Organização de Teresa Rita Lopes
Este número da Modernista reúne uma
selecção dos melhores artigos que permitem conhecer o contexto em
que é produzida a obra de Fernando Pessoa, relacionando-a com os
factos históricos, os aspectos biográficos do Autor, a ligação
com os seus contemporâneos e a relação com os seus pares, o seu trabalho como editor e influência noutras gerações de
“modernistas”.
A revista divide-se várias secções,
ou melhor dizendo, núcleos como lhe chama Teresa Rita Lopes (TRL). O primeiro é
inteiramente dedicado a José Coelho Pacheco e à desconcertante (ou
nem tanto) descoberta de que este não é um heterónimo de Pessoa
mas sim um escritor de carne e osso, colaborador da Revista Orpheu e
e de outros projectos editoriais com Fernando Pessoa. Do processo e métodos utilizados na investigação,
sobressai o trabalho de identificação, datação e autenticação
do espólio do Autor (que implicou um autêntico trabalho de
detective pela equipa de investigadores da UNL, conduzida por Teresa
Rita Lopes) que é realçado na Revista, com particular relevância para a colaboração de Ana
Rita Palmeirim, neta de José Coelho Pacheco, responsável pela
descoberta da faceta de poeta do avô.
A segunda secção da Revista trata da
ligação entre as actividades de produção literária, jornalística
e editorial de Fernando Pessoa, no período durante o qual o Poeta
residiu em terras algarvias, e das suas raízes familiares naquela
região.
A terceira parte, “Diálogos com
Pessoa” é composta por ensaios de literatura comparada, analisando
a influência da obra de Fernando Pessoa na produção literária de outros autores. A
quarta secção intitula-se “Modernistas” e consiste na análise
da obra de alguns autores do movimento modernista, não apenas em
Portugal, mas também fora do país, sobretudo no Brasil e na Grécia.
A quinta secção, a maior da revista,
intitula-se “Sobre Pessoa” e é composta por ensaios vários
sobre os mais diversos aspectos da obra pessoana. Na sexta secção são expostos alguns textos em poesia e prosa contemporâneas, dentro da estética
modernista.
A seguir, no sétimo núcleo de textos, é-nos apresentada uma recensão sobre um dos mais conhecidos textos pessoanos e, por
último, no oitavo núcleo, as várias reacções à obra de Cavalcanti Filho: Fernando
Pessoa – uma quase autobiografia. Todos eles contendo um discurso
apaixonado, uns de forma mais contida e outra mais exuberante.
Deixo-vos para já com a fina ironia de TRL no editorial desta
Revista antes de avançar para os detalhes do conteúdo de cada núcleo:
«Declaração Preliminar: esta não é
mais uma revista académica, das que os académicos inventam para
marcar pontos nas suas académicas carreiras. Tem a vocação e a
pretensão de ser um livro a valer.
É obra, sim, de estudiosos, que até
podem ser académicos, nada tenho contra, eu que, tenho levado a vida
a declarar-me professora-investigadora militante.
Mas os estudos que aqui foram
escolhidos, entre os que têm sido e serão editados on-line na
Modernista por um trio que teve apenas em vista trazer novas
achegas aos estudos pessoanos, em particular, e modernistas, em
geral.
Os dois dossiers com que o livro abre
marcarão data porque fixam duas revelações muito importantes para
estes estudos: Coelho Pacheco existiu, sim senhor!, não é
heterónimo nem sub-heterónimo de Pessoa nem nada do que lhe têm
chamado mas uma pessoa a valer, um jovem escritor que Pessoa admitiu
numa revista que previu, Europa, e realizou, Orpheu. Da
sua pessoa e do seu talento será dada circunstanciada notícia.
O outro dossier também desmente outra
ideia feita e transmitida há muito, de que a empresa Íbis de
Pessoa, nascida do seu anseio de ser um “criador de cultura”,
dela se servindo para dar a conhecer os clássicos de todos os tempos
– não chegou, afinal, a trabalhar. Mais do que dar a conhecer as
actividades que esta empresa teve, revela-nos este dossier a profunda
ligação de pessoa a Tavira, cidade natal de Álvaro de Campos, e à
família de judeus maçons, que aí viveram e conspiraram contra a
monarquia.
Também os outros artigos se dispõem
por núcleos para não aparecerem como informações ou elucubrações
dispersas, constituindo, cada um deles, uma reflexão que desejamos
fecunda, sobre o assunto explorado.
Melhor do que eu, eles dirão do
empenho e entusiasmo com que nos dedicámos a esta tarefa.»
