“JEZEBEL – The Untold Story of the Bible's Harlot Queen” by Lesley Hazlton (Doubleday)
O livro de que hoje falamos não se
trata de uma biografia, uma vez que é impossível fazer uma
reconstituição exacta da vida da última monarca do reino de
Israel, desaparecido há quase três milénios. Trata-se antes de uma
investigação que implicou uma análise crítica,
linguístico-discursiva e literária ao Livro dos Reis,
particularmente no que toca ao reinado de Jezebel e Ahab, procurando
sempre que possível, o apoio e a sustentação objectiva com base em
dados histórico-arqueológicos, afim de concretizar uma análise
exaustiva documental, através do estudo comparativo de traduções
de várias épocas, inclusive nas suas versões em grego, inglês e
hebreu antigo ou aramaico. O resultado é a desconstrução de uma
narrativa dominante que terá sido levada a cabo por clérigos os
quais fixaram a versão sustentada pela classe sacerdotal israelita
onde se inclui o profeta Elias e restantes sacerdotes hebreus de
Yahweh, versão essa que se conclui sustentar uma agenda política
marcada pelo desejo de hegemonia sionista, pela xenofobia, e
profundamente misógina.
Para ficarmos com uma ideia mais
precisa quanto ao teor da obra que aqui analisamos: a reconstituição
histórica da vida desta personagem bíblica é feita por uma autora
anglo-americana conhecedora dos textos antigos, cujo objectivo ao
escrever o livro se prende com a curiosidade em aprofundar o
conhecimento da realidade à volta de uma das figuras femininas mais
odiadas da Antiguidade:
«There
is no woman with worse reputation than Jezebel, the ancient queen who
corrupted a nation and met one of the most gruesome fates in the
Bible. Her name alone speaks about decadence and promiscuity. But
what if the version of her story, handed down to us through the ages,
is merely the one her enemies wanted us to believe? What if Jezebel,
far from being a conniving harlot, was, in fact, framed?»
Esta
é a problemática levantada pela autora de Jezebel
à
qual tentou responder com uma investigação histórico-jornalística
utilizando os instrumentos análise literária e de análise de
discurso aplicados ao Livro dos Reis. Trata-se de um trabalho
exaustivo que foi executado não apenas com o recurso à observação
documental em bibliotecas mas também com a deslocação da
investigadora ao terreno, na busca de vestígios arqueológicos, na
tentativa de perceber o contexto geográfico e local de um território
onde o tempo parece ter cristalizado. Arrisco dizer que
Lesley Hazlton
terá encontrado se não algumas respostas plausíveis, pelo menos
algumas hipóteses alternativas bastante prováveis, face à versão
tradicional.
Dados biográficos da autora:
Nascida no Reino Unido, em 1945,
Lesley Hazlton construiu uma dupla carreira de jornalista e,
anteriormente, de psico-terapeuta. Obteve, a nacionalidade
anglo-americana, escrevendo para várias publicações, sendo o seu
trabalho jornalístico focalizado sobretudo naquilo que define como
“The vast and volatile arena in which politics and religion
intersect”, o que acresce um toque de irreverência a todos os seus
livros, quase sempre escrito com intenções iconoclastas com vista
àn desconstrução de estereótipos. Mas para além da actividade
jornalística, Hazlton é uma conceituada psicóloga e autora
de três livros sobre o Médio Oriente, fortemente influenciados por
esta área do conhecimento, que foram alvo de rasgados elogios por
parte da crítica: Israeli Women; Where Mountains Roar; e
Jerusalem, Jerusalem. Três anos depois de publicar
Jezebel (em 2007), a autora encetou a publicação do blogue
The Accidental Theologist, o qual descreve como “an agnostic
eye on religion, politics and existence”.
Em Setembro de 2011, é agraciada com a
distinção “The stranger's Genius Award in Literature” e, no
Outono do ano seguinte, consegue uma bolsa de residência em Town
Hall, Seattle. Seguindo sempre a pulsão iconoclasta de destruição
de mitos que caracteriza a sua obra, publica ainda Mary: a Flesh
and Blood Biography of the Virgin Mother. Os seus últimos livros
publicados abordam ainda a problemática efervescente da questão do
Médio Oriente: After the Prohet – The epic Story of the
Shia-Sunni Split e Agnostic – a Spirit Manifesto (2016).
Dedica, agora, inteiramente ao
jornalismo, à investigação e publicação das suas obras. Por
último, o seu trabalho como jornalista estende-se pelas seguintes
publicações: Time Magazine
(correspondente em Israel ) The New York Times (política
no Médio-Oriente ), Esquire, Vanity Fair, The Nation, The
New Republic, The New York Review of Books, etc.
Um
aspecto que me agrada de sobremaneira neste livro e que, no meu ver,
lhe confere fiabilidade, consiste no conhecimento que a autora
demonstra acerca das línguas antigas, facultando-lhe uma rara
acessibilidade a documentos raros, permitindo efectuar uma análise
comparativa na forma como diversos tradutores de textos bíblicos
escolheram expressar o texto original nas línguas de chegada. Isto
sem falar no à-vontade com que se movimenta em áreas onde o perigo
espreita por detrás de cada curva, em regiões particularmente
inóspitas.
Por outro lado, o traçar das linhas que unem (ou diluem) passado e
presente em termos de construção ideológica, cultural e
geopolítica é outro ponto a favor da obra ao permitir que o leitor
obtenha um vislumbre da complexidade, profundidade e longevidade das
causas que desembocam na explosiva situação geopolítica que
atravessa hoje o Médio-Oriente.
Passemos então à análise da obra, capítulo a capítulo.
“Introduction: in which how Jezebel gained a reputation”.
Assim, surge-nos capítulo zero, que a autora chama de “Introduction”
para explicar a intenção de desconstruir a imagem tradicional da
última rainha do antigo reino de Israel, por lhe parecer distorcida
ao ser descrita exclusivamente pelo ponto de vista dos seus rivais
políticos, que a fixaram para a posteridade mediante discursos
dotados de forte teor emocional:
«Her
real name was Itha-Baal, which means “woman of the Lord” in her
native language, Phoenician. But in a pun worthy of the craftiest
modern spinmeister – the kind of wordplay very common in the Hebrew
bible – this was changed in Hebrew to I-zevel, or “woman of
dung”, which was later written as Jezebel in Greek and so also in
English. The change kept the same three-consonant Semitic root, but
gave it the opposite meaning» (Hazlton,
2007:2).
E continua:
«The
Hebrew meaning is the one that has persevered, molding the various
forms Jezebel has taken in the imagination. She is the prototype of
the evil woman, the original femme fatale, “ creature both forceful
and bold” in the words of the first-century historian Josephus, who
described her as going to “great lengths of licentiousness and
madness”. An aura of treachery and perfidiousness enshrouds her.
She is the harlot queen, the shameless fornicator, the painted hussy,
the scheming seductress enticing the innocent into the depths of
wickedness » (Hazlton,
2007:2-3).
À
imagem desta rainha transmitida por Josefo no século I D.C., a
autora compara depois a imagem da mesma figura histórica construída
nos filmes de Hollywood, já no século XX e que chega então à
esmagadora maioria da população cristã fixando, através da sétima
arte:
«Hollywood's
visions of female perversity, all play in various aspects of her
image: Theda Bara's dark-eyed, blood-sucking vamp; Bette Davis's
scheming southern belle in her scarlet ball-gown; Marlene Dietrich's
ruthless manipulator in The
Blue Angel; Sharon
Stone's cold seductress in
Basic Instinct.
But as novelist, Tim Robbins puts it: “In the Bitch Hall of Fame,
Jezebel has a room all her own – nay, an entire wing» (idem:
3).
E da mesma forma, traçando um paralelismo com outras figuras
femininas históricas possuidoras de elevado poder político e
económico que passaram para a posteridade com uma imagem de devassas
pelos seus adversários políticos, mas sempre muito aquém do
discurso extremista com que é traçado o carácter de Jezebel:
«
Cleopatra was a prude by comparison, Catherine de Medicis an
upstanding citizen. In historical novels, purportedly based on
Jezebel's life, she becomes an Orientalist fantasy of dangerous
eroticism.», (idem:3)
Apesar de alguma polarização também efectuada pela própria autora
quando retrata as duas personagens principais que se defrontam em
Jezebel, entre as quais se estabelece uma relação de
conflito de interesses – Jezebel, apresentada por Hazlton como uma
rainha culta, racional, pagã, estrangeira, princesa de origem
Fenícia e promotora de uma política de abertura de Israel ao
exterior; e Elias, retratado como o profeta fanático, líder
religioso radical, histriónico, manipulador e populista, seguidor de
um monoteísmo de vertente radical, com um discurso todo ele marcado
pelo repúdio xenófobo de toda e qualquer manifestação religiosa
ou traço cultural proveniente de qualquer fonte que não
Israelita/Judaica – a obra tem a seu favor o mérito de colocar os
leitores perante as raízes do conflito ideológico étnico-cultural
que assola aquele território até aos nossos dias, sob uma luz que
passa além do véu da religião, possibilitando-nos enxergar a
imensa teia de interesses que por detrás dela se oculta.
