativa em Estação das Chuvas: o primeiro trata da
construção de história de Lídia, envolta num cenário onírico
que emana de um ambiente onde estão presentes os elementos do
fantástico, do mito e da lenda que se influenciam reciprocamente
dentro do cenário histórico (tal como o nascimento de Lídia, a
lembrar um pouco a narrativa carregada de realismo mágico de Gabriel
García Márquez, ou a atmosfera algo surrealista do sonho de Lídia
adulta, a boiar no mar, um a presságio de morte, a sua ou a de um
país tal e qual o conheceu; ou, ainda, a explicação mística para
o aparecimento dos corpos femininos mutilados remetendo para as
antigas lendas africanas e tradição oral da cultura daquele
continente. Neste registo, a escrita de Agualusa adquire uma
tonalidade marcadamente poética, mas sublinhando um forte contraste
com descrições de extrema violência aquando da narração dos
episódios relacionados com a guerra civil e de repressão política
face a movimentos dissidentes em relação ao Poder, que Tércia de
Montenegro classifica de “trechos de intensa clareza realista”.
Exemplo disto são as descrições dos ambientes nas celas prisionais
e o desespero, patentes nos escritos das paredes. Para Tércia de
Montenegro, este estilo realista como que “agride” o primeiro,
pintando o quadro de uma nação assolada pelo ódio e pela guerra
sem deixar espaço à existência de seres que se dediquem à poesia.
A esta dicotomia de
discurso segue-se o olhar dos estudiosos de literatura João Carlos
Luna e Lucas Victor da Silva (2) que abordam a problemática do
distanciamento entre a narrativa histórica e literária de um outro
ponto de vista, em Estação das Chuvas ao contraporem
os diversos géneros discursivos presentes na obra sob vários
aspectos. Ambos tentam, em primeiro lugar, averiguar qual a relação
existente entre História e Literatura na obra decorrente da
contradição entre o título – contendo em si uma conotação
poética, trata-se na verdade de uma metáfora, pois a nação está
a arder com a guerra civil e sequiosa de água, de um longo aguaceiro
que apague a guerra e lave a nação da destruição causada pelo
ódio e pela corrupção; um aguaceiro que parece nunca
chegar...Entretanto o leitor embrenha-se na história de Lídia,
embarcando num género discursivo totalmente diverso daquele, assente
na polémica que se gera à volta do seu desaparecimento, em 1992,
com o terminar da guerra civil, altura e que deveria ter chegado a
“estação das chuvas”. A partir daqui, o leitor sente a pulsão
da curiosidade que o leva a seguir o rasto de Lídia, através de uma
Angola devastada pelas chamas do ódio. É desenvolvida uma biografia
ficcional, mas frequentemente interrompida pelos relatos da situação
política, pela explicação da conjuntura económica e pela
preocupação do narrador em esclarecer as intrincadas ligações de
diversos movimentos políticos dissidentes e pela explicação dos
interesses das potencias económicas externas nos recursos naturais
daquele território. Por outro lado, esta dupla de investigadores
salienta a alteração rítmica respeitante à biografia desta Lídia
do Carmo Ferreira pela particularidade desta ser formada por vários
tipos de discurso: o do narrador, em termos jornalísticos, o do
mesmo narrador, mas adquirindo um pendor poético por vezes eivado de
um pouco de surrealismo, entremeando a própria prosa com poemas de
Lídia, ou coloquial ao utilizar o conteúdo de entrevistas e
correspondência. O romance adquire assim um tom documental,
permitindo-nos escutar a “voz” da personagem ficcional biografada
como de de uma personagem real se tratasse. Lídia será assim, uma
personagem tipo, ou segundo o Luna ,et al., “um aproveitamento ou
fusão de uma série de personagens reais”. Luna e Silva propõem a
partir daqui uma forma de olhar a relação História-Literatura em
Estação das Chuvas como sendo constituinte de um
campo de investigação que tem uma forte componente literária
assente na história da Cultura da África Colonial Portuguesa. São,
depois, explorados vários vectores temáticos que se confrontam, na
óptica destes dois autores, em relações de bipolaridade, como a
relação entre o elemento fantástico e surreal versus as realidades
históricas, mas com ligeiras nuances em relação à visão
de Tércia de Montenegro.
