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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, August 30, 2010

“A Mulher Certa” de Sándor Márai (Dom Quixote)




A atribulada vida de Sándor Márai é afectada pelas convulsões decorrentes das mudanças estruturais que assolaram a Europa no século XX e estiveram na base do seu exílio durante o domínio soviético. Exílio esse que terminou apenas com a morte do Autor, a escassos meses do derrube do Muro de Berlim.


A nostalgia do passado e de todo um mundo desaparecido com a revolução Cultural, após a instauração do regime comunista na Hungria, a recusa em fazer da actividade de escritor um instrumento de propaganda política, fosse qual fosse o sistema económico onde estivesse inserido, até decidir pôr termo à vida já com quase noventa anos, são aspectos que se reflectem na escrita de A Mulher Certa. Uma escrita impregnada de melancolia, introspectiva e centrada na análise do passado, nos meandros das relações humanas e no emaranhado processo de atracções e repulsões que lhes estão subjacentes. Uma escrita que se afoga na mais profunda solidão.


A Mulher Certa é o livro das desilusões e desencantos que precedem o desmoronar dos sonhos ao longo de toda uma vida, ou de várias vidas, ao longo de um século conturbado, marcado pela extinção de uma determinada classe social – a alta burguesia húngara, consolidada desde a belle époque ou, desde o inicio do século XIX, que em parte de fundiu com a aristocracia formando uma élite que foi substituída por uma burguesia emergente ligada ao alto funcionalismo estatal.
Neste contexto, A Mulher Certa é um livro que abprda as temáticas do amor, o casamento a relação com o dinheiro, as relações com o Outro, a forma de comunicar, isto é, a imagem que projectam para o exterior.


Em 1941, Sándor Márai publicou As Igazi/A Mulher Certa, obra composta apenas pelos dois primeiros monólogos; mas para a edição alemã, em 1949, junta-lhe o monólogo de Judit, o terceiro vértice do triângulo amoroso em que é centrada a trama. Mas esta terceira é reescrita em 1980, sendo-lhe então acrescentado o epílogo. A presente edição inclui as quatro partes do romance, embora não fosse de todo descabido acrescentar-lhe à laia de subtítulo, Judit e um epílogo, o título introduzido pelo Autor na versão de 1980. Um romance de vulto, composto por três longuíssimos monólogos e um epílogo. Três pontos de vista diferentes a juntar as peças que formam o mapa dos acontecimentos que servem de base para a construção da história. O remate final é-nos apresentado pelas conclusões relatadas no epílogo, no qual é introduzido um quarto narrador que não participa directamente nos acontecimentos: Lajos, o amante de Judit.



A primeira parte – Marika



O romance inicia com a descrição de um ambiente de prosperidade, no interregno entre as duas Grandes Guerras do século XX: uma elegante pastelaria onde se observa a rotina de uma elite que desaparecerá no espaço de duas décadas. Sentada discretamente a um canto, Marika relata a uma amiga de longa data e à qual já não vê há algum tempo, uma história de desamor, a qual acabou por fazer ruir um casamento aparentemente perfeito. Todos os dias à mesma hora, espia discretamente o ex-marido que vem todos os dias àquele lugar e, todos os dias, faz a mesma compra. No entanto, naquele dia Péter compra casca de laranja cristalizada para a nova esposa, algo que não passa despercebido à ex-mulher. Marika observa-lhe, de forma quase que obsessiva, os movimentos e gestos rituais, sempre do mesmo ângulo de visão: a mesa do canto naquela pastelaria, ao fim da tarde, logo que este sai do emprego, na vã tentativa de compreender a falência de uma relação com tantas fragilidades quantas aquelas existentes na estrutura do próprio Império.


Marika é pródiga em detalhes no relato que faz à amiga, traduzindo a forma como a expressão de duas sensibilidades diferentes se chocam, devido a formas diferentes de entender e vivenciar o amor. Esta diferença resulta de personalidades divergentes, estruturas segundo diferentes representações mentais, em que a possessividade no amor, de um dos lados, se torna incompatível com a reserva e a ânsia de liberdade, do outro. Marika dá-nos a conhecer uma história de duas pessoas habituadas a viver de forma diametralmente oposta, desde a organização do próprio quotidiano que é moldado por formas de socialização condicionadas pelas convenções subjacentes ao respectivo nível socioeconómico de cada um. No entanto, trata-se apenas de um dos lados deste triângulo. Um ponto de vista pessoal, osbservado, metaforica e literalmente, de apenas um dos cantos da pastelaria.

Sándor Márai possui o mérito de traçar o perfil psicológico de cada uma das personagens de forma exaustiva e minuciosa e relacioná-las com o ambiente socioeconómico e cultural onde estas se desenvolvem, característica que manifesta em todos os seus romances. Ao leitor cabe o papel de ouvinte, de receptor conjuntamente com a inlerlocutora. Esta, no entanto, desempenha um papel não propriamente passivo, mas mais o de um entrevistador não-directivo, tal como o terapeuta num consultório de psicoterapia.


Marika deixa quase sempre transparecer um ciúme obsessivo e excessivo, que deixa transparecer nos gestos e nas frases que vai soltando, misturadas com uma boa dose de insegurança, algum orgulho e sentimento de posse, deixando o leitor adivinhar até que ponto a personalidade da narradora contribuiu para a asfixia da relação.


No discurso de Marika, Sándor Márai dá a entender que a maternidade, a beleza, o refinamento, a sedução não são elementos suficientes para sustentar uma relação que transporta consigo algumas fissuras estruturais.


O aparecimento de uma figura do passado na vida de Péter é apenas o golpe de misericórdia numa relação que já vem a definhar há muito tempo. Marika poderia até ser A Mulher Certa. Mas os seus medos, a insegurança doentia que manisfesta acabam por deitar tudo a perder. No passado de Péter existe um abismo que contém algo de telúrico e vulcânico e que o atrai fatalmente, como chega a intuir Lázar - escritor de sucesso e amigo do casal com quem Marika antipatiza no início da vida de casada, talvez por suportar com dificuldade o olhar crítico e um conhecimento da vida anterior do marido à qual não consegue aceder e que está convencido ser de natureza nefasta, se não mesmo destrutiva.


Ao longo do romance e sobretudo nos capítulos seguintes, Sándor Márai empenha-se em mostrar que as paixões podem até não se concretizar mas a memória não permite que desapareçam. Projectando-se ora na figura de Péter, ora na figura de Lázar que são duas fases diferentes do seu “eu” o Autor, herdeiro simultaneamente do Romantismo, defende o argumento de que as almas apaixonadas são orgulhosas e sofrem muito. A confirmar esta hipótese a citação de Marika deixa pouca margem para dúvidas ao recordar o temperamento artístico do marido que dizia ser “um artista que ainda não encontrou o seu género. Entre os burgueses isso é frequente. Quando é assim, extingue-se uma família.”


Em relação a Lázar, Marika tem, também, sentimentos dúbios de atracção e repulsão, já que o escritor é a negação da faceta de burguês do marido:


Sentia-se à sua volta a solidão de quem vive no Pólo Norte. Solidão e serenidade, uma triste serenidade, subitamente compreendia que aquele já não desejava mais nada, nem felicidade, nem êxito, sim, e talvez, nem sequer escrever, mas só conhecer e compreender o mundo. Estava careca e sempre com o ar de quem educadamente, se aborrece um pouco. Mas havia também nele algo de monge budista, um pouco do olhar oblíquo de quem olha o mundo e não é possível saber-se o que pensa.


As duas “almas” apaixonadas que mais sofrem são precisamente Marika e Péter, os narradores da primeira e segunda parte.


Em relação a Judit, Marika descreve-a como dona de um rosto de uma beleza fatal, “perigosa como um felino de grande porte, orgulhosa e sem piedade (...) Era um rosto liso e implacável. Que não aguentava cumprimentos fáceis, nem suportava sorrisos adocicados.