Situando os acontecimentos no tempo e enquadrando-os no ambiente
socio-político da época, o livro permite-nos sair desta leitura, a
olhar a esta figura feminina do mundo antigo por um prisma bastante
menos enviesado: a perspectiva de uma chefe de estado que governa em
pé de igualdade com o marido. Segundo a tese de Hazlton é
este o principal foco de tensão entre Jezebel e Elias: o facto de o
sacerdote ver na Rainha uma ameaça ao seu poder religioso e aos da
sua casta, ao mesmo tempo que se recusa a aceitar um governo
partilhado do Rei com uma mulher estrangeira, vinda de um país com o
qual Israel tradicionalmente tem uma relação conflituosa: a
Fenícia, actual Líbano.
Chapter 1 -
“Tyre: in which Jezebel is homesick”
O primeiro capítulo serve essencialmente para se perceber quem era
de facto Jezebel, as suas origens familiares, a infância, o ambiente
na corte de Tiro e explicar simultaneamente a situação geopolítica
que fez com que fosse estabelecida a aliança matrimonial entre
Jzebel e Ahab.
A primeira secção descreve um cenário idílico em Tiro. Na
segunda, a autora avança já para a comparação do estilo de vida
após o casamento em Samaria, numa prolepse. E, na terceira secção,
volta-se um pouco atrás no tempo (analepse) para contar dos
preparativos de casamento e descrever os termo da aliança
matrimonial que parece ser muito mais um casamento entre dois Estados
do que entre duas pessoas:
«This
was not a marriage of love on Jezebel's part, or even one of choice.
No such thing existed for a princess of her time. Like all royal
marriages, this was an alliance between rulers, between her father
Ithbaal, the king of Tyre, and her husband, Ahab, the king of Israel.
As the princess royal, her hand in marriage was a gift to be bestowed
by her father. She was the foremost sign of his friendship with
Israel, and the most valuable token of his esteem. Her body would be
the seal on the alliance; her presence in Samaria – hers, and that
of the priests and courtiers, diplomats, and merchants, artisans,
eunuchs, and servants who formed her entourage – would be the
presence of Tyre» (Hazlton,
2007:25).
Além de se explorar as vantagens que a união traria, não apenas
para Tiro como se depreende no último enunciado do excerto anterior,
mas também para o próprio Ahab, a autora dá conta também do
estado de desenvolvimento económico e civilizacional de ambas as
nações naquele tempo com uma acuidade impressionante:
«The
kingdom of Israel had become a force to be reckoned with. Thanks to
its dominance over its weak southern sister, Judea, it controlled not
only the main east-west trade route from Damascus to the
Mediterranean but also vital sections of the two north-south trade
routes of the region: the Via Maris north out of Egypt along the
coast, and the King's Highway on the east bank of the Jordan River,
from Damascus to the Red Sea. Through Jezebel's marriage to Ahab,
Tyre would gain the most valuable thing of all to a merchant trading
state: access to as yet untapped markets. Now Tyre would develop the
Red Sea port of Etzion Geber, giving it the Phoenician name that was
then adopted in the Hebrew: Eilat, meaning “the goddess” – the
great mother Astarte. Tyrian ships – “the ships of Tarshish”,
as Isaiah would call them – would ply the coasts of Arabia and East
Africa, going as far as India in their search for spices and silk.
And for the privilege of access, Tyre would pay Israel handsomely in
tolls and fees. It was, in modern terms, a win-win situation.»
(Hazlton,
2007:25-26).
A este cenário geopolítico reconstruído pela autora junta-se a
recriação, na secção seguinte, do violento choque cultural a que
é exposta uma adolescente subitamente introduzida numa corte muito
mais rude e hostil do que a sofisticada Tiro:
«The
one comfort left in sight is the distant gleam of snow-capped Mount
Hermon far to the north, standing high above all the other peaks. The
home of Baal-Shamen, it dominates even this land where they deny him,
as clear from here as from Tyre or from Damascus. It will become
Jezebel's Pole Star, she determines – her point of reference, of
identity and belonging. Whatever happens in this strange land, the
Hermon will always be there for her, beckoning of home.»,
Hazlton (29-30).
A intenção da autora aqui é a de mostrar claramente a forma fria e
pragmática como interesses que envolvem as situações de guerra e
paz entre as chefias de dois estados se sobrepõem aos desejos,
aspirações imediatas ou sonhos de uma jovem ou dos respectivos
povos. Jezebel, no final do capítulo é sombriamente representada
como uma versão Fenícia de Ifigénia em Áulida preparando-se para
oferecer seu corpo em sacrifício:
«That
alliance can replace separatism. Pragmatism replace ideology. Trade
replace bloodshed.
The
oracles have been consulted. (…) The gods look down in approval,
both her many gods and Ahab's one.
(…)
Jezebel will be led to her new bridal chambers like a human
sacrifice, her body the pledge of alliance» (Hazlton,
2007:31-32).
Chapter 2 -
“Samaria: in which Ahab is a peaceable warrior”
O segundo capítulo da obra focaliza-se na (des)construção do
retrato do Rei Ahab, que surge também diabolizado no Livro dos
Reis. Este é um monarca israelita que ficou conhecido para a
posteridade por sacrificar crianças ao deus fenício Baal. Hazlton
apresenta-o sobretudo como um guerreiro e chefe de estado, adepto de
uma estratégia política e económica de abertura ao exterior a fim
de fomentar trocas comerciais com os países vizinhos e cuja política
interna assentava na tolerância para com outras formas de
religiosidade, facto que desagradava de sobremaneira à ortodoxia
religiosa dos sacerdotes do deus de Israel, Yahweh. Samaria era então
a capital do reino de Israel, que fazia fronteira com a Fenícia. A
sul, encontrava-se o reino irmão, a Judeia, com a capital em
Jerusalém. A autora, aqui, chama a atenção para um conjunto de
paralelismos que pode ser traçado entre épocas, relativamente às
questões que acabámos de enunciar, entre a Antiguidade e a
Contemporaneidade, como se naquelas paragens as coisas se recusassem
a mudar e a geografia e o clima condicionassem ódios ancestrais e
conflitos religiosos indissolúveis, sempre motivados por razões
económicas, estratégicas ou de posse e domínio territorial:
«The
Yahwist ideologues who opposed the marriage of Ahab and Jezebel saw
the newly expanded acropolis of Samaria as a symbol of foreign
encroachment on the culture, identity and god of Israel» (Hazlton,
2007: 35).
Esta
forma distanciada de enquadrar um texto literário considerado
sagrado é produto de uma educação laica na autora, onde é
evidente quer a influência do laicismo do Século das Luzes, da
Teoria da Evolução das Espécies de Darwin, assentando ambas na
ideia de que os povos se relacionam uns com os outros condicionados
pelas características do meio e da distribuição dos recursos, o
que acaba por moldar, as normas sociais e também as suas formas de
religiosidade, como se vê no excerto que se segue:
«Strange
as it may sound in terms of contemporary Middle East politics, the
authors of Kings
were virulently anti-Israel. Their version of history was the product
of theology as much as politics – or theopolitics, that is. Writing
nearly three centuries later in the southern kingdom of Judea, they
so denigrated and downplayed the northern kingdom that its existence
would come to be all but forgotten. It wouldn't be until the late
twentieth century, when the Near East archaeology finally shook off
the yoke of traditional biblical archaeology and its aim of “proving”
the Bible rather than investigating it, that researchers began to
appreciate the Dynasty of Omri and Ahab as the Golden Age that the
era of David and Solomon never was.» (Hazlton,
2007:35-36).
E continua a análise exploratória deste ponto de vista, com
ramificações que estendem ainda mais para Oriente, rumo ao império
Assírio-Babilónio, região que hoje coincide com a fronteira entre
a Síria e o Iraque que continua ao rubro, quase três milénios
depois:
«Even
Israel's enemies would acknowledge the military prowess of the
Omrides. They did so in the principle that the greater your enemy,
the greater you must be. The power of your foes was a measure of your
own power, and both Omri and Ahab were eminently worthy foes.
One
densely chiselled stone document of the time records the military
campaigns of Shalmanezer III, the ruler of the dangerously
expansionist Assyrian empire in what is now northern Iraq and Syria.
Known as the Monolith Inscription, it lists “Ahab, the Israelite”
as fielding the largest force – two thousand chariots and ten
thousand infantry – in a coalition that held off the Assyrian Army
at the Battle of Qarqar on the Orontes River.
Another,
a black basalt stele known as the Moabite Stone, found in Jordan but
now in the Louvre, recounts in the voice of Moab's King Mesha that
Omri and Ahab “oppressed Moab many days,” building border
strongholds there to consolidate their control of King's Highway
caravan route, which ran from Arabia and the Red Sea through Edom,
Moab, and Gilead to Damascus. Even after the Omride Dynasty had been
destroyed, Assyrian records would continue to refer to Israel as
bit-Humri – The House of Omri – and to its kings as the sons of
Omri»
(Hazlton,
2007, 37).