Teresa Rita Lopes
Passemos então a uma breve análise
dos vários núcleos de artigos desta edição da Modernista.
1. O primeiro núcleo, dedicado a José
Coelho Pacheco (JCP), até agora tido como heterónimo de Fernando Pessoa, ilustra com precisão a minúcia de um trabalho de
investigação científica na área das Humanidades que mais parece
um trabalho de “detective”, dada a necessidade imperiosa de
investigação histórico-biográfica, análise documental e
cruzamento de informação proveniente de várias fontes – que
permitiu descobrir a vida “dupla” de um empresário que possuía
uma faceta semi-secreta de escritor –, que lhe está subjacente.
Tendo JCP colaborado com Fernando Pessoa nos projectos das revistas
Europa e Orpheu e, ao mesmo tempo, contribuído com textos da
sua própria autoria, o poeta JCP não fez grande alarido
desta sua faceta ligada à escrita e às letras junto da sua
família.
Na interdição deste número da
Modernista, referindo-se a JCP, Teresa Rita Lopes
descreve a forma como surgiu o interesse da sua equipa de
investigação desta figura tida até aqui como um heterónimo de
Pessoa e de como lhe chegaram às mãos as primeiras pistas acerca da
verdadeira identidade de Coelho Pacheco. Este tema é aflorado na introdução deste número da Revista e desenvolvido nos dois artigos seguintes, do primeiro núcleo. O
primeiro deles, intitulado “O seu a seu dono” é também da
autoria de TRL. O tom do discurso é, aparentemente, informal, dado que
o locutor dirige-se directamente ao leitor, encetando com ele um
diálogo imaginário e antecipando-se-lhe, aproximando o discurso que
seria à partida académico, de um discurso epistolar. A fundamentar
esta espécie de "depoimento" acerca da investigação TRL junta-lhe uma bateria
de provas documentais que incluem fotografias, excertos de cartas,
manuscritos e dactiloscritos, poemas onde se pode comparar letras,
estilos, temáticas e semânticas de ambos os poetas.
Uma das investigadoras que fazia parte
da equipa de TRL é Ana Rita Palmeirim (ARP), neta de Coelho Pacheco, a qual possuía um espólio substancial de escritos do avô guardados em
casa, dentro de numa mala. ARP é autora da peça “Encontros inesperados na
rota de José Coelho Pacheco” onde descreve a odisseia que foi
identificar, classificar e autenticar os documentos da referida mala
do avô. ARP é também autora da peça “Para além d'outro
oceano” na qual alude ao poema escrito pelo avô, ao mesmo tempo
que identifica outros escritos como sendo da autoria de JCP. Assina
ainda, em co-autoria com TRL o artigo “José Coelho Pacheco e a
poesia de inspiração popular” e explora as várias influências
literárias na escrita do Poeta, juntando por fim uma mini-selecção
de textos do seu avô na peça “Páginas de José Coelho Pacheco”
com o qual fecha este primeiro dossier da Revista.
2. O segundo dossier intitula-se “Pessoa
e os Algarves” e inicia com uma peça que descreve a metodologia
usada na investigação de TRL intitulado “Pessoa empresário da
Íbis, 'criador de anarquias' e de civilização' ” provando a
existência da empresa, ao contrário do que se pensava. A sustentar
tal tese, juntaram-lhe factos históricos que a contextualizam, presentes em provas
documentais. A efemeridade deste projecto prendeu-se sobretudo com os condicionalismos histórico-económicos da época a envolver constrangimentos políticos e
demográficos que não eram de todo favoráveis ao desenvolvimento e
consolidação de um projecto tão progressista. O segundo artigo
deste dossier, em jeito de adenda, é também de TRL e intitula-se
“Ainda a propósito da empresa Íbis”, acrescentando ao anterior
novos elementos trazidos por ARP do seu espólio familiar.