Luna e Silva
apontam para a intenção do Autor Agualusa em diluir a fronteira
entre estes dois elementos opostos – História e Literatura –
numa tentativa de aproximar a lucidez da loucura, o real do surreal,
o possível e o absurdo e efectuar jogos semânticos, assentes na
criação de paradoxos. Esta fusão de géneros discursivos
adequa-se, para esta dupla de investigadores, a um regime político
pouco favorável à liberdade de expressão, onde o historiador , em
consequência de uma politica que promove os interesses vários –
uma política de supressão e desaparecimento de vestígios
históricos, não pode (ou não deve) monopolizar o estatuto de
detentor de uma verdade única e inequívoca. Por essa razão, o
Autor serve-se de um discurso fronteiriço entre a história e a
ficção “onde a segurança da verificação histórica e a
arbitrariedade da imaginação literária se relativizam e se
constituem mutuamente” (idem). Estes dois investigadores são
de opinião que José Eduardo Agualusa “joga” com ambos os
elementos, jogo esse que está patente no subtítulo da obra –
Romance – a implicar uma pretensão literária. O
mesmo jogo semântico é, por sua vez, afectado pela contradição
inerente ao facto de o leitor ser constantemente “confrontado com
uma série de marcas do discurso histórico”. Dentre estas,
encontram-se citações de jornais, notas de rodapé a apontar para
fontes “históricas”, entrevistas ficcionais, trechos narrativos
de contextualização histórica, bem como o referências à
metodologia usada também ela em investigação histórica, por parte
do protagonista, incluindo técnicas de separação, classificação
de documentos, compilação e transposição de pseudo-vestígios,
inclusive reprodução de imagens, sons...
Ao longo da obra,
estão também presentes textos cujo objectivo é a contextualizar
historicamente a exposição da relação causa-efeito entre a forma
como termina a segunda Guerra Mundial e e a alteração das peças do
jogo de xadrez em relação ao domínio colonial por arte das
principais potências europeias. Luna e Silva chamam também a
atenção para o facto de que o narrador de Estação das
Chuvas age na verdade como um historiador – fala na
terceira pessoa, o que dá um carácter mais objectivo à narrativa
-, ampliado pelo facto de Agualusa mencionar nos agradecimentos ter
feito um trabalho considerável de pesquisa histórica . No entanto,
descobrimos pouco depois, que Lídia é uma personagem fictícia.
Assim, o narrador enquanto personagem passa a usurpar o lugar de
protagonista e a assumir o papel de historiador marcando, assim, o
romance com pendor documental.
Segundo Luna et al,
há, em Angola, uma mobilização por parte dos intelectuais, para
lembrar uma época em que as autoridades, herdeiras das políticas do
passado, insistem em fazer esquecer. Uma delas consiste na forma
clássica de exploração do homem: “arrancar-lhe a palavra e
subjugá-lo pelo silêncio. Engrandecê-lo e reduzi-lo a nada; e
assim, facilitar o mando” (ibidem). Assim, a forma mais
fácil de impor uma cultura a outro povo parece ser, segundo Luna e
Silva, a de “silenciar o adversário, sobretudo se este tiver a
capacidade de moldar, na consciência colectiva, o sonho de um futuro
diverso, com outras possibilidades ou caminhos”. A única via a
apontar, aqui, parece ser assim a da obediência. Consequentemente, o
povo escravizado, submetido (ou uma facção política dissidente)
seria obrigado a calar a própria voz e a acatar a voz alheia, tal
como sucedera durante séculos com a cultura ancestral africana.