Judit aparece como uma ameaça para Marika, pela sua paciência e perspicácia, ao esperar o momento certo para atacar de emboscada.



Segunda Parte - Péter



A segunda parte consiste na exposição do ponto de vista de Péter. Nela, o Autor explora a mentalidade burguesa, ou melhor, da alta burguesia ao esmiuçar o comportamento e as motivações do burguês rico de há várias gerações, isto é, não colocando em evidência a vulgaridade e o exibicionismo do novo-rico, mas, à maneira da escritora norte-americana Edith Wharton, do princípio do século XX, a forma como os “grandes senhores” que, não sendo aristocratas, têm de provar a toda a hora e em cada gesto, que são grandes senhores, capazes de desempenhar o seu papel na perfeição. Mas ao contrário de Wharton, Márai não se limita a mostrar as atitudes das personagens: explica-as detalhadamente ao fundamentá-las em razões de carácter psicológico, cultural ou social. E no caso de Péter as atitudes são formatadas a partir de uma forma de viver que acabará por se revelar um autêntico colete-de-forças ao limitar e constranger a sua liberdade individual de Péter e dos que o rodeiam.


Mais do que um aristocrata, o burguês é muito sensível a estas tonalidades. Até à hora da morte, o burguês precisa de se afirmar. O aristocrata, ao nascer, já mostrou o quanto vale. O burguês está condenado a acumular ou a conservar.


Destas palavras, depreende-se que Péter já não pertencia à geração que acumula e nem mesmo à segunda geração. O autor aqui, dá a entender que é durante a vida de Péter que a fortuna da família irá desaparecer.


O cenário é o mesmo da primeira parte. A mesma pastelaria onde Marika conversava com a amiga. Alguns anos depois, é a vez de Péter ocupar a mesa de um canto obscuro daquele local e contar a um amigo a sua versão dos factos: a dissolução de um casamento, onde o gelo já se instalou por um lado, e a desilusão de uma paixão de longa data. A falência de ambos os relacionamentos: o primeiro, com a mulher perfeita; e o segundo, com a paixão desmedida, incomensurável.


Péter é um narrador mais completo que Marika, por agregar, já,dois pontos de vista: a sua própria forma de olhar os acontecimentos e o conhecimento da conversa ocorrida anos antes, entre a ex-esposa e amiga, naquele mesmo lugar, fruto de uma indiscrição. Além disso, no tempo em que decorre esta segunda parte, Péter está já divorciado da segunda esposa, o que explica o teor pessimista do discurso e a opinião em geral pouco positiva das mulheres.


É pelo monólogo de Péter que nos apercebemos, também, das mudanças das relações de poder entre as diferentes classes sociaisno espaço de uma década: da riqueza que muda de mãos, da alteração dos hábitos, comportamentos, da linguagem verbal e dos gestos, do devir das mentalidades. Em suma, a transformação da cultura de um povo. E, também, daquilo que permanece intemporal: as expressões faciais que revelam o pensamento das pessoas, quando julgam não estar a ser observadas, gestos que acabam sempre por traí-las.


Depois da meia-noite, este café fica deserto e frio. A última vez que cá estive era ainda um estudante estagiário, foi por altura do Carnaval. Na época, eram lugares conhecidos, viam-se muitas mulheres, como aves coloridas, cintilantes e divertidas. Passaram-se décadas sem cá pôr os pés. O tempo correu, o local endomingou-se, mudaram os frequentadores. Agora vem cá a alta sociedade, uma clientela nocturna…sabe, a gente bem, como se diz.


Nas primeiras páginas desta segunda parte, o Autor explica, pela voz de Péter, a intenção da obra, ou seja, as causas que são responsáveis pela grande tragédia da Humanidade, petrificando a vida, dotando-a de um cinzentismo doentio: a solidão.


O livro é, todo ele, a tentativa de explicação de um estado de alma que acaba por assolar as três personagens principais – uma solidão recorrente, aliada à sensação de um inexorável fracasso.


A solidão que, antes ou depois, precipita qualquer ser humano, como um viajante nocturno, numa fossa.


A Humanidade, na sociedade industrial, perece viver segundo o Autor, ao falar através da voz de Péter:


Como se a alegria se apagasse da terra. Às vezes, por instante, ainda bruxuleia, aqui e além. No fundo da alma humana, vive a recordação de um mundo feliz, solar, brincalhão, no qual o dever é, simultaneamente, divertimento e esforço, agradável e sensato.
(…)
Talvez os gregos sim, tenham sido felizes (…) porque eram cultos, no sentido mais profundo, mais inculto do termo, incluindo os oleiros…Mas nós não vivemos numa verdadeira cultura, mas numa civilização de massas, mecânica e enigmática. Todos têm a sua parte e ninguém a verdadeira alegria (…) e toda esta tensão deriva da solidão
.
(…)
Conheço mães com meia dúzia de filhos, em cujo rosto se surpreende a mesma solidão e desconfiança, e burgueses solteirões que nem a tirar as luvas conseguem esconder um ar artificioso como se as suas vidas fossem uma sequência de gestos forçados. E quanto mais os políticos e profetas se preocupam em construir comunidades cada vez mais artificiais no seio da comunidade, quanto mais educam as crianças nesse sentido forçado de comunidade, maior será a solidão das almas
.



O único desvio deste cinzentismo quase niilista reside na presença da beleza na sua forma mais pura, como a estátua viva do arquétipo da beleza selvagem, representado por Aldozó Judit.
Diante dela, Péter não sente estar perante algo de ameaçador, como Marika ou Lázar, mas a sensação inquietante de ter diante de si a concentração da beleza primordial, ao olhar directamente para a face do seu ídolo.


…um rosto aberto, expectante, radioso e confiado, como só pode ser um rosto humano em início de vida quando ainda não comeu da árvore da consciência, nem conheceu a dor e o medo.



O drama de Péter, que se desenrola no desfiar do relato da sua história ao amigo, enquanto degustam uma garrafa de vinho tinto a história desenvolve-se sem pressas, pela noite dentro, no sentido de constatar a inexistência de uma fórmula ou modelo conceptual que ensine a humanidade a ter sucesso nos seus relacionamentos. Esta fórmula ideal felicidade adquire os contornos de uma quimera, cuja realidade, o fracasso resultante da desconfiança, do medo, do ensimesmamento, da solidão e, mais tarde, do conformismo, em evidente analogia com o mito genesíaco da perda da felicidade pela expulsão do paraíso. A infelicidade tem a ver com o ciclo de vida do Homem e com o crescimento e amadurecimento das relações, decorrentes do processo de mudança em curso, uma vez que, na Terra, sendo esta, um organismo vivo, nada é estático.



…poetas, médicos, deviam falar aos jovens da alegria da convivência, das possibilidades da vida a dois, homens e mulheres…não da “vida sexual”, mas da alegria, da paciência, da modéstia e da satisfação. Quando verbero os homens, é que neles desprezo, talvez, acima de tudo, essa cobardia – a cobardia como escondem, de si mesmos e do mundo, o segredo da própria vida.


Péter ama Judit porque está decidido a romper com o tédio, a solidão a que o obriga o dever de se comportar como o burguês rico de conduta exemplar; deseja a romper com a aridez de uma vida social onde tudo tem de ser perfeito, o paraíso artificial onde se representa, se finge uma vida de delicadeza, serenidade, correcção. Péter explica este tipo de comportamento convencional pelo facto de a burguesia ser uma classe exclusivamente empreendedora, aquela que consegue não só detonar as mudanças nas estruturas económicas, mas também o teor das relações entre os agentes económicos, susceptíveis de potenciar ou atenuar o conflito entre classes o qual, por sua vez, promove a circulação das élites.