No
tocante ao território, relevo e clima, a autora nunca deixa traçar
analogias ou paralelismos entre épocas, dando à narrativa o efeito
de diluição das fronteiras de tempo, como se este não existisse. O
desenvolvimento narrativo é feito utilizando uma perspectiva
sincrónica aos invés de diacrónica o que faz de Jezebel
mais
do que uma simples biografia ou obra de reconstituição histórica
ou mesmo de análise literária e linguística, uma aliciante
narrativa de viagens, onde o perigo espreita a todo o instante e se
percebe o quanto é tensa ainda hoje a situação nos territórios,
hoje árabes, mas ocupados pelo novo estado Israelita:
«What
remains of the royal city of Samaria is still haunted by the ghosts
of battle. Just getting there turns out to be a journey fraught with
tension and uncertainty. Driving north from Jerusalem, you go through
a long succession of Israeli military checkpoints. The soldiers are
hot and tired, and this is the last place they want to be, on a
Palestinian road where Israeli civilians are forbidden to drive. They
are the most visible signs of the heavily resented military
occupation of West Bank, and this makes them irritable, curt and
rude. If you travel as I did with Palestinian archaeologists, all
conversation inside the car stops at each checkpoint. You bite your
tongue, wait patiently while the soldiers make a show of examining
documents, answer their questions as briefly as possible. Both sides
are too aware of the potential of sudden violence.
A
landscape interrupted by barbed wire and concrete barricades can
hardly be considered beautiful but as you make your halting way from
the high desert reaches the Judean hills and into the northern part
of the West Bank, the hills seem to round out and lose some of theirs
harshness. The landscape begins to feel a bit softer, more inclined
to human settlement»
(Hazlton,
2007: 39-40).
Chapter 3. –
“Gilead: in which Elijah is surrounded by Harlots”
O
terceiro capítulo do livro incide na reconstituição e recriação
do ambiente da corte em que se movimenta o casal real em
Reis,
Jezebel e Ahab. Trata-se do local onde se dá o primeiro encontro
entre os dois principais antagonistas da obra: Jezebel e Elias. A
seguir, a autora dedica-se a explorar o cenário inóspito onde se
julga ser proveniente o profeta, e que se mantém praticamente
imutável ao longo dos tempos. Na corte de Ahab, o ambiente é de
cortar à faca. O primeiro encontro entre Elias e Jezebel ocorre na
sala do trono e anuncia imediatamente a guerra psicológica entre
ambos que se seguirá até ao desenlace da narrativa, como se vê a
seguir (destaques meus):
«Word
of the prophets arrival had spread like wildfire through the city.
The reception chamber was packed, and a huge crowd had gathered
outside, waiting for word of what was happening to be passed back by
those in front.
You could sense the tension in the mass of subdued voices.
Many doubtless revelled in the anticipation of confrontation. The
very fact of Elijah's appearance, let alone the suddenness of it, was
a guarantee of drama; the prospect of a face-off between two great
authorities, royal and divine, was too good to be missed.
Others, more
sophisticated, quailed. If Elijah appeared out of the blue like this,
it could bode nothing good. They feared the moment of divine
punishment for Ahab's transgression» (Hazlton,
2007: 54).
O excerto anterior sublinha a atitude, mostrada em Reis, de
antecipação pelo povo do que irá acontecer. O povo, supostamente
conheceria bem as duas figuras em causa, baseando-se no seu ethos
prévio ou imagem pública. Sabiam pois que o conflito estava
eminente. A corroborar este indício está a recriação pela autora
do discurso interno que poderia ter tido a rainha, com base nas suas
atitudes, nas entrelinhas do texto de Reis:
Yet,
the minute she laid eyes on the man, Jezebel's first impulse was to
break out into mocking laughter. This was the great Israelite prophet
whose name she'd heard spoken with such fear and trembling? All she
saw was an emaciated wreck of a man whose clothes – if clothes they
could even be called – were mere pelts, still ripe with the blood
of the animals they'd come from. His long matted hair was tangled
with filth, his beard a mass of knots, his teeth stained brown by the
carobs she'd heard he lived on – honey and locusts, they'd say in
centuries to come, not realizing that the carobs were the fruit of
the honey-locust tree.
She
took in the gnarled fingers clenched around a coarse wooden staff;
the long jagged fingernails curled and yellowed with neglect; the
eyes burning with fever, or perhaps fervor – they were, after all,
much the same thing. What kind of man would do this to himself?A
delusional man, surely. A creature to be sorry for, to turn gently
away with scraps from the table. A pitiable creature, teased by young
boys and stoned by adolescent bullies.
She
didn't laugh, of course. She had to much self-control to give in to
such impulse. But she gathered the silk folds of her robe close about
her with a slight shudder, as though the prophet's very presence
could contaminate her. He didn't belong here, in her court, her
domain. He was an intrusion, an apparition from a world that was the
antithesis of hers. And she could see in his eyes that he knew it.
That this was precisely why he was here» (Hazlton,
2007: 54-55).
Há
porém um único ponto negativo do livro: o ser-nos dada uma visão
deste episódio histórico um pouco, talvez, excessivamente centrado
no ponto de vista de Jezebel e Ahab: naquele tempo era grande a
diferença em termos de riqueza e prosperidade de uma nação que
dispunha de um fortíssimo empório comercial como Tiro e o seu reino
vizinho a Sul, Israel; comparativamente, este último estava longe de
ser tão abastado quanto o seu vizinho a Norte, e o povo, em
particular, passava dificuldades. O medo de Elias – sem
desvalorizar as consequências negativas da componente xenófoba e
misógina desse medo – era de que, a juntar ao domínio económico
viesse também o domínio religioso e cultural, sem que daí adviesse
uma mudança no estilo e qualidade de vida para o povo de Israel, em
cuja memória estava ainda inscrito o período de escravidão no
Egipto.
E, como tal, os Israelitas tinham sem em mente a necessidade de ter
uma figura que pudessem colocar no lugar de Moisés. Um líder
espiritual, inspirador que fizesse a ponte entre o mundo terreno e o
mundo do espírito, o visível e o invisível. Elias, pela impressão
que causa, segundo a própria Hazlton e segundo, também, as fontes
antigas, era detentor dessa aura.
Daí
o sentimento de reverência expresso pelos guardas no excerto
seguinte:
«Not
even the king's guards had dared deny him entry into the main
reception hall of the Samarian palace. If there was an element of
derision in the way they looked at him, there was also awe. They may
have wanted to snicker at his looks and his garb, at his uncouth
speech and unkempt hair, but it seemed there was a power in him that
they dared not challenge. He had an aura of a man appointed by the
divine, one who had heard the voice of their god and transmitted it
to them. And his wretched appearance worked only to strengthen this
charismatic aura. His primitive clothing was the sign of holiness,
not in the sense of modesty and humility – no barefoot Franciscan,
this – but as a deliberate and calculated slap in the face of all
human authority and custom» (Hazlton,
2007:55-56).
E finalmente o capítulo chega conclui-se com o retrato do homem
“inspirado” pelo divino, ao identificá-lo com a paisagem
geográfica que é o espelho do seu ethos:
«The
image of Elijah is indeed that of a stark man from a cruel land. Yet
compared to the West Bank of Jordan Valley, his native Gilead on the
East Bank of the river is the image of fertility. Today it is part of
the Kingdom of Jordan, but it still has what the hills of Samaria had
not: water.», (Hazlton,
2007: 57).
Enquanto prossegue a análise crítica do ponto de vista literário
do Livro dos Reis, a autora continua a usar o conhecimento detalhado
da geografia local para explicar a atitude das personagens e
descodificar a intenção dos autores que o escreveram o texto
bíblico. Ela própria percorre, de carro, o território para atestar
a aridez e o carácter inóspito, tanto do relevo quanto da fauna
locais, a moldar o carácter de quem lá vive através dos séculos.
Este episódio dos cães selvagens é um dos mais impressionantes de
toda a narrativa:
«I
took the narrow asphalt lane leading toward Listib. I didn't think to
check with my passenger. To come so far and not stand on the place
where Elijah was born was inconceivable to me. But not to De'eb. So
far as he was concerned, the view from the Byzantine ruins was as
close as anyone would ever want to get. “No way,” he said with
alarm when he realised where we were heading. “There are dogs
there, and I'm afraid of dogs”.
It
seemed absurd that a man named for a wolf should be afraid of dogs,
but De'eb was deadly serious. We negotiated: “Okay, but I'm not
setting foot outside this car,” he said, and on that understanding,
I turned on to a dirt track and started up the hill. Which was when
the dogs appeared.
They
seemed to come out of nowhere, five or six of them – in the panic
of the moment there wasn't really time to count. Some were pure
white, others mottled, and it was immediately clear that they were
built and moved like wolves, not mere dogs. They were wild
wolf-dogs, that is, and clearly more wolf than dog.
They
blocked the track, snarling ferociously, wild-eyed and jittery. It
needed no imagination to see those teeth ripping an arm from your
body and coming back for more. Then without warning we were
surrounded by them. They launched themselves at the car – at the
wheels, onto the hood, at the windows, which I managed to close just
in time. They yelped as they bounced of f the sheet metal and then
hurled themselves back to one-sided fray, claws searching for
purchase. The car shuddered under the assault. In front of me, open
jaws spattered drool on the windshield. To one side, fangs loomed
inches from my eyes. To the other, De'eb was bent double, his head
buried in his hands.
I
looked for someone to call of the attack, but there didn't seem to be
a single person around. No washing hanging out to dry, no chickens or
donkeys or any other signs of human habitation. So far I could tell,
the mud-brick hovels were abandoned, and the wolf-dogs owned the
hill.