Deste modo, Estação das chuvas acaba por se
transformar no produto de um esforço para contrariar a tendência
para o desvanecimento da memória colectiva e procurar dar voz à
vozes que foram condenadas ao silêncio, precisamente no momento da
história de um país em que se chama a atenção para a falta de
informação e de documentos sobre a história recente de Angola.
Hoje em dia, vários
escritores africanos, entre eles Mia Couto e José Eduardo Agualusa,
dedicam-se a esta chamada “literatura de fronteira, resultante da
fusão entre aquilo que, classicamente, se entende por verdade
histórica e memória colectiva, procurando recuperar a livre
expressão de entre aquilo que se pode chamar de “caos
pós-colonial”. A Memória é, aqui, usada como arma, para trazer a
lume o testemunho de quem presenciou a história para construir a
narrativa. Sendo que a História é algo que surge, na óptica
destes dois estudiosos de Agualusa como algo de transaccionável no
mercado de bens culturais – cinema, televisão, editoras, artes
plásticas – o que torna impossível que esta deixe de atrair
romancistas. Mas isto obriga a traçar limites a alguma promiscuidade
que possa ter lugar entre História e Literatura no sentido de evitar
confundir relatos usados no romance com História, uma vez que a
Memória histórica está veiculada, à percepção, à interpretação
de carácter emocional e subjectivo de quem a relata. Por outro lado,
a história de que se fala em Estação das Chuvas lida
com factos recentes onde se verifica um afastamento progressivo da
utopia. Para a explicar recorre-se normalmente a argumentos
gnosiológicos e expositivo-dialécticos sem se apoiar exclusivamente
no testemunho oral, implicando a existência de documentos e
vestígios a comprovar o mesmo testemunho, o que torna
particularmente difícil a tarefa do historiador, face àquilo a que
Luna, et al, chamam de “política de apagamento de vestígios de
origem autoritária”. Já a Literatura, precisamente por não ser
História, pode recorrer a outro tipo de estratégias discursivas
historiográficas e “nadar nas águas fronteiriças entre o
verdadeiro e o verosímil, ao participar activamente na criação de
sentidos para o mundo e agir politicamente sobre ele”(Ibibidem).
Consequentemente, a Literatura pode tornar-se um agente de mudança,
daí falar-se em “polifonia discursiva” ao referirem-se a Estação
das Chuvas. Trata-se de um discurso a várias vozes, de onde
jorra abertamente a ironia eivada de cepticismo, face a visões
redutoras ou mistificadoras, a chamar a atenção para a história
não contada oficialmente: o ponto de vista dos vencidos.
José Eduardo
Agualusa, por sua vez, chama a atenção para perigo do
estreitamento da visão que faz da História único ramo do saber
autorizado a falar sobre o passado, precisamente pelo facto de esta
versar quase sempre sobe o ponto de vista dos vencedores. Daí Luna
et al fazerem notar que: “Lídia é historiadora mas escreve
poemas”. Do mesmo modo Agualusa é jornalista e escreve romances. A
personagem Lídia do Carmo Ferreira é assim a ponte possível entre
a Literatura e a História no romance Estação das Chuvas,
de cuja memória representativa de um conjunto de vozes silenciadas
Agualusa se serve como veículo de acesso ao passado.