Segue-se
“Novos dados para a História do futurismo em Portugal” de
Patrícia de Jesus Palma , investigadora da UNL-FCSH, que se dedica
ao estudo da “cultura literária em espaço periférico” (Algarve
1820-1920), para relacionar a génese da imprensa regional mais
iconoclasta do Algarve, inserindo-a também no respectivo contexto
histórico-político que envolve a apologia do anarquismo, num tempo
em que movimentos deste cariz surgiam um pouco por toda a Europa, mas que, ironicamente, se aproximam perigosamente do discurso fascista como se
vê no recorte do jornal inserido na página 116. Ali figuram nomes
como Joaquim Ribeiro de Carvalho e Júlio Dantas. Este artigo servirá
de apoio àquele que se lhe segue e que é, mais uma vez da autoria
de TRL, que colabora massivamente nestes dois primeiros núcleos,
intitulado “Pessoa e os Algarves: d' O Povo Algarvio ao Heraldo de
Faro, passando pelo de Tavira”. A autora desenvolve o artigo
provando a ligação de Pessoa à imprensa algarvia, a sua sólida
experiência editorial e as suas raízes familiares em Tavira. O
discurso de TRL assemelha-se, aqui, ao dos romances policiais, mas com um tom
muito pouco convencional e bastante iconoclasta para se dirigir ao leitor
como se prestasse um depoimento.
3. O terceiro núcleo de artigos
intitula-se “Diálogos com Pessoa”. Abre com o trabalho de Dora
Nunes Gago: “Jorge de Sena, discípulo de Pessoa ou de António
Machado? Ecos dos modelos literários modernistas na obra seniana”. Nele são extraídos os modelos de referência de Jorge de Sena , que
se fazem notar na sua obra “Ecos Pessoanos”, apesar de Sena sofrer
também a influência das “Brisas Poéticas de Espanha”, patentes
na sua (de Sena) admiração pelo trabalho de Machado.
Maria João Serrado, em “Pessoa, Rui
Nunes e a Pátria: um diálogo improvável”, executa um ousado
exercício de literatura comparada ao usar o romance “Quem da
Pátria sai, de si mesmo escapa” e o poema “A Mensagem” como os
dois pólos onde se apoia para o desenvolver o contraponto da ideia do
romancista de que “a pátria entendida como o local de onde se
parte para melhor se poder regressar” confrontando-a com o poema de Pessoa e o seu
heroicismo épico: “Nunca Rui Nunes e Fernando Pessoa
estiveram em tão grande desacordo?” Segundo Serrado, tal não é impossível:
«...o
romancista acentua os interesses materialistas que sustentam a
expansão ultramarina e que não parecem ser conciliáveis com a
ideia do Quinto Império português da “Mensagem”. Contudo, as
afinidades entre os dois textos começam a notar-se quando o tema
deixa de ser os descobrimentos e passa a ser o sofrimento causado
pela perda. Aí, o romancista incorpora o discurso do poeta na sua
prosa, e com o qual estrutura e fundamenta o próprio discurso.»
Teresa Rita Lopes contribui também com
textos da sua Autoria para este núcleo de artigos, embora muito menos
que nos dois anteriores. Neste terceiro dossier, TRL é autora do artigo
“Álvaro de Campos entrevista (Sentir/ler tudo de todas as
maneiras)". A questão principal que lhe está subjacente é a relação
dialógica entre os vários heterónimos e entre estes e o ortónimo
de Pessoa assim como as conversas ficcionadas entre todos eles e
outros autores seus contemporâneos.
4. O quarto núcleo intitulado
“Modernistas” inclui um artigo de Anabela Almeida sobre Cecília
Meirelles: “A arte de amar é é exatamente a de ser poeta: cartas
de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues” para
contextualizar a correspondência da poeta brasileira em ligação a
outros poetas do Modernismo Português, em geral, e a Côrte-Rodrigues, em particular, devido à raízes micaelenses de Meireles, de onde era
natural a sua avó Jacinta.
O segundo artigo deste núcleo leva-nos
à Grécia Modernista e a aflorar a poesia de Kóstas Uránis,
através do artigo de José António Costa: “Kóstas Uránis e a
cultura portuguesa dos anos '20: algumas reflexões”. Uránis
traduziu uma quantidade significativa de obras de autores portugueses
para grego moderno, mas a sua obra não está limitada à tradução:
ele próprio foi autor, fortemente ligado ao movimento do simbolismo
francês e ao decadentismo que, na Grécia, adquire a designação de
esteticismo, com influencia de neo-simbolistas e neo-românticos como
Rimbaud e Mallarmé.
A ligação de Uránis aos autores
portugueses é, contudo, muito forte. Além de traduzir Antero de
Quental, Guerra Junqueiro, Ferreira de Castro entre outros. Uránis
mediou a sua disseminação na Grécia como faz questão de realçar
o autor deste artigo:
«... foi meu propósito, nesta breve
exposição, sublinhar o facto de Uránis, ao abordar os poetas
portugueses, propor um diálogo em as duas culturas (a neo-helénica
e a portuguesa) apresentando-nos em específicos modos de ler, uma
forma de crítica cultural: paisagens interiores, topografias líricas
e poéticas, 'afinidades colectivas'»
5. O Quinto núcleo, chama-se “Sobre
Pessoa” e é o mais longo da revista. Contém uma apreciável
selecção de artigos vários sobre a obra pessoana.
