Roger Fry – A Biography by Virginia Woolf (Vintage Lives)
Virginia Woolf nasceu em Londres,
1882, filha de Sir Lesley Stephen, editor do "Dictionary of National Biography”. Apesar de sempre ter mostrado vontade de escrever, em termos profissionais foi só a partir de 1915, Woolf
publicou o seu primeiro romance. A partir de então mantém um ritmo imparável de
produção literária que envolve ficção, crítica literária,
ensaio e biografia. Casara pouco tempo antes, em 1912, com Leonard
Woolf e, em 1917, fundaram ambos a Hogarth Press.
Virginia Woolf sofreu, ao longo da
vida, várias crises pessoais que afectaram o equilíbrio do
seu sistema nervoso – pensa-se hoje que sofria da doença bipolar – cujas crises se traduziam em longos períodos de depressão
aguda, por vezes com perturbação delirante, alternados com
períodos mais breves de hiperactividade. Woolf viria a
suicidar-se a 18 de Maio de 1941, com a Europa mergulhada em plena II
Guerra Mundial.
Woolf acabara de escrever o livro de
que aqui falamos hoje pouco menos de um ano antes da sua morte, seria o último que veria publicado. Segundo a carta de agradecimento da filha de Roger Fry – notável
crítico de arte das primeiras décadas do século XX em Inglaterra,
responsável pela introdução do movimento pós-impressionista nas
artes plásticas em Inglaterra – dirigida a Virgínia e que aqui
reproduzimos na íntegra, atesta o quanto este trabalho da escritora era aguardado pela família:
London, April 1940
Dear Virginia,
Years ago, after one of
those discussions upon the methods of the arts, which illuminated his
long and happy friendship with you, Roger suggested, half seriously,
that you should put in practice your theories of the biographer's
craft in a portrait of himself. When the time came for his life to be
written, some of us who were very close to him, thinking it would
have been his wish as well as ours, asked you to undertake it.
I have now begged to have
this page to tell you of our gratitude to you for having accepted and
for having bought a piece of work neither light nor easy.
As the book is to have no
formal preface, may I here join with yours our thanks to all those who
have allowed the use of letters and pictures in their possession.
Margery Fry
Roger Fry, além de crítico, foi
professor de artes plásticas em Cambridge, ensaísta e também
pintor. Virginia Woolf realça ao longo da obrai não apenas o artista e
intelectual, mas mais do que tudo o ser humano, sensível, humanista e
resiliente que, apesar de ver desmoronada a sua ideia de Europa
progressista e paraíso do desenvolvimento tecnológico, protectora
das artes com o eclodir da Primeira Guerra Mundial, nunca deixou de
lutar por aquilo em que acreditava: mostrar um mundo melhor através
da arte como forma de expressão do Eu. Cristopher Reed, editor da obra A Roger Fry Reader comentava:
«Woolf wrote about a Quaker and a pacifist in the midst of a war, he argues, led her to think through how Fry’s socialist aesthetics and anti-war stance shaped his way of seeing the world.»
A Obra
A biografia de Roger Fry está dividida
em onze partes: a infância, Childhood: School; o
período universitário Cambridge; as viagens London:
Italy: Paris; o regresso e o casamento, Chelsea: Marriage; o
trabalho e a vocação, Work;o
reconhecimento fora do seu País, America;
novo regresso, audácia e inovação em The
Post-Impressionists; o
experimentalismo e espírito empreendedor, The Omega;
o deflagrar da guerra e as suas consequências, The War
Years; a escrita, Vision
and Design; e, por último,
Transformations onde a
autora narra o declínio da saúde no auge da carreira do homem que
então se consolidava, já não como crítico e ensaísta autor de dois livros (com o nome dos dois últimos capítulos da biografia que aqui falamos), professor ou marchand
de arte mas desta vez na sua faceta de artista, pintor do pós-impressionismo.
Ao
falar da infância de Fry na primeira parte (capítulo I) Childhood Woolf
baseia-se em testemunhos de familiares e pessoas próximas,
recorrendo também a provas documentais, incluindo jornais,
fotografias e cartas, para reconstituir o passado quacker da família,
constituída por austeros homens de negócios, que nutriam um
ostensivo desprezo por aqueles que se ocupavam exclusivamente das
artes. Woolf realça o extremo conservadorismo da família Fry, na
qual mesmo uma actividade vital como a Medicina era olhada com
alguma condescendência, uma vez que o seu exercício
pressupunha uma certa imoralidade no facto de alguém se dispor a
salvar vidas a troco de dinheiro.
Pela
leitura deste capítulo percebe-se, mesmo sem se consultar outras fontes, que os Quacker são um braço conservador
da Igreja Anglicana, que na obra, aparecem como um grupo essencialmente
endogâmico. O conservadorismo em que Fry é educado explica em
parte o lento desenvolvimento do seu próprio talento artístico, a sua
verdadeira vocação, a qual tenta reprimir para abraçar uma carreira
que os pais julgariam ser mais apropriada à sua condição social: primeiro a
de professor e cientista /investigador e depois como crítico,
marchand de arte, curador de museus.