Era como se estivessem sempre a prestar contas de alguma coisa. Viviam segundo planos rigorosamente estabelecidos. Tinham visto grandes povos projectarem planos quadrienais e quinquenais com vista ao aperfeiçoamento da raça e ao progresso da nação que, a seguir, eram impostos de forma cruel, executados a qualquer custo, sem respeitar minimamente a vontade das populações. Por que o objectivo destes planos de longo alcance não é o bem-estar do indivíduo, mas a prosperidade de um povo em geral, de uma nação.

(…)


Na base das nossas acções, dos nossos hábitos, havia algo de renúncia consciente.


Péter é, também, de opinião que a raiz, tanto dos conflitos interpessoais como sociais, tem a ver com a relação que cada um estabelece com o dinheiro. O que não anda, de todo, longe da verdade, já que é um dos motivos que em muito contribuíram para o erodir de ambas as relações.


Mas no que toca a Judit, familiares e amigos de Péter vêem na jovem, oriunda da classe proletária e com antecedentes de pobreza extrema, tudo menos “a mulher certa”. Judit é, pelo contrário, vista por todos como uma mulher perigosa, capaz de trazer à vida de Péter uma paixão, sem dúvida fulminante pela sua teluricidade, mas fatal. O desenrolar dos acontecimentos mostram que, após dois divórcios, a tristeza e a solidão parecem ser a companhia permanente de Péter, interrompida no passado, apenas pela intrusão de Judit.


Nessa solidão entrou, um dia, Aldozó Judit.


A descrição do momento em que Judit, aos quinze anos, entra em casa de Péter pela primeira vez e vira o rosto para a luz, de forma a expô-lo ao olhar do futuro patrão, é um dos trechos mais belos, poéticos e artísticos da obra de Márai. Um trecho dotado de uma força passional que ilumina o carácter sombrio do romance, como a chama de uma vela. Em particular o o segundo em que Judit expõe, revela o rosto pleno de beleza total, é um instante de puro deslumbramento. E de subversão com o quê de revolucionário também, pois ao fazê-lo, a jovem empregada olha o filho do patrão com a mesma altivez de uma princesa, numa atitude “silenciosamente condescendente”.


E porque era terrivelmente bela, de uma beleza austera, virgem e completamente selvagem, um exemplar perfeito da criação, que a natureza só uma vez consegue desenhar e fundir com tal perfeição, essa beleza começou, a pouco e pouco a influir na atmosfera da nossa casa, como um surdo e contínuo fundo musical. A beleza é, seguramente, uma força, a par do calor, da luz ou da vontade humana.


Outro trecho de grande força telúrica nesta segunda parte é aquele que trata da questão do desejo, na cena em que Péter observa, hipnotizado, os quadris de Judit, ajoelhada diante da lareira, pose que a jovem enfatiza, de forma provocante, ao saber-se observada.
Mas e, contrapartida, a solidão traz, também, a liberdade à vida de Péter, em vários momentos da narrativa: o primeiro foi durante o curto exílio na Europa, pouco antes de casar pela primeira vez e já depois de conhecer Judit, durante o qual tem a possibilidade de perceber a tendência da evolução económico-sócio-política do continente, no período entre as duas guerras e, depois, já após o segundo divórcio. O clima da “paz armada”, verificado no interregno entre as duas Guerras Mundiais é particularmente elucidativo :

todos se moviam com uma certa desconfiança como quem foi vítima de uma grave e inesperada rapina. Todos, indivíduos e nações, procuravam mostrar-se afáveis, abertos e magnânimos, mas em segredo, á cautela, apertavam o revólver no bolso das calças.


No regresso a casa acaba por desposar Marika, a quem todos consideram “a mulher certa”.
O ciúme é ums das facetas do comportamento humano melhor e mais exaustivamente retratadas por Márai. O autor, mais uma vez pela voz de Péter, identifica-se com a definição de Léon Tolstoi como “uma forma mesquinha e desprezível de vaidade. Discorda, no entanto, da solução desumana proposta pelo autor de Guerra e Paz para o evitar - uma solução não muito distante do uso da burka em alguns países do médio Oriente - apesar de achar igualmente aviltante a redução da mulher à categoria de objecto de desejo, pelo mercadejar dos dotes físicos, imposta pelos media.


Só num sistema de produção e ordem social no seio do qual a mulher a si mesma se considera mercadoria é que precisam disso.


No entanto a análise das descrições das atitudes de Judit, mesmo no discurso apaixonado e melancólico de Péter, apercebemo-nos que a paixão não afecta minimamente Judit. Trata-se de um relacionamento e onde está inequivocamente presente um desequilíbrio de forças, onde quem não ama é quem domina pela atracção que exerce sobre o outro e o torna vulnerável. Através da união com o filho do patrão, Judit inicia, assim, um processo de vingança social, um resgate de contas pela infância mergulhada na miséria e no desconforto e dando azo, após o casamento com Péter, a um autêntico cenário de luta de classes doméstico.


À timidez inicial de Judit, segue-se uma voracidade consumista, traduzida numa insatisfação permanente e incomensurável, a quel acabará por se transformar em apatia.


O casamento, enquanto fruto da paixão em Péter, serve de pretexto ao Autor para uma dissertação sobre o amor conjugal enquanto vertigem, a operar como antídoto face à melancolia. Nela, o carácter telúrico de um amor perfeitamente carnal é comparado, audaciosa e algo hiperbolicamente, a uma aventura na selva. Péter afirma, perante o amigo e confidente, a absoluta convicção que a paixão, quando mútua (e só neste caso) coloca o homem e a mulher no mesmo plano, isto é, em pé de igualdade em termos absolutos.


Terceira Parte – Judit


Judit é a segunda narradora feminina presente na obra e, também, a protagonista. O terceiro vértice do triângulo, que no fim se transforma num quadrado amoroso. No entanto, apesar do papel central, nem sempre o leitor consegue sentir empatia pela personagem. O discurso de Judit é, por um lado, melífluo, untuoso, usa e abusa da adulação para conseguir o que quer. O monólogo é dirigido ao amante, a quem sustenta, com o dinheiro da venda das jóias, herdadas do casamento. Mas o tom da narrativa muda radicalmente quando se refere ao passado: ao caracterizar as pessoas que cruzam o seu caminho as suas palavras tornam-se implacáveis, amargas. As atitudes que toma no passado revelam, também, a inexistência de qualquer tipo de inibição em utilizar a própria beleza ou o dinheiro para atingir os seus objectivos.


O relato prossegue, desta vez, durante uma noite de insónia, numa pensão romana, versando sobre a história do seu casamento com Péter e a vida após o divórcio. O discurso de Judit confirma aquilo que se depreende nas entrelinhas do relato feito por Péter na pastelaria, nas frases de Lázar e na intuição de Marika: que o casamento com o filho do patrão não reside em motivações sentimentais ou românticas, mas em finalidades puramente práticas.


O discurso é contundente, cínico ao mencionar daqueles a quem decidiu espoliar no passado, sem revelar o menor remorso, pena ou arrependimento: “os ricos”. Sendo-lhe mais fácil tolerar a grosseria dos novos-ricos do que o tratamento cavalheiresco, educado ou condescendente dos grandes senhores, Judit identifica na observância quase obsessiva pelas convenções, pela ordem, distinção e regras de etiqueta, uma espécie de loucura ou mania, “expressa de forma educada. “
Por outro lado, Judit mostra ser uma mulher extremamente inteligente, e facilmente adaptável a novas situações, com uma capaz de aprender quase instantâneamente. Durante o breve tempo em que convive com Lázar, enquanto dura a ocupação alemã na Hungria, Judit empenha-se em absorver conhecimento, quer através de livros quer mediante as conversas com o escritor, como uma esponja. Ou uma planta carnivora.


Judit interessa-se, tal como as outras personagens, pelas características que distinguem a mentalidade burguesa da mentalidade proletária, uma vez que teve a oportunidade de se movimentar em ambos os meios. Está convencida que estas diferenças de mentalidade residem na forma em como cada gruipo social estabelece ou estrutura as relações ou laços familiares. Para uns, a tradição e a cultura, a forma de estar é como que uma missão. Para outros, uma mera necessidade de sobrevivência, sendo os primeiros instruídos sobretudo com a razão e não tanto com o coração ou com as vísceras.