Lídia nasce em
1928, no início da ditadura do Estado Novo, vive as transformações
do novo padrão político no tocante ao domínio colonial. Cresce a
ouvir as críticas ao regime, estuda na metrópole, tal como os
membros das élites luso-descendentes e crioulas. Lídia é uma
criação de José Eduardo Agualusa, mas pode perfeitamente
representar um tipo social – a mulher culta, de consciência
política e com capacidade interventiva. Faz também uma incursão em
Berlim para aprofundar os seus conhecimentos sobre um tema não
valorizado no mundo académico do Portugal de então: a história de
um africano protegido por um nobre alemão que se tona um influente
intelectual no século XVIII, em Halle, Jenna e Wittenberg. Lidia do
Carmo Ferreira convive com pessoas ligadas ao Movimento da Luta
Anti-Colonial, juntamente com o poeta Mário Pinto de Andrade. Há
uma passagem do texto em que ambos discutem de forma calorosa a
questão da negritude e do tropicalismo na poesia africana e onde são
também discutidas as diferenças etno-culturais e de estatuto
socioeconómico entre as populações pobres, alheias a toda e
qualquer ideologia política, traçando os contornos do abismo entre
a África profunda e as grandes cidades vergadas ou aculturadas –
sob o peso da Velha Europa. A respeito da sua própria poesia, Lídia
sente-se o produto da fusão de ambas as civilizações, como iremos
ver a seguir.
A investigadora Iza
Quelhas -
doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, desde 1996, professora adjunta de Literatura Brasileira na
Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual Rio
de Janeiro, desde 1997 – classifica Lídia enquanto personagem como
“uma intelectual de fronteira”, indo ao encontro da visão da
dupla de investigadores Luna e Silva acerca da ligação estabelecida
em História e Literatura, na obra de que aqui tratamos. Assim, sendo
Lídia Historiadora e, simultaneamente, poeta, torna-se o principal
elo de ligação entre estas duas vertentes. É, por isso, construída
como uma personagem que se movimenta numa espécie de limbo, algures
entre os meandros da História que implicam a investigação
científica no ramo e a criação literária.
O
poeta Mário Pinto de Andrade (personagem real) é apresentado como o
poeta da negritude. Entra em diálogo – fictício, obviamente –
com a Poeta para acusar Lídia de “tropicalista”, à semelhança
de Gilberto Freire, provocando uma reacção na jovem, a qual
conforme salienta Iza Quelhas e muito bem, se sente culturalmente
crioula, ou seja, “mestiça”: Ela transcende a questão racial
e pensa na crioulidade culturalista que inclui todas as cores
daqueles que politicamente se comprometem em combater o imperialismo
colonial (3).
Lídia
emerge, assim, de um cenário social onde a cor da pele caracteriza
não só o estatuto da pessoa mas também estratifica a poesia. Esta
personagem acaba por representar, de certa forma, um certo
hibridismo, não tanto pela cor da pele, mas pela formação
histórica e cultural que a vincula a dois mundos que se confrontam.
O facto de Lídia viver permanentemente nesta zona de fronteira,
obriga-a a pagar um preço: uma vida em contacto permanente com a
hostilidade alheia e a insegurança, que culminam num forte
sentimento de inadaptação, de que nos apercebemos logo no primeiro
capítulo, onde a protagonista sonha com o oceano.
Da
mesma forma que Luna e Silva, Iza Quelhas problematiza alguns
aspectos sócio-culturais da relação entre História e Literatura
cuja influencia recíproca parte das estratégias discursivas de
Estação das Chuvas. Esta Autora destaca a a particularidade
de a personagem se movimentar num universo onde escasseia a
informação em termos de fiabilidade e fidedignidade pelas
dificuldades de validação das mesmas relativamente aos factos
sociais e políticos da história recente de Angola, sobretudo no
período pós-independência. Trata-se assim de um problema político
que perturba as questões metodológicas para quem deseja tratar as
questões históricas do ponto de vista científico. Ainda no mesmo
artigo, Iza Quelhas refere duas formas distintas de produção
literária: a literatura usada como denúncia; e aquela que passa a
ocupar o lugar de verdade histórica, acusando um confronto entre
discurso literário e discurso político, como acontece neste romance
de Agualusa.
