"Café com bichos" de Ricardo Bordalo (edição de autor)
Ilustrações de Rosário Pinheiro e Liliana Rodrigues
Ilustrado por Rosário Pinheiro e
Liliana Rodrigues
Um pequeno livro em cartão, um
arrojado design de linhas geométricas, de inspiração algo
maçónica, que aposta no jogo de contrastes e simetrias. No aspecto
literário, temos um ousado desfile alegórico, carnavalesco,de
personagens arquetípicas, cuja máscara/persona animal enfatiza o
lado burlesco, tragicómico, da espécie humana Trata-se de uma
galeria de seres metamorfoseados, à semelhança da personagem de
Franz Kafka que se transforma em insecto no final da trama, ou das
fábulas de Esopo, as personagens deste livro que irrompem diante dos
nossos olhos como o resultados da fusão de determinadas
características psicológicas do ser humano (regra geral, de
valoração negativa) as quais se manifestam, discursiva e
visualmente através do discurso do narrador que lhes atribuí o
aspecto físico de um animal, um bicho. Desta forma Ricardo
Bordalo, pela voz do seu narrador transmite o resultado do ponto
de observação, o canto da mesa de um café, dos clientes que por lá
vão passando. Este conjunto é formado pelos mais diversos tipos
psicológicos, caricaturados através de um olhar indiscreto que vai
descodificando gestos, expressões e olhares com especial virtuosismo
na identificação do grotesco. As personagens são retratradas
discursivamente com características de animais, fundindo-se o
aspecto físico e psicológico das personagens humanas com os seres a
partir dos quais o narrador vai identificando analogias. A atitude
deste narrador é sempre crítica, os seres observados nunca saem
especialmente valorizados após o escrutínio do olhar impiedoso do
observador, mesmo aqueles que são alvo de um tratamento um pouco
mais benevolente, resultando em verdadeiros exercícios de escárnio
e mal-dizer. Este posicionamento é, desde logo, marcado pelo
distanciamento físico do narrador face às personagens, colocando-se
o observador a um canto, afastado, não se misturando com os clientes
para melhor os observar. Mesmo quando a distância física é
diminuída isso só acontece por iniciativa da personagem que opta
por se aproximar e sentar-se junto dele.
A intenção desta obra é a de lançar
um olhar critico aos hábitos sociais de uma população em que um
dos principais hábitos culturais é precisamente a de utilizar o
café para se socializar, exercendo este lugar uma função fáctica
de aproximação das pessoas, actuado como facilitador de
comunicação, uma vez que a maioria das pessoas “vai ao café”
muito mais para estabelecer contacto outras do que para saborear a
bebida com mais ou menos açúcar.
Tomemos como exemplo a analogia
estabelecida pelo mesmo narrador que vê numa das figuras que ali se
sentam, um maçom, de aspecto físico e atitudes se lhe apresentam em
tudo similares às de um porco-espinho.:
«...sentei-me na mesa do café onde
se fuma (…) e nem dei conta do porco-espinho que estava na mesa ao
lado, a esforçar-se por bebericar o café pingado (…), és um
porco-espinho maçom (…) e, pelo sotaque, deves ser italiano...é
verdade, diz o bicho... sou italiano, e quanto ao resto, estou aqui
para te fazer um convite a ingressar na nova loja. Convidei a
animália italiana para se sentar na minha mesa...e a partir daqui
não digo mais nada...seus profanos!!»
Há aqui uma evidente relação
hierárquica vertical, onde o narrador se coloca acima da personagem,
pois só convida para a sua mesa depois de este lhe propor algo que
lhe interessa e mesmo assim tratando-o com um certo desprezo
condescendente ao apelidá-lo de “animália”. Por outro lado, é
sempre o ponto de vista deste narrador de primeira pessoa que
prevalece.
Noutra fábula deste café de
frequentadores tão peculiares, o protagonista é um bezerro, não de
ouro, nem com pose de ídolo, mas com aspecto de proletário,
perfeitamente plebeu, a representar a figura de jornalista mal-pago
e, contudo, livre pensador, o qual vence o confronto com um arrogante
pato-bravo. Paga, no entanto, um preço: o de viver sem raízes, sem
vínculo profissional que lhe proporcione o conforto ou a
estabilidade que lhe permita a partir de então, fixar-se em algum
lugar. Expulso do paraíso, portanto. Por outro lado, sobressai
também neste conjunto de textos, o oportunismo da lagartixa, “sempre
apressada e frenética”, obcecada pelo “hábito de aproveitar
sempre as oportunidades”, característica que nela está, já,
perfeitamente automatizada. E a esta figura, juntamente com a do
pato-bravo que o sarcasmo vertido pelo narrador mais se faz sentir,
atingindo o ponto culminante na comparação que estabelece entre o
oportunismo da lagartixa com o dos crocodilos: “quase lhe disse que
eu também...[ que também gosta de aproveitar as oportunidades], mas
depois lembrei-me que os primos dele no Nilo fazem o mesmo.