A
principal ideia que Woolf faz passar neste capítulo é a do quanto a
austeridade e a dura disciplina lhe marcaram a infância e início da
adolescência, sobretudo no colégio onde leccionava um professor
sádico que adorava humilhar e espancar os alunos à palmatória.
A
libertação do espírito e o incentivo à autonomia de pensamento
chegam depois, na altura em que ingressa na
Universidade em Cambridge, no ambiente informal das tertúlias com os
colegas e nas sortidas após as aulas. Cambridge é o ponto de
viragem na vida de Fry que é descrita no capítulo II, "Cambridge".
No
capítulo III, esta autonomia de raciocínio de de expressão da
vontade individual é desenvolvida nas viagens de Fry pela Europa e que
Woolf descreve, olhando o mundo pelos olhos de Fry, focando-se na descoberta do prazer em desenvolver o conhecimento pela Arte. Fry
empreende a viagem, primeiro a Itália e depois a França, a pretexto
de uma investigação sobre o período da Renascença nas artes
plásticas que depois aplicaria ao ensino. Woolf descreve o
arrebatamento apaixonado de Fry e o seu deslumbramento reverencial
pela arte italiana e, logo depois, o choque inicial despoletado pelo
impacto da pintura dos pós-impressionistas franceses como Gauguin e
sobretudo Cézanne devido à capacidade de exprimir ideias e
sobretudo emoções, bem a exuberância da vida na sua essência. Nesta
fase, Fry é ainda apenas um admirador da obra alheia, sendo a
crítica a única forma de ligação que se permite ainda fazer com a
Arte, não se levando a sério como artista plástico.
O
capítulo IV dá conta do regresso de Fry da Europa Continental à
Grã-Bretanha, à casa em Chelsea, dando conta da forma como este
assimila tudo o que aprendeu, e de que forma irá utilizar as
influência artísticas que foi colhendo durante a viagem descrita no
capítulo anterior. Nesta fase Virginia Woolf dá, também, atenção
ao aspecto mais pessoal da vida do crítico de arte, destacando o relacionamento de Fry com aquela que seria a sua única
esposa Helen, também pintora e mulher de grande talento e referindo-se de forma assaz discreta ao breve romance de Fry com a irmã de Virginia, Vanessa Bell, quando a doença de Helen havia já afectado gravemente a vida conjugal de Roger Fry. Helen é porém retratada como a única mulher que realmente o completava, estando à
frente do seu tempo, dona de uma inteligência invulgar e cujo trabalho
como pintora superava mesmo o do próprio marido. Helen casa com
Roger, mas a felicidade só é possível enquanto a saúde dela o
permite. Helen, durante os anos em que foi conservando parcialmente a
sua saúde, era reconhecida como artista plástica de talento. Até
ao ponto de a sua doença se tornar irreversível. Viria a
falecer após um longo internamento numa casa de saúde (cerca de
duas décadas) e uma não menos longa agonia, em consequência de um
tumor situado entre o cérebro e a caixa craniana.
No
capítulo V, Woolf explora outras das facetas profissionais de Fry,
na qual ele se refugia para compensar o desgosto pela perda de saúde
da esposa, à qual nunca nenhuma outra mulher viria a substituir
completamente durante os anos de internamento de Helen. Virginia,
sofrendo ela própria de uma doença crónica do foro psiquiátrico, realça a forma como o trabalho foi para o amigo o grande factor
estabilizador do seu bem-estar psicológico para além de lhe assegurar a sobrevivência e as necessidades dos filhos pequenos que
tivera com Helen:
«Work
was necessary. If only to earn the money, that was more than ever
needed; and happily work was forthcoming.»
Fry torna-se publicamente reconhecido
como crítico de arte sobretudo após emigrar para os Estados Unidos,
na altura em que Helen ainda conservava alguns restos da sua saúde.
Fry ambicionava tornar-se o curador da National Gallery em Londres,
convite que viria a ser-lhe feito já quase no final da carreira, mas
nesta fase, com a vida pessoal a desmoronar-se, é convidado a
dirigir o Metropolitan Museum em Nova Iorque, apesar de algumas
fricções com o seu patrono, o milionário J.P. Morgan, face à sua
rudeza, arrogante exibicionismo e boçalidade. Helen morreria somente
em 1937, três anos depois do marido, e Roger, durante quase trinta anos, ao sofrimento da mãe dos seus filhos, vivendo em união de facto com outra companheira.
Mas em 1910, saturado da ostentatória e arrogante
presunção de Morgan, Fry regressa entretanto, a Inglaterra, após uma discussão insanável com o seu patrono.