Um
facto curioso é que o próprio autor de Estação das Chuvas
chegou a receber no seu correio electrónico, informações sobre a
sua própria personagem de gente que afirmava tê-la conhecido. E, se
calhar, conheceram...Uma vez que Lídia aparece com participante
activa do projecto relacionado com a independência de Angola,
associado à construção de uma estado de direito democrático, é
natural que muita gente possa ter conhecido alguém com
características idênticas. Mas aqui o posicionamento ético do
escritor funde-se no seu projecto estético, através da
criatividade, fazendo do romance um veículo difusor de valores.
Estação das Chuvas insere-se assim na literatura do
tipo “formativo” a tomar parte activa no processo de construção
de cognições do leitor. O tom testemunhal está presente, como é
típico em literatura africana, desde as raízes da tradição oral
que se mantém nos contemporâneos. Este tom testemunhal confere
verosimilhança e esbate fronteiras “entre literatura e história,
em tempos neoliberais” (Quelhas, 2009). A verosimilhança de Lídia
do Carmo Ferreira nasce a partir de textos, que seriam supostamente
de sua autoria e da “sua” memória enquanto captada através, de
entrevistas, cartas, poemas, etc. Esta ideia é confirmada na citação
de José Eduardo Agualusa, nos agradecimentos, onde refere vários
nomes ligados à independência de Angola, salientando que o romance
“deve muito a alguns amigos que me apoiaram durante o trabalho de
pesquisa e documentação ou que se dispuseram a partilhar comigo as
suas memórias.”
Iza
Quelhas chama ainda a atenção para a estrutura e Género Narrativo
na obra onde o romance se apresenta dividido em nove parte: “No
Princípio,” “A busca”, “O exílio”, “O dia eterno”, “A
euforia”; “O medo”, “A fúria” e “O fim”, sugerindo na
sequência dos títulos a evolução da trama. No entanto, nenhum dos
capítulos correspondentes a cada uma destas partes, que dividem a
narrativa têm título, apesar de estarem numerados.
Iza
Quelhas chama a atenção em particular para o onde é
particularmente notório o entrelaçamento narrativo entre a forma
narrativa literária e histórica em que se dá o confronto entre
realidade e verosimilhança: o episódio do assassínio das
“sereias”, isto é, mulheres cujos corpos aparecem horrivelmente
mutilados, cortados rente ao umbigo, facto que a tradição popular
atribui ao mito das “Kianda”, isto é, de mulheres-peixe, cuja
parte inferior do corpo teria sido cortada para ser vendida no
mercado... As suspeitas caem inicialmente nas populações que,
tradicionalmente praticavam canibalismo. Por outro lado, o racismo
paternalista de alguns colonos, sobretudo de origem anglo-saxónica
afirmavam tratar-se de um crime demasiado “requintado”, que
exigia demasiados detalhes para serem planeados por gente negra:
“Um
crime desta natureza requer a ciência de um homem instruído e a
sensibilidade de um lorde inglês...” (5)
A
intenção do autor ao descrever esta passagem está carregada de
ironia, a realçar a discriminação racial, feita de forma subtil
mas evidente, com o objectivo de estratificar os níveis de
inteligência humana consoante as etnias e com base exclusivamente na
cor da pele, numa perspectiva de puro relativismo cultural e
etnocentrismo europeu, subestimando aquele que é diferente.
No
romance, a personagem Lídia atravessa uma crise assaz séria de
identidade fruto da pressão cultural a que vai sendo submetida ao
longo da vida e que a coloca em confronto com grande parte dos
restantes escritores angolanos, como se vê no poema seguinte:
“Já
não sei quem fui, quem sou
Já
não sei quanto de mim
não
a vida, mas aquilo que, da vida,
em
algum livro, eu li.”
As
intertextualidades em Estação das Chuvas ainda segundo I.Q
consistem em estratégias que se revelam decisivas para salientar o
efeito da pluralidade das vozes e diversas temporalidades que estão
na base da arquitectura da obra. Segundo esta investigadora, o leitor
deparar-se-á com um narrador que se encontra “em trânsito”,
isto movido ela busca contínua de algo que parece ser o motor que
impele quer ao desenvolvimento da narrativa, quer da linguagem.