O cliente seguinte é um
ouriço-caixeiro o qual, ao contrário do obscuro porco-espinho, é
um filósofo da economia e da política, que surge a dissertar sobre
finanças, numa perspectiva existencialista-dialéctico-marxista. Ou
seja, de ouriço e de caixeiro propriamente dito só tem o focinho
pontiagudo [nariz] e a pasta [das finanças].
No que respeita à lesma negra da
fábula seguinte, há uma variante: é esta criatura quem enceta
conversa com o narrador. Este vê-a tão arrogante quanto o
porco-espinho, pois refere-se aos outros empregando um discurso de
valoração marcadamente depreciativa: à empregada do café trata-a
como “gaja” e ao narrador por “estafermo”, o qual não deixa
o caso por menos ao identificar aquele ser com um nojento animal
rastejante e viscoso. A lesma negra é uma alma revoltada, imersa no
fel que vomita acriticamente (ao contrário do narrador) contra o
mundo e em permanente luta com o mesmo. E que, por essa razão, por
onde que que passe, deixa um rasto pegajoso.
Depois há, também, uma senhora coruja
sempre a dizer mal dos morcegos (os quais, pelos vistos, ninguém
suporta) e que normalmente ao sentar-se à mesa do café “depenica
tudo em três bicadas”. Voraz e maledicente, portanto. No entender
do narrador, será alguém que transmite uma imagem de pessoa gulosa
e tagarela. Os dois seres nocturnos (coruja e morcego) têm, no
entanto, algo em comum: tal como os morcegos, a impertinente coruja é
amiga do ministro das finanças. Trata-se de uma espia bufona,
portanto, sempre pronta a denunciar os clientes que não pedem
factura. Há ainda o elefante asiático que se entretém a
escrevinhar à mesa, pegando na caneta com a tromba enquanto olha
pela janela. A sua corpulência, ainda mais do que o discurso que
profere é um desafio, uma provocação à política de austeridade
cega que recai sobre o mesmo café e sobre os seus clientes. A ele,
no entanto, a austeridade não afecta e até se dá ao luxo de
criticar a frugalidade dos outros ao classificá-la de
anti-patriótica, comentando nestes termos o recibo da despesa do
próprio narrador:
«diz-me o proboscídeo: vês algum
pastel de nata na coluna do que comeste? Não...estás a ver algum
licor beirão na lista do que bebeste? não...mas ainda é cedo para
isso... nunca
é cedo para os sacrifícios em nome
da pátria, disse-me, e em tom de ameaça enlameada por uma retórica
viscosa a lembrar tempos idos de outros animais e outra senhora,
perguntou: que achas que te vai acontecer quando chegar ao ministério
e entregar ao ministro este relato?»
A corpulência do elefante representa a
opulência do funcionário ministerial e governamental que “engorda”
com a crise e a austeridade, ao contrário do que sucede com a
pátria, a qual em vão invoca, para justificar a maior carga fiscal.
No texto seguinte, assistimos ao
confronto entre um rinoceronte (condutor de um camião) e um cão
(vagabundo e assediador do veículo ultra-pesado, para tentar dormir
dentro do mesmo). Trata-se de um confronto desigual face à
disparidade de forças e à ausência de equidade na relação de
poder que se estabelece entre ambos. O discurso do narrador traduz o
mal-estar que se sente no local, em consequência desta situação e
que está patente sobretudo no último enunciado do texto: “bebi o
café com algum incómodo”, parodiando a atitude pusilânime do
eventual espectador de situações de injustiça, tragédia ou
qualquer tipo de abuso, a agir exactamente como quando assiste às
maiores tragédias que lhe entram em casa através dos noticiários.
O Corvo transmite uma imagem algo
ambígua: se, por um lado, sugere a imagem de alguém que veste de
maneira formal, por outro lado transporta consigo mesmo uma certa
aura de irreverência, de marginalidade, de ruptura com as
convenções, à maneira de um dândi de fin-de-siécle XIX.