The
car's metal casing suddenly seemed very fragile. With no room to turn
on the narrow track, I finally regained my senses and backed down
from the fray and off that hill as fast as I dared while I still had
air in the tires. The wolf-dogs kept up the attack as far as the
asphalt, then ranged themselves in a row at the threshold of the dirt
track, barring it. They were snarling and panting but no longer
attacking, their pose that of zealous guardians who had successfully
defended their territory.
De'eb
just stared at me, eyes wide open with fear, shaking his head. I only
started shaking as I drove away, when I realized I no longer had any
doubt that this was where Elijah was born.», (Hazlton,
2007: 60-61).
Chapter
4. “Carmel: in which the gods have a showdown”
Nesta fase do livro, a autora trata de esmiuçar a desconstrução do
discurso atribuído a Elias no Livro dos Reis ao expor a forma como,
através dele, é construído o retrato da rainha Jezebel que se
fixará para a posteridade no imaginário colectivo.
Os acontecimentos ocorridos no Monte Carmelo, onde Elias dá conta,
nas suas visões inspiradas, do que seria, supostamente, o futuro de
Israel: povoado de acontecimentos nefastos, por culpa supostamente da
promiscuidade cultural, religiosa da Rainha e, já agora, sexual, do
Rei Ahab. Um castigo imposto por Yahweh pelo facto de o rei casar com
uma mulher não israelita. Os argumentos são praticamente os mesmos
que os utilizados por qualquer membro de um qualquer partido da
extrema-direita na actualidade, seja ele proveniente de um estado
teocrático ou laico. Ao lermos as palavras de Hazlton ao
falar de um profeta que profere constantemente discursos políticos,
revestidos de religiosidade e apresentados sob a forma de profecia,
não podemos deixar igualmente de tecer comparações com políticos
peritos no discurso demagógico dos nossos dias. O texto de Hazlton
adquire, aqui, a forma de comentário explicativo, como se
estivesse a dar uma aula Pragmática ou Análise do Discurso ou até
de Ciência Política, mas numa perspectiva psicanalítica. A
temática do capítulo centra-se, praticamente, toda ela, no efeito
aterrorizante ou, pelo menos, intimidatório das maldições contidas
nas palavras do profeta e do efeito que provocam nos destinatários
da mensagem:
«Curses are still chilling. Anyone who's been cursed at by
another driver on the road knows it. The very fact of having
engendered such rage in someone else is discomforting. You drive on,
telling yourself that whatever was said, they were just words, but
still, a pall seems to have descend on the day. You know that the
words were impersonal, that they were a manifestation of the other
driver's problem, not yours, yet you can't help but take them
personally. They reverberate, because curses carry force even in the
twenty-first century. In the ninth century B.C., they carried far
more. They were a direct invitation to the gods to do their worst.
Or rather, a direct promise by the gods» (Hazlton,
2007:77).
E logo a seguir ao exemplo da actualidade estabelece a analogia com o
exemplo bíblico:
«The Bible is full of curses. They haunt its stories, populating
them with foreshadowings of a dire and terrible future. In the mouth
of someone speaking in the name of the divine, they were literally
awesome – full of awe. Call down a curse in the name of your god,
and that god's power was behind the curse. Call down a curse as a
prophet of Yahweh, and that was Yahweh's curse» (Hazlton,
2007: 77-78).
Primeiro, na corte de Jezebel (vide capítulo
anterior) e depois no monte Carmelo é precisamente essa a reacção
dos presentes mediante as palavras e o discurso de ódio do profeta.
Todos os destinatários da mensagem, sem excepção, inclusive a
rainha, ficam paralisados pelo terror. Sobretudo aqueles que se
encontravam, já de si, com a mente fragilizada pela seca prolongada
que assolava a região e que ameaçava matar o povo pela fome.
Um fenómeno para o qual desconheciam, naquela
época, qualquer explicação científica, sendo que a materialização
de uma fúria divina e a necessidade de encontrar um responsável
pelo despoletar de tal ira se ajusta que nem uma luva a este tipo de
discurso, encontrando ali terreno fértil
para fazer medrar o clima de instabilidade e conflito, com o
objectivo de derrubar a casa real e impor outro tipo de ordem social:
«But of all curses possible, the worst by far was drought. The
Israel highlands were almost totally dependant on rainwater, and the
winter rains were as variable then as they are still today in any
semi-desert area.
(…)
Rain
was beyond human control. It was the province of the gods. In the
absence of science, theology provided the explanation of nature and
served as both the physics and meteorology of the time. Everything
was either the result of divine actions that merely happened to
impact human beings, which is how Phoenicians saw the world, or the
demonstrative will of God, which is how Yahwists saw it. You might
say that where the Phoenicians were at the mercy of their gods, who
were neither benevolent nor malign, Israel determined the actions of
its god by its behaviour, and he could be both benevolent and malign.
When pleased, he granted rain; when displeased, he withheld it. And
never, according to Elijah, had he been displeased as he was now» (
Hazlton,
2007:78-79).
No excerto que veremos a seguir, a autora recria o pensamento de
Jezebel acerca desta questão, ao comparar ambos os pontos de vista,
Israelita e Fenício, que se apoiam em sistemas religiosos
diferentes, neste caso antagónicos, para dois povos (ou determinados
grupos neles integrados) cujos interesses colidem:
«How
could humans think themselves so important in the divine scheme of
things that their actions could determine drought and bounty, life
and death? The very idea of the divine as a system of reward and
punishment was abhorrent to Jezebel. For a god to be jealous of
humans – jealous for their praise and their loyalty – seemed a
terrible diminution of the whole idea of the divine. Baal Shamen
played in the sky regardless of what humans did below. He didn't need
their worship and devotion to assure his existence. He was beyond
such reassurance; that was the essence of his divinity.
But
this Israelite brother of his, Yahweh, was possessed by such a fierce
jealousy and was so dependant on human loyalty, that he was driven to
extraordinary wrath if crossed» (Hazlton,
2007:81).
Na óptica de Elias, Israel estava a prostituir-se, vendendo-se aos
interesses de Tiro, através daquela a quem chamava de Grande
Meretriz, a Rainha Jezebel. Segundo Hazlton esta não seria,
mesmo do ponto de vista do profeta, uma meretriz no sentido literal
do termo mas figurativo, vendendo-se em nome dos interesses da nação
e praticando uma espécie de lenocínio com Israel, da mesma forma
como tenta fazer a Al-Qaeda nos tempos modernos, com o mundo islâmico
que não se submete à sua visão extremista da religião. E, da
mesma forma, como viria a fazer o DAESH, sete anos depois de a autora
ter escrito este livro:
«As
Elijah saw it, Israel was selling its soul for the material benefits
of trade with Phoenicia and Damascus. Thus harlotry had to be
punished, and the punishment had to be a collective one – one in
which everyone would suffer, guilty and innocent alike. For in
Elijah's mind there were no innocents. Every Israelite was part of
the covenant, and everyone was thus responsible. Only collective
punishment could rouse them into action, waken them from their
heathen state of well-being, and shock them back in their true faith»
(Hazlton, 2007: 82).
E aproveita para fazer a analogia com a situação geopolítica no
Médio-Oriente no século XXI, (destaques meus):
«Twenty-eight
centuries later, Ayman Al-Zawahari, the second-in-comand of Al Qaida
would redefine this stance as “internal jihad”. Shock tactics
were needed to rouse Islamic masses into awareness, he declared.
Muslim unbelievers were not merely heathens, but worse than heathens,
since their betrayal came from inside. Religious warfare against them
was thus a legitimate means to protect the purity os Islam.
(…)
Any strategy was valid to break what Zawahiri called “the spell”
of foreign influence, impurity, and corruption. Like Sayyid el-Qutb
before him, he saw himself as fighting an epic battle against an evil
empire. Foreign ideas were corrupting Muslim minds, values, and
society; once corrupted, people were no longer true Muslims and so
could be killed. The terror thus created would shock others into
rising up and overthrowing Western-influenced regimes. Violence would
become what Franz Fannon called “a cleansing force” restoring
pride and dignity. It would become redemptive.
Radical
Islam's most bitter criticism was reserved not for the West but, as
Stern noted, for Arab leaders. “Arrogant, corrupt, westernized
princes and autocrats,” Sayyid el-Qutb called them.
In
Egypt, President Anwar Sadat's assassin [on the twentieth century]
saw him as a traitor to Islam and the Islamic people. So too in
Israel, Prime Minister Itzhak Rabin's assassin saw him as betraying
Yahweh and the Jewish people. Paradoxically, radical
fundamentalism bridges religious differences. Extremist Jews and
Muslims may hate one another, but they are mirror images. They
subordinate the core values of Judaism and Islam to their radical
view of the world until extremism itself becomes a separate faith all
its own» (Hazlton, 2007: 82-83).
No reinado de Jezebel e Ahab, o Monte Carmelo, situado no território
onde hoje se estende a cidade de Haifa, junto ao Mediterrâneo, foi o
cenário de um impressionante episódio histriónico-épico-dramático
que implicou um desafio teológico, numa espécie de “competição
olímpica de deuses”, a envolver Yahweh, ou melhor, os seus
sacerdotes, do lado Israelita, e os sacerdotes de Baal, do lado
Fenício. Elias encabeça, a tribo de sacerdotes israelitas a
desafiar o a tribo adversária, para uma exibição de poder divino,
de onde sairá vencedora a facção que conseguir despoletar a
reacção mais espectacular do respectivo deus. Para a Autora, Baal e
Astarte, do lado Fenício, com a sua tradicional indiferença à
interacção humana são, à partida, os perdedores.