Aneste aspecto, Judit entra em forte contradição, uma vez que, se para a classe proletária o estabelecimento dos laços ou relações familiares se baseia numa mera necessidade de sobrevivência, então seria a este estrato social que seria imputável o primado da razão em detrimento das suas escolhas afectivas e das relações familiares e não o contrário. Por outro lado, Judit acredita que “ser rico” ou pertencer a uma elite social é uma questão de atitude:

Se alguém é rico, (…)sê-lo-á para sempre, eternamente, , e quem não é rico, de pouco lhe servirá ter muito dimheiro, pois nunca será um rico a sério (…) é preciso acreditar que se é rico a valer.


Neste ponto, o pensamento de Judit converge com o de Lázar que é da opinião que o processo de socialização está ligado ao processo de enculturação no sentido antropológico:


A cultura é um acto reflexo.


Neste caso, tratar-se-ia de um conjunto de respostas automáticas e socialmente aprendidas, inculcadas desde a mais tenra infância.


O abismo cultural entre Péter e Judit teria estado, segundo esta perspectiva, na falência do casamento de ambos, o qual teria ruído a partir de uma fissura estrutural. A falta de cumplicidade e impossibilidade de partilha de todo um conjunto de experiências seriam, apenas, algumas das consequências decorrentes dessa mesma falha.


A invasão da Hungria pelo Exército Vermelho e a implementação do regime comunista são temas abordados por Péter ainda na segunda parte, mas também por Judit, na terceira parte do romance. Neste caso, de forma mais exaustiva, ao que não é alheio o facto de esta parte do romance ter sido escrita muito depois da Guerra de 1939-1945 e concluída já no final dos anos 1970. Lajos, o amante, mais adiante, no epílogo, trará as conclusões finais.


Na pensão romana, Judit comenta as as alterações políticas ao criticar as expropriações a seu ver arbitrárias, a nacionalização das empresas e extinção dos ofícios. Mesmo dentro deste contexto generalizado de reengenharia social, Judit consegue fugir com as jóias, produto do casamento, que esconde das autoridades. Lajos, por sua vez, foge da polícia política após ser aliciado para a função de delator, pouco depois de o pequeno negócio do pai ter sido, também, espoliado. É, pela voz de Judit, ficamos a saber do destino e da dispersão da fortuna de Péter e da forma como Lázar vive os anos da ocupação nazi e a formula para se fazer triunfar um escritor dentro da Nova Ordem Social.. A Revolução Cultural acontece também na Hungria, à semelhança daquela que é implantada na China de Mao Tse Tung, isto é, colocando a Arte e a Literatura ao serviço da Política, ou para sermos mais exactos, ao serviço do Regime Político vigente. O que constitui um grave incómodo para um livre-pensador como Lázar. Este sente que o seu ofício deixou de o ser a partir do momento em que começa a ser mutilado pela Censura.


Judit fala do tempo em que viveu em casa do escritor, como hóspede, altura em que partilharam o pensamento e a miséria. Fala dos bombardeamentos de uma forma vívida, como se tivesse regressado à toca subterrânea da infância.


Em casa de Lázar, e apesar da ameaça das bombas, Judit sente ter encontrado um refúgio. A presença do escritor tranquiliza-a. Mas sente-se, também, desafiada, não só porque o seu companheiro de refúgio perecer imune à sua beleza, mas também por sentir um desejo irresistível de entender a mente de um ser tão complexo quanto estranho. No início, e mesmo muito depois de lhe ter perdido o rasto, Judit tem dificuldade em compreendê-lo e aos seus escritos. Até mesmo em interpretar algumas passagens das obras que este lhe recomenda. Judit demora algum tempo a adquirir conteúdos de forma apoder fazer as associações necessárias a entender todos os subentendidos nas frases dos autores que lê.


Por outro lado, Lázar sente-se um pouco na pele de Pigmalião. Enquanto que Judit sente-se fascinada pela aparentemente inesgotável fonte de conhecimento de que parece gozar o escritor. A tal ponto que, durante o relato, Lajos chega a sentir alguma insegurança, receando ver-se suplantado. Este, entretanto, exerce sobre ela o domínio perfeito porque lhe controla as finanças, ao executar ele próprio a venda das jóias com que Judit sustenta as necessidades diárias. Lázar, por sua vez, representa, na narrativa de Judit, não um amor sensual mas a volúpia do conhecimento ao empenhar-se em proteger Judit, convencido que a sua beleza a torna vulnerável, uma vez que para a maior parte dos humanos, isto é, para os feios ou para os medianamente bonitos, A beleza é uma afronta. E, no caso de Judit, que a possui em abundância, coloca-a na mira daqueles que dela querem usufruir ou comercializar. Para Lázar, também o talento, para os que o possuem em maior proporção do que a maioria, é uma provocação; e o carácter, então, um atentado. Porque a desproporção é sempre aviltante. E no caso dos seres notoriamente belos, talentosos ou íntegros, estarão mais expostos que a maoria a actos de boicote ou sabotagem, colocados em posição mais vulnerável em relação a uma esmagadora mole de seres menos favorecidos.


Em relação àqueles a quem classifica na categoria de “ricos”, Judit está convencida de que estes não são na verdade “cultos” mas parasitas de algo a que antes se chamava “cultura” como o talento ou conhecimento.


Os gregos eram cultos porque todo o povo se alegrava (...) e essa alegria é a cultura (...) mas depois esse povo desapareceu e no seu lugar ficaram apenas pessoas que falam grego...e já não é a mesma coisa.

Epílogo – Lajos, dez anos após a morte de Judit


O epílogo de A Mulher Certa incide, quase todo, nas mudanças verificadas pela evolução da situação geopolítica no Continente Europeu e Americano, com a eclosão da Guerra Fria. Nesta fase do romance é explorada a forma de vida de um proletário, dentro dos diferentes sistemas político-económicos, onde narrador e interlocutor acabam por concluir que nenhum sistema é perfeito. Desde a arbitrariedade manifesta na prepotência do Estado ao interferir na esfera privada da vida do cidadão, nos regimes ditos comunistas, testemunhada pelo narrador, até à implacabilidade da selva humana presente nos sistemas liberais das grandes metrópoles do Ocidente, com as ruas controladas pelos gangs, pelos cartéis a liderar o tráfico de droga e humano ou, com a vida dos cidadãos e as instituições controladas pelos abutres que comandam a especulação financeira.


O local da acção é Nova Iorque no final dos anos 1970, altura em que a Cidade começa a ser dominada pelas máfias locais. Lajos, ou Ede, já não trabalha como baterista, em clubes nocturnos, como no tempo em que era amante de Judit. É apenas um barman. Hoje, a prioridade é a estabilidade, garantida pela segurança que lhe confere um emprego de salário modesto mas que lhe permite ter um automóvel, sustentar a casa e a família sem grandes luxos. O mergulho no passado dá-se, desta vez, ao balcão do bar, onde serve bebidas, em conversa com um cliente. Lajos recorda a mulher húngara que foi sua amante em Roma e gastou os últimos tostões com ele, até à morte.


É, também, abordada a questão da literatura e da pseudo-literatura e o oportunismo vazio dos escritores que escrevem, ou escrevinham apenas para ganhar dinheiro vendo na escrita nada mais do que um negócio como qualquer outro. Ou seja a questão do fenómeno marginal a que está sujeita a Grande Literatura.