Encontramos personagens semelhantes em obras como as de Antonio
Tabucchi e Fernando Pessoa.
A
sensação de incompletude que encontramos em muitos escritores
pós-modernos como Agualusa, amplia e multiplica o significado
simbólico que está presente ao longo da narrativa. Segundo os
estudiosos do pós-modernismo na literatura a actual, a concepção
quer da Literatura quer da História é a de que ambos os discursos
são construções convencionadas em formas linguísticas diferentes,
mas que implicam o conhecimento na área das ciências sociais e
humanas. Ambos os campos de investigação ou de construção da
linguagem referem-se ao Homem na sua especificidade enquanto falante
e produtor de texto. Assim, sempre que o Homem sai fora do texto,
saímos do âmbito das Ciências Humanas e entramos no campo das
ciências físicas como a Biologia, a Astronomia etc. Mais: entra-se
pura e simplesmente no campo da tecnicidade financeira ou da
Engenharia Económica desumanizada. Iza Quelhas defende que o
narrador de Estação das Chuvas evidencia o quanto as
nossas memórias discursivas e textuais formam verdades e
conceptualizações ao promover a ligação de saberes e crenças e
de toda uma multiplicidade de aspectos que estão na base da condição
humana. Desta forma, o acto de busca da indefinição tem a virtude
de “deslocar o olhar dos leitores”(Quelhas, 2009) da simples
ficção para uma meta-ficção em constante devir, sobretudo no caso
da construção da História enquanto Ciência Social. No final do
século XX, este estilo adoptado por José Eduardo Agualusa
constitui-se como uma espécie de meta-saber construído na e
pela linguagem (3). O hibridismo discursivo em Estação das
Chuvas facilita o levantar de problemas, o questionar e
reformular a nossa própria formação ideológica. Partindo deste
pressuposto, tudo o que é lido passa então a accionar uma leitura
significativa, de forma a permitir formar ligações de sentido e
permitindo a coesão de forma coerente na compreensão do texto. Isto
obriga o leitor a um papel activo em permanente “diálogo” ou
monólogo interior com o texto em si ao invés de se tornar mero
receptor, isto é, um leitor passivo.
Por
outro lado, a leitura de Estação das Chuvas permite
uma compreensão privilegiada da história recente de Angola, ao
abrir todo um leque de possibilidades de reflexão crítica face a
personagens reais que participam na trama e que são integradas num
contexto ou ponto de vista até então impensado.
Para
I.Q. há textos na obra que indiciam claramente que a ditadura de
Salazar “reforçou o aparato repressor após o fortalecimento dos
movimentos angolanos de emancipação cultural no período após a II
Guerra Mundial (3).” Portugal seria então, em meados do século
XX, um país subdesenvolvido e essencialmente agrícola, mas na
óptica desta investigadora, não poderia, por esta razão,
desenvolver relações económicas pacíficas de forma a prolongar o
domínio colonial ao longo de mais algumas décadas. O Continente
Africano vai, assim ,construindo a sua emancipação ao longo das
décadas de 1950 e 1960, mas a África Portuguesa só conhece o fim
do domínio colonial português com a Revolução dos Cravos em 1974.
Ainda no final dos anos 1950, dá-se uma forte repressão dos
movimentos anti-coloniais em Angola.