O primeiro, em Língua Francesa, “La
Lisbonne sensible de Soares et Campos” é de Aníbal Frias que opõe
a ruralidade e o lirismo alusivo à vida campestre de Álvaro de
Campos à matéria poética da prosa urbana de Bernardo Soares imersa no tédio do quotidiano na capital Lusa. O autor defende que a escrita
fragmentária de Soares tem muito mais afinidades com a poesia lírica
de Campos do que se poderia pensar à partida.
Outro artigo escrito na língua de
Voltaire e Camus é “L'Univers imaginaire de Fernando Pessoa:
hetéronymie ou rêverie?” de Albertina Ruivo, que explora a fonte de
criatividade e o universo imaginário do Poeta desde a infância, ao
passo que Nuno Hipólito analisa a relação do sujeito poético, quer heterónimo quer ortónimo de Pessoa com Ofélia, em “Álvaro,
Fernando e Ofélia: actores na heteronímia da Paixão – Pessoa
apaixonado: um epifenómeno heteronímico”, artigo desenvolvido
a partir de um episódio do programa “Conversas Vadias” de
Agostinho da Silva no qual o filósofo perguntava
retoricamente, isto é, afirmava, que “o drama de Fernando Pessoa
terá sido escrever sobre o que não viveu”, subentendendo-se que
seu romance com Ofélia, seria pura efabulação. Simultaneamente,
Nuno Hipólito explora a relação dialógica contida nos sonetos de
Álvaro de Campos, referindo-se ao seu ortónimo e à relação deste
com Ofélia, chegando o próprio Fernando Pessoa a ser tratado por
Álvaro de Campos no seu discurso como se este fosse seu heterónimo e não o contrário.
Maria do Céu Estibeira trata “Da
leitura de Milton e Whitman à estética de Álvaro de Campos” para
para aí identificar várias relações de intertextualidade, envolvendo estes dois autores anglófonos e a obra pessoana, que se
inscreve no discurso dialógico do poeta.
Manuela Nogueira apresenta o seu ponto
de vista da obra do autor no artigo “Álvaro de Campos – A
Tempestade à procura do Cais” para contextualizar os aspectos mais
biográficos da sua obra, sobretudo os que se prendem com as relações
familiares, a remeter para a publicação de TRL, “Pessoa por
conhecer”, bem como a relação de Pessoa com outros escritores
portugueses seus contemporâneos, através da sua actividade como
crítico literário.
Ana Raquel Barão Roque identifica a
ligação entre a ficção e a crítica em Pessoa no artigo “Crítica
ficcional ou a ficção da crítica no universo da heteronímia
pessoana” para mostrar como o Poeta era também um crítico notável, mas com algo de peculiar: as suas análises literárias eram
muitas vezes animadas por “personae” criadas por si, as quais
comentavam a obra dos seus pares enquanto os heterónimos de Pessoa
comentavam obras de autores reais, inclusive do próprio ortónimo de
Pessoa, seu próprio criador.
Luís Miguel Rosa Dias e Maria do
Sameiro Barroso são autores de “Fernando Pessoa, loucura, mito e
mistificação da realidade” onde desconstroem o mito da relação
entre criatividade e loucura.
Maria João Serrado traça “Retratos
polémicos de Fernando: imagens do impossível – Pintura de Michael
Barret com Campos no horizonte”, partindo da ideia de que Pessoa afirmava que “a Obra de Arte visa fixar o que só aparentemente é
passageiro”. A autora explora a interligação semiótica de Barret
e a poesia de Pessoa realçando o seguinte: “As leituras que terá feito da obra
pessoana levaram Barret a rever-se no sentimento de incompreensão
que perpassa os textos de Pessoa”. Ao analisar a forma como são
feitos os seus desdobramentos de personalidade, expressos na
heteronímia e diversas personalidades literárias um dos mais
polémicos retratos de Pessoa efectuados por Barret é uma pintura de
cariz surrealista, na qual o Poeta surge androginizado, com o corpo
feminino da Vénus de Milo e sem braços, trabalho a que o pintor
nomeia de “Binómio de Newton”. Outro será aquele que se
apresenta como uma imagem híbrida entre a figura de Pessoa e a de
Camões. As ligações entre a Poesia e a História ou a Literatura
e as Artes são subtis mas claras, como vai demonstrando a autora ao
longo do artigo.