Hazlton chama a atenção para a astúcia e calculismo do
profeta na escolha do local onde, devido ao conhecimento detalhado
quer da geografia quer do clima na região, consegue percebe a
aproximação de um fenómeno climatérico extremo, sobretudo pela
longa ausência que precipitação que está prestes a terminar. Por
outro lado, este é também um local estratégico em termos
políticos:
«Elijah had chosen his stage shrewdly. The Carmel divided and
united two kingdoms, as was sacred to both. There was no more perfect
place for a confrontation between the priests of one people and the
prophet of the other» ( Hazlton 2007:86).
Como já foi dito, a seca assolava a região há tanto tempo que quem
conseguisse fazer manifestar o poder divino através das mudanças
climatéricas, conseguiria também o controle da população. No
Livro dos Reis o profeta de Yahweh consegue, após serem invocadas
por seis vezes as forças divinas pelos sacerdotes rivais, “fazer
acontecer” algo. O número sete aparece aqui a figurar como número
mágico no texto. Sendo em Israel trivial a ocorrência de fortes
tempestades após um prolongado Verão, sobretudo particularmente
seco e quente, como teria sido nesse ano, o texto é arranjado
posteriormente de forma a parecer que há a intervenção de um
elemento sobrenatural e mágico a ajudar quer à meteorologia, quer
ao sentido de oportunidade de Elias, que espera o momento em que a
tempestade está prestes a rebentar para intervir, deixando os
Fenícios caírem no ridículo.
«Elijah
was the great magus of Israel, the sorcerer, the man who could
suddenly appear and just as suddenly disappear, who could call down
lightning and rain, who could raise children from the dead, multiply
grain and oil, and who, when he died, would leave no body, but would
be carried up to heaven in a whirlwind. And if many of his actions
seem familiar from other biblical legends, that was deliberate on the
part of the King's authors. They were establishing Elijah as the new
Moses, the great liberator, which is why Elijah and Moses would
appear together, with a third great liberator, Jesus, at the
Transfiguration on Mount Tabor»
(Hazlton,
2007: 97).
Chapter
5. “The Vineyard: in which Jezebel is accused of murder”.
O capítulo 5 relata e analise um dos episódios que se revelaram
cruciais para a cristalização da imagem de vilã despótica da
Rainha Jezebel e, talvez, o maior erro estratégico e diplomático de
todo o seu reinado: a questão relacionada com os vinhedos de Naboth.
A cena decorre do antigo vale de Jezreel – hoje local arqueológico
de escavações – onde o casal real tinha o palácio de Inverno,
situado numa fortaleza quase inexpugnável, e em cujos terrenos
limítrofes se dá a disputa de um outro terreno vizinho, cobiçado
pelo casal real, que despoleta um sério conflito entre o rei e o
proprietário, Naboth.
O que perpassa em Reis é que a proximidade dos vinhedos de
Naboth ao palácio de Inverno de Ahab e Jezebel, tornava aquela
propriedade muito apetecível ao casal real, levando a uma disputa de
terras que termina da pior maneira, uma vez que Naboth se recusa a
vendê-las. A isto, a intervenção de Elias na contenda vem
incendiar ainda mais o conflito. Mas do ponto de vista de Hazlton,
esta foi uma situação muito mal gerida pelo casal real em termos de
diplomacia. Uma situação que é mais uma vez habilmente aproveitada
pelo sacerdote, que já havia habituado a sua audiência ao discurso
populista e demagógico que o caracterizava. Na perspectiva da
autora,, a rainha e Ahab queriam construir um jardim ornamental,
possivelmente equipado com uma vasta colecção de ervas medicinais,
à semelhança de outros que já existiam noutras casas reais, como
na Pérsia ou no Egipto, mas a proposta não foi vista com bons olhos
pelo establishment Israelita:
«Not that the idea of an herb garden
hasn't its own intriguing possibilities. Herbs were not merely means
of flavoring food. They are primarily used for healing. Medical
knowledge was herbal knowledge. Healers and midwives – the “wise
women” – did the everyday work of collecting and preparing herbs
and administering them, but the public healing of a miracle worker
like Elijah was seen as a manifestation of the divine. Which left
open to the question of which divinity was at work.. Elijah healed in
the name of Yahweh, but the best-known healing divinity throughout
the Middle East was the Mesopotamian goddess Gula, she of the giant
mastiffs, guardian of the doors between life and death. The herb
garden may well have been euphemistic scribal shorthand for a temple
to Gula, to be built by Ahab as another gift to Jezebel.»;
(Hazlton,
2007: 107-108).
A disputa acaba de forma violenta e trágica para o pobre Naboth,
gerando a oportunidade perfeita para construir a pior imagem possível
de Ahab e Jezebel ao olhos do povo e das gerações vindouras. Naboth
insistira em manter as terras na sua posse, apesar de o terreno não
ser o mais indicado para o cultivo da vinha. A recusa em vendê-la a
Ahab baseava-se na invocação do direito divino à mesma, concedido
por herança. Mais uma vez, a autora estabelece uma analogia com a
época actual, extrapolando o episódio para as disputas territoriais
entre Israel e o Hamas pelestiniano:
«This attitude to the land of Israel is
directly mirrored in the Modern Islamist one to Palestine, the same
land by a different name.
(…)Both
sides to Israel-Palestine conflict see this literally as holly land.
In fact, not just the land but the very soil is holy.
(…)
This is why Naboth says no. He invokes the
covenant: the land does not belong to him as much as he belongs to
the land.»; (Hazlton, 2007: 110).
Mas apesar da marcada polarização entre ambas as personagens
antagónicas (e dos dois lados do conflito Israelo-Palestiniano na
época contemporânea) não se pode deixar de perceber, nos
insterstícios do texto de Hazlton, que se Elias age, no Livro dos
Reis (apesar da tentativa de branqueamento da sua imagem pública
pelos seus autores), como um autêntico Iago, Jezebel, no tocante à
posse dos vinhedos de Naboth, sem olhar a meios para levar a sua
avante, não se consegue livrar da imagem orquestradora de uma
intriga palaciana muito ao estilo de uma Lady Macbeth. Naboth será a
vítima das intrigas de ambos os contendores, intriga essa que
deixará raízes malignas para o futuro da Israel de então e que se
estendem até aos dias de hoje:
«Under
the influence of Ahab and Jezebel, the ancient Israelites had begun
to take de land for granted. The experience of Israel as a normal
kingdom in peaceful, prosperous relations with its surrounding
kingdoms had lured them into forgetting the conditionality of the
covenant. Prophet after prophet warned that they were being seduced
by the physical solidity of the land into ignoring the precariousness
of their claim to it.
(…)
This is the real story of the Kings. The anticipation, the
experience and eventually the memory of exile. In the words of Walter
Brueggemann: “Kings is the history of landed Israel in the process
of losing the land.”»; (Hazlton, 2007: 121).
Chapter
6. “Sinai: in which Elijah rides a whirlwind”
E aqui chegamos a um dos pontos mais emocionantes desta análise da
narrativa de Reis: a parte em que Elias invoca as forças
divinas e, na qualidade (auto-concedida) de mediador entre a voz e a
vontade divinas e os humanos, solta uma maldição dirigida a Israel
em geral e ao casal real em particular, sobretudo a Jezebel, após o
que desaparece no meio de um vórtice de vento e fogo.
O local que havia escolhido para mais uma demonstração de poder
obedece, mais uma vez, a imperativos estratégicos: um local de
passagem, na fronteira entre Israel e o Egipto, por onde os
Israelitas fugiram à escravidão, como é relatado no livro do
Êxodo. É o lugar ideal para transmitir a ameaça de ira divina
(sobretudo num momento em que se avizinham condições climatéricas
extremas como mais tarde veio a verificar-se). Na verdade, as coisas
passam-se de uma forma um pouco imprevista para Elias, como se a
maldição se virasse repentinamente contra si próprio mas,
paradoxalmente, a sua imagem sai reforçada:
«Mount
Sinai is an imposed mass of jagged granite in the Southern Sinai
desert, set of from the surrounding mountains not only by giving its
height but by deep ravines. At the very top, a bolt of black volcanic
rock thrusts up through the granite to form the peak of the
mountain, known as Jebel Musa, Arabic for Moses Peak. Stand here at
sunrise and it's as though you are at the highest point of a massive
altar. With majestic slowness the universe seems to reveal itself at
your feet, range after range of mountains, until you have the
entrancing illusion of being truly on the top of the world.
Strange things happen in these high desert
mountains. Strange tricks of light, as when you walk along a narrow
shaded defile and suddenly emerge into a deep red light that seems to
infuse you with unearthy beauty. Strange tricks of the wind too. At
times you can hear the mountain breathing, even moaning. In the dry
desert heat and the thin air of altitude, it«s hard to tell what's
real and what's in your mind. The slightest things – a sudden
flight of three birds, a single ray of light shining through a gap in
the rock – seems like omens. The mountains reputation suffuses
every moment you spend on it. It becomes, as Nikos Kazantzakis called
it, “the God-trodden mountain”.»;
(Hazlton,
2007: 125-126).