O próprio Lajos, não deixa de se submeter a esta lógica materialista, embora noutra vertente: à semelhança dos escritores que deixam de o ser para escrever em função do que as massas ou um determinado regime político desejam ver escrito, Lajos também se vende. Neste caso, tornou-se gigolo profissional para elevar um pouco os rendimentos familiares. Prostitui o corpo como alguns prostituem o intelecto ou a escrita, desvirtuando-a, ao esvaziá-la de conteúdo ao escrever apenas para proporcionar a evasão ou o simples voyeurismo do leitor.


Um dia, um encontro casual ao balcão do bar onde trabalha dá-nos a conhecer em que se transformou Péter. Pesar de já não ter a fortuna colossal de outros tempos, mantém a atitude de um grande senhor, confirmando a opinião de Lázar de que “a cultura é um acto reflexo”. Péter é um grande senhor, mas de uma outra era, que não consegue nadar nas águas turbulentas do capitalismo selvagem da actualidade.


Fala-se ainda de consumismo. Dos bens adquiridos compulsivamente para exibição de status, do crédito desgovernado. De como apesar do poder de compra “o proletário é ainda proletário e o senhor ainda senhor”.


No entanto, sob um determinado prisma, as coisas inverteram-se: a produção é feita em, larga escala para as massas e não para uma élite ou um grupo mais ou menos restrito de consumidores. Por isso, O senhor mata a cabeça para me fazer a mim, proletário, consumir. (Lajos)


As últimas cenas são protagonizadas por Péter e Lajos, os dois homens mais importantes na vida de Judit: um que lhe proporcionou a mudança de estilo de vida, o portal de acesso a um mundo diferente, que antes apenas entrevia; e o outro, aquele que lhe proporcionou o prazer no sentido mais absoluto do termo. Ambos partilham a memória da mulher a cuja intimidade acederam, um dia. A conclusão a que chegam é a de que o amor é a única força motriz susceptível de colocar homens e mulheres em pé de igualdade e cuja lembrança é capaz de unir os seres mais improváveis. Uma força absolutamente revolucionária na sua essênncia. E, por isso mesmo, temida.


Caminhávamos como dois velhos amigos numa intimidade profunda que só pode existir entre dois homens que estiveram na cama com a mesma mulher (...). E esta é, na verdade a verdadeira democracia.




Claudia de Sousa Dias

Thursday, August 19, 2010

“Thaïs” de Anatole France (Antígona)




Anatole France é o pseudónimo de Jacques Anatole François Thibault, nascido a 16 de Abril de 1844, Paris e falecido a 12 de Outubro, Saint-Cyr-sur-Loire, em 1924. Publicou o seu primeiro livro em 1868, altura em que desempenhava as funções de assistente de biblioteca, na Biblioteca do Senado. A sua produção literária é vasta, abrangendo vários géneros literários entre os quais a poesia – o primeiro volume de poemas, Les poêmes Dorés, sai em 1873. É agraciado com o prémio outorgado pela Academia Francesa em 1881, pelo romance Le crime de Sylvestre Bonnard. Seguem-se outros títulos como O Lírio vermelho, O Poço de sta Clara, A Rebelião dos Anjos, A Ilha dos Pinguins e Thaïs. Este último aborda a temática do Desejo segundo a perspectiva que vai ao encontro do modelo explicativo do comportamento inspirado na escola psicanalítica, tendo por base o conflito entre as pulsões do inconsciente, ou ID, e as restrições impostas pela sociedade, o superego. No caso de Thaïs trata-se de restrições de ordem mais religiosa do que ética que visam regular os desejos, os apetites, sobretudo sexuais, dos humanos e à questão do conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.

A acção passa-se em Alexandria, já na fase da decadência do Império Romano, altura em que o Cristianismo começa a estender a sua influência às classes dominantes. Apesar de ocupada então pelos Romanos e previamente helenizada por Alexandre, a capital do Egipto, enquanto província romana, permitiu sempre uma relativa liberdade de culto, bastante mais evidente do que nas outras províncias romanas. Os elementos ficcionais do romance coincidem com o período no qual Constantino está prestes a publicar o edital fará do Cristianismo a religião oficial do Império. Contudo Thais é escrita e publicada no período final do romantismo, no século XIX, sendo o Autor um homem devotado à Ciência, à Razão, à necessidade absoluta de laicização do Estado, implicando a separação de poderes entre este e a Igreja, como defende um dos personagens presentes na cena do banquete. O romance, na altura em que foi publicado pela primeira vez, causou grande impacto na opinião pública. E o mesmo romance, viria a servir de base para a composição da ópera de Massenet com o mesmo nome.

Anatole France viria a receber, algumas décadas mais tarde, em 1921, precisamente três anos antes da sua morte, o Prémio Nobel da Literatura.

Thaïs

A acção do romance passa-se em Alexandria, na altura em que o cristianismo deixa de estar sujeito às perseguições pelo facto de, até então, ser visto como uma seita clandestina. No entanto, o excesso de zelo por parte de alguns monges como Pafnúcio, o protagonista, é especialmente visado pela refinada ironia do Autor, patente na descrição das atitudes do anacoreta, tido como santo.
O objectivo de Pafnúcio seria obter um tal grau de pureza espiritual que obrigaria a passar por caminhos que pressupunham privações de um rigor extremo, as quais incluíam não só a supressão dos desejos carnais como também os cuidados básicos de higiene, insistindo em ver no sofrimento causado por infecções e noutras perturbações orgânicas, causadas por prolongados jejuns, uma forma de aproximação à divindade. Chega mesmo a fazer do alto de uma das colunas de um velho monumento em ruínas, o seu habitat, à maneira dos ninhos das cegonhas para, dessa forma, se elevar acima do resto da humanidade e aproximar-se de Deus.

Por terem sempre presente a ideia de pecado original, recusavam aos seus corpos não apenas os prazeres e os contentamentos mas até mesmo esses cuidados que, de acordo com as ideias do século, são considerados indispensáveis. Unia-os a crença que as doenças dos nossos membros purificavam as nossas almas (…) as úlceras e as chagas os mais gloriosos adornos que a carne poderia receber (…).


Ao longo de toda a narrativa, contada pelo ponto de vista Pafnúcio a Beleza, a Saúde e o bem-estar, jamais são vistos como virtudes em si mesmas, mas como inimigos da própria Virtude. Alguns tipos sociais ou étnicos são, igualmente associados a determinadas facetas do mal pelo mesmo eremita:


Anjos semelhantes a adolescentes, que para caminhar se serviam de um bordão como o dos viajantes, costumavam visitar os eremitérios, enquanto os demónios, sob a forma de etíopes ou de animais, erravam em volta dos eremitas, com o fim de os induzir em tentação (…).


Os ascetas, julgando-se furiosamente assediados pelas legiões demoníacas, defendiam-se com a ajuda de Deus e dos anjos, praticando os jejuns, as penitências e as mortificações.

Por vezes, o aguilhão dos desejos carnais dilacerava-os tão cruelmente que chegavam a gritar de dor e a responder com as suas lamentações aos uivos das hienas esfomeadas que erravam sob o céu estrelado. Nessas alturas, os demónios adquiriam formas deslumbrantes. Porque os demónios, embora feios na realidade revestem-se por vezes de uma beleza aparente, que não permite discernir a sua natureza íntima.

Do estilo poético deste género da narrativa faz parte o uso da hipérbole (os uivos de desejo em resposta às necessidades corporais que assediariam os monges como hienas) para melhor ilustrar a obsessão e a deturpação ideológica de Pafnúcio. A batalha travada pelo anacoreta não é, na verdade, nem contra o mundo nem contra o género feminino, mas contra si mesmo. Contra o próprio corpo.

Pafnúcio é proveniente de uma família abastada de Alexandria. Foi educado desde cedo a agir segundo o princípio do prazer, mas ao sujeitar-se a uma filosofia estranha – o Cristianismo – que pressupõe uma série de regras e restrições, tendo em vista a moderação e o respeito pelo Outro, o monge deturpa a sua essência, que seria o protesto contra a repressão, o imperialismo romano e a extorsão dos povos colonizados através dos pesados tributos impostos pelos Romanos. As consequências desta deturpação manifestam-se numa progressiva e degradação física e mental do protagonista. A mensagem que o Autor pretende fazer passar em Thaïs consiste em mostrar o absurdo a que leva todo o fanatismo religioso, à luz das ideias do Iluminismo e da devoção ao ideal da Razão, embora encontremos, também laivos da teoria psicanalítica, explicativa do comportamento de Freud.