No capítulo VII Woolf realça o
impacto negativo na opinião pública que motivou a primeira mostra
de pintores pós-impressionistas, sobretudo franceses, organizada por
Fry em Londres, que incluía pintores como Cézanne ou Gauguin, mas
também de outras nacionalidades como era o caso de Van Gogh. As duas
mostras deste tipo de pintura, que tanto enfureceu os londrinos pela subversão da forma e dos costumes, ocorreram
ambas poucos anos antes da Primeira Guerra Mundial, sendo a primeira
em 1010, pouco depois da sua chegada dos Estados Unidos e a segunda
em 1912. Segundo Virginia Woolf, os detractores de Fry, que o invejavam, não tiveram
descanso, aproveitando-se do clássico conservadorismo da mentalidade
britânica de então, que consistia na dificuldade em aceitar a algo de novo que pusesse em causa a norma, as formas tradicionais de expressividade artística, algo a que Virginia Woolf estava já
habituada a assistir no meio literário.
No capítulo VIII é enfatizada a forma
como a reputação de Fry se foi gradualmente consolidando devido,
sobretudo, à forma como foram conduzidas as workshop do grupo Omega, às quais Fry implementou algo tão simples como o conceito de
merchandising, reproduzindo os motivos utilizados nas obras dos
grandes mestres das artes plásticas – e sobretudo, o design de
novos e promissores artistas – aplicados a artigos provenientes das
grandes manufacturas (porcelanas, mobílias, tapeçarias, etc.), o que permitia aos artistas ainda na
obscuridade sobreviver com os royalties e, consequentemente,
libertá-los para se dedicarem à criação artística. Ou seja, Fry
revela-se nesta altura – e em boa parte, graças ao seu passado no
seio de uma família quacker – um hábil estratega de gestão de
recursos humanos, ao mostrar que é possível alguém dedicar-se às
artes mas conservando alguma solidez económica.
Para o capítulo IX, Virgínia Woolf
aborda as dificuldades em sobreviver das artes no clima insano de uma
guerra mundial, onde todas as estruturas económicas entram em
entropia, facto que quase conduz Roger Fry à ruína, mas sempre salientando a sua preocupação com
a sobrevivência dos seus artistas, mas que o obriga a acabar com o grupo Omega.
No penúltimo capítulo, destaca a sua
faceta de ensaísta relativamente às artes plásticas ao descrever o
processo de escrita e compilação do seu livro Vision &Design composto por artigos seus, coligidos, e até então dispersos por publicações
várias.
O último capítulo, “Transformations” ao qual vai buscar o título do último livro de ensaios de Fry, dá conta do sucesso consolidado nos anos do pós-guerra, apesar de atenuado pelos reveses da própria saúde no início da década de
trinta, que começa a dar de si. As marcas típicas do discurso de
Woolf são ainda mais visíveis neste último capítulo. Talvez pela
existência de uma muito provável identificação da melancolia
decorrente da perda da saúde em Fry com a aproximação do ciclo
depressivo que se seguiria ao acabar deste livro e que terminaria com a
vida da escritora. Virginia empenha-se ainda mais em dar a conhecer
muito mais do que o amigo, para além de intelectual e artista, um ser humano cuja bondade se escondia por detrás da máscara da figura pública com que se apresentava como Roger Fry, homem pródigo nos elogios
daqueles a quem admirava, discreto nas criticas ou reparos que fazia,
sempre evitando humilhar aqueles a quem estes últimos eram dirigidos.
A prosa de Woolf é densa, eloquente,
utilizando com mestria os recursos pragmáticos e idiomáticos que
caracterizam a língua inglesa no início do século XX, na transição
da época vitoriana para o período modernista. O dinamismo da
narrativa impõe-se pelo diálogo de vozes que intercala o narrador – a esconder, mediante o uso da forma impessoal contida no pronome
“one”, com as vozes dos testemunhos citados, quer directamente, com
excertos de cartas, recortes de jornais ou escritos pessoais de Fry
ou das pessoas que com ele conviveram e que são incorporados no
texto principal estando graficamente demarcados por aspas ou um tipo de
letra diferente, quer com testemunhos citados implicitamente no
discurso do narrador, recorrendo ao discurso indirecto ou ao discurso
indirecto livre.
Esta relação
dialógica que se estabelece entre as diferentes vozes que relatam a
histórica de Roger Fry, modalizam a narrativa de carácter
biográfico, conferindo-lhe musicalidade, permitindo a oscilação do
ritmo, deixando transparecer os diversos pontos de vista relativos à
figura biografada, para compor um retrato mais completo, mais preciso e, por isso mesmo, mais essencial do homem que ousara romper com o cânone artístico e com todo um
estilo de vida imposto pela tradição familiar. Um retrato tão
pós-impressionista quanto o próprio Roger Fry, de um artista, não
apenas quando jovem, mas em todas as fases da vida.
11.12.2014
-19.01.2015
Cláudia de Sousa Dias