O fim terrível de Elias, após convocar a divindade, mediante o
terrível vendaval que se aproximava foi suficiente para convencer,
aterrorizar e subjugar pelo medo a população. Isto porque, à luz
dos conhecimentos da época, quem se atrevesse assim a tentar
comandar a vontade de Yahweh poderia acabar fulminado ou desaparecer
num redemoinho de vento, tal como acontecera a tão atrevido profeta.
Ao longo do capítulo a autora desenvolve a ideia de como um fenómeno
natural a ser aproveitado astuciosamente pela classe de sacerdotes,
que foi por estes posteriormente reinterpretado editado e fixo,
séculos depois dos factos ocorrerem, nos textos da Bíblia.
«To the modern
reader, a book is a cohesive work, written within a limited time
frame by a simgle person, unless other authors are specifically
named. When we think of the biblical books, we imagine either divine
authorship or a single human author, presumably writing at the time
of the events narrated. Yet,
decades of modern scholarship have shown that Kings was begun only in
the sixth century B.C., shortly before Babylonian exile, and was
finished at least some fifty years later, in exile, since that is
when the narrative ends.
To assume that it was entirely written earlier,
is rather like assuming that a first-person narrative by someone who
gets killed at the end is true. You know it has to be a fiction, or
the author couldn't have written the book. Not that author, in any
case.
But this was only the first draft. Further
drafts were made after the return fro exile»(Hazlton,
2007: 130).
O que a autora quer aqui dizer é que, não sendo uma Reis
narrativa de primeira pessoa e tendo o livro sido escrito muito
depois de os factos ocorrerem, esta é já uma versão muito
modificada dos factos. Mesmo a primeira versão seria já uma
recriação a partir de depoimentos de outrem, sendo esse outrem
também ele recriador da sua própria narrativa. Logo os
acontecimentos de Reis estão longe de ser o resultado de um
testemunho em primeira mão, mas antes fruto de tradição oral e de
uma recolha de um património imaterial, com um considerável
desfasamento no tempo, com tudo o que isso acarreta em termos de
modificação da descrição dos acontecimentos. Mais ainda: a autora
explica que, para além do primeiro “draft” como lhe chama, há
também as sucessivas cópias, executadas com o objectivo de se
proceder à substituição de papéis deteriorados, traduções, com
inúmeras alterações ao sentido do texto original, até por não se
encontrar, muitas vezes, termos correspondentes na língua de
chegada. Para além dos textos e fragmentos que foram desaparecendo
com o tempo, até que o texto bíblico adquirisse o formato que hoje
conhecemos (veja-se, a propósito desta questão, a polémica inicial
causada pela nova tradução da Biblia cristã, a partir do grego,
por Frederico Lourenço em Portugal).
Assim, para a autora, o Livro dos Reis, escrito na sua maior parte
durante o período de exílio, obedeceu mais a uma intenção
messiânica de resgate do seu próprio país e identidade cultural
pelo povo de Israel do que a um relato neutro dos acontecimentos. No
entender de Lesley Hazlton, esta intenção messiânica
sobrepõe-se completamente aos factos, para ocupar a posição
central na narrativa do mesmo livro e atira o que realmente aconteceu
(incluindo o episódio do Monte Sinai) para a obscuridade.
«Like
most storytellers, then, the Kings' scribes had an agenda. They were
not independent historians but employees of the Jerusalem temple,
consciously working of sacred texts that were central to the identity
of the Judean nation. And these were indeed texts, not books, because
books didn't exist then the way they do now. (…) Hardly anyone
could read, let alone write, which is why a special class of
professional scribes existed.
(…)
The
written word was not a means of communication but a sacred object in
and on itself, intended to preserve, sanctify and enshrine traditions
of nation and identity. So, with each consecutive copy, the scribes
“improved” the text to bring it into line with their purposes.
The
basis of the Kings, often referred to in the text, is “The
Chronicles of the Kings of Israel”, though no copy of this has ever
been found. Assuming that it indeed exist, it is only one of the
multiple strands within Kings' . Over the centuries, the scribal
copiers expanded the narrative, dropping in whole sections, such as
the miracle tales about Elijah and his successor Elisha, which bear
the distinct signs of folk legend. They added in stand-alone chapters
like the one on Ahab sparing the life of the king of Damascus, or the
story of Naboth's vineyard, and because it was so difficult to scroll
back to check the chronological flow of the narrative, they dropped
the in where it seemed to the appropriate.
(…)
Kings
reached the form we now know only in the third century B.C. When the
Hebrew bible was translated into Greek an began to be canonized –
set in stone, as it were. By then, it had taken on a kind of dream
logic. Time is condensed or spaced out or even reversed. Geography
expands or contracts at whim. What we know to be impossible takes
place with the nonchalant certainty of fact. But none of this
mattered. This was a narrative history of the relationship of the
human to the divine, a testament to the trinity of god, people and
land. And it made its own demands.
The narrative demanded that Elijah not to be defeated by Jezebel.
It demanded that he have the last word, that he redeem his cowardice
and fear, and that he impose the judgement of Yahweh on her. So the
vineyard story was dropped in where it was by a latter editor because
this is where it made more emotional sense.»; (Hazlton,
2007: 132-133).
Chapter
7. Damascus: in which Ahab fights his last battle
No capítulo 7, chega-se ao desfecho de mais uma personagem
importante no plot, dentro do cenário de guerra entre Israel
e o vizinho sírio: Ahab Rei de Israel, marido da protagonista. Na
bíblia, a maldição de Elias, segundo Hazlton, havia já
afectado consideravelmente o ânimo do monarca e a disposição do
casal real, por carregar em si a força oracular de conotação
profética. Os autores de Reis por seu lado não poupam a
esforços para realçar essa mesma imagem de desalento e
enfraquecimento anímico no casal real, que teria caído sobre eles
como uma forma de castigo divino, e assim atribuir maior “veracidade”
e verosimilhança às profecias do homem que começava então a ser
olhado como veículo transmissor da “força divina”:
«The
shadow of Elijah's words darkened every moment of Ahab's life. How
not, when his death had been withheld for his own good? Ahab
tolerated other faiths for pragmatic reasons, but only his faith in
Yahweh could have sent him into such remorse.
(…)
For this reason alone, Elijah's words weighed heavy on Jezebel and
all the heavier when, inevitably, Ahab did indeed die» (Hazlton,
2007, 146-147).
A primeira secção deste capítulo é dedicada à descrição do
clima de fatalidade que antecede a acção e prepara o leitor ou
ouvinte para o que vem a seguir. O discurso de Hazlton é,
todo ele, construído com base em indícios que tem o efeito de
aumentar a tensão no leitor impelindo-o a prosseguir obsessivamente
na leitura. Na secção seguinte, continua o adensar progressivo da
tensão psicológica, que atinge um nível quase insuportável,
centrando-se o plot na intensificação do [eterno] conflito
diplomático entre Israel e Damasco.
«When Ahab spared the life of the Damascus king, Ben-Hadad, the
treaty he concluded assured continued Israelite control of Ramot
Gilead. But this was to be only one phase of a hundred-year war
between the two states for the stronghold. No treaty could last long
in this time and this place, and this one would end with the death of
the aging Ben-Hadad. His son succeeded him, taking the title of
Ben-Hadad II, and immediately abrogated his father's treaty with
Ahab. Seething with resentment at his father's agreement to cede such
a vital fortress, the new king attacked Ramot Gilead. Damascus and
Israel were at war once again» (Hazlton,2007 :147).
Por fim, o trágico desenlace respeitante ao Rei Ahab e os rituais de
luto da cerimónia real a que preside a Rainha marcam o ponto de
viragem radical no curso dos acontecimentos. As exéquias conduzidas
segundo a tradição fenícia acicatam ainda mais no povo o
sentimento rebelião e repúdio contra todo e qualquer traço
cultural vindo de “fora”. O status da Rainha e o respectivo papel
na condução das funções do Estado são imediatamente alterados em
função do novo estatuto de viúva, uma vez que Jezebel passa a
assumir, as funções de regente do reino e se torna o principal alvo
do ódio dos sacerdotes, já não com Elias à cabeça, mas com o
seu sucessor, Eliseu (Elisha). Por outro lado, a disputa do trono
pelos filhos de Ahab fornece a este grupo de interesses, o cenário
ideal para prossecução do seu principal objectivo: dividir para
reinar.
Na segunda parte do capítulo, a Autora explicita a questão dos
sacrifícios humanos alegadamente utilizados nos rituais religiosos
Fenícios. A autora levanta a hipótese de estes não serem senão
uma invenção dos sacerdotes de Yahweh para derrotarem a religião
rival no sentido de causarem o repúdio desta pelo povo, ou no caso
de estes sacrifícios terem efectivamente existido, ser a sua
frequência largamente amplificada (a autora avança a hipótese de a
tradição ser a que é descrita no Génesis com o episódio de
Abraão e Isaque – sacrificar-se um animal no lugar da criança). A
dúvida quanto a esta questão, levantada por Hazlton, reside
no facto de não existirem registos nos reinos ou nações
contemporâneos ao reinado de Ahab, sobretudo naqueles que derrotaram
Israel, a menção de tais sacrifícios, salvo nos textos escritos
pelos sacerdotes Israelitas.
«No such language appears on the stele for the
excellent reason that such a sacrifice most likely never took place.