Este Corvo” de Ricardo Bordalo usa uma capa esvoaçante e
fraque, podendo lembrar também o traje do estudante universitário
que se diverte a a “praxar” ou simplesmente a humilhar
descaradamente os novatos. A imagem que predomina é a de uma
personagem saída de um conto de Edgar Allan Poe,
um ser essencialmente desestabilizador:
«pousou
directamente no tampo da mesa. A deslocação do ar provocada pela
asa na aterragem levantou, ligeiramente, as folhas do jornal que não
estavam seguras pelo cinzeiro.”
O texto começa com uma descrição que
foca o aspecto animal e aerodinâmico do protagonista, o qual só no
final da narrativa é humanizado pelo narrador com a imagem de alguém
que morre, literalmente, por um cálice de porto.
Na segunda parte do livro, o texto
“(d')O Grilo” chama a atenção para a incompletude perceptiva e,
regra geral, para a falta de rigor dos estereótipos – o próprio
grilo é, ele mesmo, uma categoria à parte no mundo dos insectos,
isto é, nem é cigarra (olhada normalmente, como hedonista –
graças à fábula em poema de LaFontaine – voltada para o lazer)
nem formiga (a tradicional obreira, segundo a mesma fábula, uma
verdadeira máquina de trabalho). Não. O grilo adquire, no texto de
Ricardo Bordalo, uma conotação mais dúbia que não é,
necessariamente, positiva: a de delator dissimulado. O grilo é
aquele que “canta” ao ouvido do poder ao serviço “dos
ministérios”. Ora como o alocutário do grilo é o próprio
narrador, a quem aquele se dirige, deduz-se que este último,,ao
mostrar o grilo de uma forma que não é nada simpática aos olhos do
leitor, assume uma posição de opositor de tendência que se não
for assumidamente anarquista será, no mínimo, de desafio ao poder,
usando o escárnio e a sátira como arma. Escárnio esse que traz
implícito um profundo desprezo por figuras melífluas como a deste
“grilo”. Assim o herói da história passa a ser o sapo, figura
com a qual o narrador se identifica e que devora o grilo, devorando
também metaforicamente os seus cúmplices, os sabujos, os
subservientes àquela autoridade que vê como ilegítima. Os visados
são precisamente aqueles que se deixam usar submetendo-se a todas as
regras, inclusive as mais absurdas, apenas para conseguir comer. A
analogia com o mundo do trabalho é óbvia. O pinguim representa, por
seu lado, um certo tipo de trabalhador: o que se submete a todas as
regras do mercado, mesmo quando são manifestamente anti-sociais ou
geradoras de entropia dentro de um sistema económico dando forma à
doutrina que é debitada pelo grilo, o qual tentava, no texto
anterior, catequizar o sapo, seu alocutário.
A petulância do chimpanzé no texto
seguinte é mostrada com o já costumeiro desdém do narrador (que
agora sabemos que se identifica a si próprio com a figura de um sapo)
pela esmagadora maioria em relação aos restantes animais. Neste
caso, remete o seu interlocutor, ou melhor, a personagem com a qual
dialoga, para a categoria de símio inferior o qual, na óptica desta
narrador-sapo-recém-recrutado-para-a-maçonaria, se revela na sua
excessivamente ridícula subserviência ao clero, acreditando não
dever este jamais ser criticado; o alvo das críticas do símio é
normalmente o tipo de pessoas como o próprio narrador couraçado na
sua postura anárquica e sobretudo de anti-clerical de cariz
republicano.
No texto que caracteriza o porco,
categoria com a qual o narrador identifica certa espécie de homens
que têm o poder de esvair de humanidade o seu semelhante (aqui esta
categorização poderia ser um tiro pela culatra para o próprio
narrador-sapo, o que só não acontece pelo facto de este também se
desumanizar, de certa forma, tendo perfeita consciência do facto),
como se percebe no momento em que este confidencia ao leitor: “não
há diferença entre as espécies...apenas o talho é diferente.
Já a lampreia, o narrador associa-a
aos seres que causam mal-estar, um certo incómodo, típico das
criaturas que se “colam” aos outros como uma ventosa como a das
lampreias, tal como acontece com as cartomantes, adivinhos e outras
espécies de charlatães.