Paradoxalmente, é na altura em que Pafnúcio julga ter conseguido a tão almejada perfeição, que se apercebe ter sido tudo em vão acabando, na realidade, por destruir a própria vida e a da mulher a quem amava…


Thaïs - Uma tragédia em três actos


Apesar de ter sido escrito sob a forma de romance, Thaïs é uma obra facilmente adaptável ao teatro, não só pelo uso pelo recurso frequente aos diálogos mas pela própria estrutura dramática, tripartida e desenvolvida segundo os mesmos cânones das tragédias clássicas: o páthos de Thaïs e Pafnúcio, a presença da Fatalidade, a hybris ou a soberba do protagonista, o reconhecimento ou anankê e a punição expiação no final, sinal da implacabilidade de Némesis, do Destino ou do dedo de Jahveh.


Parte I – O Lótus

A flor do Lótus é, para os orientais, o símbolo da beleza e, para os antigos Egípcios, a personificação da Pureza. É uma flor que cresce contudo, num pântano, emergindo do lodo e crescendo em direcção ao céu. Possui uma beleza nívea e ofuscante como a bela cortesã e dançarina, de origem humilde, Thaïs, a qual é pelo autor identificada com aquela flor causadora também de embriaguez ou alucinações por algumas comunidades que na Antiguidade a usavam como alucinogéneo. Thaïs tem uma infância difícil, recheada de maus-tratos e exposta socialmente a um ambiente hostil, onde estão presentes o álcool e a violência. Thaïs seria, por isso, uma criança em risco e em situação extremamente vulnerável. Sobretudo porque ser, também, extremamente bela. Conta, inicialmente, com a protecção de um escravo etíope, apreciando-lhe a veia humanitária, e tomando contacto com a nova religião oriunda de terras da Palestina, o Cristianismo. O escravo é, entretanto, afastado e Thaïs aliciada a vender o corpo por uma reputada proxeneta, caçadora de “talentos” e com ligação às altas esferas do poder da sociedade alexandrina, a qual decide treiná-la nas artes de Tersipcore e de Vénus.


Pafnúcio conhece Thaïs durante um espectáculo, antes de se tornar monge. Após abraçar a nova religião, persegue-o a obsessão de “salvar” a deslumbrante cortesã e bailarina. Na verdade, Pafnúcio não suporta perdê-la para os possuidores de fortunas lhe garantem o acesso a sua casa e aos seus favores.



Thaïs é a incarnanão da Beleza e do Prazer, dois dos luxos mais ambicionados. Mas apesar de das adulações e das honrarias que lhe dispensam, a beldade começa a ficar saturada e ser vista como um objecto, entediando-se com as relações superficiais. Após atravessar uma crise existencial que a lança num período depressivo, acaba por se deixar seduzir pelas promessas de Pafnúcio, acreditando encontrar na religião e no retiro conventual a paz que procura, isolada dos seus predadores. Thaïs procura na realidade um portal para a libertação e o respeito votado pela sociedade. Mas no fundo o que Thaïs deseja realmente é o amor em termos absolutos e a amizade destituída de interesse.


Uma personagem utilizada como contraponto em relação a Pafnúcio é o abade Palémon, agricultor e jardineiro, cujo maior gosto assenta no cultivo de um pequeno quintal. Este clérigo de índole pacífica e sem grandes ambições quer materiais quer no tocante a honrarias e veneração dos outros, manifesta grande empatia pelos seres mais tímidos, esquivos, conseguindo mediante paciência infinita, conquistar-lhes a confiança. Palémon é um Cristão para o qual a ambição extrema no sentido de conseguir a perfeição é uma forma de soberba, preferindo encontrar a beleza nas coisas simples e procurar a delicadeza e mansidão das criaturas pacíficas.


Possa então o Senhor abençoar a tua resolução, tal como tem abençoado as minhas alfaces! Todas as manhãs, ele, com a sua força, derrama o orvalho sobre o jardim e a sua bondade faz-me glorificá-lo pelos pepinos e abóboras que me dá. Porque nada é mais temível do que os movimentos desordenados que perturbam os corações (…).

O seu estilo de vida indicia estar o protagonista a perder o seu tempo a tentar igualar a divindade quando deveria amar os outros seres, fossem eles belos ou feios mas possuindo a bondade intrínseca das criaturas selvagens não corrompidas pela sociedade. A construção deste personagem por Anatole France reside inequivocamente na concepção do homem por Jacques Rousseau e a teoria do “bom selvagem”, crente que é a sociedade que corrompe o homem, dotando-o da hybris, do orgulho, manifesto numa ambição desmedida, quer material quer espiritual, traduzindo-se em estados de alma “doentios”:

Por vezes, esse arrebatamento mergulha-nos numa alegria desregrada e aquele que a eles se abandona faz com que ressoe no ar corrompido, o riso sombrio das bestas. Essa lamentável alegria arrasta o pecador para todo o tipo de desordens.


O discurso de Palémon é uma espécie de prenúncio ou indício que faz antever um pouco a actuação de Pafnúcio ao longo do romance. Palémon desempenha em Thaïs a função de um oráculo, como nas tragédias clássicas, ao passo que Pafnúcio surge como um profeta do Antigo Testamento, anunciador de tragédias e cataclismos se a humanidade não sucumbir, por medo, à submissão diante de um Deus omnipotente e vingador. Enquanto isso, Palémon continua a apreciação do fervor religioso como prejudicial à saúde mental dos homens, que vai conhecendo durante a vida monacal:


... foi-me dado perceber, na minha já longa vida, que o cenobita não tem pior inimigo que a tristeza. Refiro-me a essa tenaz melancolia que me envolve a alma como uma bruma e a esconde da luz de Deus.


Este convite à moderação do fervor religioso radica no pensamento racional nascido directamente do Iluminismo ao qual Anatole France vai beber a maior parte do pensamento, manifesto nas entrelinhas do romance e na própria linguagem:


Irmão Palemon, pretendo, com efeito, glorificar o Senhor. Fortifica-me com o teu conselho pois tem o dom de iluminar e o pecado nunca conseguir obscurecer e claridade da tua inteligência.


Sonhos, visões e alucinações


Todos os sonhos de Pafnúcio exprimem, nesta fase, um conflito. Não só aquele que opõe o princípio do prazer ao da realidade mas também a contradição decorrente da distorção do conteúdo dos Evangelhos. Pafnúcio é o homem que perde de vista os fins ao emaranhar-se no labirinto dos meios. Um forte indício desta mesma desorientação é aquele que se exprime na expressão de desagrado da estátua durante o sonho. Trata-se, um aviso do próprio inconsciente Pafnúcio estaria a deturpar o conceito de fé e da relação com o Outro. O erro advém do exagero, que por sua vez, tem radica, como já foi dito, em sentimentos como o orgulho ou a soberba, motivo de ofensa grave para todo o género de divindade – pagã ou cristâ – e susceptível de atrair uma forma exemplar de punição. E Pafnúcio chega mesmo ao ponto de escolher o cimo de uma coluna para viver e elevar-se relativamente ao resto dos homens, distanciando-se do exercício da humildade para se destacar aos olhos de Deus querendo igualar-se-lhe. Ora se Javeh não o permitiria ao Anjo favorito jamais poderia admitir semelhante audácia num homem. Pafnúcio não parece ter consciência de alimenta dentro de si, uma forma subtil de Desejo, ou Tentação: a da Imortalidade. Ou, pelo menos, a de se tornar igual ao Deus que imagina, ou mesmo o desejo de se tornar, ele próprio Deus e dono do destino dos homens. O grande pecado de Pafnúcio não é a luxúria, à qual por mais que tente, não é de todo imune, mas a vaidade e o desejo de poder e de influenciar as massas, de dominar os homens.