Child
sacrifice is part of the written legend of ancient times. For
instance, when archaeological excavations unearthed jars full of
ashes and burned bones of infants at Carthage, the Phoenician colony
established on the coast of what is now Tunisia, they were taken as
proof that the Phoenicians practised child sacrifice.
But
such an argument favors fantasy over a more persuasive reality. The
extraordinarily high infant mortality rate of the time – as many as
three out of five – meant that newborns were not even named until
the fortieth day of life. Those who died unnamed, either in
childbirth or shortly after were cremated and their ashes stored
separately in testament to their special status, in a kind of limbo,
much as an unbaptized infant's death was once regarded in the
Christian West. The assumption that these remains are proof of child
sacrifice is based on ancient Greek and Roman writings accusing other
cultures of precisely this practice but to accept such account as
historical facts is risky business. As will the supposed practice of
ritual prostitution, the rumor of child sacrifice was a means of
labelling others as unbelievably primitive and barbaric, and thus
rape for the civilizing influence of colonization.
(…)
If Moab's King Mesha did in fact make a sacrifice to Chemosh when
on the verge of defeat, an animal would almost certainly have been
substituted for the child, as in the Abraham and Isaac story. The
child would then become the guarantee of his father's oath, so that
if the father broke his vow to the divine, his child would be
forfeit. In this Israelite culture was no different from its
neighbors. (…) The Kings authors called up the old saw of child
sacrifice to rationalize the Israelite defeat despite Elisha's
prophecy of victory» (Hazlton, 2007: 161-162).
Neste ponto da narrativa, Lesley Hazlton prossegue a
dissecação do texto de Reis, focalizando-se agora na
narrativa respeitante ao sumo-sacerdote e profeta Eliseu, sucessor
de Elias, que enfrenta uma situação assaz embaraçosa: a de que as
suas previsões não se concretizam, saindo completamente goradas, o
que o obriga a encontrar uma explicação convincente para não cair
no ridículo. E nada melhor que um “castigo divino”, que virá a
assentar como uma luva nos seus propósitos: afastar definitivamente
a adversária, Jezebel, do trono e da chefia do Estado. No seu ponto
de vista, Israel teria cometido uma falta, ao permitir rituais de
execução de sacrifícios humanos em território de Yahweh. Era
preciso arranjar uma explicação convincente e que causasse repúdio
na opinião pública, veiculando o sentimento se horror e repulsa da
população, nem que para isso se tivesse que forjar uma situação
que desse a aparência de tal facto ter sucedido.
«No
matter what happened, it seem that Elisha could do no wrong – or at
least not be held accountable for it. His prediction of success in
Moab had been demonstrably false, but if questions were raised about
why so powerful a prophet could not have foreseen the rout, we know
nothing of them.
(…)
With
his reputation firmly established by such drastic means as killing
the boys who teased him for being bald, and apparently undamaged by
the events in Moab, Elisha now turned to more classic forms of
miracle. Over the next few years, he multiplied loaves of bailey to
feed hundreds; he made a simple jar of oil fill endless other jars;
he raised a dead child back to life. He was everywhere: sometimes on
Mount Carmel, sometimes in Samaria, sometimes down in the Jordan
Valley. Word of his ability as a miracle worker spread far and
wide, gaining his renown not only among Israelites, but also abroad
- and most particularly in Damascus, Israel's constant rival.»
(Hazlton,
2007: 163-164.)
Outro ponto focalizado no capítulo é a intriga junto do rei de
Damasco, fomentada por Eliseu. Este é alguém que diz defender o seu
povo mas que i ameaça, simultaneamente, com a ira divina. Alguém
cuja preocupação com o sofrimento das pessoas é encenada para
perseguição do seu desejo de poder, deixando entrever as imensas
capacidades histriónicas de utilização da componente dramática no
discurso, sempre que tinha diante de si uma audiência:
« From the man so ruthless as to casually kill
children out of vanity, they [his tears, his grief for Israel] look
suspiciously staged, as though produced on demand to give extra
emphasis to his instructions ho Hazael. What he did to those boys,
Elisha is now planning to do to the whole kingdom of Israel, using
Damascus as the agent of his vengeance. The bald-headed prophet has
the long-haired warriors of Israel at his mercy, and those of
Damascus at his command. He has demonstrated the power of brain over
brawn, of manipulation over muscle and might.» (Hazlton,
2007: 165-166).
Desta forma, o cerco a Jezebel vai-se apertando, os seus aliados vão
desaparecendo ou sendo neutralizados, culminando com a morte de Ahab
e a traição do infame Jehu, o chefe militar israelita:
«The whole of the Israelite high command is
now a conspiracy to seize power. And as they prepare to ride from
Ramot Gilead to Jezebel to dispatch the king and the queen mother,
you realize all this has to have been done with at least the tacit
acquiescence of Damascus since it would be impossible for Jehu and
the other generals to leave Ramot Gilead unless Hazael had called off
his troops. Jehu thus becomess the puppet of the king of Damascus,
and both in turn are the puppets of Elisha, who has stayed firmly
behind the scenes, pulling every string with masterful precision»
(Hazlton, 2007:168-169).
Chapter 8.
Jeezreel: in which the dogs feast.
E chegámos ao capítulo onde se dá o clímax da acção em que é
consumado o destino de Jezebel. Na narrativa bíblica de Reis,
o fim horrendo da Rainha é dado a conhecer de forma a servir de
exemplo, para todas as mulheres cuja conduta não siga à risca os
costumes, tradições e religião, que são a base do patriarcado,
extravasando as funções típicas de esposa, mãe e zeladora do lar.
O local onde decorrem os acontecimento é na cidade fortificada de
Jezreel, onde a esposa do malogrado rei Ahab aguarda o que a espera e
prepara-se para as suas próprias exéquias antevendo que o seu fim
estará próximo. Mas no texto bíblico o que é realçada é a forma
a Rainha se arranja para receber os seus inimigos, dando a entender
tratar-se de uma tentativa patética de sedução, e como o seu corpo
é cruelmente despedaçado por cães especialmente treinados para o
efeito. A autora explica a forma como simbolicamente a bíblia
utiliza a figura destes animais para fins nemésicos:
«There
were once literally such creatures as dogs of war. Specially bred
mastiffs trained both by the Egyptians and the Assyrians for use in
battle, they were tightly tethered to make them more aggressive, then
taken into battle on long chains to lunge and tear on command at any
exposed body parts. The very idea of them was terrifying, let alone
the reality. American soldiers in Iraq were working in a far more
ancient tradition than they knew when they used attack dogs to
terrorize and torture prisoners in Abu Ghraib.
This is a region were dogs still take advantage of human
bloodthirstiness to assuage their own. “The wild dogs of Najaf ate
well this week,” began a New York Times front-page story on the
aftermath of a three-week battle between Americans and Iraqis in
August 2004”. (…) Westerners have the luxury of thinking of dogs
as their best friends, but in the Middle East they have inspired a
complex mix of fear and awe since the earliest times on record.(...)
Certainly dogs could be trained for the use in the hunt, on the
battlefield, or as guards, but their obedience was always sensed as
conditional. You were never allowed to forget how easily they could
turn against you and how horrifying that return to the feral state
could be» (Hazlton, 2007:170-171).
Na segunda secção do capítulo, é explicada a forma como foi
arquitectada a intriga palaciana em que participa activamente o
traidor Jehu ao reis de Israel e da Judeia, descendentes de Ahab e
Jezebel. Lesley Hazlton avança a hipótese da agora
rainha-mãe, ao saber que o seu fim está próximo se arranja
cuidadosamente para o seu próprio funeral e para receber o inimigo
com a dignidade de uma rainha e não como a imagem de meretriz com
que a descrevem os narradores deste episódio no Antigo Testamento.
Hazlton chega mesmo a estabelecer um paralelismo entre o
trágico fim de Jezebel e o da rainha Cleópatra, também ela
vilipendiada pelos seus inimigos políticos que se serviram da sua
sexualidade para lhe distorcer a imagem de chefe de estado e assim
construir-lhe um ethos de licenciosidade que acabaria por
vingar na literatura, pela pena dos historiadores romanos da época.
A defenestração de Jezebel e posterior destruição seu corpo pelos
cães é o símbolo supremo da vitória do monoteísmo sobre o
politeísmo em território de Yahweh. Neste caso, Hazlton
contrapõe face às fontes clássicas, esta mesma hipótese
explicativa. A corroborá-la, a atitude posterior de Jehu na
tentativa de esconder a forma de tratamento ignóbil a que foi
submetida a filha de um chefe de Estado, o Rei Fenício, com a ordem
para que se enterrasse o que restava do corpo, horas depois de
recuperar da embriaguez do festim e da euforia vingativa. Uma
tentativa frouxa, que é defraudada pela acção dos canídeos
(animais, nos arredores do palácio e, humanos, que se banqueteiam em
celebração dentro das muralhas de Jezreel) que se lhe antecipam.
«His days work done, Jehu leaves the blooded corpse crumpled by
the palace walls, enters the throne room in triumph, and orders a
celebratory feast. Only when his stomach is full does he give a
second thought to Jezebel. “Go see this cursed woman, and bury
her”, he tells his aides, “for she is a king's daughter”. Not a
queen, mind you, nor a queen-mother, but her original status, before
she even came to Israel: daughter of the king of Tyre. So far as Jehu
is concerned, the house of Ahab has already been wiped out of
history. Jezebel's corpse is a mere afterthought» (Hazlton,
2007: 185).