“Em
Angola, a polícia politica portuguesa prendera dezenas de
nacionalistas, numa operação que marcou o endurecimento do Regime
de Salazar em relação às colónias e que ficou conhecida como “o
processo dos 50” (Quelhas, 2009). No romance, Lídia do Carmo
Ferreira faz parte do MPLA, movimento que se torna hegemónico após
a emancipação, altura a partir da qual a poeta-historiadora se
começa a afastar do partido. Para mais, a ausência de unidade entre
as diversas facções politicas dava-se, segundo a mesma
investigadora, em função de divergências políticas, ideológicas
e étnicas:
«Os
grupos agiam liderados por membros das élites angolanas que se
colocavam como vanguardas políticas.”(3)
A
independência de Angola dá-se em 1975 a 11 de Novembro, mas abrindo
caminho à Guerra Civil entre facções políticas. O MPLA toma
Luanda, apoiado por Cuba, tal como aparece expresso na narrativa de
Agualusa, dá-se ainda a rebelião da UNITA, havendo ainda outras
facções apoiadas por Mobutu do Zaire. Agualusa ocupa-se sobretudo
em denunciar a violenta guerrilha que se estabelece entre os
diferentes partidos, logo após a independência, comandadas por
membros das élites crioulas. Da mesma forma, traça o cenário de
uma Luanda completamente bestializada pela guerra, envolta num caos
infernal que transparece na voz do narrador.
“As
ruas estavam imundas e matilhas de cães revolviam os destroços (…).
Fui ao jardim zoológico que conhecia desde criança. Os soldados
haviam morto as gazelas, os pavões e as avestruzes para os comerem;
os elefantes, para lhes roubarem as presas; e os leões, os mabecos e
os tigres, por puro prazer” (5).
Finda
a Guerra Civil que opôs principalmente MPLA e UNITA, Lídia
desaparece, antes de lançar o seu último livro de poesia. A estação
das chuvas tarda em apagar o interminável incêndio feito dos ódios
remanescentes da guerra recém-acabada. O país arde. E sangra.
Alexsandra
Machado fala também de relação História-Literatura na narrativa
pós-modernista a propósito de Estação das Chuvas.
Para esta Autora, especialista em estudos literários e culturais, a
principal questão a tratar em Estação das Chuvas
prende-se com a forma como a relação entre História e o modo como
esta é projectada em Literatura. Objectivo do estudo de Alexsandra
Machado tem a ver com a necessidade de delimitar os caminhos
escolhidos pelo romancista José Eduardo Agualusa, centrando-se em
primeiro lugar na narrativa histórica e só depois no processo de
construção da personagem Lídia do Carmo Ferreira. A. Machado é da
opinião de que é notória, em Estação das Chuvas,
uma transformação de factos históricos em ficção (4). Na óptica
de A. Machado, as estratégias narrativas e discursivas utilizadas
por Agualusa são um recurso que possibilita a inversão do processo
de se fazer História ao desconstruí-la, partindo do ponto de vista
dos vencedores para apresentá-la depois sob o olhar dos vencidos. A
presença do passado é típica da literatura pós-modernista cujo
objectivo consiste em proceder a uma avaliação crítica ao criar
“um diálogo irónico com o passado” (Hutcheon, 1999), ou seja
olhando o mesmo passado como um acto de releitura multiplicando
sentidos e reinterpretações. Assim, A. Machado coloca em evidência
“a necessidade de retomar o passado como uma forma de revitalizar
certos factos pouco explorados afim de que se reconstituam as
identidades culturais e nacionais dos países que foram colonizados
por Portugal. E JEA faz isso vertendo os mesmos factos históricos
para o cenário de ficção no romance. O trabalho de Agualusa
consiste por isso em desconstruir uma visão mítica da história e
dos heróis nacionais partindo da visão tradicional das figuras
consagradas pela história oficial, agora vistas por outro prisma.
Para tal, recorre à valorização do imaginário, à revitalização
das crenças ancestrais, ao património imaterial da cultura local.