Noutro momento da narrativa, a caminho da casa de Thaïs, Pafnúcio cruza-se com um monge hindú/budista em pleno acto de meditação. Ao alexandrino, parece-lhe absurda a aspiração a uma ausência total de desejos sem esperar qualquer recompensa, pelo menos numa vida após a morte. Pafnúcio é incapaz de apreender a noção de equilíbrio interno pela neutralização do desejo ao invés de o reprimir, posição defendida por Timocles de Cós, ao qual a perfeição parece ser passível de ser atingida pelo exercício ou prática desinteressada do Bem em busca de equilíbrio – interno e por acréscimo externo, isto é em relação com a sociedade – sem esperar recompensa ou qualquer espécie de retorno.

Pafnúcio perece ser, por outro lado, impelido pelo impulso de destruição. Esta faceta da sua personalidade parece ter sido inspirada numa figura que causou terror no tempo do Renascimento: o monge Savonarola, conhecido por destruir inúmeras obras de arte e livros, aos quais considerava profanos, em vários auto-de-fé. Este Pafnúcio de Anatole France faz o mesmo com objectos artísticos, livros e tudo o que se pode associar à cultura helenístico-romana ou egípcia os quais entende rivalizarem com a atenção exclusiva exigida pelo austero Deus que imagina. Para este asceta fundamentalista, toda a Beleza, sobretudo quando expressa em forma de Arte criada pelo Homem, transporta atrás de si o Desejo e a Cobiça, afastando os homens de Deus.

A Mulher, representada por Thaïs, está directamente ligada ao Desejo carnal, podendo ser um elemento susceptível de exercer o poder ou a autoridade sobre os homens uma espécie de concorrência directa ao poder exercido pelo clero. Ao converter uma figura carismática e influente como Thaïs, Pafnúcio ganha credibilidade junto das massas populares, convencido da sua superioridade não só em relação à hetaira e cortesã mas também em relação aos intelectuais e filósofos seus contemporâneos. Um dos momentos mais altos do romance é o banquete em casa da jovem cortesã, onde se reúne toda uma corte de sábios, filósofos e políticos não só de Alexandria, mas de várias partes do Império. O cinismo e o cepticismo são a tónica dominante nas discussões que têm lugar durante o banquete. No entanto a desconfiança de Pafnúcio em relação ao amor e ao desejo, parecem radicar apenas e só no medo da vulnerabilidade, não se afasta muito do cinismo de alguns convivas que afirmam que “o amor é uma doença do fígado”.


Parte II - O Papiro a discussão filosófica em casa de Thaïs

Na segunda parte tomar conhecimento com a personalidade e estilo de vida de Thaïs até à altura em que esta opta, persuadida por Pafnúcio, por entrar para a vida conventual. Durante o banquete em sua casa, no qual está presente Pafnúcio, acompanhado pelo armador Nicias, amigo de outrora, acorrem altos funcionários do Império, artistas e filósofos, assim como outras beldades, embora menos conceituadas que Thaïs.

Discute-se a Virtude, a Beleza, o relativismo – usando uma fábula de Esopo. Zenotémis expõe uma genial interpretação do Antigo Testamento judaico; Hermodoro aborda a teoria filosófico mística de Hermes Trimegisto; Nícias mostra-se um nihilista pírrico e Cota, um defensor do despotismo esclarecido, regime no qual o Estado estaria acima de todas as coisas e gozaria de plenos poderes para interferir na vida privada dos cidadãos. Durante a sua exposição, Hermodoro diz temer o futuro da Europa, antevendo o Império invadido pelas tribos bárbaras do Norte e do Oriente. Nas entrelinhas, nota-se o receio do Autor pelas consequências da guerra franco-prussiana fazendo uma clara analogia /transposição entre duas épocas com um abismo temporal de mais de 1500 anos.

De que adianta iludirmo-nos? O império (Romano ou Napoleónico?), agonizante, tornou-se para os bárbaros (Germanos ou prussianos?) uma presa fácil. As cidades, edificadas pelo génio helénico e pela ciência latina em breve serão saqueadas por selvagens ébrios. A Arte e a Filosofia deixarão de existir na terra.

As conclusões retiradas do banquete de Thaïs não agradam muito a Pafnúcio, o qual vê esbaterem-se, talvez demasiadamente para a sua forma simplificada de raciocínio, as fronteiras entre o Bem e o Mal, como na parábola das azeitonas de Hermodoro em resposta ao problema levantado por Nícias: A que chamas tu bem e mal?.

Ao que Hermodoro ...mostrou um pequeno asno feito em metal de Corinto que carregava dois cestos, um com azeitonas brancas e outro com azeitonas pretas:
- Reparem nestas azeitonas – disse-lhe – o nosso olhar deleita-se agradavelmente com o contraste das suas cores, e ficamos satisfeitos por estas serem mais claras e as outras serem mais escuras. Porém, se fossem todas dotadas de pensamento e de conhecimento, as brancas diriam: é bom que a azeitona seja branca e mau que seja preta e o conjunto de azeitonas pretas detestaria o conjunto das azeitonas brancas. Temos sobre isso um melhor discernimento, porque estamos acima delas tal como os deuses estão acima de nós. Para o homem, que apenas vê metade das coisas, o mal é um mal; para Deus que tudo vê e tudo compreende o mal é um bem. Claro que a fealdade é feia e não bela. Mas se tudo fosse belo, o todo não seria belo. Por isso, devemos concluir que é bom que exista o mal como exemplarmente demonstrou o segundo Platão, mais ilustre do que o primeiro.

Trata-se de uma parábola que demonstra a inutilidade e o erro da não-aceitação da diferença assim como o erro do desejo de supremacia de algumas religiões ou nações, culturas ou civilizações sobre outras. Eucrito sublinha a importância das motivações: da consciência e da intenção face à atitude daquele que pratica o mal. (…) O mal é um mal, não para o mundo, cuja indestrutível harmonia não pode destruir, mas para o maldoso que o pratica, podendo não o praticar.

O debate prossegue, discutindo-se o amor e o poder da Beleza até Thaïs se sentir saturada e desiludida por ser tratada apenas como mais um objecto, ou obra de arte, expulsando, num acto de impaciência, os convivas da sala. É a oportunidade pela qual Pafnúcio, como um verdadeiro Rasputine, aguarda por intuir em Thaïs uma certa insatisfação com a vida, aliada a um sentimento de tédio recorrente bem como a vontade não ser reconhecida como apenas um objecto que se deseja possuir. Pafnúcio recorre a todo o seu arsenal de argumentos para a convencer a largar todos os seus bens – destruindo grande parte deles - e entrar para um convento de forma a se purificar dos seus pecados.

III Parte – O Eufórbio


A terceira parte é na verdade quase um epílogo onde ocorre o desenlace, uma espécie de anticlímax, que se segue ao final do segundo acto. O percurso das duas personagens – Thaïs e Pafnúcio – é divergente, tanto no estilo de vida que adoptam como na forma de conquistar a admiração e o reconhecimento da sociedade. O eufórbio é uma planta dúbia: algumas espécies servem de medicamento e são utilizadas como cataplasma para curar feridas; noutras ou utilizada em determinadas dosagens ou ainda combinada com outras substâncias, o seu suco é venenoso. A fé poderá ter o mesmo efeito duplo consoante a “dose “ com que é aplicada; se no primeiro caso poderá ajudar a curar os males da alma (por exemplo, depressão), no segundo poderá agravá-los (comportamentos esquizóides, afastamento da realidade, loucura). Thaïs e Pafnúcio tornam-se os dois paradigmas opostos da aplicação da planta do “eufórbio” que é a fé.