A tríade do caracol, do melro e da
lagartixa (o único animal que figura no livro por duas vezes), é
construída com base numa estranha relação simbiótica entre estes
três elementos, sendo que o primeiro, é alguém que tenta usar de
esperteza com os outros mas que se vê completamente ultrapassado
pela rapidez dos seus dois outros rivais. Salvo quando acontece uma
fatalidade e a sorte se inverte.
A avestruz é o símbolo animal de que
o autor se serve para mostrar a atitude do narrador face a humanos
encarregues de fazer peditórios para as instituições e se abeiram
dos carros de forma mais ou menos agressiva ou, no mínimo,
impositiva. É, também, fortemente visado neste texto o tratamento
de que os burlados são alvo nos cupões, e a subserviência dos
donos dos cafés que os não expulsam, como fazem aos demais
pedintes privados, que só o são por necessidade . A hipocrisia é o
traço principal do eu colectivo que aqui ocupa o lugar central no
texto.
A imagem seguinte é a do crocodilo, a
imagem de um perigoso malfeitor que tenta fazer-se passar por um
inofensivo mendigo, mas à espera dos incautos que se deixam fascinar
pelos supostos diamantes que diz ter incrustados nos dentes...
No último texto, o protagonismo
pertence ao texugo, cuja atitude filosófica e questionadora não é
mais do que o o resultado do desdobramento do eu do narrador (é o
texugo, tão gordo como o sapo, com quem este mais se identifica): é
o seu duplo, alguém que tanto aprecia o pequeno-almoço no café
como a filosofia e a observação do real. O texugo não é nada mais
do que o eco da própria voz do narrador, a projecção da imagem de
si.
O livro divide-se em duas partes, sendo
os textos que correspondem a a cada uma delas ilustrados a sépia por
duas artistas plásticas que detém duas formas opostas de
interpretar visualmente os textos de Ricardo Bordalo que passo a
explicar. Na primeira parte (do lado azul) é a mão de Rosário
Pinheiro que dá a dimensão visual a estes “bichos”,
metamorfoseados em humanos ou vice-versa. Na verdade, a ligação das
figuras humanas presentes nas ilustrações desta ilustradora é,
aparentemente, muito ténue face aos animais alegóricos que são
aludidos nos textos de Ricardo Bordalo. O
elemento de ligação pode ser um par de as
sobrancelhas hirsutas que lembram o dorso de um porco-espinho ou,
então, a felpa de uma camisola cujos pêlos eriçados fazem pensar
imediatamente no ouriço-caixeiro. É o homem em si mesmo que leva a
carga animal a que é caricaturada nos textos e não o bicho
propriamente dito. Rosário Pinheiro assume perfeitamente que se está
a falar de bichos-homens (ou mulheres). As legendas com citações
dos textos que acompanham as respectivas figuras ajudam o leitor a
fazer a ponte entre estes dois elementos, humano e animal.
Sobre esta primeira parte, o crítico
Rui Coimbra chama precisamente a atenção para o “Eu” das
personagens e para a forma como cada um deles é realçado pelo
narrador, de forma dotá-los de sentido político e realçar a
crítica social que é veiculada através da narrativa:
«...o medo dá aqui lugar à vontade
[o caso do bezerro e do pato] e o eu ditatorial esbate-se, permitindo
que outros “Eus” se configurem quase com o outro. Estes sistemas
não bloqueiam a realidade, que não é conforme ao desejo do
ditador, antes constroem liberdade de se tornarem outros que acomodem
a realidade.
Nesta série de textos , Ricardo
Bordalo apresenta ao leitor alguns territórios de liberdade (…).
Nestes lugares, a estranheza é diluída pela proximidade ao contexto
de café, lugar de encontros e conversas.»
Na segunda parte do livro (os textos em
fundo amarelo-pálido) os temas são ilustrados por Liliana
Rodrigues. A artista plástica usa a figura feminina e a
versatilidade da respectiva cabeleira para servir da camuflagem ao
animal que serve de duplo a cada alma humana ou que com ela se
(con)funde. Para Rui Coimbra esta fusão possibilita a construção
de novas significações “acrescentando novas superfícies de
leitura, criando rupturas e novos lugares para o humano.»
Uma crítica corrosiva, ácida,
politicamente comprometida na denúncia exposição de disfunções
sociais e arbitrariedades do Poder, de egoísmos diversos que não
dispensa a leitura atenta para quem cultiva a veia humorística que
vai da mais fina ironia ao mais cortante sarcasmo.
Cláudia de Sousa Dias
Londres, 31 de Janeiro de 2016