Luísa Monteiro traz-nos um artigo no
qual explora uma dimensão ainda muito pouco analisada na obra de
Fernando Pessoa no artigo intitulado “As mulheres no teatro pessoano”.
Segundo a autora, a centralidade dos papéis femininos no género
literário era ainda muito marginal na época do Modernismo
Português, tendo atingido esta centralidade feminina no drama o seu
auge alguns séculos antes, com Gil Vicente. Mas relativamente às
figuras femininas nos dramas de Pessoa LM argumenta que:
«As mulheres pessoanas não sustentam
qualquer discurso de época e assumem a ruptura com a estética
aristotélica – que decretara a incapacidade de actuação das
mulheres as quais, expulsas da cena ao longo dos séculos e
inviabilizadas na vida pública, foram substituídas pelos homens,
que representavam, através de máscaras, os seus desejos, os seus
pecados e os seus poderes...»
LM faz ver que Pessoa, como dramaturgo
é um desvelador de faces da mulher, não daquelas que derivam de uma
Eva primordial e cândida, mas antes de uma Lillith ancestral, uma
bruxa condenada pela sua transgressão. Um arquétipo assente numa
figura feminina que pauta pela insubmissão e que, ao mesmo tempo,
reclama um estatuto intelectual. Segundo a Autora, o teatro pessoano
está cheio destas mulheres que pensam, falam de “liberdade” e se
assumem como criadoras, logo, transgressoras. Seguindo esta linha de
raciocínio, a personagem “Salomé” diz que “as mulheres são o
privilégio dos caminhos”. Por fim, a autora do artigo destaca
ainda a forma como esta faceta subversiva na obra de Pessoa é
realçada por Jorge de Sena que chama a atenção para esta faceta no
discurso que Pessoa que surge na correspondência deste com J.G.
Simões, aludindo a Lady Macbeth de Shakespeare. Assim, a título de exemplo, na dramaturgia pessoana as personagens
“Maria” e “Salomé” representam arquétipos opostos: a
candura e a subversão.
LM prossegue a análise das várias
figuras femininas do teatro pessoano, na secção do artigo a que
denomina de “As inomináveis”, isto é, arquétipos femininos
representados por nomes ou categorias genéricas, tais como “As
Veladoras” ou então, simplesmente, por letras.
Por último, e a finalizar este núcleo
temático, é explorada a questão do misticismo em Fernando Pessoa
por Carla Gago no artigo “O Modernismo e o Pré-Científico:
Ocultismo, espiritismo e Ciências do Psiquismo Humano em Fernando
Pessoa”. Daqui predomina a imagem do poeta como a de um homem
multifacetado, cosmopolita e profundamente envolvivo no movimento
literário da vanguarda de então. A autora destaca a atracção de
Pessoa pelo oculto, que se estende não só à astrologia mas também
à maçonaria e aos rituais dos rosa-cruzes, tema que absorvia os
modernistas da Europa, ocupando um lugar central nas mesas de debates
e discussões intelectuais. O artigo de CG inclui também uma série
de documentos da época que apresenta nesta publicação,
enriquecendo o artigo.
Assim finaliza o quinto núcleo, o mais
longo da revista sobre os múltiplos aspectos da obra pessoana. Os
dois núcleos que se seguem são bastante mais breves.
6. O sexto núcleo, “Ficções” é
composto por textos de Autores contemporâneos, inéditos,
relacionados com o Modernismo ou com autores Modernistas. O primeiro,
“Carro verde ou...”é de Joaquim Carvalho que o dedica a Almada
Negreiros e estabelece uma relação dialógica com um dos seus
poemas. “Para um estudo pessoano” de Ricardo Marques é outro
poema, mas cujo discurso remete para a obra de Ricardo Reis. Este
núcleo finaliza com uma bela peça em prosa ficcional onde é
construído um encontro imaginário entre o narrador-locutor e
Fernando Pessoa. Escreveu José Xavier e o texto chama-se “Lui et
Moi”.
7. O sétimo núcleo é constituído por
um único artigo, da autoria de Donzília Filipe: «Marcas da poesia
de Fernando Pessoa na obra 'O Melhor do Mundo são as Crianças' », livro da autoria de Manuela Nogueira. Filipe relaciona o papel da infância
na obra de Pessoa com a de Manuela Nogueira, sobrinha do Poeta. No
artigo, são realçadas não apenas as intertextualidades na obra de
ambos, mas sobretudo a forma como os respectivos discursos se
interceptam no universo das respectivas infâncias.