Pafnúcio regressa ao deserto com o objectivo de continuar a aprimorar o seu aperfeiçoamento espiritual. Continua, no entanto, assolado por pesadelos e visões, fruto dos seus prolongados jejuns A ausência de Thaïs – a qual, após a expiação dos excessos da vida anterior, prossegue uma calma vida no convento onde exerce a influência nas jovens noviças - não lhe diminui o desejo e os “demónios” continuam a habitar dentro de si. Pafnúcio desejou e obteve a erradicação da beleza de Thaïs para não amar. Mas não consegue destruir a lembrança dessa mesma beleza. A consumação da tragédia no final do “terceiro acto” revela o erro e proporciona o reconhecimento.

A Clivagem entre Ciência e Religião

O conflito entre a fé e a ciência, nomeadamente a Medicina, para curar as doenças da alma, é uma das grandes preocupações dos filósofos iluministas do século XVIII. E mais ainda, no século XIX, com as descobertas científicas e, também, com o aparecimento da Psicologia como ciência autónoma em relação à Filosofia. A colagem desta linha de raciocínio na época em que vivem Thaïs e Pafnúcio é proporcionada pela intervenção de Lúcio Cota na cena em que exibe o seu cepticismo quanto aos poderes curativos e a eficácia dos supostos milagres de Pafnúcio:

Viva, Pafnúcio. Que fazes tu, aí em cima? (...)terá essa coluna para o teu espírito uma conotação fálica? (...) Por Júpiter, estás a ouvir o que diz, Aristeu? (...) O nefelococcífero exerce, como tu, a Medicina! Que me dizes de um tão elevado colega??.

(Aristeu)

É possível que ele cure, melhor até do que eu próprio, certas doenças como, por exemplo, a epilepsia (...), a causa desse mal está em parte, na imaginação e tens de reconhecer, Lúcio, que este monge, empoleirado naquela cabeça de deusa, impressiona mais fortemente a imaginação dos doentes do que eu, curvado no meu laboratório, no meio de grosas e almofarizes. Existem forças, Lúcio, infinitamente mais poderosas que a ciência e a razão.

(Cota)

Quais?

(Aristeu)

A Ignorância e a Loucura.

A crítica aos fazedores de falsos milagres é impiedosa assim como a demonstração da eficácia do poder de auto-sugestão da mente nos seres mais impressionáveis.

Assim Thaïs é uma obra revolucionária, de um Autor mundialmente reconhecido embora não do conhecimento das massas, mas capaz de influenciar alguns dos Autores portugueses mais progressistas como Eça de Queirós e o recentemente falecido, também Prémio Nobel da Literatura, José Saramago.






Cláudia de Sousa Dias

Monday, August 02, 2010

"A Casa das Areias" de Luísa Monteiro (Huguin)


O talento e o espírito crítico de uma escritora famalicense num romance que vem recuperar tradições já desaparecidas e recriar o ambiente da primeira metade do século passado


A acção de A Casa das Areias desenrola-se ao longo de todo o séc. XX e situa-se, sobretudo, na região de Famalicão e arredores. Este facto só é detectado pela associação de algumas das personagens a figuras da história e literatura portuguesa (como Bernardino Machado, Camilo Castelo Branco ou Adolfo Casais Monteiro) como sendo seus conterrâneos.

O conteúdo da narrativa baseia-se na saga de duas famílias religiosa e culturalmente opostas: a família de Ana, judia, culta, requintada, liberal que acompanha a evolução dos tempos e das mentalidades; a família de Camilo, cristã, rude, tosca, violenta na qual se evidencia, de forma chocante, o abismo entre a detenção de riqueza e a ausência de educação e instrução sobretudo nas mulheres.

A Autora serve-se desta diferença abissal para criticar acerrimamente os "brandos costumes" portugueses, sob o consentimento tácito do pároco da Igreja na figura do Pároco da aldeia que aceita a violência doméstica como algo de natural.

Ao longo da narrativa, as mulheres da família de Camilo sofrem horrores no seu quotidiano, violações dos seus direitos mais fundamentais sendo consideradas pouco mais do que animais de trabalho e reprodutoras.

Por outro lado, na família de Ana, as mulheres têm acesso à cultura, participam na gestão da casa e, no que toca à protagonista, trata-se de uma mulher que, ao longo da primeira metade do séc. XX, se encontra mais de cinco décadas à frente da mentalidade da sua época.

Este vanguardismo é-lhe facultado pelas vantagem de ser economicamente independente o que lhe garante total liberdade no que toca à sexualidade: utiliza os seus amantes por um curto período de tempo, ou seja apenas o necessário para conceber - a produção independente numa época em que não se ouvia sequer falar de inseminação artificial. Com Ana os papéis invertem-se passando o elemento masculino a assumir o papel de mero reprodutor.

A riqueza da protagonista e as obras de solidariedade que promove para a povoação bem como o facto de ser dadora de uma quantidade significativa de postos de trabalho na sua terra permite-lhe assegurar o respeito da população fazendo refrear as más-línguas.

Ana não assume o papel de uma Eva, a esposa perfeita em linguagem bíblica, mas de uma Lillith, a mulher-demónio irreverente cuja rebeldia não permite que se encaixe no modelo convencional de mulher-esposa-mãe-de-família. Todas as mulheres do ramo judeu são Lilliths em potencial mas só conseguem sê-lo em pleno quando integradas na Casa das Areias, o refúgio de Ana.

Quando saem do lar materno assumem algumas características de Eva sem nunca conseguirem assumir totalmente a personagem de qualquer dos dois arquétipos femininos. Tornam-se figuras algo híbridas tal como Teresa ou Esmeralda.

No ramo cristão, só a jovem adolescente Janete, dotada de uma extrema sensibilidade, talento e inteligência, consegue fugir à tradição. Fuga essa que só é perdoada pelo facto de esta desde cedo se revelar como uma criança de comportamentos marcadamente anti-sociais, algo esquizóide, com sérias dificuldades em distinguir a fantasia da realidade.

Somente no dealbar do séc. XXI é que se concretiza a possibilidade de uma Lilith descendente de ambas as famílias, herdeira dos traços de personalidade de Ana e da sensibilidade e talento de Janete, poderá exprimir a sua rebeldia e inconformismo mas fora do limite da Casa das Areias e da cidade onde nasceu tornando-se cidadã do mundo.

No texto, aquilo que transparece é que a intenção da autora é a de criticar a violação dos direitos da Mulher recorrendo, para isso, à comparação de dois modelos radicalmente opostos de estrutura familiar e imaginando um perfil feminino totalmente alienado da época (1ª metade do séc. XX) como Ana, a judia sedutora. Isto porque sabemos perfeitamente que a sociedade não perdoa a quem se desvia da norma, sobretudo porque no Minho rural a palavra "judeu" é frequentemente conotada de "cruel".

No último quartel do séc XX assistimos a uma lenta, gradual mas notória mudança que nos dá a entender que começa a haver um espaço para quem quer ser diferente mas, apesar disso, é ainda necessário sair da terra Natal para que o crescimento e desenvolvimento pessoal se possa efectuar em pleno.

A escrita em "A Casa das Areias" revela uma riqueza de linguagem povoada de regionalismos (ex: "eira", "Masseira","uvas americanas", "pêras D. Joaquina", etc.) evocando cheiros, sabores, a mentalidade típica da região e fazendo ressuscitar costumes e tradições já desaparecidas (ex: "as cornetadas") o que lhe confere todo um interesse antropológico que não pode deixar de ser levado em conta.

Esta é uma obra para ser lida saboreando os pormenores. Cada palavra evoca a memória de um passado não muito distante e que poderá ainda fazer parte de uma forma endémica de algumas localidades, mais remotas do país.

Uma bela sátira social cheia de ironia e, simultaneamente, uma ode à emancipação da Mulher.


Cláudia de Sousa Dias

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