O efeito na memória colectiva é, no entanto e de certa forma,
contrário em relação ao objectivo inicial daqueles que se
propunham apagá-la da História:
«Yet memory persists. Once we know the details of how Jezebel died,
they remain engraved in our minds. In a perfect twist of irony,
Jehu's insistence that she be forgotten makes her death – and her
life – unforgettable» (Hazlton, 2007:190).
Chapter
9. Babylon: In which Yahweh is reborn in exile.
É neste capítulo que nos damos conta do anti-climax da narrativa. A
tensão é aliviada após o momento de terror. Agora a localização
espacial da acção situa-se já fora do território de Israel, e num
tempo em que aquele povo está disperso, imerso num prolongado
período de exílio e sujeito à escravatura: na Babilónia. Um ano
após a destruição levada a cabo por Jehu da casa de Jezebel, este
entrega o território ao invasor, pagando um pesado tributo em ouro,
prata e outras riquezas, depois de haver transformado aquele país
num reino de terror, recheado de purgas sangrentas.
Hazlton dá aqui conta de dois pontos de vista relacionados
com este período na história de Israel: o primeiro é o facto de
sobressair, na narrativa de Reis, a perspectiva dominante que
é a da visão masculina e patriarcal representada pelos sacerdote e
profetas de Yahweh: Elias, Eliseu e Jehu, este último o chefe
militar traidor; e o segundo ponto de vista, aquele que se encontra
patente já não na Bíblia mas nas estelas Assírio- Babilónias e
de outras fontes contemporâneas à dispersão do povo de Israel na
Idade do Bronze, a dar conta da história de um modo diferente:
«Israel had never been, more isolated. In it's newly cleansed state,
it was an easy pray for its traditional enemy, Damascus, where king
Hazael set about fulfilling Elisha's prophecy that he would wreak
havoc in Israel. (…) It seems at first to be a flat-out
contradiction of the Kings' account , which places the lethal arrows
solidly in Jehu's hands. But it makes sense if Jehu was indeed
operating under the aegis of Hazael and thus, in effect, his agent.
And, in fact, Jehu's coup d'état could only have happened if Hazael
had agreed to a cessation of hostilities at Ramot Gilead, leaving the
usurper free to go about his bloody work on the home front.
Essentially Jehu acted as Hazael's pawn, blinded by ambition to the
obvious: the agenda of the king of Damascus was not his own. (…)
His eyes were open soon enough. The moment the Omrides and their
supporters had been slaughtered and Israel's alliances irrevocably
broken, Damascus renewed its attack, leaving Jehu with only one
desperate option: turn for protection to Assyria, the powerful empire
to the east of Damascus. So the self-declared zealot for Yahweh
pledged his loyalty to Assyria, fawned at Shalmenezzar's feet, and
thus betrayed his god» (Hazlton; 2007:194-195).
Qualquer semelhança com a actualidade (não) é pura coincidência.
Ao longo de toda a narrativa de Jezebel, a autora
demonstra de forma progressiva e servindo-se de metodologias e
instrumentos de análise e investigação vários, provenientes
múltiplos campos de investigação afim de provar que toda a
construção do discurso de Reis está longe de ser neutra,
quer no aspecto religioso quer no aspecto político, de que o
capítulo 9 é apenas a cereja em cima do bolo.
«When the Kings' writers told Israel's story, they stuck close to
a highly parochial point of view, obscuring the larger political
reality, which was that Israel's dramas were enacted entirely in the
shadow of the Assyrian Empire, administered from its capital, in
Nineveh, on the Tigris River – a magnificent city of canals and
aqueducts, ornate palaces and bas-reliefs, reduced today to the
battle-scarred misery of the Iraqi city of Mosul...
(…)
Their interest in the area focused on gaining access to the
Mediterranean and control of the trade routes; to this end, they
required peace, so Shelmanezzer and his successor imposed a king of
Pax Assyriana, reducing all the Near-East kingdoms to
vassaldom. Israel was now entirely dependant in the good grace of the
Assyrians»(Hazlton, 2007:196-198).
Posto isto, ao reinado de terror e repressão de Jehu, seguiu-se a
pacificação não menos brutal do gigantesco exército Assírio,
responsável pela dispersão das lendárias “dez tribos perdidas de
Israel”.
O mesmo iria suceder pouco tempo depois com o reino vizinho da
Judeia, onde se haviam refugiado muitos dos exilados Israelitas,
sendo a Judeia também anexada pelo Império Assírio-Babilónio, em
586 A.C. A autora esclarece a forma como os descendentes de ambos os
reinos, Israel e Judeia, sobreviveram durante largos séculos no
exílio, sendo o seu território ocupado por vários povos e
província de vários Impérios: Assírio-Babilónio, Persa, Romano,
voltando a constituir-se como estado somente dois milénios depois.
Sendo que a religião se revelava fulcral como símbolo de identidade
do povo Judeu e Israelita, a narrativa onde este elemento era central
tornou-se essencial para estes dois povos, como forma de preservar a
memória através da reprodução das vozes individuais e colectivas
e respectivos choques culturais e guerras económicas políticas e,
claro, religiosas...
«Much of the Hebrew Bible was first written in Babylon by a people
determined to preserve their identity. Before the exile, their
identity had been determined by that geography; now, in the absence
of that geography, their identity could lie only in their history, so
that is what they wrote – the story of how they came into the land,
in Kings, and then lost it. As biblical scholar Mark Smith put it,
“The text was substituted by land”» (Hazlton, 2007:201).
Essa era sobretudo a missão da classe sacerdotal no exílio:
«The scribes and priests and prophets carried one god into exile,
and quite another out of it, a hundred and fifty years later. By the
times Persia conquered Babylon and the Judean elite acted on Cyrus
the Great's permission to return to their land, the territorial
national god had been written in the abstract universal god, his
power all the more awesome and terrifying precisely in the
invisibility of its source. Prophets would no longer speak directly
with him. There would be no more manifestations in burning bushes or
lightening bolts, in voices loud with thunder or even still and
small. There would be no more King's and queens to rail against
either. Power would now be held by temple priests, and sacred texts
would be the focus of allegiance» (Hazlton, 2007: 202).
Chapter 10. “Carthage: in which the spirit if Jezebel lives in”
O capítulo final, onde são apresentadas as conclusões, surge na
obra à laia de epílogo, no tocante à análise narrativa do ethos
da Rainha Jezebel em Reis. A excessiva polarização feita na Bíblia
afim de engrandecer os seus antagonistas, acabou por gerar o efeito
oposto do que se pretendia para Jezebel: atirá-la para obscuridade.
Mas a autora vai ainda mais longe no seu raciocínio ao especular que
Jezebel seria provavelmente lembrada de qualquer forma, devido à
proveniência de uma casa real que representava uma das maiores
potências comerciais da altura: casa de Tiro, produziu vários
descendentes ilustres para além de Jezebel: Elitha, sua
sobrinha-neta que ficou conhecida entre os Gregos por Dido, e de quem
se diz ter se diz ter-se apaixonado por Eneias, logo após a queda de
Tróia; e Paymayyaton, Pygmalyon (meio-irmão de Dido). Este último,
após assassinar o cunhado, precipita a fuga da irmã, a qual fundará
depois a cidade de Cartago, situada naquilo que é hoje o território
da Tunísia.
Para Lesley Hazlton, A memória colectiva encarregou-se ainda
de conservar o seu nome ao longo dos séculos, através da Literatura
sendo estes também utilizados como nomes próprios, em virtude da
expansão e influência de cidades-estado como Tiro e Cartago no sul
da Europa, onde ajudaram a difundir a escrita, com o alfabeto
Fenício, que funcionou como proto-alfabeto latino, influenciando
também as línguas nessa região (em Malta, particularmente). A
versão Fenício-Cartaginesa dos nomes Elitha e Itha-baal deram
origem aos nomes, hoje em dia comuns em muitas línguas Europeias, em
particular nos países Mediterrânicos e sobretudo na Península
Ibérica como Elisa e Isabel.
Este não é um livro de Literatura em sentido estético, ou um
trabalho de requinte no tocante à beleza e exploração de nova
formas de linguagem. O discurso é simples, a linguagem extremamente
acessível, passível de ser lida mesmo por quem não está
particularmente motivado para gostar de leituras longas. A obra está
escrita em inglês americano, de construção frásica não demasiado
complexa, o léxico é elementar. No entanto, não me parece que
Jezebel seja um best-seller. Isto por se tratar
de um livro com intenção marcadamente iconoclasta, num verdadeiro
ataque frontal ao patriarcado, o que por si só gerará anti-corpos
nos sectores mais conservadores das sociedades ocidentais, sem falar
nas repercussões que poderia ter se a obra fosse conhecida em
regimes teocráticos. Para além do mais, trata-se de uma obra que,
tal como o próprio livro dos Reis, contém em si uma agenda
política: desmascarar a farsa que foi a criação do clima de guerra
no médio oriente nos primeiros anos do novo milénio e apoiar a
candidatura à liderança do partido Democrata de Hillary Clinton,
que na altura disputava a chefia do partido com Barak Obama. Mas,
como vimos, há múltiplas razões para se ler um livro como este que
vão muito para além da mera beleza da prosa literária.
Cláudia de Sousa Dias