8. Por fim, temos o oitavo e último núcleo de
artigos desta Revista: “A reacção crítica à obra de Cavalcanti, Fernando Pessoa – uma quase autobiografia”
Teresa Rita Lopes volta a intervir em
força neste dossier, no qual "arrasa" o autor brasileiro, num discurso de argumentação implacável, desmontando conceitos, destruindo
afirmações peremptórias, apontando falhas, imprecisões,
incongruências, sobretudo em relação ao conceito de “heterônimo”
defendido por Cavalcanti, contrapondo o
conteúdo do livro com argumentos científicos e dados biográficos
para invalidar vestígios apresentados pelo autor como autênticos na
peça “Sobre uma biografia que não o chega a ser”, uma peça que
parodia o título de Cavalcanti.
Manuela Nogueira, sobrinha de Fernando
Pessoa, é autora do artigo que se segue, onde faz uma avaliação
crítica num tom bastante mais ameno do que o utilizado no discurso
de TRL. Não deixa, contudo, de frisar a importância de o fazer apenas por
considerar fundamental não deixar margem para distorções "graves" não só acerca da obra mas também da vida privada do poeta ao
confrontar a obra que ainda assim apelida de “delirante”
confrontando-a com o extremo rigor e método utilizado na biografia
sobre o seu tio, da autoria de João Gaspar Simões, para sublinhar a
importância da contextualização histórica e do recurso a provas
documentais devidamente validadas.
Outro sobrinho do poeta Luís Miguel
Rosa Dias reage através do recurso à sátira em forma de poema de
escárnio e maldizer. O principal alvo de Rosa Dias, para além do próprio Cavalcanti é o destaque dado pelos meios de comunicação social, a
um livro que, a crer nas suas palavras, terá tanta qualidade quanto
a (sombria) obra de E.L. James, na construção de uma imagem que será antes a
caricatura do poeta que é seu tio. O seu discurso inflamado poderá,
no entanto, causar o efeito contrário no leitor e levá-lo a ler o
livro quanto mais não seja por curiosidade ou pelo gosto por uma boa
(?) sátira.
Ricardo Zenith opta antes por explorar
as incongruências na obra de Cavalcanti a propósito dos amores de
Fernando e Ofélia na peça “Ofélia e Fernando, o amor em tempos
ecrológicos”. Desta vez parodia-se utilizando um título de uma
obra de Gabriel García Márquez (O amor nos tempos de cólera).
António Quadros decide também atacar
a questão dos “heterônimos” e daquilo que Cavalcanti considera
ser um “heterônimo” em “A verdadeira história de Eliezar
Kamenevsky".
A intervenção de Anabela Almeida
marca o penúltimo artigo da Revista, em mais uma peça na qual a nota
dominante do discurso é a ironia, “O engenheiro doente”, embora já sem a acidez corrosiva de Luís Miguel Rosa Dias, A. Almeida, ao perceber
que, apesar do título, na obra em questão, Cavalcanti tivera efectivamente a pretensão de ter escrito uma biografia de Pessoa,
sublinha dois aspectos que mostram o carácter inequivocamente
erróneo deste fim numa obra como esta: o local de nascimento de Côrtes-Rodrigues, foi efectivamente em Vila Franca
do Campo (Açores) e não em Vila do Conde (Litoral Norte de
Portugal, Distrito do Porto) como é mencionado na obra, deixando o
remoque em como o autor hoje em dia não dará certamente pela
diferença da troca toponímica (por já ter falecido). Outro aspecto que Almeida considera
uma distorção grave é a afirmação de que a “Violante” que
Pessoa identifica como a amada de Camões se trata realmente da poeta renascentista Violante de Cisneyros, facto que não está de todo provado como
pretende afirmar Cavalcanti.
Por último, Ana Rita Palmeirim, a neta
de José Coelho Pacheco fecha o número da Revista com a recensão
“Equívocos e mal-entendidos” para esclarecer definitivamente a
autoria dos poemas do seu avô, explicando como ocorreram os erros de
identidade que apareceram no livro do autor brasileiro.
Assim a Revista Modernista nesta antologia de artigos sobre Fernando Pessoa apresenta-se, pela variedade temática como altamente recomendável para quem quiser compreender a fundo a obra do autor de A Mensagem e O Livro do Desassossego.
Cláudia de Sousa Dias
28.02.2015