Este tipo de estratégia não traz propriamente solução para
questões nebulosas da História mas pode ajudar a ampliar a visão
da mesma a partir da construção de uma nova forma de interpretar os
dados. É-nos assim permitida a revisitação do passado veiculado
pela Memória, passado esse que nos ajuda a compreender o presente, uma vez que a História se constrói a partir de “...visões e
interpretações, ora transparentes ora obscuras, que devem
constantemente ser repensadas, cifradas e decifradas afim de
construírem e reconstruírem velhas concepções.”(4)
Conclusão
É
notória a enorme profusão de dados e informação detalhada em
relação às diferentes épocas históricas que perpassam nesta
narrativa de Agualusa relativamente àquele país, às personagens
reais, empenhadas na luta contra a ditadura. Segundo afirma o próprio
Autor, refere-se muitas vezs quer a Mário Pinto de Andrade quer a
Sophia de Mello Breyner (que só surge nas entrelinhas da poesia de
Lídia e na voz de Lídia enquanto narradora: Sophia é o lado
europeu de Lídia). Agualusa, projecta-se na figura do narrador,
enquanto jornalista e repórter; e em Lídia enquanto escritor. Esta
figura feminina é uma construção que revela não só o lado
poético do autor mas também os traços de personalidade de vários
ícones femininos da poesia lusófona ou Luso-africana. Isto nota-se
na poesia e prosa de Lídia, recheada de elementos aquáticos (como a
de Sophia) embora, por outro lado, próxima à terra e a à beleza
telúrica e fértil do solo africano (como a poesia de Ana Paula
Tavares).
O
sonho-pesadelo de Lídia no início do romance, apesar da conotação
poética e mítica que lhe está associada traduz já o receio, na
protagonista, pela perda da própria vida. Um receio que se encontra
latente, e do qual nos apercebemos devido ao facto de seu corpo se
encontrar imerso num cardume de medusas, seres venenosos. Este receio
de Lídia está ligado à sua actividade política, enquanto
activista dissidente do partido no poder. José Eduardo Agualusa
tomará então a iniciativa de efectuar uma regressão temporal de
forma a contar a história de Lídia e de Angola ao longo dos últimos
sessenta anos (de 1928 até à primeira metade da década de 1990).
Uma história ficcional e pessoal que se entrelaça na história
recente de Angola. E assim nos deparamos com uma Lídia ficcional a
interagir e a reagir a pessoas reais que se envolvem activamente na
saga política de Angola.
O
autor dedica o romance a Mário Pinto de Andrade – poeta e
activista político – é participante activo na narrativa o qual
discute acaloradamente com Lídia as questões fundamentais
relacionadas quer com temas políticos quer históricos quer
artísticos.
José
Eduardo Agualusa como autor pós-modernista põe em evidência a
importância da produção poética, ao utilizá-la como força
política e simultaneamente como pretexto para revisitar antigas
tradições e mitos com intenção crítica para reescrever a
História de Angola de um outro ponto de vista civilizacional como
explica o fragmento poético de “Lídia”que se segue:
“Olhávamos
em volta
e
não éramos capazes
de
acompanhar o mundo.
Então
começámos a escrever
poesia.”
Estação
das Chuvas desmascara a sociedade angolana que pretendeu
construir a utopia da libertação mas cujos fins foi perdendo de
vista no processo de autodeterminação política.
O
romance desenvolve-se no sentido de mostrar uma sociedade cada vez
mais distópica pela representação alegórica de diversos tipos
sociais, cada vez mais fragmentada, resultando assim numa polifonia
que se forma a partir da coexistência de múltiplos registos e
formas discursivas. Uma justaposição que torna possível o
vislumbrar de todo dum contexto problemático com que se debate este
tecido social e que aqui se revela em toda a sua complexidade. E
neste prisma que o diálogo entre História e Literatura de que falam
todos os autores mencionados se constitui como uma forma inovadora na
construção de um romance que se quer como o espelho da realidade.
“Estação
das Chuvas” é, assim, o retrato do desmoronar de um sonho e a
dissolução da utopia da Liberdade.
Cláudia
de Sousa Dias
24.03.2012
Fontes:
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Agualusa, José Eduardo; Estação
das chuvas, dom Quixote